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CAP. 5 - A Indeterminação do Direito e a racionalidade da prestação jurisdicional (Rechtsprechung). Introduzimos o sistema de Direitos e os princípios do Estado de Direito em conexão com os problemas postos pelo Direito racional. O que implicou uma alteração de perspectiva dos enfoques contratualistas para a teoria do discurso, que, no entanto, não importa já em qualquer mudança no nível de abstração. Naturalmente, as ocasionais alusðes ilustrativas ao sistema jurídico da República Federal da Alemanha ou ao dos EUA recordam-nos que os direito fundamentais e os princípios do Estado de Direito, conquanto certamente definidos em abstrato, só podem ser encontrados nas Constituiçðes e sistemas políticos históricos. São interpretados e densificados, corporificados, nas ordens jurídicas concretas, ao nível do simbolismo cultural no Direito Constitucional, ao nível do sistema de ação na realidade constitucional das instituiçðes e processos políticos. Essas densificaçðes são objeto do Direito Constitucional Comparado e da ciência política; efetivamente, elas não constituem nosso tópico de discussão, conquanto indiretamente o tangenciem. As ordens jurídicas concretas representam não só modos diferentes de realização dos mesmos direitos e princípios, mas também refletem distintos paradigmas de Direito. Por tal expressão entendo as visðes paradigmáticas, as imagens-modelo, que uma determinada comunidade jurídica acolhe para a questão de como podem ser realizados o sistema de direitos e os princípios do Estado de Direito no contexto percebido (wahrgenommenen) de uma dada sociedade. Um paradigma de Direito (Rechtsparadigma) delimita um modelo de sociedade contemporânea para explicar como princípios do Estado de Direito e os direitos fundamentais devem ser concebidos e implementados para que cumpram naquele contexto as funçðes a eles normativamente atribuídas. Se um "modelo social do Direito" (Sozialmodell des Rechts)(Wieacker) retrata algo como uma teoria social implícita do sistema jurídico, e, assim, a imagem que esse sistema faz para si próprio de seu ambiente social, um paradigma jurídico, portanto, afirma como os direitos fundamentais e os princípios do Estado de Direito hão de ser entendidos no quadro teórico de tal modelo e como podem ser realizados. Os dois paradigmas de maior sucesso na história do Direito moderno, que ainda hoje competem entre si, são os do Direito formal burguês e o do Direito materializado do Estado Social (Sozialstaatlich materialisierten). Com a interpretação teorético-discursiva do Direito e da política pretendo prover contornos mais nítidos para um terceiro paradigma jurídico que a um só tempo subsume e transcende (aufhebt) os outros dois. Começo pelo pressuposto de que os sistemas jurídicos que surgiram no final do século vinte nos Estados de Bem-Estar Social de democracias de massas (só) são adeguadamente compreendidos em termos procedimentais. No entanto, antes de discutirmos a questão do paradigma eu gostaria, no presente capítulo, de ampliar os ângulos de abordagem até aqui assumidos. Abordei o Direito a partir de um ponto de vista filosófico-jurídico, ao introduzir direitos e princípios constitucionais em termos teorético-discursivos. Agora gostaria de tornar possível esse enfoque a partir de uma perspectiva jurídico-teorética, ou seja, na visão do sistema jurídico em sentido estrito. - 2 - Os sistesmas jurídicos modernos recomendam uma dupla delimitação. Tomado como um sistema de ação, o Direito incluí a totalidade das interaçðes reguladas por normas jurídicas. Luhmann, por exemplo, define o Direito nessa acepção ampla como o subsistema social especializado na estabilização das expectativas de comportamento. Ele consiste em toda comunicação social formulada com referência ao Direito.1 Podemos distinguir essa acepção da do sistema jurídico em sentido estrito. Nessa última são compreendidas todas as interaçðes e não apenas as orientadas (gehören) pelo Direito, envolve também as interaçðes de produção de novo Direito e de reprodução deste como Direito. Nesse sentido, a institucionalização do sistema jurídico requer a auto-aplicação do Direito na forma de regras secundárias que constituem órgãos e a eles atribuem competências para a elaboração, a aplicação e a implementação do Direito. Os "poderes" (Gewalten) estatais do legislativo, do judiciário e do executivo diferem-se consoante essas funçðes. Naturalmente, de um ponto de vista empírico pode-se ver que em nosso tipo de sociedade várias instituiçðes, cada uma cumprindo a um só tempo diversas funçðes, participam dessa produção e reprodução do Direito. No Estado Democrático de Direito considera-se a legislação política o objeto da função central. Essa tarefa envolve hoje não apenas partidos, eleitorados, assembléias parlamentares e o regime vigente, mas inclusive a prática de desenvolvimento jurídico e de tomada de decisðes (rechtsfortbildende Entscheidengspraxis) dos tribunais e da Administração, na medida em que esses se autoprogramam. A função de aplicação das leis não é realizada apenas pelas instâncias do judiciário no horizonte da dogmática jurídica e da esfera pública jurídica, mas implicitamente também pelo executivo ou Administração (Verwaltungen). A função de execução das leis é exercida pelo regime vigente e pela Administração (Verwaltungen), e indiretamente também pelos tribunais. Em alguma medida essas funçðes jurídicas são delegadas pelos órgãos estatais a entes semipúblicos ou privados. Eu tomo o sistema jurídico em sua acepção ampla no sentido de abranger sistemas de ação juridicamente normados no interior dos quais um Direito reflexivo constitue uma área nuclear para a produção autônomo-privada de atos jurídicos que contrastam com os processos de ação regidos por normas jurídicas materiais. Pode-se também notar uma estratificação entre as esferas de interação juridicamente configuradas e formalmente organizadas e as que, essencialmente reguladas por instituiçðes extra ou metajurídicas, simplesmente portam um revestimento (überformten) de Direito. Nas esferas formalmente organizadas como a economia e o aparato estatal, todas as interaçðes são regidas pelo Direito e, mesmo da perspectiva do ator, referidas ao Direito, enquanto que em esferas como as da família ou da educação apenas nas hipóteses de conflito o Direito ressai do pano-de-fundo e se impðe às consciências dos atores.2 Essas indicaçðes já devem ser suficientes para que possamos localizar, ainda que toscamente, o sistema jurídico em sentido estrito. Uma teoria discursiva do Direito deve primeiramente se comprovar neste nível de análise. Distintamente da teoria filosófica da justiça, a teoria jurídica move-se no interior dos limites das ordens jurídicas concretas. Ela obtém seus dados do Direito vigente (geltenden Recht), das leis e precedentes, das doutrinas dogmáticas, dos contextos políticos de legislação, das fontes jurídicas históricas, e assim por diante. 1 LUHMANN, N. Ausdifferenzierung. 1981, p. 35. 2 Anteriormente ao surgimento do conflito os atores não têm uma "consciência jurídica" (Rechtsbewusstsein) conformada à visão de proteção de seus próprios interesses. Valho-me aqui das distinçðes sugeridas por G. Frankenberg. - 3 - Distintamente da teoria filosófica, a jurídica não pode ignorar, acima de tudo, os aspectos decorrentes da vinculação interna do Direito com o poder político - essencialmente a questão da autorização jurídica do emprego estatal da força legítima.3 Por outro lado, tal como a dogmática jurídica a teoria jurídica privilegia a perspectiva do juiz. O que é devido ao status funcional de que goza a prestação jurisdicional (Rechtsprechung) no sistema jurídico em sentido estrito. Os procedimentos jurisdicionais (Gerichtsverfahren) representam o ponto evanescente (Fluchtpunkt) para a análise do sistema jurídicoprecisamente porque toda comunicação jurídica se refere a pretensðes acionáveis. A escolha dessa perspectiva de investigação implica apenas em um compromisso metodológico com a área da prestação jurisdicional e não em uma restrição da análise à mesma. O conteúdo da teoria jurídica estende-se igualmente à legislação e à administração, e, portanto, a todos os subsistemas concernentes à produção e à reprodução do Direito, bem como ao sistema jurídico em sentido amplo. Esse conteúdo, por pretender alcançar uma teoria da ordem jurídica como um todo, distingue-se do conteúdo da dogmática jurídica. No processo a teoria jurídica leva em consideração as perspectivas de outros participantes, mediante a inclusão dos diferentes papéis do legislador político, da Administração e dos co-associados jurídicos tanto enquanto cidadãos como na qualidade de clientes, em sua perspectiva explicativa própria, ou seja, a do jurista especializado, uma perspectiva explicitamente assumida.4 Como veremos no conceito de Direito de Ronald Dworkin, tomado como um instrumental destinado a assegurar a integridade da sociedade como um todo, a autocompreensão dos co-associados jurídicos é, dessa forma, também posta em tela de exame. No entanto, a teoria jurídica permanece antes de tudo como uma teoria da prestação jurisdicional (Rechtsprechung) e do discurso jurídico. A tensão imanente ao Direito entre faticidade e validade manifesta-se na prestação jurisdicional como uma tensão entre o princípio da certeza do Direito e a pretensão de se tomar decisðes justas. Discutirei, de início, quatro imagens paradigmáticas do Direito que fornecem distintas soluçðes para a questão da racionalidade da prestação jurisdicional, da decisão judicial (Rechtsprechung) (I). A proposta de Ronald Dworkin reveste-se de especial interesse para nós, pois computa os pressupostos de racionalidade da decisão judicial no nível de uma reconstrução racional do Direito vigente (geltenden Rechts). As exigências ideais postuladas por Dworkin em sua teoria deram origem a uma vívida discussão (II). As objeçðes de F Michelman ao enfoque solipticista de Dworkin indicam-nos o caminho para uma teoria intersujetiva do discurso jurídico. No entanto, a tese avançada nesse contexto, a de que o discurso jurídico deveria ser concebido como um caso especial de aplicação dos discursos morais, não faz justiça à complexidade da relação que se estabelece entre o judiciário (Justiz) e a legislação (Gesetzgebung) (III). I - Hermenêutica, Realismo e Positivismo. 