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Cultura e Africanidade: subsídios para trabalhar a Lei 10639 em sala de aula - relato de uma experiência. Cleusa Maria Fuckner1 Resumo Este artigo se propõe a relatar aspectos da pesquisa sobre Cultura e Africanidade construída durante o ano de 2008 no PDE/SEED e consiste na discussão teórica e nos resultados da implementação na escola. A temática surgiu a partir da experiência em sala de aula. Com base na lei 10.639 foram elaborados subsídios teóricos e linguagens históricas para discussão dos aspectos referentes à cultura e memória afro-brasileiras. Começando pela reflexão histórica da formação do conceito de cultura, ampliou-se o conhecimento sobre este tema como eixo estruturante dos conteúdos. A perspectiva de compreender a cultura afro-brasileira é superar a visão senso comum, justificada por idéias pré-concebidas sem fundamentação histórica dos aspectos da exclusão quanto aos povos africanos de seus descendentes no Brasil. Observou-se que estas idéias são decorrentes do não conhecimento. Portanto, entendeu-se que uma forma de viabilizar a aplicação da Lei 10.639 é a partir da relação com os conteúdos da proposta curricular em História. Esta análise deve ser focada em um contexto histórico que resgate o papel do ocidente na realidade do continente africano, bem como, as implicações deste discurso no cotidiano escolar. Sugerimos na implementação da proposta que se trabalhe com diferentes linguagens e documentos da história na perspectiva interdisciplinar, que permita que os professores reflitam sobre a presença africana na vida cotidiana, sobre as representações e sobre o imaginário construído. Palavras chaves : cultura ,africanidade Abstract This article aims to report aspects of the research on African culture, conducted during 2008 in PDE/SEED and consists of the theoretical discussion about formation of a knowledge base on the subject and the result of the implementation at the school. The issue arose from the experience in the classroom. From the Law 10,639 brought subsidies and theorical language for discussion of the history of African Brazilian culture and of the memory. Starting by the reflection on the historical formation of the concept of culture, expanding the knowledge on the subject as the axis for structuring Afro Brazilian culture. Thus, understand and overcome the common sense view, supported by pre-conceived ideas without grounds of historic exclusion of African peoples and their succession in Brazil. It is observed that these ideas are attributed to ignorance. So it became understood that a way to achieve the implementation of the Law would be from the relationship with the content of the proposed curriculum in history. This analysis should be focused on a historical context: which was the role of the West in the reality of the African continent and its implications in the daily school. We suggest working with different languages and documents of history, at interdisciplinary perspective, which enables teachers to reflect on the African presence in daily life, the representations and in the imaginary built. Keywords: culture, African culture 1 Graduada em História , mestre em Educação e doutoranda em Educação pela UFPR. Linha de Pesquisa: História e Historiografia da Educação Brasileira. Professora da Rede Pública Estadual há 25 anos. Atualmente lotada no CEP. O projeto PDE foi orientado pela Profa. Ms Wanirley Pedroso Guelfi do DTPEN – UFPR. 1. Introdução O interesse pela temática afro nasceu da experiência em sala de aula junto às turmas do terceiro ano no CEP (Colégio Estadual do Paraná) desde 2002. Vivenciamos diversas situações em que os alunos apresentavam uma visão senso comum, justificando por idéias pré-concebidas sem fundamentação histórica os aspectos da exclusão quanto aos povos africanos e seus descendentes no Brasil. Observamos que estas idéias são decorrentes do não conhecimento da História da sociedade africana e do papel histórico desempenhado pelos afro-descendentes no Brasil. Inúmeras ocasiões ocorreram debates intensos em sala de aula com os alunos e mesmo na sala dos professores em que educadores de disciplinas afins muitas vezes não aceitavam posições sobre a temática, principalmente quando o debate envolvia as questões culturais das religiões de matriz africana. As representações construídas até mesmo pelos educadores eram sempre de figuras ligados com aspectos da maldade, por exemplo, o Exu como demônio. Este debate se acirrou com a implantação do sistema de cotas para afrodescendentes na UFPR, tanto entre alunos, quanto educadores que desconhecendo a proposta das políticas afirmativas e o contexto de sua criação, algumas vezes afirmavam que estas práticas iriam gerar mais racismo e manifestações de ódio no país. Considerando estes aspectos entendemos que a forma de viabilizar a aplicação da Lei 10639 é a partir da relação com os conteúdos da proposta curricular em História, enfocando numa análise histórica contextualizada o papel do ocidente na realidade do continente africano, bem como, as implicações deste discurso no cotidiano escolar a partir da compreensão da cultura. Podemos justificar este tema a partir da frase de Mandela “Ninguém nasce odiando outras pessoas pela cor da sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar as pessoas precisam aprender e, se pode aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar”. Frase esta que teoricamente já está virando chavão de tanto se aplicada em discursos e manifestos, mas que na prática ainda temos um longo caminho para sua concretização. Escolhemos esta frase justamente porque ela expressa nosso objeto de pesquisa: a idéia de cultura. Percebe-se que a cultura é algo complexo, ao mesmo tempo em que é a essência que nós envolve, que perpassa toda nossa vida, é algo que gerou e gera tentativas diferenciadas de explicações e até mesmo conflitos. È necessário lembrar que o homem enquanto objeto de conhecimento é uma idéia recente, mas hoje faz parte do arcabouço teórico de todas as ciências humanas. Propomos