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TEMAS ESPECIAIS PARA JUIZ FEDERAL DIREITO INTERNACIONAL Imunidades à jurisdição e à execução estatal 1. Imunidade estatal Além das imunidades dos agentes diplomáticas e consulares, previstas nas Convenções de Viena de 1961 e 1963, há também a imunidade do próprio Estado estrangeiro, tanto no plano material, de cognição, quanto no plano executivo, abarcando seus órgãos e bens. As Convenções referidas deixaram de disciplinar as imunidades estatais em si, dispondo apenas em relação aos agentes diplomáticos e consulares, relegando ao costume internacional a disciplina da imunidade de jurisdição estatal em si. Conforme leciona Mazzuoli (2013), o caso pioneiro em se tratando de imunidade estatal foi julgado pela Suprema Corte dos Estados Unidos – The Schooner Exchange versus McFaddon – em 1812, ficando estabelecido o seguinte: A jurisdição das cortes é um ramo do que a nação possui como um Poder soberano e independente. A jurisdição da nação dentro do seu próprio território é necessariamente exclusiva e absoluta. Não é susceptível de qualquer limitação, senão imposta por ela mesma. Qualquer restrição a ela, que derive sua validade de uma fonte externa, implicaria numa diminuição de sua soberania, nos limites de tal restrição e uma investidura daquela soberania, nos Curso Ênfase © 2021 1 mesmos limites em que aquele poder que poderia impor tal restrição. 1.1. Conceito É a impossibilidade de um Estado ser julgado ou ter seus bens constritos pelo Poder Judiciário de outro Estado. Pelo conceito, já é possível verificar que existem duas espécies de imunidade. Temos a imunidade de jurisdição (impossibilidade de um Estado ser julgado por outro) e a imunidade de execução (impossibilidade de um Estado ter os seus bens constritos por outro). 1.2. Fundamento O fundamento da imunidade estatal é o direito costumeiro, que é traduzido pelo brocardo par in parem non habet judicium (entre iguais não há jurisdição). Essa regra vem da Idade Média, do feudalismo, antes do surgimento do Estado Moderno. Ela foi criada para dizer que um senhor feudal não podia julgar outro. Com a formação dos Estados, esse costume foi mantido. Segundo leciona Mazzuoli (2013): Seja qual for o fundamento teórico encontrado, o certo é que o motivo fundante da imunidade de jurisdição do Estado perante a Justiça de outro é o desejo de se manter relações amigáveis entre as nações, por meio da aplicação dos princípios da igualdade de tratamento e da reciprocidade, na aplicação dos adágios quod tibi non vis fieri, alteri nec faceris (“não faças aos outros o que não queres que te façam”) e quod vis ut alii tibi faciant, ut ipsis fáceis (“trate os outros como queres que te tratem”). 1.3. Atos de império e atos de gestão Com o passar do tempo, foi se percebendo que o Estado praticava não somente atos de soberania, mas também atos de um particular, razão pela qual foi realizada a distinção entre atos de império e atos de gestão. a) Atos de império são aqueles praticados pelo Estado no exercício da sua soberania. Curso Ênfase © 2021 2 b) Atos de gestão, por sua vez, são aqueles atos que o Estado pratica como se particular fosse. Desse modo, a Justiça Internacional e a Justiça dos Estados começaram a defender que, em relação aos atos de império, o Estado continua tendo a sua imunidade. Já no que diz respeito aos atos de gestão, não haveria que se falar em imunidade de jurisdição. Começou-se a relativizar a imunidade dos Estados para dizer que não seria aplicada a imunidade de jurisdição em relação aos atos de gestão. Essa ideia se espalhou pelo mundo e entre a doutrina e, por conseguinte, foi adotada pelos Estados. Há um caso recente da Corte Internacional de Justiça (CIJ), do ano de 2012, no qual Alemanha e Itália foram as protagonistas. Itália e Alemanha faziam parte do mesmo grupo da Segunda Guerra Mundial (chamado “Eixo”). No final, a Itália saiu e rompeu a aliança com a Alemanha, que invadiu uma parte da Itália, obrigando os italianos a trabalhos forçados e torturando-os. Um cidadão italiano que teria sido vítima das ações da Alemanha nesse período ajuizou uma ação contra a Alemanha. O argumento dele foi no sentido de que poderia entrar com uma ação contra a Alemanha, na medida em que o seu pleito versava sobre direitos humanos. Desse modo, não se pode aplicar