3 É precisamente à luz desta autorização que Dworkin demarca a distinção entre "Direito" e "justiça": "A justiça diz respeito à questão da melhor ou da mais correta teoria dos direitos naturais e políticos (moral and political rights) . . . O Direito envolve o problema de quais são os direitos pressupostos que fornecem uma justificação para o uso ou a detenção da força coletiva do Estado porque incluídos ou decorrentes das efetivas decisðes políticas do passado." DWORKIN, R. Law's Empire. Cambridge, Mass., 1986, p 97. 4 Cf. DREIER, R. Was ist und wozu Allgemeine Rechtstheorie? Tübingen, 1975; MACCORMICK, N. Legal Reasoning and Legal Theory. Oxford, 1978. - 4 - Uma teoria da justiça (Gerechtigkeit) que, por começar diretamente com um enfoque normativo, opera para além das tradiçðes e instituiçðes existentes na tentativa de justificar os princípios de uma sociedade bem ordenada, deve lidar com o problema de como a sua idéia pode estabelecer contato com a realidade. O que aqui se impðe como um problema subseqüente em uma teoria plenamente desenvolvida representa o problema inicial para uma teoria jurídica que opere no interior da esfera do Direito vigente (geltende Rechts). Já vimos como a tensão entre a faticidade e a validade penetra a própria categoria do Direito e se revela nas duas dimensðes da validade jurídica (Rechtsgeltung). Por um lado, o Direito vigente ou positivo (geltende Rechts) garante a imposição das expectativas de comportamento estatalmente sancionadas e, desse modo, a certeza do Direito; por outro lado, procedimentos de elaboração e de aplicação racional do Direito prometem legitimidade para as expectativas de comportamento assim estabilizadas; as normas merecem ser juridicamente obedecidas mas sempre deveriam também possibilitar o seu cumprimento por respeito à lei, ao Direito. Pois bem, ambas as garantias devem ser simultaneamente cumpridas no nível do cerne da prestação jurisdicional, no âmbito da decisão judicial. Não é suficiente que as pretensðes conflitantes sejam transformadas em pretensðes jurídicas e simplesmente decididas de uma maneira vinculante por intermédio de açðes perante o judiciário. A tarefa de julgar (Urteile), para que realize a função socialmente integradora da ordem jurídica e a pretensão de legitimidade do Direito, deve simultaneamente cumprir as condiçðes de uma decisão consistente (Entscheidens) e da aceitabilidade racional. Uma vez que essas condiçðes não se haronizam facilmente, dois critérios devem ser conciliados na práxis da tomada de decisão judicial (Entscheidungspraxis). Por um lado, o princípio da certeza do Direito (Prinzip der Rechtssicherheit) requer decisðes que possam ser consistentemente tomadas no quadro da ordem jurídica vigente. Aqui, o Direito vigente é o produto de uma rede inassimilável (unübersichtlichen) de decisðes anteriores do legislativo e do judiciário, que também pode incluir as tradiçðes do Common Law. Essa história institucional do Direito constitui a base, o pano-de-fundo, o background (Hintergrund), de toda prática cotidiana de tomada de decisão. A positividade do Direito (der Positivität des Recht) também reflete as contingências de seu contexto de origem (Entstehungszusammenhange). Por outro lado, a pretensão de legitimidade (der Legitimitätsanpruch) da ordem jurídica requer decisðes consistentes não apenas com o tratamento anterior dos casos análogos e com o sistema de regras vigente (geltenden Regelsystem), mas pressupðe igualmente que sejam racionalmente fundadas nos fatos da questão (Sache) de tal modo que os co-associados possam aceitá-las como decisðes racionais. Os juízes, que decidem os casos efetivos precisamente também no horizonte de um futuro presente, proferem juízos que configuram pretensðes de validade à luz de regras e princípios legítimos. Nessa medida, os fundamentos de justificação devem ser emancipados das contingências de seu contexto de origem. Essa alteração de enfoque, do histórico para o sistêmico, é explicitamente efetivada com a transição da justificação interna (internen Rechtfertigung) de uma decisão que repouse sobre premissas anteriormente dadas para uma justificação externa (externen Rechtfertigung) das próprias premissas.5 Como no caso das leis também as decisðes judiciais "são criaturas tanto da história quanto da 5 WROBLEWSKI, J. "Legal Syllogism and Rationality of Judicial Decision", RechtsTheorie, 5, 1974. - 5 - moralidade: o que um indivíduo tem titularidade para gozar na sociedade civil depende tanto da prática quanto da justiça de suas instituiçðes políticas."6 O problema da racionalidade consiste, pois, em como a aplicação de um Direito contingencialmente emergente pode ser realizada de modo internamente consistente e externamente fundado de forma racional no sentido de garantir a certeza do Direito (Rechtssicherheit) e a sua justiça, a sua correção (Richtigkeit)? Se se pressume que a opção pelo Direito Natural, que subordina o Direito vigente a padrðes supra-positivos, não é mais possível, resta-nos, então, de início, três alternativas bem conhecidas para lidar com essa questão central na teoria jurídica: (a) a hermenêutica jurídica, (b) o realismo e (c) o positivismo jurídico. (a) A hermenêutica jurídica, em oposição ao modelo convencionalda decisão jurídica tomada como subsunção de um caso à regra pertinente, apresenta o mérito de haver revivido a intuição aristotélica de que nenhuma regra é capaz de regular a sua própria aplicação.7 Um conjunto de circunstâncias adequadas a uma regra só se constitui ao ser descrito nas categorias da norma a ele aplicável, na medida em que o significado da norma se concretiza precisamente em virtude de sua aplicação a um específico conjunto normativo de circunstâncias. Uma norma sempre "registra" seletivamente uma situação complexa do Mundo da Vida sob os pontos de vista que ela determina como relevantes, enquanto que o conjunto de circunstâncias por ela constituído nunca exaure os conteúdos de indeterminação semântica de uma norma geral, mas, ao contrário, faz com que possam atuar ou advir seletivamente. Essa descrição circular revela um problema metodológico que qualquer teoria jurídica tem que solucionar. A hermenêutica propðe um modelo processual como solução para tal problema. A interpretação começa por uma pré-compreensão (Vorverständnis) valorativamente conformada que estabiliza uma relação anterior entre norma e circunstâncias e abre o horizonte para posteriores conexðes relacionais. A compreensão inicialmente difusa torna-se precisa na medida em que, sob a sua direção, norma e circunstâncias reciprocamente se concretizam e se constituem.8 A hermenêutica assume posição própria na teoria jurídica quando resolve a questão da racionalidade da decisão judicial mediante a contextualização da razão no complexo das transmissðes históricas. De acordo com essa solução, a pré-compreensão do juiz é conformada por "topoi" de um complexo ético de tradição. Essa pré-compreensão dirige a reconstrução das conexðes relacionais entre normas e circunstâncias à luz de princípios historicamente provados (historisch bewährter Prinzipien). A racionalidade de uma decisão, em última análise, deveria ser mediada "pelos padrðes decorrentes dos costumes que ainda não se condensaram em normas", ou seja, pelos "jurisprudentiellen WeisheitenN.T. que correm à frente do Direito."9 A hermenêutica na medida em que se torna teoria jurídica absorve e sustenta a pretensão de legitimidade levantada pela tomada de decisão judicial. A indeterminação de um processo circular de compreensão, o círculo hermenêutico, pode ser gradualmente reduzida mediante a referência 6 DWORKIN, R. Taking Rights Seriously. Cambridge, mass, 1978, p. 87. 7 GADAMER, G. Verdad y Metodo. 