então pensar como o conhecimento sobre o homem 2 enquanto objeto de estudo foi se constituindo? Para isso precisamos situar este conceito historicamente. Nos século XV e XVI a Europa se considerava como o centro do mundo. Começava-se através das grandes navegações a ter contato com outros povos até então desconhecidos, os indígenas e as sociedades que viviam aqui na América (Asteca, Incas e Maias). Mas o europeu não vê o outro como homem, o homem não estava inserido na discussão do contexto social, político e cultural das novas descobertas. O homem destas terras era visto como um selvagem, sem religião, sem alma e não pertencia a humanidade. A preocupação dos viajantes era relatar o espaço físico, a natureza, a vegetação e o clima. Duas ideologias predominam neste período: a recusa pelo estranho/ exótico/mal selvagem ou a fascinação pelo estranho – o bom selvagem. A diversidade era vista como aberração e exigia uma explicação. Na Europa esta discussão perpassa um olhar para a individualidade humana. Nesta perspectiva pode-se referir a Roque LARAIA citando Montaigne, quando este em 1792 faz referência a antropofagia entre os Tupinambás Não me parece excessivo julgar bárbaros tais atos de crueldade, mas que o fato de condenar tais defeitos não nos leve à cegueira acerca dos nossos. Estimo que é mais bárbaro comer um homem vivo, do que comer depois de morto, é pior esquartejar um homem entre suplícios e tormentos e o queimar aos poucos, ou entregá-lo a cães e porcos, a pretexto de devoção e fé, como não somente o lemos, mas vimos ocorrer entre vizinhos nossos conterrâneos. (2001, p.13) No século XVIII o pensamento europeujá havia passado pelo Renascimento, pela Reforma religiosa, estava em pleno Iluminismo, começava-se então a pensar a questão do homem positivamente. Vê o outro como homem, mas como homem primitivo, ser empírico. Começa-se a pensar um projeto antropológico; o homem como objeto de estudo. Naquele momento a Antropologia era a ciência das sociedades primitivas, a ciência que estudava os africanos e os indígenas da América. Este estudo se dava pelo viés evolucionista que consistia em estudar sistema de parentesco, mitos, magia, religião. O século XIX na seqüência é o grande momento do pensamento das ciências sociais e humanas e aí que se configura a sociologia e a História, que a Antropologia se afirma como área do saber referente ao estudo do homem, não somente do homem primitivo, mas do homem como espécie humana com características específicas. Porém no século XIX duas correntes de pensamento ainda são utilizadas para explicar o 3 homem - O Determinismo Biológico que explicava as diferenças pelas características biológicas e o Determinismo Geográfico que explicava as diferenças pelas características do espaço e do clima. Nenhuma das duas teorias se sustenta, pois no mesmo espaço coexistem diversas organizações sociais e conforme LARAIA As diferenças existentes entre os homens, portanto, não podem ser explicadas em termos das limitações que lhes são impostas pelo seu aparato biológico ou pelo seu meio ambiente. A grande qualidade da espécie humana foi a de romper com suas próprias limitações: um animal frágil, provido de insignificante força física, dominou toda a natureza e se transformou no mais temível dos predadores. Sem asas, dominou os ares; sem guelras ou membranas próprias, conquistou os mares. Tudo isto porque difere dos outros animais por ser o único que possui cultura. (2001, p.24) O Determinismo Biológico inclusive serviu de justificativa ideológica para o domínio das populações da África e da Ásia através do neo-colonialismo no século XIX. Ideologias totalitárias como o Nazismo no século XX tem uma base teórica nesta explicação de superioridade racial. Não podemos esquecer que o avanço econômico e tecnológico da sociedade européia no Século XIX se deu sobre a destruição da cultura africana e o domínio da cultura americana através das práticas imperialistas que “dispunha de mecanismos ideológicos como as exposições universais, verdadeiras ‘vitrines do progresso’ que levavam as massas a se identificar com o Estado e nação imperiais, conferindo justificação e reconhecendo legitimidade à missão civilizatória européia na África”. (HERNANDEZ, 2005, p.78). Retomando a discussão antropológica, no século XX o Funcionalismo de Malinowiski, passa a compreender que o individuo tem um grande número de necessidades e a cultura tem a função de satisfazer suas necessidades. A observação participante criada como técnica de pesquisa neste momento consiste no resgate das sociedades humanas e do cotidiano através da técnica do olhar antropológico, ou seja, buscar significados nas coisas aparentemente sem importância. Os fenômenos adquirem significado antropológico quando relacionados às sociedades como um todo, ao contexto. A antropologia se constitui então como a ciência da alteridade (estudar o outro que é diferente de mim). Cada sociedade é diferente e as sociedades não precisam atingir estágios de desenvolvimento igual. A Europa apresentava em alguns aspectos maior avanço técnico, mas os povos da América eram muito mais avançados em outros. Por exemplo, quando Paris, em torno do século XII tinha apenas choupanas, na América 4 havia construção de pirâmides imensas como as que se localizam na Guatemala e no México, etc. 2 A origem da palavra cultura: O termo cultura surgiu no século XI para indicar o cuidado dos homens com os deuses (culto), bem como o cuidado dos homens com a natureza, sentido usado até hoje. Já no século XVI com o Renascimento os humanistas passaram a usá-lo no sentido de cultivo do próprio espírito, exprimindo a ação de desenvolver a capacidade intelectual. No século XVIII - O termo germânico Kultur era usado para representar todos os aspectos espirituais de uma comunidade, enquanto a palavra civilization referia-se a realidade material de um povo. O Iluminismo associou a cultura das artes, ciências e letras á idéia de cultivo do espírito. A primeira definição de cultura formulada do ponto de vista antropológico foi feita por - Edward Taylor (1832-1917), que definiu como todas as possibilidades de realização humana. A cultura de acordo com Chauí é um todo complexo, conhecimento, crença, arte, moral, leis costumes ou qualquer outra capacidade ou hábito. A principal característica humana é a cultura; cada cultura elabora a sua maneira de viver e conceber o mundo e diversifica os homens. Hoje as ciências sociais, e especialmente a antropologia na escola têm a função de tornar o mundo melhor através da superação das idéias pré-concebidas. A antropologia hoje tem um olhar histórico sobre a sociedade, entendendo que a cultura também é uma construção histórica. A forma que cada grupo humano tem de pensar, se organizar, trabalhar, sonhar, ter lazer, se modificam constantemente. Só é possível entendermos os por quês, se soubermos dialogarmos com as memórias do passado e relacioná-las ao presente. É nesta perspectiva da cultura que se inseriu a pesquisa, os materiais didáticos elaborados e a implementação da pesquisa no CEP com outros professores de História. O objetivo maior foi pensar as questões da africanidade, da Lei 10639 e de práticas que levem a superação do racismo a partir de uma abordagem que considere a cultura no seu sentido de ação humana. Compreendendo que a grande diferença entre os povos no passado e no presente são resultados de uma construção cultural, de acordo com GOMES 5 Não raras vezes, no Brasil, existiram relações inter-étnicas, envolvendo populações indígenas e populações escravas africanas e seus descendentes. Como em várias regiões do Brasil, assim como das Américas - para além dos conflitos e confrontos - escravos fugidos aliaram-se a grupos indígenas, formando, inclusive, pequenas comunidades. (2005, p.456) Ao selecionar o conceito de cultura como eixo norteador do trabalho na escola com a Lei 10639, podemos citar MUNANGA que afirma que “A diversidade é uma riqueza e não deveria criar problemas. Não podemos construir a identidade brasileira a partir de uma única cultura, considerada superior, que é a ocidental”. Considerando a questão cultural vamos refletir aspectos referentes à lei 10636 e sua aplicação no cotidiano escolar. 3. A Lei 10.639 e o contexto escolar "Aprendemos a voar como pássaros e a nadar como peixes, mas não aprendemos a conviver como irmãos”. Esta frase do pastor protestante e ativista dos direitos civis norte-americanos, Martin Luther King ainda hoje, apesar de grandes transformações e do acesso amplo a informações ecoa em um mundo tomado pelo preconceito. Utilizamos esta frase como chamada para a problematização no OAC (Objeto de Aprendizagem Colaborativa) por nós elaborado como material didático atendendo aos requisitos do Programa PDE. As idéias pré-concebidas a respeito do outro, no planeta já causaram guerras, mortes, agressões físicas e verbais e isolamentos de grupos inteiros, que muitas vezes são obrigados a viver à margem da sociedade por causa da cor da sua pele, sexo, etnia, religião, aparência física, orientação sexual e até mesmo por suas idéias. O próprio Martin Luther King foi assassinado porque lutou contra o preconceito do qual ele foi vítima;pregou o amor, o respeito ao próximo e o perdão em um lugar dominado pelo ódio racial. Sua luta e a de milhares de negros na década de 60 nos EUA ajudou a criar bases mais colaborativas e de cidadania na sociedade norte americana. No Brasil durante muito tempo a situação da população negra foi ignorada sob um mito de “democracia racial”, construído a partir da interpretação da grande obra literária de Gilberto Freire “Casa Grande e Senzala.” Eram comum opiniões que negavam as desigualdades raciais, afirmando ser o Brasil uma nação sem preconceito, mas a reorganização dos movimentos negros e a pesquisa acadêmica e estatística a partir da década de 80 – período pós ditadura militar revelou um quadro peculiar desta 6 realidade e do seu ensino.As questões referentes ao negro e a africanidade no Brasil têm sido trabalhadas basicamente pelo conteúdo escravidão, repassado através das versões do livro didático. MUNANGA afirma que Alguns livros didáticos falam do papel do negro no Brasil como escravo, mas não mostram sua participação concreta na sociedade brasileira, seu espaço na economia. O negro não trabalhou só nas plantações. Trabalhou nas artes, na mineração. Aliás, foram os negros que ensinaram aos portugueses as técnicas de mineração. Essas coisas não são ditas. O silêncio também é uma forma de racismo. Os dados estatísticos e as pesquisas atuais mostram como a questão do negro no Brasil passado mais de 500 anos do início da conquista portuguesa ainda é muito difícil, o racismo e a discriminação são presentes na sociedade e na escola, visto que a escola reproduz também as características da sociedade em que se insere. Como podemos observar em CARENO Os indicadores sociais, em um estudo do IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas) apresentado a membros do Conselho de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ministério da Justiça, apontaram que entre os 53 milhões de brasileiros pobres, 63% são negros e que, dos 22 milhões que estão abaixo da linha de pobreza, 70% são negros. Os números se tornam mais reveladores ao se levar em conta que os negros formam 46% da população brasileira. Se esses dados radiografam a desigualdade racial, ao analisar o grau de escolaridade de brancos e negros, os pesquisadores se depararam com índices que mostram, de forma ainda mais contundente, a quão reduzidas foram as melhorias na educação dos negros desde o século 20. Estes dados nos levam a refletir como as temáticas referentes à população negra ainda são tratadas e questões como o acesso à educação contribui para aumentar a desigualdade e o preconceito. CARENO destaca que Essa desigualdade se manifesta mais efetivamente ao se relacionarem questões de raça, índice de escolarização e condições econômicas. Enquanto a média de estudo dos adultos brancos é de 6,6 anos, a dos negros é de apenas 4,4 anos. Essa diferença de dois anos é praticamente a mesma que o bisavô de um jovem negro enfrentaria no início do século passado. São maiores os contingentes de afro-brasileiros com menor índice de escolarização que vive em condições de miséria ou percebem salários inferiorizados. Entre as crianças de zero a seis anos, 38% das brancas são pobres – um percentual bem mais baixo do que o de 65% de crianças negras nessas condições. Na faixa etária que vai dos sete aos catorze anos, a pobreza atinge 33% dos brancos, mas 61% dos negros! Finalmente, na faixa etária que contempla jovens de 15 a 24 anos, 22 % dos brancos e 47% dos negros são pobres. 