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Maria Luiza Sena – Med XIV FASA A injúria renal aguda (IRA) caracteriza-se por redução abrupta (em horas a dias) da taxa de filtração glomerular, resultando na inabilidade de o rim exercer suas funções básicas de excreção das escórias nitrogenadas e manutenção da homeostase hidroeletrolítica do organismo. Frequentemente é reversível. O termo “injúria renal aguda” descreve um declínio rápido da função. O indicador mais comum de LRA é azotemia, ou seja, acúmulo de escórias nitrogenadas (ureia, ácido úrico e creatinina) no sangue e redução da taxa de filtração glomerular (TFG). Por essa razão, a excreção das escórias nitrogenadas diminui e o equilíbrio hidroeletrolítico não pode ser mantido. EPIDEMIOLOGIA A LRA é um risco frequente aos pacientes em estado crítico internados nas UTI e sua taxa de mortalidade varia de 15-60%. A maioria dos episódios de LRA ocorre no hospital, havendo uma incidência de 20% em todos os pacientes hospitalizados e de até 50% entre os pacientes em UTI. ❖ As causas comuns de LRA adquirida na comunidade incluem depleção de volume, IC, efeitos adversos de medicamentos e obstrução do trato urinário, ou ainda malignidade. ❖ Os cenários clínicos mais comuns para LRA adquirida no hospital são sepse, cirurgias de grande porte, doença crítica envolvendo insuficiência cardíaca ou hepática e administração de medicamentos nefrotóxicos. A LRA é a principal causa de solicitação de parecer da nefrologia em hospitais. Em contrapartida, a incidência de LRA adquirida na comunidade não é superior a 1%. A incidência da LRA em pacientes internados vem crescendo, sendo mais alta entre os pacientes graves. Os pacientes que sobrevivem e se recuperam de um episódio de LRA grave com necessidade de diálise têm risco aumentado para desenvolvimento tardio de doença renal em estágio terminal com necessidade de diálise. Brasil -> um estudo de coorte prospectiva realizado com pacientes internados em UTI revelou que os estágios mais avançados da doença foram associados a maiores ocorrências de óbito. A incidência foi de 21,3% e a mortalidade de 25,7%. ETIOLOGIA A IRA pode ser causada por vários tipos de distúrbios, inclusive redução do fluxo sanguíneo sem lesão isquêmica, lesão isquêmica, tóxica ou obstrutiva dos túbulos renais e obstrução das vias urinárias distais. Em geral, as causas da IRA são classificadas em pré-renais, intrarrenais e pós-renais. Em conjunto, as causas pré-renais e intrarrenais são responsáveis por 80-95% dos casos de IRA. INJÚRIA PRÉ-RENAL É o tipo mais comum de IRA e caracteriza-se por redução acentuada do fluxo sanguíneo renal. O processo é reversível quando a causa da redução do fluxo pode ser detectada e corrigida antes que ocorra lesão dos rins. Caracteriza-se também por redução da excreção urinária de sódio e água. As causas de IRA pré-renal incluem: ❖ Depleção grave do volume vascular (ex.: hemorragia). ❖ Redução da perfusão renal em consequência de IC e choque cardiogênico. ❖ Redução do enchimento vascular por ampliação da capacitância vascular (ex.: anafilaxia ou sepse). Os idosos têm risco especialmente alto em razão de sua predisposição à hipovolemia e à prevalência alta de doenças vasculares renais nesta faixa etária. Alguns mediadores vasoativos, fármacos e compostos utilizados com finalidade diagnóstica causam vasoconstrição intrarrenal grave e podem induzir hipoperfusão glomerular e IRA pré-renal (ex.: endotoxinas, contrastes radiológicos, ciclosporina e AINEs. ❖ Algumas dessas substâncias também causam necrose tubular aguda. Além disso, várias classes de fármacos usados comumente podem interferir nos mecanismos de adaptação renal e converter um quadro de hipoperfusão renal compensada em insuficiência pré-renal. APG 17 - INJÚRIA RENAL AGUDA