8 HASSAMER, W. "Juristische Hermeneutik", Archiv für Rechts und Sozialphilosophie, 72, 1986: p. 195 e ss.; consulte-se também NEUMAN, U. Juristische Argumentationslehre. Darmstadt, 1986, p. 54 e ss. N.T. - Os jurisprudentiellen Weisheiten ou jurisprudential dictums, em língua inglesa, são opiniðes pessoais do juiz expressas em seu voto, sem natureza de precedente e sem relação essencial com o caso. 9 ESSER, J. Grundsatz und norm in der richterlichen Fortbildung des Privatsrechts. Tübingen, 1964, p. 182; consulte-se também o seu Vorverständnis und methodenwahl in der Rechtsfindung. Kronberg, 1972. - 6 - a princípios. Esses princípios, no entanto, só podem ser legitimados a partir da efetiva história dessas formas de vida e de Direito nas quais os juízes contingencialmente se encontram. (b) Em uma sociedade pluralista em que vários deuses e demônios, bem como posiçðes de interesse, competem entre si, o recurso a um ethos prevalente desenvolvido pela interpretação, sabidamente, não oferece uma base convincente para a validade das decisðes judiciais. O que para uma pessoa tem o valor de um "topos" historicamente provado, para outras não é mais do que ideologia ou puro preconceito. A escola realista do Direito reata o justo ao estado de coisas. Não contesta o valor descritivo da metodologia hermenêutica, mas chega a uma distinta avaliação da pré-compreensão que dirige o processo de interpretação. Na seleção realizada na tomada de decisão judicial entram em cena determinantes metajurídicos que só podem ser elucidados mediante análises empíricas. Esses fatores externos ou metajurídicos explicam coo os juízes preenchem a margem de liberdade, de discricionariedade, de que gozam em suas decisðes; tais fatores autorizam a previsão de decisðes judiciais com base em fundamentos históricos, psicológicos e sociais. É óbvio o ceticismo jurídico engendrado por essa posição. Na medida em que o resultado de um processo judicial pode ser explicado pelas posiçðes de interesse dos juízes, pelo processo de socialização, pela pertinência de classe, pelas posturas políticas e estruturas de personalidade, ou pelas tradiçðes ideológicas, constelaçðes de poder, fatores econômicos e outros, internos e externos ao sistema jurídico, a prática da tomada de decisão judicial não é mais internamente determinada pela seletividade do procedimento, do caso e do fundamento jurídico. A lógica intrínseca do Direito, já suavizada no enfoque da Hermenêutica Jurídica na medida em que a relativiza enraizando-a na tradição, agora desaparece por completo em uma descrição realista do processo de aplicação do Direito. Do ponto de vista do realismo jurídico, da escola do Direito Livre e da Jurisprudência dos Interesses,10 não se pode mais discernir claramente em termos de características estruturais o Direito da política. No entanto, se os processos de tomada de decisão judicial podem ser descritos de uma maneira similar à dos processos do poder político, não se pode mais atribuir qualquer sentido ao postulado que assegura a certeza do Direito por via de decisðes consistentes fundadas em um sistema de normas suficientemente determinadas. A produção passada do Direito perde seu domínio sobre as decisðes correntes porque essas repousam de forma preponderante sobre o poder discricionário do juiz. Na melhor das hipóteses, a pretensão de legitimidade do Direito só pode manter seu sentido através do fato de que o juiz prolata suas decisðes como um político, orientado para o futuro com base nas orientaçðes de valor que considera razoáveis. O Direito é, assim, considerado como um instrumento de controle de comportamentos que pode ser desenvolvido em virtude de finalidades políticas razoáveis, ou seja, finalidades justificadas com base em fundamentos utilitários ou de bem-estar social. 11 A concepção idealista assumida pelos participantes, a de que todos ou quase todos os casos podem ser decididos com base no Direito vigente tanto consistente quanto corretamente, tem sido submetida a uma crítica supressora de ilusðes da perspectiva do observador pela Escola Realista. Por outro lado, as tomadas de decisão dificilmente podem operar se prescindirem de pressupostos idealizantes. A revogação da garantia da certeza do Direito desvelada importa em aceitar que a prestação jurisdicional deva, em última 10 ELLSCHEID, G. e HASSEMER, W. editores. Interessenjurisprudenz. Darmstadt, 1974. 11 Sobre o Realismo Jurídico norte-americano ver SUMMERS, R. S. Instrumentalism and American Legal Theory. Itahaca, 1982. - 7 - instância, desistir completamente de buscar cumprir a função do Direito de estabilizar as expectativas de comportamento. Os realistas não podem explicar como a capacidade funcional do sistema jurídico pode se compatibilizar com o ceticismo radical por parte dos especialistas envolvidos. (c) O positivismo jurídico, ao contrário, quer dar conta da função de estabilizar as expectativas de comportamento sem, no entanto, ter que sustentar a legitimidade da decisão jurídica (Legitimität der Rechtsentscheidung) sobre a autoridade contestável das tradiçðes éticas. Teóricos como Hans Kelsen e H. L. Hart, em oposição à escola realista, salientam o caráter normativo intrínseco da regras jurídicas (Rechtssätze) e a construção sistêmica de um sistema de regras pensado para facilitara consistência das decisðes vinculadas às regras e para tornar o Direito predominantemente independente da política. Ao contrário da hermenêutica, enfatizam o caráter fechado e autônomo de um sistema jurídico impermeável a princípios metajurídicos. O problema da racionalidade é decidido nesse contexto de uma forma em que se dá prioridade a uma história institucional estritamente concebida, purgada de qualquer base de validade suprapositiva. Uma norma fundamental (Grundregel) ou de reconhecimento, segundo a qual pode-se decidir quais normas pertencem ao Direito vigente em um determinado ponto na escala temporal, possibilita atribuiçðes não ambíguas. Se pressupomos um sistema jurídico autônomo desse tipo, que além do mais diferencia- se em normas primárias para especificar os comportamentos e secundárias para a produção autoreferencial de normas, a legitimidade das regulamentaçðes jurídicas (die Gültigkeit von Rechtsvorschriften) será medida tão só pela observância dos procedimentos juridicamente estipulados de produção do Direito. Essa legitimação através da legalidade do procedimento de formação da lei (Legalität der Rechtsetungsverfahrens) privilegia a linhagem (die Herkunft), ou seja, o processo correto de positivação ou de decisão, em detrimento da undamentação racional de um conteúdo normativo: as regras são legítimas (gültig) porque adequadamente trazidas à luz pelas instituiçðes próprias. A legitimação da ordem jurídica como um todo desloca-se para a origem dessa ordem, ou seja, para uma norma fundamental ou de reconhecimento que tudo legitima sem que ela própria seja capaz de justificação racional; enquanto parte de uma forma de vida histórica ela tem que ser aceita de fato como o costume estabelecido, ou seja, como habitual. Hart torna plausível essa afirmativa assentando-a no conceito de jogo de linguagem de Wittgenstein. Tal como a gramática de um jogo de linguagem, a norma de reconhecimento enraiza-se em uma prática que, embora descrita do exterior como um fato, é tomada pelos participantes como evidentemente legítima (gültig) por si mesma.12 A vinculação da validade (Geltung) do Direito à sua gênese permite apenas uma solução assimétrica para a questão da racionalidade. A razão ou a moralidade são até certo ponto subordinadas à história. Assim, a leitura positivista da tomada de decisão judicial termina por relevar a garantia da certeza do Direito em detrimento da certeza da correção. A prioridade da certeza jurídica é evidente no modo pelo qual o positivismo jurídico lida com os casos difíceis ou hard cases. 12 HART, H.L.A. The Concept of Law. Oxford, 1961, p. 107: "A regra de reconhecimento só existe enquanto um complexo, mas a prática usualmente congruente dos tribunais, dos agentes públicos e dos sujeitos privados é a de identificar o Direito por referência a certos critérios. A sua existência é uma questão de fato." - 8 - Nesses casos o prolema hermenêutico fundamental torna-se especialmente claro, o de como justificar a adequabilidade da inevitável seleção de decisðes. O positivismo expðe esse problema, analisando seus efeitos como sintomas de uma inevitável ambiguidade das formulaçðes da linguagem comum. Hart deende a necessidade de se interpretar as normas jurídicas em retôrno às estruturas fundamentalmente abertas das linguagens naturais e chega a uma conclusão decisionista. Enquanto o Direito vigente não for suficiente para se proceder a uma exata especificação do conjunto de circunstâncias, os juízes devem decidir segundo a sua própria discricionariedade. Os juízes atuam em sua margem de discricionariedade mediante a escolha de preferências pessoais não fundadas juridicamente, se necessário orientando suas decisðes por padrðes morais ainda não revestidos pela autoridade do Direito. 2 - A teoria do Direito de Ronald Dworkin pode ser entendida como uma tentativa de se evitar as falhas das soluçðes realista, positivista e hermenêutica, bem como de explicar com base em direitos deontologicamente concebidos como a decisão judicial pode cumprir a um só tempo os requisitos da certeza do Direito e da aceitabilidade racional. Em oposição ao realismo, Dworkin sustenta tanto a necessidade quanto a possibilidade de decisðes consistentes, vinculadas à regra, que garantam um grau de certeza jurídica suficiente. Em oposição ao realismo, Dworkin defende tanto a possibilidade quanto a necessidade das decisðes de "direito singular" legitimadas por seu conteúdo à luz de princípios reconhecidos e não apenas do ponto de vista formal pelos procedimentos adotados. A referência hermenêutica à pré-compreensão determinada por princípios não deveria, no entanto, conduzir o juiz à história efetiva dos legados sustantivos normativamente prevalentes; ao contrário, é precisamente esse recurso que o obriga a se apropriar criticamente de uma história institucional do Direito portadora das características da razão prática. Os tribunais decidem quem tem titularidade a quais direitos políticos; dentre esses direitos Dworkin inclui os direitos que gozam de validade positiva e que ao mesmo tempo merecem ser reconhecidos da perspectiva do juiz. A tese de que "existem" tais direitos depende de uma razão prática historicamente corporificada que se alcance através da história. Essa razão, tematizada de um ponto de vista moral, articula-se com uma regra básica que requer igual respeito e consideração para com cada pessoa. A regra básica de Dworkin corresponde ao princípio do Direito de Kant e ao primeiro princípio da justiça de Rawls, segundo os quais cada pessoa tem direito a iguais liberdades subjetivas. É certo que Dworkin levanta contra Rawls a objeção de que as partes na posição originária só podem acordar com esse princípio porque o direito básico a igual respeito