a imunidade estatal quando se fala de graves violações a direitos humanos. O Poder Judiciário italiano acolheu esse entendimento e a Alemanha, obviamente, não gostou. A questão foi levada à CIJ e lá se debateu se a imunidade estatal se aplica em caso de graves violações a direitos humanos. O entendimento da Corte foi no sentido positivo, afirmando-se que a imunidade estatal se aplica mesmo nessas hipóteses (graves violações de direitos humanos), desde que se trate de ato de império. Houve um voto vencido do juiz brasileiro Antônio Augusto Cançado Trindade – ele defendeu que não poderia ser aplicada a imunidade nesse caso, mas o entendimento da CIJ foi no sentido oposto. Vejamos importante trecho traduzido do inglês, em que o juiz Antônio Augusto expõe seu dissenso em relação à maioria da Corte (disponível em: <(https://core.ac.uk/download/pdf/48584075.pdf>): Curso Ênfase © 2021 3 I. Prolegômenos 1. Eu lamento não poder acompanhar o voto da maioria desta Corte na decisão adotada hoje, 3 de fevereiro de 2012, no caso relativo às Imunidades Jurisdicionais do Estado (Alemanha c. Itália; Grécia (interveniente)). Minha opinião dissidente diz respeito à decisão como um todo, englobando a metodologia adotada, a abordagem perseguida, todo o raciocínio no tratamento de questões materiais, bem como as conclusões do Julgamento. Sendo assim, gostaria de deixar registrado o motivo do meu posicionamento dissidente, dada a considerável importância que dou às questões levantadas pela Alemanha e Itália, assim como pela Grécia, no curso do procedimento do cas d’espèce, e levando em consideração a resolução do litígio em questão inevitavelmente ligado ao imperativo de realização da justiça, sob o meu ponto de vista. 2. (...) V. Valores Humanos Fundamentais: Resgatando Alguns Desenvolvimentos Doutrinais Esquecidos 32. Já que a doutrina jurídica (isto é, “a doutrina dos juristas mais qualificados das diferentes nações”) está listada entre as “fontes” formais do direito internacional, juntamente com as “decisões judiciárias”, no Artigo 38 (1.º) (d) do Estatuto da CIJ, considerações sobre a questão fundamental levantada no presente caso sobre as Imunidades Jurisdicionais do Estado (Alemanha c. Itália; Grécia (interveniente)) não podem, portanto, prescindir ou se esgotar apenas no exame da jurisprudência (seja internacional ou doméstica), quanto ao problema processual da imunidade do Estado. Atenção deve ser igualmente direcionada ao pensamento jurídico internacional mais lúcido, com base nos valores humanos em exame. Assim, volto minha atenção a algumas doutrinas que considero particularmente relevantes para a consideração do cas d’espèce. XXVII. Uma Recapitulação: Observações Finais 300. Diante de todas as considerações precedentes, resta claro que meu próprio posicionamento, em relação a todos os pontos que formaram o escopo do presente julgamento relativo às Imunidades Jurisdicionais do Estado, está em oposição à visão defendida pela maioria da Corte. Minha Curso Ênfase © 2021 4 posição dissidente está baseada não somente na avaliação dos argumentos produzidos perante esta Corte pelas Partes litigantes (Alemanha e Itália) e pelo Estado interveniente (Grécia) mas, acima de tudo, repousa sobre questões de princípios e valoresfundamentais, às quais atribuo uma importância ainda maior. Eu me senti obrigado, no fiel exercício da função judicial internacional, a estabelecer os fundamentos da minha opinião dissidente no cas d’espèce. Entendo necessário, nesta fase, recapitular todos os pontos da minha opinião dissidente, aqui expressos, tanto por uma questão de clareza quanto para sublinhar sua inter-relação. 301: Primus: Não se pode levar em conta o direito intertemporal de uma forma que serve somente os interesses de uma das partes em litígio, aceitando o passar do tempo e a evolução do direito em relação a certos fatos, mas não a outros, de uma mesma situação continuada. Não se pode se esconder por detrás de dogmas estáticos para escapar das consequências legais da perpetração de atrocidades do passado; a evolução do direito deve ser levada em consideração. Secundus: Igualmente, não se pode fazer abstração do contexto fatual do presente caso; as imunidades estatais não podem ser consideradas no vazio, elas constituem uma questão que está inelutavelmente ligada aos fatos que deram