Maria Luiza Sena – Med XIV FASA ❖ IECA e BRA -> atenuam os efeitos da renina no fluxo sanguíneo renal; quando são combinados com DIU, esses fármacos podem causar IRA pré-renal nos pacientes com fluxo sanguíneo reduzido em consequência de doença renal dos vasos de pequeno ou grande calibre. ❖ Prostaglandinas -> têm efeito vasodilatador nos vasos sanguíneos renais. ❖ AINEs -> podem reduzir a irrigação sanguínea dos rins por inibição da síntese de prostaglandinas. Em indivíduos com perfusão renal reduzida, AINES podem desencadear IRA pré- renal. Normalmente, os rins recebem 20-25% do DC -> esse volume sanguíneo expressivo é necessário para que os glomérulos removam as escórias metabólicas e regulem os líquidos e os eletrólitos do corpo. Felizmente, o rim normal pode tolerar reduções consideráveis do fluxo sanguíneo, antes que ocorra lesão renal. À medida que o fluxo sanguíneo renal diminui, há redução da TFG, as quantidades de sódio e de outras substâncias filtradas pelos glomérulos diminuem e a necessidade de mecanismos dependentes de energia para reabsorver estas substâncias é reduzida. Conforme a TFG e o débito urinário aproximam-se de 0, o consumo de oxigênio pelos rins aproxima-se do que é necessário para manter as células tubulares renais vivas. Quando o fluxo sanguíneo diminui abaixo desse nível (20-25% do normal), começam a ocorrer alterações isquêmicas. ❖ Em razão de sua taxa metabólica alta, as células do epitélio tubular são mais suscetíveis à lesão isquêmica. Quando não é tratada adequadamente, a hipoperfusão renal prolongada pode causar necrose tubular isquêmica. IRA pré-renal evidencia-se por redução aguda do débito urinário e elevação desproporcional do nível de ureia sanguínea em comparação com a concentração sérica de creatinina. Normalmente, o rim responde à redução da TFG com diminuição do débito urinário. ❖ Um dos primeiros sinais de LRA pré-renal é redução aguda do débito urinário. ❖ Excreção percentual baixa de sódio (<1%) sugere que a oligúria seja devida à redução da perfusão renal e que os néfrons estejam reagindo adequadamente à redução progressiva da excreção de sódio filtrado na tentativa de preservar o volume vascular. Os níveis da ureia também dependem da TFG. A TFG baixa oferece mais tempo para que partículas pequenas (como a ureia) sejam reabsorvidas para o sangue. Por ser uma molécula não difusível maior, a creatinina permanece no líquido tubular e a quantidade total de creatinina filtrada, embora seja pequena, é excretada na urina. Consequentemente, também há elevação desproporcional da razão entre ureia e creatinina sérica. INJÚRIA INTRARRENAL Resulta dos distúrbios que causam lesão das estruturas existentes dentro do rim. A causa mais comum de IRA intrarrenal envolve o parênquima renal nos glomérulos, vasos sanguíneos, túbulos ou interstício. ❖ As principais causas são isquemia associada à IRA pré-renal, lesão tóxica das estruturas tubulares dos néfrons; e obstrução intratubular. ❖ Glomerulonefrite aguda e pielonefrite também podem causar. A redução da filtração glomerular e a lesão epitelial têm várias causas, inclusive vasoconstrição intrarrenal, redução da pressão hidrostática dos glomérulos, diminuição da permeabilidade capilar dos glomérulos, aumento da pressão hidrostática tubular secundário à obstrução e fluxo retrógrado do filtrado glomerular para dentro do interstício. ❖ As lesões das estruturas tubulares do néfron são as causas mais comuns e, em geral, têm origem isquêmica ou tóxica. Lesão/necrose tubular aguda -> caracteriza-se pela destruição das células do epitélio tubular com supressão súbita da função renal. Essa lesão aguda pode ser causada por isquemia, sepse, efeitos nefrotóxicos dos fármacos, obstrução tubular, etc. ❖ As células epiteliais tubulares são sensíveis à isquemia