e consideração já regula o ingresso das partes na posição originária, e daí porque pertence às condiçðes dos pactos racionais (Vereinbarungen) em geral. Para Dworkin esse direito básico não pode ser fundado em princípios ulteriores, e por isso ele goza do status de "um direito natural de todos os homens e mulheres . . . que (eles) possuem . . . simplesmente enquanto seres humanos dotados da capacidade de fazer planos e de servir à justiça."13 Para evitar as conotaçðes do Direito Natural, pode-se também compreender a afirmativa transcrita como uma explicação do sentido deontológico dos direitos fundamentais em geral. Esse sentido de validade 13 DWORKIN, R. Taking Right Seriously. P. 182. - 9 - (Geltungssinn) é transmitido para os direitos institucionalmente vinculantes ou "políticos" e confere um momento de incondicionalibilidade às pretensðes jurídicas individuais. Uma vez que Dworkin entende os direitos como "Azes" em um jogo no qual os indivíduos defendem suas pretensðes justificadas contra as trapaças das políticas públicas: "segue-se da afirmação de um direito que ele não pode ser menosprezado por finalidades sociais. Devemos estipular que, no sentido de simplificar, não denominaremos "direito" qualquer objetivo político, a não ser que tenha um certo peso na delimitação contra finalidades coletivas em geral."14 É claro que não se afirma que todos os direitos tenham validade absoluta, mas que cada direito restringe a análise de custo- benefício na consecução de finalidades coletivas cujos limites de justificação, em última instância, repousam sobre o princípio do igual respeito e consideração para com cada pessoa. A teoria dos direitos de Dworkin funda-se sobre a premissa de que os pontos de vista morais exercem um papel na decisão judicial porque o Direito positivo inevitavelmente assimila um conteúdo moral. Essa premissa não aporta nada de novo para uma teoria que se inicia pelo pressuposto de de que as razðes morais penetram no Direito pela via do procedimento legislativodemocrático - e das condiçðes de equânimidade (Fairnessbedingungen) da constituição de compromissos. Esse aspecto, no entanto, requer alguns esclarecimentos no que se refere aos conteúdos morais que, uma vez traduzidos para o código jurídico, têm o seu significado específico alterado sob a forma jurídica. Digressão sobre o conteúdo moral do Direito: O significado jurídico dos conteúdos morais e o nível específico de variação de seus pesos específicos são mmais visíveis na seara das regras primárias reguladoras de comportamento. Se seguirmos a proposta de classificação de B. Peters e dividirmos essas regras não-procedimentais em preceitos restitutivos e preceitos proibitivos ou vedatórios, por um lado, e preceitos de "custos" e de "transferência", por outro,15 podemos ver, então, que o conteúdo moral pode recobrir um amplo espectro de variação. Em um dos extremos, esses conteúdos restringen-se a um mínimo consubstanciado no fato de que é de se esperar obediência jurídica das normas em geral, e, é claro, independentemente de seu conteúdo substantivo. Um indicador do peso relativo do conteúdo moral é a força da reação dos co- associados à violação da lei, no que toca tanto à desaprovação informal por parte dos co- associados quanto às sançðes impostas pelo judiciário. A classificação em categorias das penalidades ( dos crimes às meras violaçðes procedimentais), tanto quanto a divisão entre transgressðes criminais e cíveis, que justificam pretensðes de compensação, podem ser entendidas como a avaliação jurídico-dogmática de seu conteúdo moral. As ofensas elementares ao Direito Penal, tais como o homicídio doloso ou culposo, as lesðes corporais, o cárcere privado, o furto, etc., são considerados moralmente repreensíveis, enquanto que sentenciar uma pessoa a indenizar a outra por danos que a primeira tenha causado à segunda usualmente importa na desaprovação do ato, mas não em desprezo pelo culpado. É distinta a situação que se refere às reaçðes aos prêmios ou aos ônus destribuídos tendo- se em conta o comportamento das pessoas, tais como subsidios, tarifas, multas progressivas, etc., ou referente às reaçðes ao imposto de renda e a outros pagamentos impostos independentemente do comportamento segundo critérios de bem-estar social. O Direito que recobre as políticas de tributação redistributiva (Umsteuerung) e de alocação de recursos 14 DWORKIN, R. Taking Right Seriously. P. 92. 15 PETERS, B. Rationalität. P. 278. - 10 - (Ressourcenverlagerung), de acesso, redistribuição e disponibilidade dos bens coletivos dirige- se de uma maneira moralmente neutra aos destinatários, suposta e essencialmente orientada por por cálculos de custo-benefício ou por simples "necessidades" (Bedarf). Falhas do controle de comportamento desejadas pelo legislador não são "reprováveis" (vorwerfbar). O que significa que o sentido de validade (Geltungssinn) das normas jurídicas que envolvem "custos" ou "transferências" é de uma certa maneira "amoralizado" (entmoralisiert). É certo que tais normas jurídicas não são necessária ou mesmo usualmente desprovidas de conteúdo moral - especialmente porque integram programas legais moralmente justificados. Os padrðes morais que ajudam o legislador a avaliar as políticas correspondentes impregnam o conteúdo do Direito, por cujas formas essas políticas são desenvolvidas. Assim, os argumentos de política que Dworkin distingue dos argumentos de princípio, podem facilmente ter relevância moral. As normas procedimentais intermediárias que atribuem às corporaçðes semipúblicas tais como comissðes (Kammern) parlamentares, universidades, associaçðes profissionais, etc., poderes específicos ocupam uma posição intermédia entre as regras moralmente carregadas e as regras amplamente amoralizadas. O exercício dessas competências (por exemplo: a condução de açðes trabalhistas, a negociação de compromissos, o estabelecimento de regas organizacionais, etc.) segue procedimentos e prescriçðes formais que ocasionalmente se estendem a comportamentos moralmente relevantes tais como os deveres de informar e de zelar, a vedação de táticas impróprias (Kampfmittel), etc. Mesmo no Direito Privado, a "boa-fé" ou a responsabilidade civil por consenqüências antijurídicas não intencionadas têm um papel. Bastante interessantes, tais prescriçðes de forma e de procedimento não podem desenvolver completamente a substância moral que Durkheim viu nas bases não-contratuais dos contratos; essa substância não pode ser plenamente apreendida nas formas jurídicas. Diz respeito acima de tudo à capacidade de juízo moral, que se efetivamente não instrui deveria pelo menos acompanhar a autoridade de produzir e de aplicar as normas jurídicas. Essa interpretação pode ser problemática no que se refere às normas de capacidade civil (Ermächtigungsnormen) na esfera central do Direito Privado. Mas adquire uma certa plausibilidade, no entanto, se se tem em vista as esferas em que competências estatais, públicas, de elaboração e de organização do Direito são delegadas a detentores que são "privados" apenas nominalmente, como por exemplo, no caso das partes envolvidas nas convençðes coletivas ou do quadro de membros escolhidos segundo o Direito das relaçðes industriais. Naturalmente que, enquanto um padrão do Direito justo (richtiges), a moralidade tem o seu primeiro domicílio na formação da vontade política do legislador e na comunicação política da esfera pública. Até mesmo os exemplos acima mencionados da moralidade no Direito não importam em nada mais do que a constatação de que os valores morais são traduzidos para o código jurídico e revestidos por um modo distinto de validade. Dado que a sobreposição de conteúdos substantivos não altera em nada a diferenciação entre Direito e moralidade que se firmou de forma irreversível no nível pós-convencional de justificação sob as condiçðes do pluralismo moderno de visðes de mundo; quando Dworkin fala de argumentos de princípio a justificar externamente as decisðes judiciais, ele tem em mente na maior parte das vezes princípios jurídicos, dogmas que resultam da aplicação do princípio do discurso ao código jurídico. O sistema de direitos e os princípios constitucionais são indubitavelmente devidos à razão prática, mas são devidos em primeiro lugar à forma que esta assume no princípio da democracia. O - 11 - conteúdo moral dos direitos e princípios constitucionais é também explicado pelo fato de que as normas fundamentais do Direito e da moralidade, fundadas sobre o princípio do discurso se entrecruzam substantivamente. 