origem à presente demanda. O reconhecimento de sua inter-relação é ainda mais forte, em um caso único e sem precedentes como o presente, no qual o Estado Reclamante, ao longo de todo o procedimento perante a Corte (fases escrita e oral), reconheceu sua própria responsabilidade pelos atos danosos que formaram o contexto fatual do presente caso. 302. Tertius: Houve desenvolvimentos doutrinários, por parte de uma geração de juristas que testemunharam os horrores das duas Guerras Mundiais no século XX, que não seguiam uma abordagem centrada no Estado, mas nos valores humanos fundamentais, e na pessoa humana, guardando fidelidade às origens históricas do droit des gens. As imunidades estatais são, afinal, prerrogativas ou privilégios, e elas não podem continuar a fazer abstração da evolução do direito internacional, à luz dos valores humanos fundamentais. Curso Ênfase © 2021 5 303. Quartus: A doutrina jurídica internacional contemporânea mais lúcida, incluindo o trabalho de instituições científicas de direito internacional, gradualmente vem resolvendo a tensão entre a imunidade do Estado e o direito de acesso à justiça em favor deste último, particularmente quando se trata de crimes internacionais. Ela expressa sua preocupação com a necessidade de respeitar os imperativos de justiça e evitar impunidade em casos de perpetração de crimes internacionais, procurando assim garantir a sua não repetição no futuro. Quintus: O limiar da gravidade das violações dos direitos humanos e do direito internacional humanitário retira qualquer barreira à jurisdição, na busca de reparação pelos indivíduos vitimados. É, de fato, importante que todas as atrocidades em massa sejam consideradas no âmbito desse limiar da gravidade, independentemente de quem os comete. As políticas criminais estatais, e a subsequente perpetração de atrocidades, não devem estar cobertas pelo escudo da imunidade do Estado. 304. Sextus: As supostas renúncias interestatais de direitos inerentes à pessoa humana são inadmissíveis; elas violam a ordre public internacional, e devem ser privadas de quaisquer efeitos jurídicos. Isto se encontra bastante enraizado na consciência humana, na consciência jurídica universal, a última fonte material de todo e qualquer direito. Septimus: Ao tempo da Segunda Guerra Mundial, a deportação para o trabalho forçado (como forma de trabalho escravo) já era proibida pelo direito internacional. Mesmo antes da Segunda Guerra Mundial sua ilicitude já era amplamente conhecida, no âmbito normativo (na IV Convenção de Haia de 1907 e na Convenção da OIT sobre Trabalho Forçado de 1930); esta proibição era reconhecida nas obras de codificação, e também o foi judicialmente. Octavus: O direito de reclamar reparações de guerra também já era reconhecido bem antes do final da Segunda Guerra Mundial (na IV Convenção de Haia de 1907). 305. Nonus: O que coloca em risco ou desestabiliza a ordem jurídica internacional são os crimes internacionais, e não as ações individuais de reparação na busca de justiça. O que perturba a ordem jurídica internacional são os encobrimentos de tais crimes internacionais juntamente com a impunidade dos perpetradores, e não a busca das Curso Ênfase © 2021 6 vítimas por justiça. Quando um Estado persegue uma política criminal com vistas a assassinar segmentos de sua própria população, e a população de outros Estados, ele não pode, mais tarde, esconder-se detrás do escudo das imunidades soberanas, na medida em que essas últimas não foram concebidas para esse propósito. 306. Decimus: Graves violações dos direitos humanos e do direito internacional humanitário, assimiláveis a crimes internacionais, são atos antijurídicos, violações do jus cogens, que não podem ser simplesmente removidos ou jogados ao esquecimento, em detrimento da manutenção da imunidade do Estado. Undecimus: Crimes internacionais perpetrados pelos Estados não são atos jure gestionis, nem atos jure imperii; são todos eles crimes, delicta imperii, para os quais não há qualquer tipo de imunidade. Essa tradicional e ultrapassada distinção é irrelevante aqui. 307. Duodecimus: Nos casos de graves violações de direitos humanos e do direito internacional humanitário, o acesso direto pelos indivíduos às jurisdições internacionais é completamente justificável para reivindicar seus direitos, mesmo contra seu próprio