Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 Unidade 2 Aula 3 - Impactos subjetivos do capacitismo para as pessoas com deficiência e para suas possibilidades de trabalho Joelma Cristina Santos Belo Horizonte, setembro de 2021 2 O processo de socialização de pessoas com deficiência tende a ser marcado por relações em que elas são discriminadas e tratadas com desprezo ou piedade, o que pode levá-las a, intimamente, considerar a deficiência como um defeito trágico que deve ser escondido ou compensado. Além disso, padrões ideais e irreais de saúde e beleza, rotineiramente apresentados, impactam a forma como a pessoa com deficiência se percebe, podendo interferir no seu autoconceito e na forma como ela própria considera suas capacidades e potencialidades. Preconceito e estratégias subjetivas de pessoas com deficiência A convivência em uma sociedade capacitista pode fazer com que pessoas com deficiência desenvolvam estratégias visando a lidar com situações de discriminação, a fim de minimizar o sofrimento. Assim, pessoas com deficiência podem (re)agir de diferentes formas, de acordo com a familiaridade que possuem com os contextos sociais ou com as pessoas com as quais interagem. Em alguns casos, pessoas com deficiência podem, por exemplo, negar que vivenciam situações de discriminação, como forma de manter um autoconceito positivo, já que, muitas vezes, perceber a si própria como uma pessoa vítima de preconceito pode rebaixar a sua autoestima e fazer com que ela se sinta, de algum modo, inferior ou culpada pela deficiência. Algumas pessoas com deficiência podem até reconhecer que, de modo geral, o grupo de pessoas com deficiência é discriminado, mas podem negar que elas, pessoalmente, sofram os efeitos do preconceito, evitando, desta forma, um conflito subjetivo ainda maior. Tendo em vista, também, que pessoas que denunciam ou reclamam de serem alvos de preconceito costumam ser censuradas ou vistas com antipatia, pessoas com deficiência podem negar que sejam discriminadas, por receio de gerar hostilidade nas relações e de dificultar, ainda mais, que sejam aceitas no meio social. As experiências ruins, ocorridas ao longo da vida, podem fazer com que pessoas com deficiência sejam mais sensíveis e atentas, nas interações, ao reconhecimento de possíveis sinais de rejeição, aversão ou discriminação, 3 identificando, até mesmo, sinais discretos de preconceito. Essa sensibilização pode deixá-las em constante estado de alerta/hipervigilância a possíveis indicativos de discriminação, como sugestões ou comentários, ainda que eles não sejam, realmente, preconceituosos. Esse processo de superestimação do preconceito pode se transformar num ciclo vicioso que se retroalimenta de forma bastante negativa, uma vez que, ao se queixar de um suposto comportamento de discriminação de alguém, ela pode se posicionar de maneira agressiva e, então, ser (mais) discriminada, além de provocar um desgaste nas relações, causado pela permanente desconfiança de que os outros irão manifestar preconceito, a qualquer momento. Outra estratégia de pessoas com deficiência para lidar com o capacitismo consiste em fazer piadas acerca da própria deficiência, sobretudo quando ela é visível e não pode ser disfarçada. Dessa forma, como um meio de defesa a possíveis atitudes de preconceito, a pessoa com deficiência busca, por si mesma, antecipar possíveis julgamentos e percepções que os outros poderiam ter em relação a ela. Ela, assim, se mostra como uma pessoa que não se importa com brincadeiras sobre si própria, visando a evitar a discriminação que vem das outras pessoas. A compensação é outra estratégia que tende a ser usada por pessoas com deficiência ou outras pessoas que, com relativa frequência, sofrem preconceito. Nesse caso, buscando “compensar” a deficiência, a pessoa se esforça para aperfeiçoar alguma habilidade ou desempenhar alguma tarefa de maneira muito melhor do que outras pessoas. Pessoas com deficiência podem se sentir, especialmente, empenhadas a evitar que os outros a subestimem, fazendo com que “os outros tenham uma boa impressão delas, apesar da deficiência”. Além disso, podem, com este comportamento, tentar fazer com que os outros as valorizem pelo que produzem e não pelo que elas são, pois seriam ou possuiriam algo que é desqualificado pela sociedade. Nos casos em que a deficiência é imediatamente percebida, podendo ser o foco inicial da interação e sem poder ser disfarçada ou escondida, as pessoas com deficiência podem se posicionar reconhecendo e declarando abertamente a deficiência. Esse comportamento costuma levar a um autoconceito positivo, reduzindo a angústia nos relacionamentos, ainda que a pessoa acredite que possa ser vítima de discriminação. Além disso, nos meios 4 de maior convivência cotidiana, falar sobre a deficiência de forma clara pode produzir um aumento de satisfação na vida e uma diminuição da ansiedade nesses ambientes, em especial se a reação dos colegas for positiva e acolhedora. Revelar a deficiência também pode fazer com que os outros pensem que a pessoa com deficiência é bem ajustada, psicológica e socialmente, o que pode gerar um ciclo virtuoso de procura por interações que, em geral, seriam evitadas. Uma estratégia comum, no caso de pessoas cuja deficiência não é perceptível num primeiro contato ou não é, de fato, visível, consiste em disfarçar ou ocultar a deficiência durante as interações sociais, evitando, assim, passar por algum tipo de situação discriminatória. Esse encobrimento pode ocorrer em situações mais rotineiras em que, num primeiro momento, falar sobre a deficiência pode não ser necessário ou, até mesmo, em condições mais formais, como nos contextos