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Urbana Prof.ª Andressa Lídicy Morais Lima antropologia rUral e Indaial – 2022 1a Edição Elaboração: Prof.ª Andressa Lídicy Morais Lima Copyright © UNIASSELVI 2022 Revisão, Diagramação e Produção: Equipe Desenvolvimento de Conteúdos EdTech Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada pela equipe Conteúdos EdTech UNIASSELVI Impresso por: C397 CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI. Núcleo de Educação a Distância. LIMA, Andressa Lídicy Morais. Antropologia Rural e Urbana. Andressa Lídicy Morais Lima. Indaial - SC: UNIASSELVI, 2022. 200p. ISBN 978-85-515-0614-1 ISBN Digital 978-85-515-0615-8 “Graduação - EaD”. 1. Antropologia 2. Rural 3. Urbana CDD 306.981 Bibliotecário: João Vivaldo de Souza CRB- 9-1679 Prezado acadêmico! Bem-vindo à disciplina de Antropologia Rural e Urbana. Este é o nosso livro didático, material elaborado com o objetivo de auxiliar e contribuir para a formação profissional e o avanço nos seus estudos. Este material lhe ajudará a conhecer um universo de muito conhecimento a respeito da vida social entre grupos humanos, a antropologia se caracteriza pelo estudo da diversidade dos modos de vida, nos proporciona um conhecimento vasto acerca das diferentes línguas, hábitos culturais, religiões, formas de direito, sentidos de justiça, artes, modos de existir e construir relações entre grupos sociais pertencentes a localidades distintas. Por isso, você pode usar este material como base para iniciar a sua imersão em um conteúdo que hoje pode parecer muito familiar, como é a cidade, a vida urbana ou a vida rural, suas formas de organização social, mas aqui você poderá conhecer um pouco do relevante processo histórico de formação e transformação da vida humana a partir dos fenômenos rural e urbano e das suas interferências e interfaces. Na Unidade 1, abordaremos como ponto de partida os estudos do urbano, isto porque a maneira como a antropologia brasileira se desenvolveu passou por diferentes expectativas de construção e aplicação de pesquisas marcadas substancialmente pelo acontecimento da Revolução Industrial e do sistema capitalista. Logo, cidade, urbano e indivíduo fazem parte de um conjunto de categoriais de análise para compreender o que é Antropologia Urbana. Em seguida, na Unidade 2, estudaremos a Antropologia Rural, durante muito tempo essa subárea ficou conhecida como “sociedades camponesas”. Seu estudo procura se relacionar por contraponto ao urbano. Abordaremos um retrato da grande diversidade social e cultural que há no rural brasileiro. A dimensão antropológica dessa área de estudos permitirá o entendimento dos indivíduos que habitam os campos, seus conflitos, seus saberes e suas lutas pelo direito à terra. Por fim, na Unidade 3, estudaremos a relação entre os estudos urbanos e rurais, sabendo que as transformações que ocorrem tanto no rural quanto no urbano interferem uma na outra. Será possível entender como vários aspectos de uma cultura estão interligados a diferentes modos de existir, assim percebidas a interface entre rural e urbano como produtora de uma riqueza de modos de vida e de conflitos sociais. Neste livro você encontrará os conteúdos que lhe serão úteis para sua formação. Entretanto, lembre-se que o conhecimento é uma fonte inesgotável e aqui é um bom ponto de partida para você navegar pela Antropologia Rural e Urbana tendo como perspectiva que essas reflexões despertem o desejo pelo conhecimento, pela investigação antropológica, pela leitura de etnografias de temas que estão movendo os debates contemporâneos. APRESENTAÇÃO Sabemos que neste livro será apresentado um conjunto de abordagens, escolas de pensamento, categorias de análise e linhas de pesquisa, fornecendo assim um mapa para facilitar a compreensão deste tema tão desafiador. Aproveite e navegue pelos estudos antropológicos. Desejo a você um bom estudo e que as leituras deste livro ampliem seus horizontes na busca por sempre renovar o interesse pelo conhecimento. Boa leitura! Prof.ª Andressa Lídicy Morais Lima Olá, acadêmico! Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você – e dinamizar, ainda mais, os seus estudos –, nós disponibilizamos uma diversidade de QR Codes completamente gratuitos e que nunca expiram. O QR Code é um código que permite que você acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando. Para utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só aproveitar essa facilidade para aprimorar os seus estudos. GIO Olá, eu sou a Gio! No livro didático, você encontrará blocos com informações adicionais – muitas vezes essenciais para o seu entendimento acadêmico como um todo. Eu ajudarei você a entender melhor o que são essas informações adicionais e por que você poderá se beneficiar ao fazer a leitura dessas informações durante o estudo do livro. Ela trará informações adicionais e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto estudado em questão. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material-base da disciplina. A partir de 2021, além de nossos livros estarem com um novo visual – com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura –, prepare-se para uma jornada também digital, em que você pode acompanhar os recursos adicionais disponibilizados através dos QR Codes ao longo deste livro. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com uma nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página – o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Preocupados com o impacto de ações sobre o meio ambiente, apresentamos também este livro no formato digital. Portanto, acadêmico, agora você tem a possibilidade de estudar com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Preparamos também um novo layout. Diante disso, você verá frequentemente o novo visual adquirido. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar os seus estudos com um material atualizado e de qualidade. QR CODE Acadêmico, você sabe o que é o ENADE? O Enade é um dos meios avaliativos dos cursos superiores no sistema federal de educação superior. Todos os estudantes estão habilitados a participar do ENADE (ingressantes e concluintes das áreas e cursos a serem avaliados). Diante disso, preparamos um conteúdo simples e objetivo para complementar a sua compreensão acerca do ENADE. Confira, acessando o QR Code a seguir. Boa leitura! ENADE LEMBRETE Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma disciplina e com ela um novo conhecimento. Com o objetivo de enriquecer seu conheci- mento, construímos, além do livro que está em suas mãos, uma rica trilha de aprendizagem, por meio dela você terá contato com o vídeo da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complementa- res, entre outros, todos pensados e construídos na intenção de auxiliar seu crescimento. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo. Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada! SUMÁRIO UNIDADE 1 — ANTROPOLOGIA URBANA ................................................................... 1 TÓPICO 1 — CONTEXTO: O URBANO, AS CIDADES E OS SUJEITOS ..................... 3 1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 3 2 O URBANO ........................................................................................................... 6 3 AS CIDADES ....................................................................................................... 10 4 OS SUJEITOS .................................................................................................... 15 RESUMO DO TÓPICO1 .......................................................................................... 19 AUTOATIVIDADE ...................................................................................................20 TÓPICO 2 — ENTRE ESCALAS E ESCOLAS DE ETNOGRAFIA URBANA .............23 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................23 2 ESCOLA DE CHICAGO .......................................................................................24 3 ESCOLA DE MANCHESTER ............................................................................... 31 RESUMO DO TÓPICO 2 ..........................................................................................39 AUTOATIVIDADE .................................................................................................. 40 TÓPICO 3 — MOVIMENTOS SOCIAIS, SUBCULTURAS E IDENTIDADES URBANAS .........................................................................................43 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................43 2 MOVIMENTOS SOCIAIS E SUBCULTURAS URBANAS .................................... 44 3 IDENTIDADES URBANAS .................................................................................. 51 LEITURA COMPLEMENTAR ..................................................................................58 RESUMO DO TÓPICO 3 ..........................................................................................63 AUTOATIVIDADE ...................................................................................................64 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 67 UNIDADE 2 — ANTROPOLOGIA RURAL .................................................................71 TÓPICO 1 — CONCEITOS E TRADIÇÕES TEÓRICAS NOS ESTUDOS DE CAMPESINATO E DA RURALIDADE .................................................. 73 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 73 2 OS ESTUDOS DO RURAL NA FORMAÇÃO DA ANTROPOLOGIA BRASILEIRA ......75 3 OS ESTUDOS DE COMUNIDADE ........................................................................89 RESUMO DO TÓPICO 1 ..........................................................................................93 AUTOATIVIDADE ...................................................................................................94 TÓPICO 2 — POVOS TRADICIONAIS E SEUS MODOS DE USO E OCUPAÇÃO DO ESPAÇO RURAL .......................................................................... 97 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 97 2 ANTROPOLOGIA RURAL NO BRASIL ...............................................................102 3 CAMPESINATO .................................................................................................106 4 COMUNIDADES TRADICIONAIS ......................................................................109 4.1 INDÍGENAS ..........................................................................................................................111 4.2 QUILOMBOLAS .................................................................................................................. 