Estado. Tertius decimus: Os indivíduos são, de fato, sujeitos de direito internacional (não meros “atores”), e cada vez que a doutrina jurídica se afasta desse entendimento, as consequências e os resultados são catastróficos. Os indivíduos são titulares de direitos e deveres que emanam diretamente do direito internacional (o jus gentium). Desenvolvimentos convergentes, nas últimas décadas, do direito internacional dos direitos humanos, do direito internacional humanitário, do direito internacional dos refugiados, seguidos por aqueles do direito penal internacional, confirmam inequivocamente esse fato. 308. Quartus decimus: Não há que se falar em renúncia da imunidade do Estado. Não há qualquer tipo de imunidade por crimes contra a humanidade. Nos casos de crimes internacionais, de delicta imperii, o que não se pode renunciar é o direito individual de acesso à justiça, englobando o direito à reparação por graves violações dos direitos inerentes ao ser humano. Sem esse direito, não há um sistema jurídico crível, tanto no âmbito nacional quanto no internacional. Curso Ênfase © 2021 7 309. Quintus decimus: A constatação de graves violações dos direitos humanos e do direito internacional humanitário é um critério bastante valioso para a remoção de qualquer barreira à jurisdição, dado o imperativo de se buscar a realização da justiça. Sextus decimus: É irrelevante se o ato danoso que gravemente violou os direitos humanos foi governamental, ou um ato privado perpetrado com a aquiescência do Estado, ou se foi cometido integralmente no Estado do foro ou não (deportação para trabalho forçado é um crime transfronteiriço). A imunidade do Estado não existe no domínio da reparação por graves violações dos direitos fundamentais da pessoa humana. 310. Septimus decimus: O direito de acesso à justiça lato sensu compreende não somente o direito formal à justiça (o direito de intentar uma ação judicial), por meio de recursos eficazes, mas também as garantias do devido processo legal (com equidade de armas, conforme o procès équitable), até o julgamento (como prestation juridictionnelle), com sua fiel execução, e consequente prestaçãoreparatória. A realização da justiça é em si uma forma de reparação, concedendo satisfação à vítima. Nesse sentido, os vitimados pela opressão terão o seu droit au Droit devidamente realizado. 311. Duodevicesimus: Mesmo no domínio das imunidades estatais, mudanças têm sido reconhecidas, no sentido de restringir ou rejeitar tais imunidades na ocorrência de graves violações, devido ao advento do direito internacional dos direitos humanos, com atenção focada no direito de acesso à justiça e na responsabilidade internacional. Undevicesimus: O dever do Estado em propiciar reparação às vítimas individuais por graves violações dos direitos humanos e do direito internacional humanitário é um dever decorrente do direito internacional costumeiro e de acordo com um princípio geral do direito fundamental. 312. Vicesimus: Há atualmente na opinião uma crescente tendência favorável à remoção da imunidade em casos de crimes internacionais, cuja reparação é buscada pelas vítimas. Com efeito, admitir a remoção da imunidade do Estado no âmbito das relações comerciais, ou em relação a um quase-delito (por exemplo, um acidente de trânsito) e, ao mesmo tempo, insistir em permitir que os Estados se escondam atrás da imunidade em casos de crimes Curso Ênfase © 2021 8 internacionais – marcados por graves violações dos direitos humanos e do direito internacional humanitário – que sejam cometidos no âmbito de políticas estatais (criminais) – é um absurdo jurídico. 313. Vicesimus primus: O direito de acesso à justiça lato sensu deve ser considerado com atenção para sua essência como direito fundamental, e não para “restrições” admissíveis ou implícitas. Vicesimus secundus: Graves violações dos direitos humanos e do direito internacional humanitário equivalem a violações do jus cogens, que implicam a responsabilidade do Estado e dão origem a um direito à reparação para as vítimas. Isto é consistente com a ideia de retidão (em conformidade com a recta ratio do direito natural), subjacente à conceção do direito (nos diversos sistemas jurídicos – Recht/diritto/droit/direito/derecho/right) como um todo. 314. Vicesimus tertius: É infundada a alegação de que o regime das reparações por