e também suscetíveis às toxinas. ❖ A lesão tubular geralmente é reversível. A lesão tubular aguda isquêmica ocorre mais comumente nos pacientes submetidos à cirurgia de grande porte,hipovolemia grave ou sepse, traumatismo ou queimaduras extensivas. É também uma complicação da hemólise intravascular. Maria Luiza Sena – Med XIV FASA ! Ao contrário da IRA pré-renal, a TFG não aumenta com a recuperação do fluxo sanguíneo renal dos pacientes com IRA causada por NTA isquêmica. INJÚRIA PÓS-RENAL É causada por obstrução da drenagem da urina produzida nos rins, sendo que a obstrução pode ocorrer no ureter, na bexiga ou na uretra. Como o volume maior de urina não pode ser excretada por conta da obstrução, a pressão é transmitida em sentido inverso aos túbulos e néfrons, que são lesados. Hiperplasia prostática é a causa primária mais comum. A evolução da IRA pode ser dividida em 4 fases: Fase inicial -> horas a dias. É o intervalo entre a instalação do evento causador e o desenvolvimento da lesão tubular. Fase oligárica (anúrica) -> 8-14 dias ou mais. Causa retenção súbita de metabólitos endógenos (ureia, potássio, creatinina), que normalmente são eliminados pelos rins. O débito urinário alcança níveis mais baixos nesse ponto. A retenção de líquidos causa edema, intoxicação hídrica e congestão pulmonar. Fase diurética -> é quando os rins tentam se curar e a produção de urina aumenta, mas ocorrem cicatrizes e danos aos túbulos. Há diurese antes que a função renal seja normalizada por completo, logo, os níveis de ureia sanguínea, concentrações séricas de creatinina, potássio e fosfato podem continuar elevados ou aumentar ainda mais. ❖ Durante essa fase, a TFG se eleva, o débito urinário aumenta para 400 mℓ/dia, e, possivelmente, há depleção de eletrólitos em função do aumento da excreção de água e dos efeitos osmóticos dos níveis sanguíneos elevados de ureia. Fase de recuperação -> é quando o edema tubular desaparece a função renal melhora. Há normalização do equilíbrio hidroeletrolítico. Por fim, a função dos túbulos renais é recuperada e a capacidade de concentrar urina aumenta. ❖ Níveis séricos de creatinina e ureia normalizam. ❖ TFG retorna a 70-80% do normal. FISIOPATOLOGIA A fisiopatologia das lesões renais isquêmica e tóxica, origens mais comuns de IRA intrínseca (renal), envolve alterações estruturais e bioquímicas que resultam no comprometimento vascular e/ou celular -> a partir dessas alterações, ocorrem vasoconstrição, alteração da função e morte celular, descamação do epitélio tubular e obstrução intraluminal, vazamento transtubular do filtrado glomerular e inflamação. As células epiteliais tubulares proximais são particularmente sensíveis à hipoxemia e também são vulneráveis a toxinas. Vários fatores predispõem essas células a lesões tóxicas e isquêmicas, incluindo concentrações intracelulares elevadas de várias moléculas que são reabsorvidas ou secretadas pelo túbulo proximal; exposição a concentrações elevadas de solutos luminais que são concentrados pela reabsorção de água a partir do filtrado glomerular; e uma elevada taxa de consumo de O2. A isquemia causa numerosas alterações estruturais nas células epiteliais. A perda da polaridade celular é um evento inicial reversível causado pela isquemia -> ele leva à redistribuição de proteínas da membrana (ex.: Na+, K+-ATPase) da superfície basolateral para a superfície luminal das células tubulares, o que causa a diminuição da reabsorção de sódio pelos túbulos proximais e, consequentemente, aumento de fornecimento de sódio para os túbulos distais. ❖ Estes últimos, por meio de um mecanismo de feedback tubuloglomerular, contribuem para a vasoconstricção arteriolar aferente e diminuição da TFG, agravando ainda mais a perfusão. Maria Luiza Sena – Med XIV FASA A lesão às células