3 - O próprio Dworkin, no entanto, pode conceber a seu modo a relação entre Direito e moralidade, sua teoria dos direitos requer uma compreensão deontológica das pretensðes de validade jurídicas. Com essa compreensão Dworkin rompe o círculo no qual a hermenêutica se encerra com o seu recurso aos topoi historicamente comprovados de um ethos herdado. Dworkin faz com que o enfoque hermenêutico sofra um giro construtivista. Ao começar pela crítica do positivismo, em especial pela tese da neutralidade (a) e pelo pressuposto do caráter fechado e autônomo do sistema jurídico (b), Dworkin desenvolve suas idéias metodológicas de interpretação construtiva. (a) Dworkin discute inicialmente o pressuposto segundo o qual o Direito seria legitimado pela mera legalidade do procedimento legislativo. O discurso jurídico só é independente da moralidade e da política no sentido de que os princípios morais e as políticas públicas devem ser também traduzidos para a linguagem neutra do Direito e vinculados ao código jurídico. Essa coerência do código jurídico concilia, entretanto, o complexo sentido da validade no Direito legítimo, uma validade que explica porque nas decisðes de princípio ou Leadings decisions (Grundsatzentscheidungen), razðes de ordem metajurídica, envolvendo consideraçðes de naturezapragmática, ética e moral, são admitidas no discurso jurídico e incluídas nos argumentos jurídicos. Dworkin, apoiando-se em conhecidos precedentes hauridos essencialmente do Direito norte-americano, analisa como os juízes lidam com as situaçðes juridicamente indeterminadas referindo-se sistematicamente ao pano de fundo, ao background, das políticas públicas e dos princcípios morais. É mediante o processamento de argumentos de política e de princípio que eles chegam a decisðes bem fundamentadas. Tais justificaçðes externas são possíveis porque o próprio Direito vigente já incorporou conteúdos teleológicos e princípios morais, ou seja, acima de tudo, assimilou as razðes da decisão do legislador. O que é visível nas leading decisions da Suprema Corte. É certo que na decisão judicial os argumentos de princípio gozam de prioridade sobre os argumentos de política: os argumentos de política têm seu autêntico lugar no processo legislativo, e por ele abrem caminho em direção ao discurso judicial (juristischen Diskurs). A prestação jurisdicional é talhada para a aplicação de normas jurídicas estabilizadoras de expectativas de comportamento; ela considera o conjunto de finalidades ou de políticas legais (legislative Zielsetzungen) à luz de princípios, pois "os argumentos de princípio justificam uma decisão política pela demonstração de que essa decisão respeita ou assegura algum direito individual ou de grupo."16 Naturalmente que, via de regra, também as políticas públicas, já são justificadas mediante princípios e direitos; mas só os argumentos de princípio podem preservar a conexão interna entre a decisão sobre um caso individual e a substância normativa da ordem jurídica como um todo. 16 DWORKIN, R. Taking Right Seriously. P.82. - 12 - (b) Dworkin procede mais adiante à distinção entre "regra" e "princípio" para explicar a inadequação do conceito de Direito que alicerça a tese da autonomia do mesmo de Hart. Regras são normas concretas determinadas já estabelecidas para aplicaçðes específicas (por exemplo, as estipulaçðes para a elaboração de testamentos), enquanto que os princípios representam preceitos jurídicos fundamentais (Rechtsgrundsätze) constantemente carentes de interpretação (tais como os direitos humanos, o tratamento isonômico, etc.). Tanto as regras (as normas) quanto os preceitos jurídicos fundamentais (os princípios) são comandos (Gebote) (vedaçðes, permissðes) cuja validade normativa (Sollgeltung) expressa a natureza de uma obrigação. A distinção entre esses tipos de normas não pode ser confundida com a diferenciação entre normas e políticas. Os princípios tanto quanto as regras também têm uma estrutura teleológica. Eles não devem ser entendidos como preceitos de otimização (Optimierungsgebote) - como sugerem as teorias metodológicas correntes com a sua noção de "produtos de suporte ou apoio" (Güterabwägung) - o que nos faria perder de vista o sentido deontológico de sua validade. Ambos, regras e argumentos, servem igualmente como argumentos para a justificação de decisðes, embora cada um possua um status lógico-argumentativo diferente. Pois as regras sempre contêm uma cláusula condicional antecedente que especifica as condiçðes situacionais típicas de aplicação, enquanto que os princípios ou aparecem como portadores de uma pretensão de validade incondicional ou têm a sua aplicabilidade restringida apenas por condiçðes muito gerais, ou, em qualquer hipótese, por condiçðes que requeiram interpretação. Tudo o que vem explicar a diferença específica sobre a qual Dworkin lança luz, a de como, respectivamente, regras e princípios colidem entre si. Um conflito entre regras só pode ser resolvido ou pela introdução de uma cláusula de exceção ou pela declaração de invalidade (ungültig) de uma das regras conflitantes. Esse tipo de decisão de "tudo ou nada" não se faz necessário na hipótese de conflito de princípios. Conquanto o princípio relevante para uma determinada questão certamente goze de prioridade, os princípios preteridos, tomados em segundo plano (zurücktretenden Prinzipien), não perdem sua validade. Dependendo do caso em tela de juízo, um princípio adquire prioridade, assume precedência, sobre os demais De caso para caso distintas ordens transitivas são estabelecidas entre os princípios sem que isso afete sua validade. O positivismo só chega à errônea tese da autonomia porque concebe o Direito como um sistema fechado de regras específicas de aplicação que, na hipótese de colisão, de choque, requer decisðes do tipo "tudo ou nada" fundadas na discricionariedade do juiz. Somente com a concepção unidimensional do Direito considerado como um sistema de regras desprovido de força principiológica poder-se-ia concluir que a colisão de regras (Kollisionsfall) gera uma indeterminação na situação jurídica que só pode ser decisionisticamente eliminada. Tão logo os princípios - e o mais alto nível de justificação da aplicação normativa à luz de princípios - sejam admitidos e reconhecidos como componentes usuais (normale) do discurso jurídico desaparecem ambos os aspectos: o caráter fechado do sistema de regras e a insolubilidade dos conflitos entre regras. (c) Mediante a análise dos papéis desempenhados pelos argumentos de princípio e de política na decisão judicial, e com a revelação de uma vitrine das normas de mais alto nível no próprio sistema jurídico, Dworkin assume controle do nível pós-tradicional de justificação do qual depende o Direito positivado. Como pressupðe o positivismo, o Direito moderno não se tornou simplesmente contingente após haver se emancipado dos fundamentos sagrados e se libertado - 13 - de seu enraizamento nos contextos metafísico-religiosos. Nem se encontra, tãopouco, à disposição das políticas de dominação política como o realismo pressupðe, ou seja, como um instrumental desprovido de qualquer estrutura interna própria. O momento de indisponibilidade que se impðe no sentido de validade deontológico dos direitos refere-se, ao contrário, à dimensão de uma determinação racional, orientada por princípios ou principiológica, de decisðes de "direito singularizado". Já que esses princípios não podem ser hauridos, por sua vez, como topoi historicamente comprovados de um complexo herdado das tradiçðes de uma comunidade ética, como acredita a hermenêutica jurídica, a prática da interpretação exigirá um ponto de referência que aponte para além das tradiçðes jurídicas assentadas. Dworkin explica metodologicamente esse ponto de referência por intermédio do procedimento de interpretação construtiva, e, substantivamente, pela postulação de uma teoria jurídica que reconstrói e articula racionalmente o Direito vigente. È exemplo da história da ciência, também na história institucional de um sistema jurídico pode-se distinguir os aspectos internamente acessíveis dos externos. Da perspectiva interna, formulaçðes compreensíveis de uma questão projetam uma luz crítica sobre os argumentos historicamente disponíveis; o que permite que se distinga, à luz da evidência contemporânea, as investigaçðes infrutíferas das produtivas, os becos-sem-saída e enganos dos processos de aprendizagem e soluçðes temporárias. É certo que, dependendo do paradigma subjacente, distintas linhas de reconstrução revelam-se ao olhar retrospectivo. Os paradigmas, no entanto, não podem ser livremente escolhidos, mas a própria escolha depende de uma situação hermenêutica inicial da qual não podemos dispor à nossa vontade. A pré-compreensão paradigmática não se encontra para além da correção; é testada e modificada no próprio processo de interpretação. Contudo, mesmo ao final, seja na ciência, seja no Direito, ela não é neutra: a concepção subjacente à reconstrução acolhe uma certa força conformadora de um determinado viés. Por isso mesmo ela deve ser teoreticamente justificada como o modelo que melhor captea questão objeto da ciência ou do Direito. É precisamente este o ponto do modelo de Direito positivo de Dworkin que, ao se constituir de regras e princípios, assegura via decisðes judiciais discursivas a integridade das relaçðes de reconhecimento, garantindo igual respeito e consideração a todos os co-associados jurídicos sob o Direito. Referindo-se à minha crítica a Gadamer,18 Dworkin caracteriza seu procedimento crítico hermenêutico como uma "interpretação construtiva" que explicita a racionalidade do processo de compreensão interpretativa por referência a um paradigma ou "finalidade": "Interpretação construtiva é um problema de imposição de finalidade a um objeto ou a uma prática no sentido de torná-lo o melhor exemplo possível da forma ou gênero ao qual esse seja atribuído . . . diríamos, então, que toda interpretação esforça-se em fazer de um objeto o melhor que ele pode ser enquanto instância de alguma empresa pretendida, e essa interpretação assume diferentes formas nos distintos contextos tão somente porque diferentes empresas envolvem distintos padrðes de valor ou sucesso."19 Com a ajuda de um tal procedimento de interpretação construtiva20, cada juiz, a princípio, poderia ser capaz de alcançar uma decisão idealmente válida 18 HABERMAS, J. Theory, 1: 130-36; veja-se também HABERMAS, J. Sobre a Lógica das Ciências Sociais, 19 DWORKIN, R. Law's Empire, p. 52; ver também a nota 2 na p. 419. 