graves violações dos direitos humanos e do direito internacional humanitário se esgotaria no âmbito interestatal, em detrimento dos indivíduos que sofreram as consequências dos crimes de guerra e dos crimes contra a humanidade. Resta claro através dos relatos no presente caso que há militares internados italianos, vítimas das graves violações dos direitos humanos e do direito internacional humanitário da Alemanha Nazista, que, de fato, ficaram fora do regime de reparações até o presente momento. Vicesimus quartus: Essas vítimas individuais das atrocidades do Estado não podem ser deixadas sem qualquer tipo de reparação. A imunidade do Estado não deve operar como uma forma de barreira à jurisdição em circunstâncias como as do presente caso relativo às Imunidades Jurisdicionais do Estado. Não se deve ficar no caminho da realização da justiça. A busca da justiça deve ser preservada como objetivo final; garantir a justiça às vítimas engloba, inter alia, permitir-lhes buscar e obter reparação pelos crimes que sofreram. 315. Vicesimus quintus: Não se pode partir de uma premissa errônea e formalista acerca da ausência de conflito entre normas “processuais” e “materiais”, privando o jus cogens de seus efeitos e consequências jurídicas. A verdade é que existe sim um conflito, e a primazia é a do jus cogens, que resiste, e sobrevive, às tentativas sem fundamento de sua desconstrução. Não deve haver qualquer prerrogativa ou privilégio de imunidade do Estado Curso Ênfase © 2021 9 Atenção! em casos de crimes internacionais, tais como massacres de populações civis, e deportação de civis e prisioneiros de guerra sujeitos ao trabalho escravo; esses são graves violações das proibições absolutas do jus cogens, para as quais não pode haver imunidades. 316. Vicesimus sextus: O jus cogens está acima de qualquer prerrogativa ou privilégio de imunidade estatal, com todas as consequências que disso decorrem, de forma a evitar a denegação da justiça e a impunidade. Com base em tudo quanto foi exposto, minha posição é que não há que se falar em imunidade do Estado por crimes internacionais, por graves violações dos direitos humanos e do direito internacional humanitário no presente julgamento. É possível a renúncia à imunidade, mas a renúncia à imunidade de jurisdição não gera renúncia à imunidade de execução, para a qual uma nova renúncia se faz necessária – art. 32.4 da Convenção de Viena sobre as relações diplomáticas. O Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que a imunidade de execução é absoluta, em se tratando de ato de império: DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO INTERNACIONAL. DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS. DIREITO HUMANITÁRIO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. TEMA 944 DA REPERCUSSÃO GERAL. NAUFRÁGIO DE EMBARCAÇÃO PESQUEIRA ATACADA POR SUBMARINO ALEMÃO. RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS MORAIS. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO PROPOSTA POR DE SUCESSORES DA VÍTIMA EM FACE DE ESTADO ESTRANGEIRO. ESTADO SOBERANO. ATO PRATICADO DURANTE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL. ATO DE IMPÉRIO. IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO. DESPROVIMENTO DO RECURSO. 1 – Proposta de Tese de Repercussão Geral (Tema 944): É absoluta a imunidade de jurisdição de Estado estrangeiro por ato de império do qual resulte dano reparável, praticado no exercício do direito de soberania em contexto de guerra, ainda que o Curso Ênfase © 2021 10 ato praticado seja ofensivo ao direito internacional da pessoa humana. 2 – Recurso extraordinário interposto com fundamento no art. 102, III, a, da Constituição, sob alegação de ofensa aos arts. 1º, III, 3º, IV, 4º, II, IV e V, 5º, II, XXV e LIV, e 133 da Carta Magna, com o objetivo de, reformando-se o acórdão recorrido, condenar a República Federal da Alemanha ao ressarcimento de danos sofridos por sucessores de vítimas fatais de naufrágio de embarcação pesqueira atacada por submarino alemão em território brasileiro durante a Segunda Guerra Mundial. 3 – É excepcionada a imunidade de jurisdição apenas nas hipóteses em que o ato praticado pelo Estado soberano seja ato de gestão, e o objeto litigioso tenha como fundo relações de natureza meramente civil, comercial ou trabalhista. 