epiteliais provoca desprendimento das células danificadas das membranas basais, e sua excreção na urina. Se debris tubulares suficientes se acumularem, eles podem bloquear o fluxo urinário (obstrução por cilindros), aumentando a pressão intratubular e, assim, exacerbando o declínio da TFG. Além disso, o líquido dos túbulos danificados pode vazar para o interstício, resultando na diminuição da produção de urina, aumento da pressão intersticial e colapso dos túbulos. Células tubulares isquêmicas também expressam quimiocinas, citocinas e moléculas de adesão, como a selectina P, que recruta leucócitos (inflamação intersticial) e podem participar de lesões teciduais. As células tubulares necróticas também podem desencadear uma reação inflamatória que contribui para a lesão tubular e alterações funcionais. A lesão tubular é exacerbada por alterações hemodinâmicas graves que causam redução da TFG. A principal é a vasoconstrição intrarrenal, que resulta tanto na redução do fluxo plasmático glomerular como na diminuição do fornecimento de oxigênio aos túbulos na medula externa (alça ascendente espessa e segmento reto do túbulo proximal). Embora uma série de vias vasoconstritoras tenha sido associada a esse fenômeno (ex.: renina-angiotensina, tromboxano A2, atividade nervosa simpática), acredita-se que essa vasoconstrição seja mediada por lesões endoteliais subletais, desencadeando aumento da liberação do vasoconstritor endotelina e diminuição na produção de vasodilatadores, como óxido nítrico e prostaglandinas. ❖ Finalmente, algumas evidências apontam para o efeito direto da isquemia e de toxinas no glomérulo, causando redução eficaz na superfície de filtração glomerular. A área de necrose tubular e a manutenção da integridade da membrana basal ao longo de muitos segmentos permitem o reparo dos focos lesados e a recuperação da função se a causa precipitante for removida. Este reparo depende da capacidade de as células epiteliais lesionadas voltarem a proliferar e se diferenciar. ❖ Mesmo em situações mais graves com destruição de 90% das células epiteliais do túbulo proximal, os 10% de células remanescentes podem entrar em processo de proliferação, estimulados por hormônios e fatores de crescimento, recompondo a epitélio tubular. MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS Tradicionalmente, o curso clínico da IRA subdivide-se em 4 fases: Fase inicial -> começa a partir do momento de exposição. Tem duração variável e depende do tempo de exposição ao agente agressor. Nessa fase, o volume urinário pode estar normal ou diminuído, porém o rim começa a perder a capacidade de excretar adequadamente os compostos nitrogenados. Fase oligúrica -> pode ter grau e duração variáveis. Um volume urinário <500 mL/dia é insuficiente para excretar as quantidades necessárias de soluto, já que a produção de produtos osmoticamente ativos se dá ao redor de 600mOsm/dia e a capacidade máxima de concentração urinária é de 1200mOsm/dia. Assim, o débito urinário <500mL/dia caracteriza oligúria. ! A maioria dos pacientes que se recuperam de uma IRA desenvolve aumento da diurese após 10-14 dias do início da oligúria. Ocasionalmente, não ocorre a fase de oligúria, caracterizando a chamada IRA não oligúrica -> essa situação é comumente observada em associação a nefrotóxicos, agentes anestésicos e sepse. Fase poliúrica/diurética -> pode ser marcada por rápida elevação do volume urinário. A magnitude da diurese independe do estado de hidratação do paciente e, habitualmente, representa a incapacidade dos túbulos regenerados em reabsorver sal e água. ❖ A excreção urinária dos compostos nitrogenados não acompanha o aumento da excreção de sal e água, de modo que a concentração plasmática de creatinina e ureia continua a aumentar e os sintomas e a necessidade