20 Dois únicos textos relacionam o conceito de interpretação de Dworkin à discussão européia, em especial às visðes de Gadamer, de Derrida e à minha própria. São eles: HOY, D.C. "Hermeneutical and Poststructuralist - 14 - em cada caso concreto, apoiando sua justificação em uma "teoria", e, assim, compensar a suposta "indeterminação do Direito." Essa teoria deve reconstruir racionalmente de um tal modo a ordem jurídica dada que o Direito vigente possa ser justificado com base em um conjunto ordenado de princípios dispostos como uma corporificação, uma densificação, mais ou menos exemplar do Direito em geral.21 II - A Teoria de Dworkin 1 - Para que a decisão judicial possa atender a um só tempo ao princípio da certeza jurídica e à pretensão de legitimidade do Direito, Dworkin objetiva uma ambiciosa teoria que possibilite fundamentar, especialmente nos casos difíceis, nos hard cases, a decisão singular com base no inter-relacionamento coerente do Direito vigente racionalmente reconstruído. A coerência, enquanto um padrão para a aferição da validade de um enunciado, é mais fraco do que a verdade analítica assegurada pela dedução lógica, mas mais forte do que o critério da ausência de contradição. A coerência entre enunciados é estabelecida por argumentos substanciais, no sentido que Toulmin atribuí à expressão, e, assim, por razðes que têm a propriedade pragmática de fazer aflorar um acordo racionalmente motivado entre os participante do processo argumentativo.22 O discurso jurídico envolve tipicamente argumentos normativos que, na hipótese de colisão de regras, justificam à luz de princípios a escolha da norma apropriada. Dworkin também se interessa por esses princípios porque eles possuem um conteúdo deontológico reconhecível que os exclui da contingência das promulgaçðes e derrogaçðes arbitrárias. Quando, por exemplo, direitos e princípios constitucionais são interpretados e elaborados ou quando outros conteúdos morais encontram curso no Direito positivo e, com isso, "recebem suporte dos atos oficiais das instituiçðes jurídicas", uma eventual alteração em tais regulamentaçðes jurídicas não pode afetar seu conteúdo normativo. É "difícil falar coerentemente de `derrogação' de princípios como esses."23 Na verdade, os princípios não devem ser ontologizados em algo como os fatos morais; mas devido à sua força deontológica justificatória eles têm um status lógico-argumentativo que explica porque os recursos de justificação disponíveis nos discursos jurídicos são suficientes para ultrapassar a justificação interna e fundamentar as próprias premissas.9 Pois bem, segundo Dworkin, os princípios jurídicos e os programas políticos do legislador compatíveis com tais princípios fornecem o aparato argumentativo para a reconstrução do cerne do Direito vigente até que se possa considerá-lo normativamente justificado. Dworkin requer a construção de uma teoria do Direito, não de uma teoria da justiça. A tarefa não consiste na Perspectives". Southern California Law Review 58 (1985): 135-76; e, do mesmo autor, "Dworkin's Constructive Optimism vs. Desconstructive Legal Nihilism". Law and Philosophy 6 (1987): 321-56. 21 DWORKIN, R. Taking Right Seriously. p.66; ver também do mesmo autor: "A matter of Principle", Cambridge, Mass., 1985, 2º parte. 22 TOULMIN, S. The Uses of Arguments. Cambridge, 1964; TOULMIN, S., RIEKE, R. e JANIK, A. An Introduction to Reasoning. New York, 1977. 23 DWORKIN, R. Taking Right Seriously. p. 40/41. 9 "Eu quero dizer apenas supor que uma instituição social particular como a escravidão deva ser injusta, não porque as pessoas pensem que ela seja injusta ou porque as convençðes avencem sua injustiça . . . mas precisamente porque a escravidão é injusta. Mas se tais fatos morais existissem, uma proposição de Direito poderia ser, então, verdadeira ainda que os advogados continuassem a discordar acerca da mesma após o conhecimento e a especificação de todos os fatos sólidos, efetivos (hard facts)." DWORKIN, R. A Matter of Principle, p. 138. - 15 - construção filosófica de uma ordem social fundada sobre os princípios da justiça, mas na descoberta de princípios e políticas válidos com base nos quais uma ordem jurídica concreta pode ter seus elementos essenciais justificados de um tal modo que todas as decisðes individuais nela se enquadrem como partes de um todo coerente. Como Dworkin sabe, uma tal tarefa só poderia ser realizada por um juiz cujas capacidades intelectuais fossem comparáveis à força física de um Hércules. O "juiz Hércules" tem à sua disposição dois componentes de um conhecimento ideal: ele conhece todos os princípios e programas válidos requeridos para a justificação; e, ao mesmo tempo ele goza de um panorama completo dos fios argumentativos densamente trançados que vinculam conjuntamente os elementos do Direito válido tal como existe no presente. Ambos os requisitos fixam os limites de construção da teoria. A margem de discricionariedade que Hércules recobre com a sua capacidade sobrehumana de argumentação é definida, por um lado, pela possibilidade de variação dos níveis hierárquicos dos princípios e programas, por outro, pela necessidade de se discernir de um modo crítico o cerne do Direito positivo e de corrigir os "enganos". Hércules, sem dúvida, deveria desvelar (entdecken) o conjunto coerente (kohärente Menge) de princípios que justificam a história institucional de um dado sistema jurídico "de um modo tal como o requerido pela equanimidade (Fairness)."10 Mas tão só um sistema justo resultante de um processo contínuo de aprendizagem poderia ser completamente justificado desse modo: "Assim, em qualquer caso, Hércules deve abrir sua teoria à idéia de que uma justificação da história institucional pode revelar partes dessa história como enganosas ou errôneas."11 Por outro lado, Hércules não deve igualar o papel do teórico que reconstrói o Direito vigente ao de um legislador construtivo. Nem todos os elementos da ordem jurídica, no entanto, vinculam na mesma medida; eles variam de grau segundo possibilitem uma avaliação questionadora e corretiva (sondierenden und korrigierenden Bewertung). A contingência dos contextos de origem, e, portanto, a margem dediscricionariedade de uma avaliação retrospectivamente alterada cresce conforme passamos do quadro constitucional através de normas constitucionais singulares para a legislação infraconstitucional, do common law para as leading decisions, os tratados e outras fontes jurídicas. A discussão de Dworkin dos pontos de vista sob os quais os precedentes, por exemplo, recebem pesos diferentes nas atuais decisðes, de modo a que Hércules possa "desconsiderar partes da história institucional como um engano"12, é bastante convincente. Uma teoria jurídica reconstrutiva desse tipo deveria ser sempre seletiva o bastante para permitir uma única decisão correta que enuncie quais pretensðes uma parte pode afirmar no marco da ordem jurídica vigente, ou seja, a quais direitos ela tem objetivamente titularidade. A teoria do juiz Hércules reconcilia as decisðes racionalmente reconstruídas do passado com a pretensão de aceitabilidade racional no presente, ela reconcilia a história com a justiça. Ela dissolve a "tensão entre a originalidade judicial e a história institucional . . . os juízes devem levar a efeito novos juízos acerca dos direitos das partes que perante eles comparecem, mas esses direitos políticos refletem, ao contrário de se oporem, as decisðes do passado."13 10 DWORKIN, R. Taking Right Seriously. p. 120. 11 DWORKIN, R. Taking Right Seriously. p. 121. 12 DWORKIN, R. Taking Right Seriously. p. 119. 13 DWORKIN, R. Taking Right Seriously. p. 87. - 16 - 2 - Fortes idealizaçðes projetam sua sombra sobre o postulado de uma tal teoria jurídica, que pretende reconciliar a positividade da ordem jurídica com a legitimidade das pretensðes acionáveis e assim absorver a tensão entre faticidade e validade evidente na própria validade jurídica. A teoria requer que seu autor seja um Hércules; essa atribuição irônica revela as exigências ideais a que a teoria deveria corresponder. A proposta de Dworkin deu origem a um amplo debate. Ele gira em torno da questão de se saber se as exigências ideais expressam uma idéia retora pela qual os juízes devem se orientar se pretendem fazer justiça ao telos inscrito em toda prestação jurisdicional moderna - ou se essas exigências determinam, configuram, a tomada de decisão judicial como um falso ideal. (a) O chamado Movimento de Estudos Crítico-Jurídicos (Critical Legal Studies Movement - CLS) retoma as questðes do Realismo Jurídico. Ao contrário de relegar aos observadores científico-sociais as investigaçðes crítico-jurídicas esse movimento desenvolve tais investigaçðes, como Dworkin, a partir da perspectiva participante dos próprios juízes.29 Os realistas abalam três dogmas da teoria jurídica: o pressuposto de que os direitos existem; o pressuposto de que os casos correntes possam ser consistentemente decididos em consonância com o Direito vigente; e, desse modo, também o pressuposto central de que os acórdãos dos tribunais sejam como que regras racionais, ou seja, suficientemente determinados por linhas retoras, por precedentes, por doutrinas prevalentes, etc. A teoria do Direito de Dworkin fornece a esses três pressupostos uma leitura construtivista menos vulnerável. O sentido deontológico dos direitos indisponíveis manifesta-se no fato de que eles constituem "forças-limite" ("Schwellengewichte") contra os programas políticos. Eles só podem ser estabelecidos na argumentação regida por uma teoria jurídica na forma de direitos políticos. No processo alguns elementos do Direito vigente, em especial decisðes anteriores da Suprema Corte, comprovam-se retrospectivamente errôneos. Somente um Direito positivo principiologicamente justificado permite decisðes "singularmente corretas". Da perspectiva do Movimento de Estudos Crítico-Jurídicos é precisamente esse recurso ao background, ao pano de fundo, teorético que, hoje mais do que nunca, expðe a nova forma de racionalismo a objeçðes realistas. Já que os juízes de carne e osso muito se distanciam da figura de um Hércules, a recomendação de que essa figura sirva de padrão de orientação para o trabalho cotidiano do juiz, de fato, apenas dá guarida a um desejo de ratificar as práticas de tomada de decisão judicial sempre determinadas por posiçðes de interesse, posturas políticas, matizes ideológicos e outros fatores externos. Os juízes selecionam princípios e programas e constroem as suas próprias teorias jurídicas a partir dessa seleção no sentido de "racionalizar" as decisðes, ou seja, de esconder de si mesmos e dos outros como compensam a indeterminação objetiva do Direito.14 Dworkin poderia responder essa objeção ao explicar uma premissa deixada mais ou menos à sombra. Na medida em que os críticos possam provar, a partir de convincentes estudos de casos, que as decisðes dos tribunais são melhor explicadas por fatores metajurídicos do que pela 29 UNGER, R.M. The Critical Legal Studies Movement. Cambridge, Mass., 1986; TRUBEK, D.M. e ESSER, J.P. "Critical Empiricism and American Critical Legal Studies", in JOERGES, C. e TRUBEK, D.M., eds., Critical Legal Thought: An American-German Debate. Baden-Baden, 1989; MINDA G. The Jurisprudential Movements of the 1980s", Ohio State Law Review, 50, 1989: p. 599-662; BOYLE, J. "The Politics of Reason: Critical legal Theory and Local Social Thought", Pennsylvania Law Review, 133, 1985: p. 685-780. 