4 – É absoluta e não comporta exceção a imunidade de jurisdição do Estado soberano em se tratando de atos praticados em ofensiva militar em período de guerra, considerado ato de império. Precedente da Corte Internacional de Justiça: Caso Jurisdictional Immunities of the State (Germany vs. Italy: Greece Intervening). 5 – Atende à perspectiva de diálogo entre o direito internacional e o direito interno a invocação de precedente da Corte Internacional de Justiça, órgão judiciário das Nações Unidas do qual o Brasil faz parte, como fundamento para a solução do feito e fixação de tese da sistemática da repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal. 6 – Daria origem ex post facto a inúmeras demandas individuais por prejuízos sofridos, tornando obsoletas as soluções políticas há muito tempo adotadas, o afastamento da imunidade de jurisdição de estado soberano em ações indenizatórias por atos praticados em conflitos armados passados. Haveria o risco de a coexistência pacífica ser consideravelmente deteriorada, com consequências imprevisíveis para qualquer Estado que tenha se envolvido em um conflito armado. 7 – Parecer pelo desprovimento do recurso extraordinário (ARE nº 954.858 RG/ RJ, rel. Min. Edson Fachin, Julgamento: 11.05.2017). 1.4. Imunidade estatal no direito brasileiro No direito brasileiro há alguns entendimentosinteressantes sobre imunidade estatal. a) A competência para julgar Estados estrangeiros e Organismos Internacionais encontra-se nos arts. 102, inciso I; alínea “e”; 105, inciso II; alínea “c” e 109, inciso II, todos da Constituição Federal de 1988 (CF/1988). Quando há, de um lado, uma pessoa domiciliada no Curso Ênfase © 2021 11 Brasil ou um município contra um Estado estrangeiro ou Organismo Internacional, a competência é da Justiça Federal de primeiro grau. Nesses casos, o recurso cabível seria o Recurso Ordinário para o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Quando o conflito for entre Estado-membro, Distrito Federal ou União e do outro lado for Estado estrangeiro ou Organismo Internacional, a competência será do STF. b) Em matéria trabalhista, sempre Justiça do Trabalho (art. 114, inciso I, da CF/1988) – Ainda quando a relação de trabalho envolve pessoas jurídicas de direito externo. c) No Brasil, o STF acolhe, desde 1989, a distinção entre atos de império e atos de gestão (ACi nº 9.696). O STF entende que não se aplica a imunidade de jurisdição em relação a atos de gestão. Em relação à imunidade de execução, esta continua sendo absoluta aqui no Brasil (mesmo em relação a atos de gestão). d) Em relação ao procedimento, o STJ tem uma observação interessante que já foi cobrada em prova. Quando um juiz recebe uma ação contra Estado estrangeiro ou Organismo Internacional e percebe que há imunidade, ele não deve extinguir de imediato o processo. Deve dar ciência ao Estado estrangeiro (não deve ser uma citação, mas apenas uma comunicação) para que ele informe se pretende renunciar à sua imunidade. Se houver renúncia, o processo pode prosseguir – STJ, Ag nº 1.118.724/RS. e) O STJ já se manifestou no sentido de que ato de guerra é um ato de império no Agravo Regimental (AgRg) no Recurso Ordinário (RO) nº 129. Assim, aplica-se a imunidade estatal. Isso é decorrência de uma discussão que se travou sobre operações militares da Alemanha no litoral brasileiro. Uma embarcação brasileira foi atingida nessas operações e os parentes das vítimas começaram a ajuizar demandas contra o Estado alemão. A Justiça brasileira se manifestou no sentido de que não caberia indenização porque o Estado alemão é imune, na medida em que se trata de ato de império. f) Ao julgar o RE 954858/RJ, decidido em sede de repercussão geral (tema 944) o STF fixou a seguinte tese: “Os atos ilícitos praticados por Estados estrangeiros em violação a direitos humanos não gozam de imunidade de jurisdição.”