de terapia renal de substituição podem persistir. Recuperação funcional -> ocorre após vários dias de diurese normal, com redução gradativa de ureia e creatinina. MANIFESTAÇÕES RENAIS A IRA manifesta-se com uremia, pelo acúmulo dos compostos nitrogenados, e alterações hidroeletrolíticas. Logo, tem-se: ❖ Alteração no balanço de água. ❖ Alteração no balando desódio -> durante a fase oligúrica, o balanço positivo de sódio pode levar à expansão de volume, hipertensão e IC. ❖ Alteração no balanço de potássio -> hiperpotassemia é a principal causa metabólica que leva o paciente com IRA ao óbito. A complicação mais temível da hiperpotassemia é a toxicidade cardíaca, manifestando-se com arritmias que, se não corrigidas, podem levar rapidamente à morte. ❖ Alterações do balanço de cálcio (hipocalcemia), do balando de fósforo (hiperfosfatemia) e acidose metabólica. MANIFESTAÇÕES EXTRARRENAIS Infecções são as complicações extrarrenais mais frequentes no paciente com IRA -> 20-30% dos óbitos na IRA resultam dos processos infecciosos. ❖ As complicações infecciosas são mais observadas na IRA pós- traumática ou pós-cirúrgica, sobretudo quando há envolvimento gastrintestinal. As infecções urinárias são de grande importância nos pacientes com IRA, pela dificuldade de os antibióticos atingirem níveis teciduais ou urinários adequados. Maria Luiza Sena – Med XIV FASA ❖ A presença de cateteres urinários, tanto de demora quanto intermitentes, representa fator predisponente para o desenvolvimento e a manutenção de infecção urinária. Infecções broncopulmonares também são frequentes complicações da IRA. Do ponto de vista cardiovascular, uma das complicações mais frequentes é a pericardite fibrinosa; IC congestiva e hipertensão também podem estar presentes. Complicações neurológicas também são comuns, já que o SN é o que menos tolera a redução rápida da função renal -> encefalopatia urêmica. ❖ Manifestações sensoriais mais precoces são as alterações cognitiva e de memória. Seguem-se as alterações motoras e, finalmente, convulsões e coma. Quanto às complicações do TGI, ulcerações gástricas ou duodenais referem-se aos achados mais comuns. DIAGNÓSTICO Critérios KDIGO (2012) -> utilizam somente alterações da creatinina sérica e a diurese, mas não utilizam mudanças na taxa de filtração glomerular para estadiamento (exceto para crianças <18 anos). ❖ Sugeriu que os doentes sejam classificados de acordo com critérios que resultam no estágio mais elevado (mais grave) de IRA. Estágio Creatinina sérica Débito urinário 1 Aumento na CrS ≥ 0,3 mg/dℓ ou aumento de 1,5 a 1,9 vez da CrS basal < 0,5 mℓ/kg por hora por mais de 6 h 2 Aumento de 2 a 2,9 vezes da CrS basal < 0,5 mℓ/kg por hora por mais de 12 h 3 Aumento de 3 ou mais vezes da CrS basal, ou CrS ≥ 4 mg/dℓ, ou início de terapia de substituição renal < 0,3 mℓ/kg por hora por mais de 24 h ou anúria por 12 h Sabe-se que a elevação da creatinina é um marcador tardio para IRA, pois, ainda que muita específica, é pouco sensível. Vários marcadores têm sido testados para detecção mais precoce da LRA, como o NGAL (neutrophil gelatinase-associate lipocalin), a IL-18 e a KIM-1 (kidney injury molecule-1). DIAGNÓSTICO LABORATORIAL Dosagem de sódio, creatinina, ureia e osmolaridade, coletados simultaneamente na urina e no sangue, pode ser útil na distinção etiológica da IRA. ❖ IRA pré-renal -> retenção de água e sódio e osmolaridade urinária elevada. ❖ IRA renal -> sódio urinário apresenta-se elevado pela lesão tubular e a osmolaridade tende a ser isosmótica no plasma. A fração de excreção de ureia (FEU) e de creatinina (FECr), calculadas pelas relações ureia plasmática/ureia urinária e creatinina plasmática/creatinina urinária, respectivamente, também podem ser utilizadas para auxiliar na diferenciação da IRA pré-renal