14 ALTMAN, A. "Legal Realism, Critical Legal Studies and Dworkin". Philosophy and Public Affairs, 15, 1986: p. 202-35. - 17 - situação jurídica propriamente dita, os fatos mesmos questionariam a prática vigente. No entanto, a indeterminação do Direito não resulta, como pensam esses críticos, da própria estrutura do Direito, mas, por um lado, do fracasso do juiz em desenvolver a melhor teoria possível e, por outro, da história institucional de uma ordem jurídica que em maior ou menor medida refoge à reconstrução racional. A interpretação construtiva só pode obter sucesso na medida em que uma parcela da "razão existente", não importa quão fragmentada, se encontre sedimentada na história a partir da qual emergiu uma ordem jurídica concreta. Dworkin, enquanto norte-americano, tem atrás de si mais de dois séculos de contínuo desenvolvimento constitucional; enquanto liberal, ele tende a uma avaliação bastante otimista dessa história e acredita que o desenvolvimento do Direito norte-americano seja caracterizado principalmente por processos de aprendizagem. Alguém que não compartilhe de sua confiança ou que se encontre em outros contextos histórico- jurídicos e políticos, no entanto, não precisa renunciar à idéia corporificada em Hércules, desde que o Direito vigente forneça ao menos alguns amparos históricos para uma reconstrução racional. Com o conceito de "integridade" Dworkin busca demonstrar que todas as ordens jurídicas modernas referem-se à idéia do Estado de Direito e, assim, asseguram um ponto de referência inabalável para a hermenêutica crítica mesmo quando a razão prática só tenha deixado na história institucional traços bastante débeis. O padrão básico de "integridade" de Dworkin configura o ideal político de uma comunidade em que as pessoas associadas sob o Direito reciprocamente se reconhecem como livres e iguais. É um princípio básico que obriga tanto os cidadãos quanto o legislativo e o judiciário a efetivar as norma basilar do igual respeito e consideração para com todas as pessoas nas práticas e arranjos da sociedade: "Ele reafirma que as pessoas só são membros de uma genuína comunidade política quando aceitam que seus destinos entrelaçam-se fortemente do seguinte modo: aceitam que são regidas por princípios comuns e não apenas por regras forjadas nos compromissos políticos."15 Quando uma comunidade política se constituí como tal, o ato de fundar uma Constituição significa que os cidadãos concedem a si próprios um sistemade direitos que lhes provê autonomia pública e privada. Ao mesmo tempo, eles esperam mutuamente de si mesmos que se envolvam no processo político, que Dworkin descreve como "um teatro, um palco, de debates acerca de quais princípios a comunidade deveria aceitar como um sistema." As exigências ideais que regem uma teoria da administração da justiça refletem um ideal retor que o juiz encontra na Constituição da nação (ou em seu equivalente): "Uma associação principiológica não é automaticamente uma comunidade justa; sua concepção de consideração igualitária pode ser insuficiente ou violar os direitos de seus cidadãos ou de cidadãos de outras naçðes . . . mas o modelo principiológico satisfaz os requisitos de uma verdadeira comunidade melhor do que qualquer outro modelo de comunidade para pessoas que discordem acerca da justiça e da equanimidade a adotar."16 Nessa resposta à primeira série de críticas, as idealizaçðes construídas na teoria de Hércules decorreram de uma idéia retora que não é imediatamente moldada à questão da racionalidade em face do processo de decisão judicial. Ao contrário, esse ideal surge de uma autocompreensão normativa que as ordens constitucionais possuem e que se inscreve na realidade constitucional. A obrigação do juiz de decidir o caso individual à luz de uma teoria que 15 DWORKIN, R. Law's Empire, p. 211. 16 DWORKIN, R. Law's Empire, p. 213. - 18 - justifique o Direito vigente como um todo fundamentado em princípios reflete uma obrigação anterior, primeira, dos cidadãos, atestada pelo ato de fundação da Constituição, de manter a integridade de sua vida em comum orientando-se de acordo com os princípios de justiça e respeitando-se como membros de uma associação de pessoas livres e iguais. É de se reconhecer que esse próprio ideal pode expressar uma falsa idealização. A prática constitucional poderia, daí em diante, iludir a si própria de uma maneira muito extensa e com graves conseqüências, sobrecarregando as instituiçðes com tarefas absolutamente impraticáveis. (b) Na série seguinte de críticas, tenta-se provar que Dworkin espera que Hércules realize um programa inexequível. Por exemplo, em um bem conhecido estudo de caso Duncan Kennedy busca demonstrar que o desenvolvimento do Direito Privado e da jurisprudência cível norte- americanos circula em torno de dois princípios incompatíveis. De um lado, o princípio da autonomia contratual dos indivíduos, e daí se firmar a visão liberal da sociedade como uma competição regulada entre pessoas privadas que atuam de uma maneira racional-finalística; de outro, encontra-se o princípio da proteção jurídica das açðes de boa-fé em uma relação contratual reciprocamente vinculante, e daí a visão contrária de uma associação fundada sobre a mútua consideração e a solidariedade.17 Os protagonistas do Movimento de Estudos Crítico-Jurídicos generalizam os resultados desse e de outros estudos similares deles haurindo a tese de que o Direito vigente, em geral, é perpassado por princípios e políticas opostas; em conseqüência, qualquer tentativa de reconstrução racional do Direito encontra-se fadada ao fracasso: "Em última análise, a tese da indeterminação radical implica que o Direito enquanto um sistema de regras tem uma tal estrutura que dela não se pode derivar qualquer prática de tomada de decisão, não importa quão idealizadas sejam as garantias de tratamento isonômico, ou seja, a justiça."18 Dworkin só lida com essa objeção mediante a observação superficial de que seus críticos desconhecem a diferença crucial entre princípios meramente concorrentes e princípios contraditórios; de outro modo, eles notariam que os esforços teoréticos de Hércules apenas começam no ponto em que os críticos e seus estudos históricos rapidamente generalizados terminam com suas conclusðes cético-prescritivas.19 Klaus Günther tornou essa alusão mais precisa ao se voltar para a distinção teorético-argumentativa entre os discursos de justificação e os de aplicação. Se se pressupðe que os casos típicos das decisðes de hoje em dia envolvem não só regras concretas mas também princípios, pode-se, então, facilmente demonstrar porque as colisðes são bastante prováveis, sem que isso de forma alguma revele qualquer incoerência profunda do próprio sistema jurídico. Exceto as normas cujas cláusulas especificam em um tal nível de detalhe as condiçðes de aplicação que só podem se aplicar a poucas situaçðes-padrão altamente tipificadas e bem circunscritas (e não podem ser aplicadas a qualquer outra sem dificuldades hermenêuticas), todas as normas válidas são, de início, indeterminadas. São precisamente essas normas que constituem a exceção, as que requerem decisðes do tipo tudo ou nada na hipótese de conflito, que Dworkin denomina regras. A coerência de um sistema jurídico encontra-se de fato em perigo se regras conflitantes desse tipo contêm prescriçðes contraditórias, 17 KENNEDY, D. "Form and Sustance in Private Law Adjudication", Harvard Law Review, 89, 1976: 168 e ss. 18 FRANKENBERG, G. "Der Ernst in Recht", Kritische Justiz, 20, 1987: p. 304, que também contém maiores referências à literatura concernente. 