(STF. Plenário. ARE 954858/RJ, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 20/8/2021 . Info 1026). Curso Ênfase © 2021 12 O STF afastou a imunidade de jurisdição de Estado estrangeiro em relação a atos de império que sejam ofensivos ao direito internacional da pessoa humana praticados no território brasileiro, tais como aqueles que resultem na morte de civis em período de guerra. Com tal precedente, o STF não superou regra da imunidade de jurisdição em relação a atos de império praticados por Estados estrangeiros, e sim apenas criou uma exceção. (STF - ARE: 954858 RJ) RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. REPERCUSSÃO GERAL. DIREITOS HUMANOS. DIREITO INTERNACIONAL. ESTADO ESTRANGEIRO. ATOS DE IMPÉRIO. PERÍODO DE GUERRA. CASO CHANGRI-LÁ. DELITO CONTRA O DIREITO INTERNACIONAL DA PESSOA HUMANA. ATO ILÍCITO E ILEGÍTIMO. IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO. RELATIVIZAÇÃO. POSSIBILIDADE. ACESSO À JUSTIÇA. PREVALÊNCIA DOS DIREITOS HUMANOS. ART. 4º, II, DA CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA. 1. Controvérsia inédita no âmbito desta Suprema Corte, estando em questão a derrotabilidade de regra imunizante de jurisdição em relação a atos de império praticados por Estado soberano, por conta de graves delitos ocorridos em confronto à proteção internacional da pessoa natural , nos termos do art. 4º, II e V, do Texto Constitucional. 2. A imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro no direito brasileiro é regida pelo direito costumeiro. A jurisprudência do STF reconhece a divisão em atos de gestão e atos de império, sendo os primeiros passíveis de cognoscibilidade pelo Poder Judiciário e, mantida, sempre, a imunidade executória, à luz da Convenção de Viena sobre as Relações Diplomáticas (Dec. 56.435/1965). Precedentes. 3. O artigo 6, b, do Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, reconhece como “crimes de guerra” as violações das leis e costumes de guerra, entre as quais, o assassinato de civis, inclusive aqueles em alto-mar. Violação ao direito humano à vida, incluído no artigo 6, do Pacto sobre Direitos Civis e Políticos. Assim, os atos praticados em períodos de guerra contra civis em território nacional, ainda que sejam atos de império, são ilícitos e ilegítimos. 4. O caráter absoluto da regra de imunidade da jurisdição estatal é questão persistente na ordem do dia do direito internacional, havendo notícias de diplomas no direito comparado e de cortes nacionais que afastaram ou mitigaram a imunidade em casos de atos militares ilícitos. 5. A Corte Internacional de Justiça, por sua vez, no julgamento do caso das imunidades jurisdicionais do Estado (Alemanha Vs. Curso Ênfase © 2021 13 Atenção! Itália), manteve a doutrina clássica, reafirmando sua natureza absoluta quando se trata de atos jure imperii. Decisão, no entanto, sem eficácia erga omnes e vinculante, conforme dispõe o artigo 59, do Estatuto da própria Corte, e distinta por assentar-se na reparação global. 6. Nos casos em que há violação à direitos humanos, ao negar às vítimas e seus familiares a possibilidade de responsabilização do agressor, a imunidade estatal obsta o acesso à justiça, direito com guarida no art. 5º, XXXV, da CRFB; nos arts. 8 e 10, da Declaração Universal; e no art. 1, do Pacto sobre Direitos Civis e Políticos. 7. Diante da prescrição constitucional que confere prevalência aos direitos humanos como princípio que rege o Estado brasileiro nas suas relações internacionais (art. 4º, II), devem prevalecer os direitos humanos - à vida, à verdade e ao acesso à justiça -, afastada a imunidade de jurisdição no caso. 8. Possibilidade de relativização da imunidade de jurisdição estatal em caso de atos ilícitos praticados no território do foro em violação à direitos humanos. 9. Fixação de tese jurídica ao Tema 944 da sistemática da repercussão geral: “Os atos ilícitos praticados por Estados estrangeiros em violação a direitos humanos não gozam de imunidade de jurisdição.” 10. Recurso extraordinário com agravo a que se dá provimento. (STF - ARE: 954858 RJ, Relator: EDSON FACHIN, Data de Julgamento: 23/08/2021, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 24/09/2021) 1.5. Convenção sobre imunidades jurisdicionais do Estado e de seus bens No âmbito internacional, a primeira convenção a tratar de forma clara do tema imunidade estatal foi a Convenção Europeia sobre Imunidades do Estado e Protocolo Adicional, denominada Convenção da Basileia, de âmbito regional, adotada em 1962. A partir daí, exercendo grande influência junto à Organização das Nações Unidas (ONU), surgiu a discussão a respeito de uma convenção de âmbito global. Assim, a Comissão de Direito Internacional (CDI) da ONU, em sua 43ª sessão, realizada em 1991, inscreveu o tema Imunidades Jurisdicionais dos Estados e de Seus Bens para discussão nas sessões seguintes, culminando na aprovação da Convenção sobre Imunidades Jurisdicionais do Estado e Seus Bens, aberta à assinatura em Nova York, a partir de 17 de janeiro de 2017. Curso Ênfase © 2021 14 O Brasil ainda não assinou nem ratificou a referida convenção. 