7 MUNANGA também aponta que “um cidadão brasileiro branco e um cidadão brasileiro negro com o mesmo nível de formação têm uma diferença salarial em torno de 30%. Já uma mulher negra ganha, em média, 46% a menos que o homem branco. Logo, há racismo na sociedade brasileira. E a primeira condição para se lutar contra ele é assumi-lo”. CARENO, citando o pesquisador do IPEA Ricardo Henriques ainda aponta que este quadro não deverá mudar nos próximos anos, pois “em 13 anos, os brancos devem alcançar uma média de oito anos de estudos. A projeção para os negros é de que eles cheguem ao mesmo resultado daqui a 32 anos”. A história brasileira se revela através de uma pluralidade étnica, sendo esta, produto de um processo histórico que inseriu num mesmo cenário três grupos distintos que foram: os portugueses, os índios e os negros de origem africana. Esse contato permitiu uma inter-relação entre as culturas, levando à construção de um país inegavelmente miscigenado, mas que o cotidiano camufla, através de uma construção da idéia de “democracia racial”, práticas excludentes e que são naturalizadas pelo discurso da sociedade e até mesmo da escola. Entendemos que a raiz destas práticas atuais pode ser compreendida através do processo histórico do pensamento europeu em relação aos novos povos. Apesar da inter- relação cultural, os europeus não viam os povos que aqui habitavam e os que escravizaram como seres humanos, mas como animais a serem domados e domesticados. Esse contato desencadeou algumas concepções discriminatórias onde as diferenças se acentuaram, levando à formação de uma hierarquia de classes que deixava evidente à distância e o prestígio social de quem era colonizador e colono. Os índios e, em especial, os negros permaneceram em situação de desigualdade, situando-se na marginalidade e exclusão sociais, em dimensões múltiplas, tanto na economia, como na política e na cultura, que se acentuou no período posterior á Abolição. Segundo GOMES A experiência de luta e organização dos trabalhadores no Brasil não está marcada tão-somente pela formalização jurídica decretada pela Abolição. Com o fim da escravidão - como um sistema social amparado por leis, - o processo de lutas, e também as desigualdades, considerando os trabalhadores, suas etnias e relações de gênero, não desaparecem. A caracterização e a reprodução das desigualdades ganham outras dimensões. O escravo vira negro. Como? Não mais havendo a distinção jurídica entre os trabalhadores, a marca étnica - e histórica - da população negra é reinventada como fato social. A sociedade brasileira, mais do que permanecer desigual em termos econômicos, sociais e fundamentalmente raciais a partir de 1888 (portanto, temos que considerar as 8 experiências desde a colonização), reproduz e aumenta tais desigualdades, marcando homens e mulheres etnicamente. A questão não foi somente a falta de políticas públicas com relação aos ex-escravos e seus descendentes no pós- abolição. Houve mesmo políticas públicas no período republicano reforçando a intolerância contra a população negra: concentração fundiária nas áreas rurais, marginalização e repressão nas áreas urbanas. (2005, p.462-463) É evidente que o racismo e a discriminação são presentes na sociedade brasileira. E a primeira condição para se lutar contra ele é assumi-lo. Sendo o Brasil o país com o maior número de negros fora da África, os conteúdos referentes a história afro já deveriam fazer parte do currículo escolar, porém foi só a partir da Lei 10.639 que esta questão se tornou presente no universo da escola e muitos professores ainda preocupam- se em trabalhar estes conteúdos porque a lei obriga e não pelo seu significado cultural na construção de uma sociedade mais justa e democrática, pois por mais que o Brasil declare ser uma nação multirracial e sem pré-conceitos, desenvolve um racismo que em sua maioria é silencioso, camuflado, pois muitos preferem não falar no assunto. Entretanto ainda há o racismo explicito, com um percentual menor, principalmente por causa da crescente consciência de que é um ato criminoso. O preconceito ainda permanece, e este é sempre adquirido através da aprendizagem.Em geral a pessoa é levada desde criança a ter idéias e atitudes preconceituosas, por viver numa sociedade que predominam valores racistas. Portanto para que se possa conhecer a situação do negro no Brasil hoje, será preciso recordar a história. Nem tudo é igual ao que era antes, mas as formas de opressão continuam desempenhando o mesmo papel. (PEREIRA, 2007) CARENO cita que embora “a LDB - Lei 9.394/96, em seu art. 26, §4º - estabeleça que o ensino da História do Brasil deva levar em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e européia”. Este ensino nem sempre esteve presente no cotidiano da escola, por isso a obrigatoriedade da Lei 10.639 tem despertado nas instituições mantenedoras das redes públicas e particulares a busca de fundamentação teórica que possibilite o aprofundamento da temática, visto que grande parte dos professores não tiveram em sua formação docente disciplina que permitisse a construção de um referencial teórico em relação a história e a cultura afro. Em relação ao papel do professor e a formação docente CARENO aponta que A Lei 10.639 traz uma contribuição de fundamental importância nessa relação/ formação e atuação docente. O debate sobre ela já trouxe um grande benefício à sociedade: colocar o tema na agenda nacional e fazer todos reconhecerem que é 9 preciso realizar algo para diminuir a desigualdade na educação de ricos e pobres ou de