e renal. ❖ IRA pré renal -> são observadas FEU e FECr frequentemente elevadas, por conta da maior reabsorção tubular de sódio e água, com consequente aumento da concentração urinária de ureia e creatinina. ❖ IRA renal -> essas relações estão diminuídas pelo dano tubular. ! O uso de DIU pode invalidar a utilidade desses índices por até 24hs. Sedimento urinário -> pode ser uma análise útil. Cilindros hialinos aparecem com mais frequência na IRA pré-renal, enquanto cilindros granulosos, discreta leucocitúria e grande quantidade de células tubulares podem ser observadas na IRA renal. ❖ A presença de hemácias dimórficas e de cilindros hemáticos sugere a existência de glomerulonefrite aguda, podendo ser acompanhada de proteinúria moderada a acentuada. ❖ Proteinúria leve pode estar presente tanto na IRA pré-renal quanto na renal. ❖ Positividade para Hb nas fitas reagentes urinárias, na ausência de hemácias, é capaz de indicar a presença de mioglobina, podendo sugerir presença de rabdomiólise. ❖ Leucocitúria com intenso predomínio de eosinófilos associada a eosinofilia no sangue periférico sugerem o diagnóstico de nefrite intersticial. DIAGNÓSTICO POR IMAGEM US de rins e vias urinárias -> é simples e importante na avaliação das alterações da função renal. Tamanho renal reduzido e ecogenicidade aumentada com perda da diferenciação corticomedular podem indicar doença renal preexistente, tornando possível diferenciar doença renal crônica e IRA. ❖ É capaz de fornecer informação sobre a existência de obstrução das vias urinárias e de cálculos. Cintilografia renal -> pode ser uma alternativa, auxiliando na avaliação da perfusão renal. TC -> no caso de evidência de obstrução sem fator causador visível, ela pode fornecer mais informações, sendo, na maioria das vezes, desnecessária a utilização de contraste, que poderia agravar a IRA em curso. Maria Luiza Sena – Med XIV FASA BIÓPSIA RENAL Indica-se a biópsia renal precoce (nos primeiros 5 dias) quando há suspeita de glomerulonefrite rapidamente progressiva, de nefrite intersticial aguda, de necrose cortical bilateral ou na ausência de diagnóstico clínico provável. ❖ Fornecerá bases para justificar uma terapêutica mais agressiva, bem como uma indicação prognóstica, pela avaliação histológica de componentes inflamatórios e fibróticos. ACIDENTES OFÍDICOS As cobras são a causa global mais importante de acidentes com animais peçonhentos em seres humanos. A composição do veneno varia não apenas entre gêneros e espécies, mas também pode variar entre cobras da mesma espécie e até mesmo em determinada cobra ao longo do tempo A IRA nos trópicos é muito influenciada pelo impacto de doenças locais, o que pode ser estabelecido por infecções específicas, consumo de água não potável, uso de medicações naturais, exposição a toxinas ambientais e envenenamento por cobras e artrópodes. EPIDEMIOLOGIA A mordida de cobra é um risco ocupacional nas áreas rurais das regiões tropicais e subtropicais. Dados do estudo Global Burden of Disease, de 2005, sugerem que pelo menos 421.000 envenenamentos e 20.000 mortes ocorrem a cada ano como resultado de mordida de cobra, com maior impacto ocorrendo no sul e sudeste da Ásia e África subsaariana. A lesão renal pode desenvolver-se em seguida à mordida de cobras com venenos hemotóxicos ou miotóxicos, pertencentes às famílias Viperidae e Elapidae, como a víbora de Russell, a pequena víbora indiana, biúta, cascavel, cobra-tigre, víbora-verde, espécies de Bothrops, Lachesis e Crotalus, cobra da árvore, cobra-marrom, espécies de Hypnale e Cryptophis, e cobra do mar. ❖ A lesão é mais frequente por mordidas de víbora de Russell e acidentes botrópicos e crotálicos, com incidência variando de 10%-32%. A prevalência é mais alta em crianças, provavelmente devido à maior dose do veneno