1.6. Hipóteses comuns de renúncia Não raras vezes, ocorre a renúncia de um Estado à sua imunidade de jurisdição, ocorrendo comumente em um tratado bilateral, oumesmo por meio de um contrato, com cláusula expressa de renúncia, a exemplo de um Estado que adquire um empréstimo junto a um banco estrangeiro privado. Em 1983, O Brasil renunciou à sua imunidade de jurisdição ao contratar um vultoso empréstimo junto a um consórcio de bancos privados estrangeiros, chamado de “Projeto Dois”, liderado este consórcio pelo Citibank, por meio de uma cláusula expressa em que se submeteu à jurisdição de qualquer tribunal do Estado de Nova York ou tribunal federal norte-americano naquela mesma cidade, além de Tribunal Superior de Londres. Segundo Valério Mazzuoli (2013, p. 575), atualmente tal renúncia seria inconstitucional, ainda que embasada em atos jure gestionis, à vista do art. 52, incisos VII e VIII, da CF/1988, por competir privativamente ao Senado Federal dispor sobre limites globais e condições para as operações de créditos externo e interno da União, estados, do Distrito Federal e dos municípios, suas autarquias e demais entidades controladas pelo Poder Público federal, além de dispor sobre limites e condições de garantia da União em operações de créditos externo e interno. 1.7. Código Bustamante Não se pode olvidar, em relação ao Brasil, a vigência da Convenção de Direito Internacional Privado denominada Código Bustamante de 1928, que traz disciplina a respeito da imunidade de jurisdição estatal em seus arts. 333 a 335. Art. 333. Os juízes e tribunais de cada Estado contratante serão incompetentes para conhecer dos assumptos cíveis ou comerciais em que sejam parte demandada os demais Estados contratantes ou seus chefes, se se trata de uma ação pessoal, salvo o caso de submissão expressa ou de pedido de reconvenção. Art. 334. Em caso idêntico e com a mesma excepção, eles serão incompetentes quando se exercitem ações reais, se o Estado contratante ou o Curso Ênfase © 2021 15 seu chefe têm atuado no assumpto como tais e no seu caráter público, devendo aplicar-se, nessa hipótese, o disposto na última alínea do art. 318. Art. 335. Se o Estado estrangeiro contratante ou o seu chefe tiverem atuado como particulares ou como pessoas privadas, serão competentes os juízes ou tribunais para conhecer dos assuntos em que se exercitem ações reais ou mistas, se essa competência lhes corresponder em relação a indivíduos estrangeiros, de acordo com este Código. Segundo Mazzuoli (2013, p. 576), o art. 335 trata dos casos relativos aos acta jure gestionis, sendo competentes, nestes casos, o STF (art. 102, inciso I, da CF/1988) e os Juízes Federais (art. 109, incisos II e III, da CF/1988), para os casos, repise-se, jure gestionis ou de renúncia expressa do Estado estrangeiro à sua imunidade jurisdicional. 1.8. Danos nucleares Por fim, importante o conhecimento de previsão a respeito da imunidade Estatal de jurisdição em se tratando de danos nucleares na Convenção de Viena sobre Responsabilidade Civil por Danos Nucleares (Decreto nº 911/1993). Art. XIV Não poderão alegar-se imunidades de jurisdição, amparadas na legislação nacional ou no direito internacional, por ações movidas de acordo com a presente Convenção, perante os tribunais competentes, segundo o disposto no artigo XI, exceto no que concerne às medidas de execução. (Grifos nossos.) Obra coletiva do Curso Ênfase produzida a partir da análise estatística de incidência dos temas em provas de concursos públicos. A autoria dos e-books não se atribui aos professores de videoaulas e podcasts. Todos os direitos reservados. Curso Ênfase © 2021 16 TEMAS ESPECIAIS PARA JUIZ FEDERAL DIREITO INTERNACIONAL Imunidades à jurisdição e à execução estatal 1. Imunidade estatal 1.1. Conceito 1.2. Fundamento 1.3. Atos de império e atos de gestão 1.4. Imunidade estatal no direito brasileiro 1.5. Convenção sobre imunidades jurisdicionais do Estado e de seus bens 1.6. Hipóteses comuns de renúncia 1.7. Código Bustamante 1.8. Danos nucleares
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