negros e brancos. Com essa lei, estabelecem-se o embate e as posições sobre o tema. Por meio de discussão, reflexão sobre os diversos eventos do cotidiano escolar, a organização e a participação efetiva em cursos e seminários, estaremos forçando o debate, ampliando o horizonte conceitual e difundindo práticas educativas. Estaremos indo na direção de tomada da consciência da existência ampla de uma cultura e do seu tratamento possível e necessário na educação. Para tanto, cada um de nós, que queremos formar uma sociedade mais humanitária, precisaremos nos despojar dos velhos ranços culturais, nos apoderar desse novo saber e anunciar a boa nova, tecendo e tecendo essas informações, no entremeio dos silêncios dos nossos alunos, como arautos desse novo conteúdo curricular. Neste contexto uma das discussões atuais é a questão das cotas para afro descendente nas universidades públicas, questão polêmica e que ainda gera debate acirrado por paixões e posições individualizadas. Porém, é necessário pensar esta prática como política afirmativa que está longe de ser a solução para resolver as desigualdades e o preconceito. Mas já é um começo, uma parte desta solução para aquele afro-descente que tiver acesso ao curso superior e que através da sua participação na universidade possa levantar este debate cujo ponto de partida é a questão da cultura. As questões culturais têm suscitado muitos debates, criação de centros de pesquisa e estudo (...) Isso se dá pelo questionamento da hegemonia do Mundo Cultural Ocidental, pela insurgência dos movimentos das Diferenças que reivindicam e lutam por visibilidade, audibilidade, por espaço político, por seu "lugar ao Sol". Entram em confronto com a visão euronorte americana do mundo, que privilegia o homem ocidentalizado, que comunga dos preceitos da "democracia" e liberalismo, que exclui ou hierarquiza valorativamente grupos diferentes dos seus membros hegemônicos. Como conseqüências desses movimentos são criadas novas demandas sociais, políticas, que envolvam o conhecimento, manipulação, potencialização, massificação e uma série de ações que focalizam a Diversidade Cultural e a diversidade humana. (TRINDADE) Entendemos que trabalhar com a diversidade cultural em sala de aula passa pela compreensão das questões religiosas, de lazer, dos mecanismos de resistência, da linguagem, da música, da expressão artística e literária, da dança, da representação, enfim de inúmeros elementos que possibilitem a produção cultural e artística dos negros no Brasil. MUNANGA afirma que No decorrer do processo histórico brasileiro, os homens e mulheres negras sempre lutaram e resistiram bravamente a toda forma de opressão e discriminação. Eles forjaram formas elaboradas de lidar com a vida, com o corpo assim como expressões musicais múltiplas. Construíram uma estética corporal que está impregnada na cultura do povo brasileiro. Por meio da resistência política, da religião, da arte, da música, da dança e da sensibilidade 10 para com a ecologia o negro produz, participa e vivencia a cultura afro- brasileira. (2004, p.139) Evidente que selecionamos aspectos da cultura para apresentar aos professores através do material didático, visto ser um tema muito amplo e que exige recortes, mas pensando com um estudioso da cultura afro, esta temática permite recuperar a idéia de ancestralidade, lembrando que a origem da espécie humana está na África é que Ancestral é quem logra inscrever-se de maneira durável na memória dos vivos. É o morto ilustre recordado pelas gerações em que se desdobra sua descendência. A ancestralidade é uma espécie de eternidade. Não a eternidade dos tempos inesgotáveis, mas a da profundidade genealógica, das raízes que recuam no tempo, para se perderem nas eras da tradição e do mito. (VOGEL, 1993, p.175) Conhecendo a realidade do Colégio Estadual do Paraná, onde grande parte dos professores de História até 2007 eram profissionais dedicados a pesquisa, muitos com mestrado e trabalho no curso superior e na formação de professores através da docência em pós-graduação, mesmo assim era comum a afirmações sobre a dificuldade de material específico para o trabalho com as questões envolvendo africanidade. Optamos por direcionar a nossa pesquisa durante o PDE numa perspectiva que viesse a contribuir com os demais professores na abordagem da temática. Sabendo das deficiências na formação universitária, na qual em geral só foram trabalhados conteúdos referentes à escravidão, nossa proposta abrangeu além de referencial teórico a organização de materiais diversos tais como arquivos sonoros e imagéticos, visando desta forma selecionar/elaborar materiais que pudessem ser utilizados na prática pedagógica dos professores da área de História. Estes materiais foram disponibilizados em um disco virtual para que os professores fizessem dolwond e os utilizem nos próximos anos na medida em que desenvolvam seus conteúdos curriculares. Bem como socializar conhecimentos da temática através do debate e da reflexão. Acreditamos como Paulo Freire que “Ninguém ignora tudo, ninguém sabe tudo. Todos nós sabemos alguma coisa. Todos nós ignoramos algumas coisas por isso aprendemos sempre”. 4 O retorno para a escola Inicialmente tivemos contato com a equipe pedagógica para a apresentação do projeto e da proposta de trabalho que planejamos para desenvolver junto aos professores. 