em relação ao tamanho corporal. As serpentes do gênero Crotalus (cascavéis) distribuem-se de maneira irregular pelo Brasil, sendo responsáveis por cerca de 7,7% dos acidentes ofídicos registrados, e podendo representar até 30% dos acidentes em algumas regiões. ❖ O gênero Crotalus apresenta o maior coeficiente de letalidade dentre todos os acidentes ofídicos (1,87%), pela frequência com que evoluem para IRA. FISIOPATOLOGIA O veneno de cobra é umamistura complexa de enzimas, toxinas e peptídeos. Injúria renal pode ocorrer como resultado de: ❖ Nefrotoxicidade direta. ❖ Vasoconstrição renal. ❖ Hipovolemia. ❖ Hipotensão. ❖ Depressão do centro vasomotor medular ou do miocárdio. ❖ Hemólise. ❖ Alteração da fibrinólise. ❖ Mioglobinúria. ❖ Coagulação vascular disseminada. Estudos experimentais demonstram evidência de lesão tubular manifestada por aumento de excreção de enzimas tubulares, fração de excreção de sódio alterada e necrose tubular aguda. Outras mudanças têm sido notadas, como mesangiólise, perda de integridade das junções celulares, proteólise da matriz extracelular, lise das paredes dos vasos (levando à mesangiólise) e alteração na função das enzimas vitais para a integridade celular. Recentemente, a liberação intensa de mediadores inflamatórios, indução de estresse oxidativo e liberação de alarminas mitocondriais têm sido evocado como possíveis fatores patogênicos na injuria renal aguda induzida por veneno de cobra. À macroscopia, os rins podem mostrar hemorragias petequiais, e a microscopia óptica geralmente revela lesão tubular renal aguda, variando de mudanças leves até quadro de necrose tubular, com cilindros hialinos ou pigmentados, graus variados de edema intersticial e infiltração e focos de hemorragias esparsas. AÇÕES DO VENENO Ação neurotóxica -> produzida pela crotoxina, uma neurotoxina de ação pré-sináptica, que atua nas terminações nervosas, inibindo a liberação de acetilcolina. Esta inibição é o principal responsável pelo bloqueio neuromuscular, do qual decorrem as paralisias motoras apresentadas pelos pacientes. Ação miotóxica -> produz lesões de fibras musculares esqueléticas (rabdomiólise), com liberação de enzimas e mioglobina para o sangue, posteriormente excretadas pela urina. Não está perfeitamente identificada a fração do veneno que produz esse efeito miotóxico sistêmico. Estudos mais recentes não demonstraram a ocorrência de hemólise nos acidentes humanos. Ação coagulante -> decorre de atividade da trombina que converte o fibrinogênio diretamente em fibrina. O consumo do fibrinogênio pode levar à incoagulabilidade sanguínea. Geralmente não há redução do número de plaquetas, e as manifestações hemorrágicas, quando presentes, são discretas. Maria Luiza Sena – Med XIV FASA MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS A manifestação sistêmica mais comum em acidentes envolvendo essas cobras é a anormalidade de coagulação levando à diátese hemorrágica. Paralisia muscular e rabdomiólise podem ocorrer seguidos por mordida por cobra do mar e acidentes crotálicos. A IRA desenvolve-se em poucas horas, ou até 96 horas após a mordida, e é usualmente oligúrica e catabólica, com elevação rápida da ureia, creatinina sérica e potássio. A oligúria pode perdurar por 1 a 2 semanas, e sua persistência sugere a possibilidade de necrose cortical aguda. Urina com coloração de refrigerantes tipo cola é notada em pacientes com hemólise ou rabdomiólise. Manifestações gerais -> mal-estar, sudorese, náuseas, vômitos, cefaleia, secura da boca, prostração e sonolência ou inquietação, são de aparecimento precoce e podem estar relacionados a estímulos de origem diversas, nas quais devem atuar o medo e a tensão emocional desencadeada pelo acidente. Manifestações neurológicas -> pela ação neurotóxica do veneno, apresentam-se