19 DWORKIN, R. Law's Empire, p. 211. - 19 - cada uma com uma igual pretensão de validade para a mesma hipótese de aplicação. Todas as outras normas permanecem indeterminadas em sua referência e têm necessidade de conexðes relacionais adicionais no caso individual - o que vale não só para os direitos e princípios constitucionais aptos a justificar o sistema jurídico como um todo. Apenas à prima facie elas são aplicáveis, de tal modo que devemos primeiramente ingressar em um discurso de aplicação para comprovar se podem encontrar aplicação em uma situação concreta não prevista pelo processo de justificação - ou se, não obstante sua legitimidade (GÜltigkeit), devem ceder lugar a uma outra norma, especificamente, à norma "apropriada" ("angemessenen"). Uma norma legítima (gültige Norm) somente fundamenta um juízo singular que pode pretender ser correto (richtig) se a norma se comprovar singularmente apropriada ao caso em tela de juízo. A legitimidade prima facie de uma norma (Dass eine Norm prima facie gilt) significa apenas que ela foi imparcialmente justificada, fundamentada (begründet); tão só a sua aplicação imparcial conduz à decisão legítima (gültigen) de um caso. A Legitimidade (Gültigkeit) da norma, por si só, ainda não garante a justiça no caso individual. A aplicação imparcial de uma norma preenche o hiato que freqüentemente teria que ser deixado em aberto quando da justificação imparcial da norma devido à imprevisibilidade das futuras situaçðes.20 Os discursos de aplicação não se referem à validade (Geltung) da norma, mas à adequabilidade de sua referência a uma situação. Já que cada norma registra somente aspectos específicos de um caso individual situado no Mundo da Vida, o discurso de aplicação deve determinar quais são as descriçðes de fatos relevantes para a interpretação da situação em um caso controverso, bem como determinar qual dentre as normas prima facie legítimas (gültigen) é a adequada, uma vez que todas as características significativas da situação tenham sido registradas de forma tão completa quanto possível: "Não tem sentido indagarmo-nos aqui se os participantes em um discurso têm, de início, uma descrição completa da situação e, assim, de todas as normas prima facie a elas aplicáveis ou se, ao contrário, só obtêm uma descrição da situação à luz de uma pré-compreensão das normas virtualmente aplicáveis. . . . Os participantes só sabem com quais normas uma norma prima facie aplicável conflitará após terem relacionado todas as características relevantes de uma descrição dessa situação com as normas aplicáveis.21 Podemos figurar o processo hermenêutico como o entrelaçamento de umadescrição da situação com uma concretização de normas gerais; o que finalmente decide a questão é a equivalência de significado entre a descrição dos fatos integrantes da interpretação da situação e a descrição de fatos que fixa os componentes descritivos da norma, ou seja, as suas condiçðes de aplicação. Günther apreende em fórmula cristalina esse complexo inter-relacionamento: a justificação de um 20 GÜNTHER, K "A Normative Conception of Coherence for a discursive Theory of Legal Justification", Ratio Juris 2 (1989): 157: "Quando reconhecemos uma norma como legítima (gültig) não levamos em conta cada situação de aplicação individual da mesma, como pode-se depreender do uso corrente e usual que fazemos do termo "legítimo" (gültig). Usamos esse adjetivo mesmo para normas que sabemos, pelo menos em alguns casos, interferirão em interesses universalizáveis. Todos sabemos (e o poderíamos prever em um discurso acerca da validade - Geltung), por exemplo, que a norma "não descumpras uma promessa" conflitará pelo menos em alguns casos com a norma "ajuda a teu próximo quando ele se encontrar em uma emergência" . . . Apesar da possibilidade previsível de conflito não considerariamos os dois preceitos ilegítimos ou inválidos (ungültig). Ficariamos espantados se um discurso sobre a legitimidade (Gültigkeit) de uma dessas normas levasse conduzisse ao resultado oposto." Connsulte-se o teto original em alemão: GÜNTHER, K. "Ein normativer Begriff der Kohärenz: Für eine Theorie der juristischen Argumentation", Rechtstheorie 20 (1989): 168. Consulte-se também HABERMAS, J. Erläuterungen, p. 137 e ss. 21 GÜNTHER, K. "Ein normativer Begriff der Kohärenz: Für eine Theorie der juristischen Argumentation", Rechtstheorie 20 (1989): p. 175. Em uma versão parcial para o Inglês ver o seu "A Normative Conception of Coherence for a discursive Theory of Legal Justification", Ratio Juris 2 (1989). - 20 - juízo singular deve fundar-se no conjunto de todas as razðes pertinentes que sejam relevantes em um dado ponto com vistas à uma interpretação completa da situação (Situationdeutung).22 Assim, se a "competição" entre normas levada em conta no processo interpretativo conduzir à inferência de uma "contradição" no próprio sistema de normas, ter-se-ia confundido a validade (Geltung) de que goza uma norma justificada, fundamentada, com a "adequabilidade" da aplicação da mesma. A indeterminação das normas legítimas ou válidas (gültiger Normen) explicada em termos teorético-argumentativos resulta, ao contrário, no excelente aspecto do ponto de vista metodológico de uma disputa de normas que se pðem como canditadas a reger um determinado caso, à aplicação em um dado caso: "a colisão de normas não pode ser reconstruída como um conflito de pretensðes de validade porque as normas em colisão ou com variantes de sentido concorrentes somente adentram uma relação reciprocamente determinante entre si em uma situação concreta. Um discurso de justificação deve se abstrair precisamente dessa propriedade de dependência situacional dos problemas de colisão normativa . . . Apenas nas situaçðes cotidianas sabemos quais outras normas ou variantes de significado são virtualmente aplicáveis."23 (c) A elegante proposta de Günther vem conscientemente revestir de um significado distinto a coerência idealmente justificada do sistema jurídico. A teoria jurídica postulada mantém ainda a tarefa da reconstrução racional do Direito vigente (geltende Recht) de tal modo que esse Direito admita precisamente uma única decisão correta (richtige) para cada nova situação de aplicação. Mas agora a teoria fornece meras diretrizes para um conjunto flexível de princípios e políticas somente transitivamente ordenados nos discursos de aplicação cotidianos à luz de um caso particular. A relação entre as normas válidas (gültigen Normen) se altera dependendo da constelação de características prevalentemente preponderante no caso em exame. Desse modo, a indeterminação das normas válidas (gültige), mas apenas aplicáveis prima facie, uma indeterminação devida à divisão entre o trabalho de justificação e o de aplicação, reflete-se nos graus de liberdade de que goza um conjunto móvel de princípios que só ingressam em uma tessitura específica de interrelaçðes recíprocas após a determinação inequívoca da referência situacional da norma preponderantemente apropriada. "Se cada norma válida (gültige) deve ser coerentemente complementada por todas as demais normas aplicáveis a uma situação, o significado da norma, portanto, altera-se em cada situação. Desse modo, dependemos da história, já que somente ela nos brinda com as situaçðes imprevisíveis que nos forçam a adotar a cada passo uma interpretação diferente do conjunto de todas as normas válidas (gültigen)."24 Evidentemente, a teoria da coerência do Direito só pode evitar a indeterminação supostamente devida à estrutura contraditória do Direito vigente (geltenden Rechts) ao preço da indeterminação da própria teoria. Mas uma tal teoria seria capaz de instruir uma prática decisória que busque garantir a certeza do Direito? Até mesmo contra a versão de Dworkin da teoria da coerência foi levantada a objeção de que a reconstrução das decisðes pretéritas requer a revisão caso por caso das mesmas, o que equivaleria a uma interpretação retroativa do Direito vigente 22 GÜNTHER, K. "Universalistische Normwendung", in M. HERBERGER et alli, eds. Generalisierung und Individualisierung im Rechtsdenken, Archiv für Rechts- und Sozialphilosophie, Beiheft 45, 1991. 23 GÜNTHER, K. Der Sinn für Angemessenheit. Frankfurt am Main, 1988, p. 300. 24 GÜNTHER, K. "Ein normativer Begriff", p. 182; "A Normative Conception of Coherence", p. 163 (trad. alterada).- - 21 - (geltenden Rechts). Esse "argumento de efeito circunscritor" ("ripple effect argument")25 aplica- se mais ainda à interpretação de Günther da teoria da coerência de Dworkin, mais especificamente ao "efeito circunscrevente" pelo qual o sistema de regras é apreendido na medida em que cada caso sucessivo aporta uma interpretação mais coerente. O elemento surpresa presente em cada novo caso parece agora lançar a própria teoria no turbilhão da história. O problema é óbvio: o legislador político deve reagir de modo a se adaptar aos processos históricos, mas o Direito existe para erigir diques de expectativas de comportamento estáveis contra a pressão da variação histórica. Pode-se inicialmente responder a essa objeção mediante a problematização da certeza do Direito (Rechtssicherheit). Se, distintamente do quadro positivista, um sistema jurídico não se constitui apenas de regras, ou seja, de normas dotadas de procedimentos de aplicação internamente construídos a fortiori, esse sistema, então, não poderá garantir que as decisðes dos tribunais terão o grau de previsibilidade que os programas condicionais possibilitam. O conceito clássico de certeza do Direito ou jurídica - cujas implicaçðes racionais foram analisadas por Lon Fuller26, por exemplo - pressupðe uma estrutura normativa que um sistema jurídico complexo e autoreferencial constituído de regras, princípios e políticas não mais pode acolher. Daí a certeza do Direito que se fundamenta no conhecimento de expectativas de comportamento inequivocamente condicionadas constituir-se em princípio por si só, o qual deve ser avaliado em confronto com outros princípios no caso em tela. Por outro lado, diversamente, a teoria jurídica postulada torna possível decisðes do tipo "única decisão correta" que garantem a certeza do Direito em um nível diferente. Os direitos procedimentais asseguram a cada pessoa jurídica a pretensão a um procedimento equânime (faires Verfahren) que, por sua vez, garanta não a certeza de seu resultado, mas o esclarecimento discursivo dos fatos pertinentes e das questðes
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