11 De imediato foi bem aceito em virtude da necessidade do tema. Partiu da própria coordenação pedagógica a possibilidade de que o projeto fosse apresentado aos demais professores de disciplinas da área das ciências humanas. Aceitamos o desafio com certo receio, mas com a perspectiva de aplicarmos de forma mais abrangente e com mais profissionais especialistas de área a pesquisa teórica. Elaboramos então em conjunto um cronograma de trabalho utilizando o dia da permanência coletiva. Na seqüência o projeto foi desenvolvido junto aos professores de História, Geografia e um representante da área de Filosofia e da Sociologia em diversos momentos presenciais. O trabalho consistiu principalmentena apresentação didática e discussão do referencial construído durante a pesquisa. Elaboramos diversos arquivos multimídia exemplificando através do material reunido aspectos da religiosidade afro, da música, da literatura, da iconografia. À medida que os slides iam sendo apresentados, foram surgindo questões próprias da sala de aula. Observamos que o quadro de professores do CEP na área de História sofreu muitas mudanças de 2007 para o momento atual. Foi interessante observar que a maior parte dos docentes vivencia no cotidiano dificuldades semelhantes. A discussão do conceito de cultura, num primeiro momento parecia desvinculado do conteúdo de História, visto ser objeto de estudo da Antropologia e com identificação maior com os professores de sociologia. Com a finalização dos slides apresentados nos encontros presenciais solicitamos uma avaliação que os professores repassaram via e-mail. O grupo demonstrou na avaliação que atingiu a compreensão dos nossos objetivos e que perceberam na temática cultura uma das possibilidades para trabalhar no sentido de construção conceitual, pela possibilidade de refletir nas situações do dia a dia as quais envolvem a diversidade e a alteridade. À medida que iam sendo apresentados os diferentes temas, várias questões foram surgindo. Algumas muito significativas no aspecto de pensar o professor como agente de transformação em sala de aula. Uma das questões a ser refletida foi no tocante a religiosidade. Quando foi apresentada a imagem dos orixás e especialmente a de EXU, ocorreu uma reação contrária por parte de alguns em aceitar esta representação dissociada do contexto católico, visto que surgiram questionamentos como: “Posso trabalhar com a cultura afro-brasileira, mas não vejo necessidade de apresentar uma imagem tão chocante para os alunos, na medida em que muitos são evangélicos ou de outras religiões, eles vão associar ao demônio”. Exemplificamos a construção ideológica desta imagem de “demônio”, a contextualização de Exu enquanto mensageiro, a relação com o significado na mitologia grega e por ai afora, mostrando argumentos que o professor pode utilizar em 12 sala de aula quando surgirem questionamentos desta natureza, visto que as representações de orixás fazem parte da memória silenciada e do patrimônio imaterial brasileiro. Aqui retomamos RATTES e DAMASCENA (2006), que afirmam que o patrimônio cultural da população negra é composto de bens materiais e imateriais, que são expressões dessas comunidades, nos mais diferentes aspectos: objetos, costumes, canções, rituais, encontrados na religião, na culinária, nos modos de tecer e de vestir. Entendemos como os autores que uma retomada de vozes que ficaram silenciadas por opressões históricas é fundamental e necessária para uma compreensão democrática de educação. O primeiro movimento para esta escuta é o reconhecimento da existência de espaços outros que não o da educação formal, como portadores de saberes. Para isso, é necessário tomar como imprescindível para o entendimento desses saberes os nexos entre educação e cultura, considerando que uma não existe sem a outra, ambas sendo alimentadas e alimentando-se na arte e na memória. A religiosidade é fator de identificação da relação com a memória para a comunidade negra, ela está presente não só na representação dos orixás, mas principalmente na teia de relações que são vivenciadas a partir da prática religiosa, a alimentação, a mitologia, os significados e significantes representados pela prática social. Portanto entende-se que trabalhar com a cultura envolve, sem dúvida nenhuma, trabalhar com a religiosidade e que esta vem permeada de expressões de como pensamos o mundo na medida em que ao identificarmos outros elementos do sagrado e referenciarmos nele a identidade do outro, estamos compreendendo a teia de relações que envolve o pensar na cultura e nas práticas cotidianas. No que tange a religião, por exemplo, a forma de sobrevivência encontrada foi o sincretismo (casamento das religiões de origem africana com o catolicismo) o que manteve durante todo o período escravista, os seus deuses escondidos por trás dos santos católicos. Desde os primeiros quilombos, formados pelas levas de africanos que aqui chegaram na condição de escravos, até os mais recentes movimentos em que lutam pela posse da terra dos seus ascendentes, os negros não pararam de lutar e resistir contra a escravidão e as conseqüências por ela deixada. De um jeito ou de outro, as organizações negras, como as irmandades, formam espaços de preservação e sociabilidade para esses grupos, no qual a prática da religiosidade expressava a caridade que segundo JURKEVICZ “a caridade assim como a fraternidade, ficava restrita, portanto entre os irmãos, cabendo a eles a tarefa de amenizara as conseqüências da escravidão e da segregação racial.” (2006, p.206) Pensar a religiosidade afro é pensar estes traços de 13 resistência ou assimilação no cotidiano e no imaginário permeado por práticas diversas. JURKEVICS afirma ainda que Todas as questões levantadas em torno das irmandades, desde as relações estabelecidas no seu interior, como as travadas com o mundo exterior, aparentemente de submissão e regras institucionais, nos sugerem que,muito mais que o destaque dado às festas devocionais, como forma de materializar uma vivência religiosa, era sobretudo, uma forma de negar seu mundo de cativeiro e de exclusão social. Ao expressar o colorido das imagens, o movimento das danças e das procissões, o som dos cânticos e dos louvores, os negros e mestiços rompiam com a exploração e a exclusão a que estavam sujeitos, para recriarem um mundo próprio,distante do mundo dos brancos, onde podiam ser “reis” e “rainhas”, pelo menos enquanto duravam os festejos. (2006.p. 206) Tendo aceitado a idéia de que o trabalho com a referência imagética dos orixás possibilitaria um trabalho interdisciplinar a partir da arte, vários professores relataram o desconhecimento em relação àquelas imagens e se manifestaram no sentido de buscar, através da pesquisa, compreender estas possibilidades. Partiu do grupo a sugestão de que entre