nas primeiras horas e caracterizam as “fáscies miastênica” (fácies neurotóxica de Rosenfeld) evidenciadas por ptose palpebral uni ou bilateral, flacidez da musculatura da face. ❖ Ocorre oftalmoplegia e dificuldade de acomodação (visão turva) ou visão dupla (diplopia) e alteração do diâmetro pupilar (midríase). Pode aparecer paralisia velopalatina, com dificuldade à deglutição, diminuição do reflexo do vômito, modificações no olfato e no paladar. As alterações descritas são sintomas e sinais que regridem após 3 a 5 dias. Musculares por atividade miotóxica -> dores musculares generalizadas (mialgias) de aparecimento precoce. Urina pode estar clara nas primeiras horas e assim permanecer, ou tornar-se avermelhada (mioglobinúria), e depois, progressivamente marrom, traduzindo a eliminação de quantidades variáveis de mioglobina, pigmento liberado pela necrose do tecido muscular esquelético (rabdomiólise). Não havendo dano renal, a urina readquire sua coloração habitual em 1 ou 2 dias. Distúrbios da coagulação -> pode haver aumento do Tempo de Coagulação (TC) ou incoagulabilidade sanguínea, com queda do fibrinogênio plasmático, em aproximadamente 40% dos pacientes. Raramente há pequenos sangramentos, geralmente restritos às gengivas (gengivorragia). Manifestações pouco frequentes -> insuficiência respiratória aguda, fasciculações e paralisia de grupos musculares têm sido relatadas e interpretadas como decorrentes das atividades neurotóxicas e miotóxicas do veneno. COMPLICAÇÕES ❖ Raramente parestesias locais duradouras, porém reversíveis após algumas semanas. ❖ Injúria renal aguda com necrose tubular, geralmente de instalação nas primeiras 48hs. CLASSIFICAÇÃO DO ACIDENTE Com base nas manifestações clínicas, os acidentes crotálicos são classificados em: ❖ Leves -> sinais e sintomas neurotóxicos discretos, de aparecimento tardio, fáscies miastênica discreta, mialgia discreta ou ausente, sem alteração da cor da urina. ❖ Moderado -> sinais e sintomas neurotóxicos: fáscies miastênica evidente, mialgia discreta ou provocada ao exame. A urina pode apresentar coloração alterada. ❖ Grave -> sinais e sintomas neurotóxicos evidentes: fáscies miastênica, fraqueza muscular, mialgia intensa e urina escura, podendo haver oligúria ou anúria, insuficiência respiratória. ACHADOS LABORATORIAIS E MANEJO A investigação laboratorial pode mostrar hemólise (hemoglobina plasmática livre elevada, desidrogenase láctica e haptoglobina reduzida) juntamente com hipofibrinogenemia, redução dos fatores V, X e XIIIa, proteína C e antitrombina III, e elevação de produtos da degradação de fibrina. Rabdomiólise pode ser indicada por creatinofosfoquinase aumentada, e outros achados incluem leucocitose e elevação do hematócrito resultantes de hemoconcentração. Maria Luiza Sena – Med XIV FASA Passos-chave para reduzir a morbidade e a mortalidade incluem: ❖ Administração precoce de antídotos específicos (antiveneno monovalente), reposição de volume adequada, manutenção de bom volume urinário. ❖ Alcalinização urinária em pacientes com rabdomiólise, correção de distúrbios eletrolíticos, administração de imunoglobulina antitetânica e tratamento de infecções. O antiveneno polivalente disponível localmente é efetivo contra envenenamento por múltiplas cobras ou um tipo desconhecido de cobra. ❖ A não disponibilidade do soro antiveneno em hospitais rurais e a infraestrutura ruim que impede o transporte para centros de saúde são fatores maiores que atrasam a administração do antídoto e contribuem para a alta mortalidade, que pode chegar a 30%. Estudos recentes sugeriram que até 40% dos pacientes afetados podem ser diagnosticados com doença renal crônica no seguimento a longo prazo após IRA induzida por mordida de cobra.
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