de estudo ou trabalho, em que se evita falar sobre a deficiência para o maior número possível de pessoas. Entretanto, ocultar a deficiência pode acabar por produzir ansiedade e desconforto psicológico nas interações, causando sofrimento (GOFFMAN, 2008). As pessoas com deficiência podem adotar uma ou mais destas estratégias, uma vez que vários fatores (tais como personalidade, nível de escolaridade e status socioeconômico das pessoas envolvidas, aspectos ambientais/sociais, entre outros) podem interferir no quanto cada estratégia é bem sucedida em relação aos seus objetivos. Como essas estratégias foram desenvolvidas no decorrer de toda uma vida impactada pelo capacitismo, pessoas com deficiência, quando inseridas em contextos de trabalho, por exemplo, podem apresentar ansiedade diante do novo e receio de não serem bem aceitas por causa da deficiência ou em relação à forma como desempenham suas tarefas. Elas podem, então, manifestar hipervigilância e/ou compensação, visando a lidar com possíveis situações de discriminação nos relacionamentos interpessoais. Assim, é possível que elas iniciem suas relações mantendo-se hipervigilantes, buscando identificar possíveis sinais de desqualificação e discriminação e, posteriormente, ao se sentirem mais acolhidas e respeitadas nas eventuais dificuldades que relatarem, podem desenvolver interações menos tensas e mais propícias ao desenvolvimento 5 pessoal e profissional (CARVALHO-FREITAS; SUZANO; NEPOMUCENO, 2011). Algumas considerações sobre as relações sociais e de trabalho de pessoas com deficiência O contato rotineiro com pessoas com deficiência tem demonstrado que a deficiência deixa de ser um fator distintivo nas relações quando são construídos laços de maior proximidade com elas. O “Antônio” deixa de ser o “Antônio cego” para ser o “Antônio”, uma pessoa com a qual convivemos no nosso cotidiano. E, assim, “esquecemos” que ele tem uma deficiência, o que é positivo, pois sinaliza que a deficiência deixou de ser uma característica relevante na relação. Nesse caso, não quer dizer que há um descaso em relação às necessidades de acessibilidade, em geral, masque, na construção do laço afetivo com o outro, essa questão não tem centralidade. São as experiências do outro, suas contribuições, seu jeito de ser e de se colocar no mundo que nos interessa. A pessoa passa a ter centralidade. O impacto subjetivo desse tipo de relação para as pessoas com deficiência também é positivo, fazendo com que se percebam parte e incluídas (CARVALHO-FREITAS; SUZANO; NEPOMUCENO, 2011), podendo construir relações para além da deficiência (IGLESIAS, 2017). A nossa sociedade, na atualidade, tem demandado que as pessoas no geral apresentem um desempenho cada vez mais elevado, de modo que as organizações, nos seus processos de seleção e de avaliação de funcionários, consideram que as pessoas com deficiência não têm condições de atender a essa demanda. O estereótipo de que as pessoas com deficiência são incapazes leva as organizações a considerarem que elas não conseguirão produzir na quantidade e/ou qualidade esperada e não gerarão lucro. Dessa forma, contratar pessoas com deficiência é percebido como algo que diminui a produtividade e a competitividade organizacional. O viés de confirmação, que é a predisposição em interpretar informações de modo a validar crenças iniciais, pode fazer com que pessoas com deficiência passem por um controle mais rigoroso quanto à qualidade do trabalho que desenvolvem. Por exemplo: quando contratadas, as falhas das pessoas com deficiência podem receber críticas mais enfáticas do que se os mesmos erros tivessem sido cometidos por pessoas sem deficiência, 6 uma vez que as falhas das pessoas com deficiência, teoricamente, reforçam o estereótipo de que elas não são realmente capazes de realizar as atividades propostas. O processo de inclusão é construído no cotidiano e nas trocas sociais, e o modo como as relações se dão nos contextos de trabalho (que também são espaços de socialização e de enriquecimento das experiências de vida), se refletem na forma como a sociedade, como um todo, compreende as capacidades da pessoa com deficiência. A inserção no trabalho é capaz de permitir a formação de vínculos afetivos, o desenvolvimento de habilidades e a promoção de reconhecimento social, impactando, diretamente, a maneira como a pessoa com deficiência percebe e avalia suas capacidades. O trabalho mostra- se, assim, como um potente meio de promoção social, tanto pelo acesso à renda quanto pela oportunidade de crescimento pessoal e de construção de relações sociais mais igualitárias. Referências CARVALHO-FREITAS, M. N.; SUZANO, J. C. C.; NEPOMUCENO, M. F. Acompanhamento do primeiro ano de trabalho de pessoas com deficiência em uma instituição pública. Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, v. 4, n. 2, p. 310-317, jul.-dez. 2011. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/pdf/gerais/v4n2/v4n2a12.pdf>. Acesso em 27 maio 2021. GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2008. IGLESIAS, V. D. O. Pessoa com deficiência e sua identidade para si na sociedade atual. Curitiba: Juruá Editora, 2017. IGLESIAS, V. D. O.; CARVALHO-FREITAS, M. N.; SUZANO, J. C. C. Estereótipos e preconceito em relação às pessoas com deficiência: a perspectiva dos gestores. In: ENCONTRO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM ADMINISTRAÇÃO, v. 37, 2013. Rio de Janeiro. Anais eletrônicos... Rio de Janeiro: ANPAD, 2013, p. 1-12. Disponível em <http://www.anpad.org.br/abrir_pdf.php?e=MTYzMDE=> Acesso em 14 maio 2021. http://pepsic.bvsalud.org/pdf/gerais/v4n2/v4n2a12.pdf http://www.anpad.org.br/abrir_pdf.php?e=MTYzMDE
Compartilhar