os professores, fazer um estudo do meio em um Terreiro, para vivenciar a riqueza da religiosidade enquanto prática cultural. Sugerimos alguns terreiros por nos conhecidos e que fazem um trabalho de interação, no qual possibilita uma prática de pesquisa. A discussão da religiosidade levou a pensar o papel histórico do negro no Brasil e as justificativas para pensar a situação da população afro descendente nos dias de hoje. Ao contrário do que se inculca, enquanto senso comum, a aparente passividade dos negros escravizados não foi verdadeira. Foram muitas as formas de resistência à escravidão. A forma mais conhecida e divulgada pelos livros didáticos na nossa formação escolar foi a dos quilombos. Os quilombos eram espaços para aonde os escravos que não aceitavam a sua condição, fugiam e lutavam contra a escravidão. Pela maneira como se contrapunham à escravidão e pelas relações estabelecidas na comunidade quilombola (hoje o conceito de quilombo foi além da visão trazida nos livros didáticos durante muito tempo), os quilombos são vistos como uma proposta alternativa de sociedade, numa tentativa de recriar o universo mítico africano. Nessa perspectiva, tanto a cultura como as práticas sociais e religiosas foram reinventadas pelos negros a partir da resistência, de propostas alternativas, de agrupamentos/movimentos organizados. Alguns professores relataram que para muitos alunos a imagem que temos da África é a de um continente sem história.Ao contrário do que se imagina, o continente 14 africano tem sido palco de alguns dos maiores avanços tecnológicos da história: seja na prática agrícola, na criação de gado, na mineração, na arquitetura e na engenharia, com construções de grandes centros urbanos, e ainda na sofisticação da organização política, na prática da medicina e no avanço do conhecimento e da reflexão intelectual. (CARMO (2007), MUNANGA (1996). Para concretizar esta reflexão apresentamos arquivos imagéticos com elementos de diferentes aspectos da África representando tanto patrimônio natural, quanto patrimônio edificado e foi visível a reação de alguns que nunca pensaram que a “África poderia ter tal riqueza e beleza, além da diversidade de cores e formas”. As imagens com representações do cotidiano ajudaram a compreender que é no contexto diário que a cultura e as práticas culturais são elaboradas, transformando o conhecimento em experiência de aprendizagem e a própria experiência vivida se transforma em conhecimento. Este conhecimento pode ser socializado na relação com o outro e nas ações vividas. Assim é possível perceber na alimentação, no vestuário, na oralidade, o gestual, a sonoridade, os odores ou sabores. São sinais que nos permitem compreender a diversidade e a complexidade da realidade histórica da sociedade afro-brasileira. Nesta complexidade, retomamos a questão da religiosidade, visto que ela é uma força presente em diferentes aspectos da vida social e cultural e que no processo religioso revelam o universo simbólico da cultura afro. Segundo RATTS e DAMASCENA As expressões culturais e religiosas de matriz africana trazem processos educativos que dizem respeito ao próprio exercício das apresentações no momento da festa e nos rituais religiosos. Esses processos se revelam na música, na dança, no toque dos instrumentos e nos gestos. São elementos impressos no corpo e expressos através da prática e da tradição oral. (2006 p.177). As exemplificações das lendas africanas por nos trabalhadas remeteram ao pensar destes rituais na música e na representação dos terreiros, bem como nos significantes que envolvem os conceitos como terreiro, umbanda, assim como as diferenciações entre as diversas práticas de matriz africana, caracterizando-as na sua especificidade. Uma das questões surgidas foi a relação entre o pensar, praticar e expressar atitudes de racismo e preconceito no imaginário social como a expressão “100% negro”. Uma professora relatou que já ouviu diversas vezes os alunos afirmarem porque 15 esta expressão ostentada por um negro não constitui preconceito, mas a expressão “100% branco” seria discriminatória. Esta questão nos levou a uma reflexão de perceber como nas ações históricas estão expressas as visões de mundo, as quais remetem a movimentos que marcaram a história da humanidade, como o Nazismo, que pretendia afirmar a superioridade do branco, o seu contrário nunca ocorreu. MUNANGA numa aula publicada na obra Raça e Diversidade (1996) já apontava que Em alguns racismos conhecidos na história da humanidade, as relações entre segmentos étnicos diferentes são mais explicitas, mais abertas, é um racismo institucionalizado, por vezes acompanhados de hostilidades e da morte física do outro. Quero me referir ao nazismo, ao apartheid sul-africano, ao sistema de “Jim Crow” nos Estados Unidos. Mas outros racismos foram e são implícitos, não institucionalizados, objetos de segredo e tabu,submetidos ao silêncio, um silêncio criminoso.(1996,p.213) NASCIMENTO também afirma que “No caso das desigualdades raciais no Brasil, em comparação com os Estados Unidos e com a África do Sul, a singularidade mais destacada é a ausência de segregação racial por legislação e a cultura nacional da ‘democracia racial’, que funciona como cortina de fumaça a disfarçar as nítidas iniqüidades raciais”. A partir destas afirmações refletimos com o grupo que expressões e frases aparentemente propagandísticas num país miscegenado como o Brasil, remetem a um racismo que como o próprio MUNANGA chama de silenciado e que apresenta muitas facetas, pois a interpretação do mito da democracia racial levou às práticas de silenciamento, de naturalização de ações. Hoje é comum ouvirmos dos nossos alunos, quando apontamos estes aspectos que “o negro é mais racista que o branco”, “que não admite ações semelhantes a que ele usa em relação ao branco, etc.”. MUNANGA aponta que “comparativamente, os movimentos negros contra o racismo no Brasil, embora todos integracionistas, nunca foram inter-raciais, apesar da solidariedade de alguns intelectuais. É como dizer que o problema é do negro e não do branco movido pelo mito da democracia racial”. (2006, p.217). As situações colocadas pelos professores e as reflexões elaboradas permitiram avaliar a nossa perspectiva inicial de que a superação das questões discriminatórias podem ser feitas via conhecimento, e a compreensão de fato do conceito de cultura pode se constituir num elemento de combate efetivo a toda forma de preconceito. Percebemos no início da implementação da proposta entre alguns professores mais novos certa incredulidade em relação à temática , mas esta foi sendo superada a partir dos momentos de reflexão e troca de experiência coletiva. 16 Tivemos a oportunidade também de apresentar esta proposta para alunas do curso de Magistério numa palestra proferida em que abordamos o conceito de cultura e apontamos possibilidades de encaminhamentos metodológicos para as séries iniciais. É interessante observarmos que entre elas também os questionamentos foram semelhantes aos dos professores do ensino médio. Com esta percepção podemos chegar a conclusões iniciais que a aplicação da Lei 10639 na prática escolar só se viabiliza através de uma formação continuada efetiva como tivemos a oportunidade de vivenciar ao longo dos encontros, com a reflexão promovida constantemente pelas mantenedoras do sistema de ensino e pela articulação entre Universidade e docentes numa parceria que possibilite a pesquisa e a elaboração teórica, tal qual o programa PDE nos possibilitou. Considerações finais A possibilidade efetiva de troca com os pares na realidade de escola, proporcionada pela implementação da proposta do PDE, nos leva a pensar que de fato a viabilização da Lei Federal nº10.639/03, tem provocado inquietações no sistema escolar. Instituindo a obrigatoriedade do ensino da História da África e dos africanos, bem como, o estudo do processo de efetiva participação e contribuição do povo negro brasileiro no contexto da história do Brasil, traz uma temática que incomoda, que faz pensar, como afirmava PINSKY “O negro, que não pedira para vir ao Brasil – na verdade fora trazido-e muito menos desejara ser escravo, passa [...] a ser acusado de ter sido escravo ( e portanto sem talento para ser livre) de ser negro e até de estar no Brasil”.(1992,p.16) Muitas vezes, os professores utilizam-se do argumento da não preparação, da não formação em questões referentes à diversidade étnico-racial. Embora seja real em parte, na prática constitui-se numa postura de silenciamento para o não enfrentamento das questões que a temática suscita. Como afirmou uma das professoras participantes: “para poder trabalhar com o aluno, primeiramente o professor precisa desconstruir em si mesmo os preconceitos”, arraigados por anos de informação, ou melhor, de desinformação, senso comum. Esta postura geralmente serviu para justificar a opção pelo silenciamento e o não questionamento das questões de exclusão,preconceito e discriminação racial presentes na sociedade, que atribuem às diferenças da população negra descendente de africanos, representações e sentidos que os desqualificam e os inferiorizam. 17 Acreditamos que trabalhar pelo viés cultural é escolher a opção que trata as questões referentes ao povo negro de forma positiva, construindo um caminho que precisa ser percorrido por todos na escola. Segundo VALENTIM & BACKES Que estes não fiquem apenas a esperar que se façam antes as grandes transformações e mudanças, pois acreditar unicamente nesta opção pode representar a manutenção e a continuidade do sistema de exclusão sócio-racial. Nunca é demais lembrar que a sociedade traz consigo de forma muitas vezes velada, os anacrônicos malefícios do racismo, que têm provocado disparidades sociais nas quais os índices mais baixos têm sido destinados aos negros, quando comparados aos brancos Ao longo da história da educação, desenvolveram-se na sociedade processos de naturalização do racismo, se tornando natural pensar que negro é pobre, não vai bem na escola entre outros absurdos. A escola, não tem conseguido desfazer essa naturalização e por vezes opta pela afirmação e manutenção dos preconceitos raciais quando não propõe contínuos diálogos, debates e reflexões sobre as posturas e práticas dos seres humanos a esse respeito. Entendemos que um trabalho efetivo com as possibilidades geradas pela lei podem de fato ajudar a construção de valores multi-culturais numa sociedade que se tem pautado pela exclusão e discriminação, através de uma nova compreensão de pensar o outro de entender a relação com o conjunto de pessoas de sua comunidade. A experiência desenvolvida na escola, junto aos demais colegas de área e junto às alunas do curso de magistério, permitiu a oportunidade de trabalhar a temática e de refletir sobre o papel do professor, de como ele também é sujeito das representações construídas pela sociedade. Assim, entendemos que a incorporação do conceito de cultura, de suas representações em diferentes instâncias, possibilita construir mecanismos tanto para o docente rever sua visão de mundo, quanto para o aluno se compreender nestas relações que vivencia. Permite, até mesmo, pensar a identidade racial, cultural e o próprio conceito de cidadania, visto que a cidadania não se dá só por direito, mas precisa ser pensada de fato. A nossa expectativa agora é pelo retorno ao cotidiano da sala de aula no próximo ano e pela experiência de vivenciar junto aos alunos do terceiro ano os materiais construídos em 2008. Poderemos então analisar o impacto e as representações causadas , para podermos avaliar se o conceito de cultura pode de fato ser um objeto para transformar os “pensares” e “fazeres” na sala de aula. Como afirmou MUNANGA citando Florestan Fernandes “No Brasil, tem se o preconceito de se ter preconceito racial”. Entendemos que preconceito se transforma com a pesquisa, com a leitura e com a socialização dos conhecimentos construídos. 18 Referências Bibliográficas: BRASIL. Ministério da Educação. Orientações e Ações para a educação das relações étnico-raciais. Brasília: SECAD, 2006. CARENO, Mary Francisca do. 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