114 4.3 CAIÇARAS .......................................................................................................................... 115 4.4 RIBEIRINHOS ..................................................................................................................... 116 RESUMO DO TÓPICO 2 .........................................................................................119 AUTOATIVIDADE .................................................................................................120 TÓPICO 3 — ORGANIZAÇÕES ECONÔMICAS, RELAÇÕES SOCIAIS E MORALIDADES NO MUNDO RURAL ............................................... 123 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 123 2 TERRITÓRIO E TERRITORIALIDADE ...............................................................124 3 IDENTIDADE, TERRITÓRIO E NOVAS QUESTÕES DO MUNDO RURAL .......... 126 LEITURA COMPLEMENTAR .................................................................................131 RESUMO DO TÓPICO 3 ........................................................................................ 136 AUTOATIVIDADE ................................................................................................. 137 REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 139 UNIDADE 3 — RELAÇÃO ENTRE O RURAL E O URBANO ...................................143 TÓPICO 1 — O CONTINUUM ENTRE O URBANO E O RURAL NA PRODUÇÃO DE IDENTIDADES SOCIAIS .............................................................145 1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................145 2 ALGUMAS CATEGORIAS ANALÍTICAS ............................................................ 147 3 O RURAL E O MODERNO ................................................................................... 153 RESUMO DO TÓPICO 1 ........................................................................................158 AUTOATIVIDADE ................................................................................................. 159 TÓPICO 2 — MODOS DE PRODUÇÃO, CONSUMO E USO DE RECURSOS ...........161 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................161 2 MODOS DE PRODUÇÃO .................................................................................... 163 3 MORALIDADES ENTRE O RURAL E URBANO .................................................. 166 RESUMO DO TÓPICO 2 ........................................................................................ 176 AUTOATIVIDADE ..................................................................................................177 TÓPICO 3 — A QUESTÃO AMBIENTAL: TENSÕES, FRONTEIRAS E DISPUTAS ........ 179 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 179 2 NOVAS RURALIDADES .................................................................................... 181 3 NOVAS URBANIDADES ...................................................................................184 LEITURA COMPLEMENTAR ................................................................................188 RESUMO DO TÓPICO 3 ........................................................................................194 AUTOATIVIDADE ................................................................................................. 195 REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 199 1 UNIDADE 1 — ANTROPOLOGIA URBANA OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • identificar a formação da antropologia urbana a partir dos estudos de diferentes contextos, grupos sociais e tempos históricos; • estudar as escolas clássicas como a Escola de Chicago e a Escola de Manchester permitirá compreender as contribuições metodológicas que suas pesquisas oferecem aos estudos do rural e do urbano e suas implicações para nossa a sociedade contem- porânea; • dominar as categorias centrais do campo como o conceito de “cidade”, “metrópole”, “vida urbana” e “tribos urbanas”; • relacionar os elementos conceituais com a aplicação em estudos etnográficos para entender os efeitos das aglomerações, moradias, jornadas intensas de trabalho, precarização da mão de obra nas novas formas de organização social da vida urbana. A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividadescom o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – CONTEXTO: O URBANO, AS CIDADES E OS SUJEITOS TÓPICO 2 – ENTRE ESCALAS E ESCOLAS DE ETNOGRAFIA URBANA TÓPICO 3 – MOVIMENTOS SOCIAIS, SUBCULTURAS E IDENTIDADES URBANAS Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações. CHAMADA 2 CONFIRA A TRILHA DA UNIDADE 1! Acesse o QR Code abaixo: 3 CONTEXTO: O URBANO, AS CIDADES E OS SUJEITOS TÓPICO 1 — UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO A antropologia se consolidou a partir de importantes estudos etnográficos do final do século XIX. Neles, os antropólogos dedicavam-se ao estudo aprofundado de diversas sociedades, tomando como premissa entender a diversidade dos modos de vida em relação com a da sociedade do pesquisador. Assim, as ricas etnografias clássicas da antropologia colocavam em evidência um conjunto robusto de descrições dos povos com os quais conviveram em suas pesquisas, um exemplo desse tipo de trabalho é o centenário “Os Argonautas do Pacífico Ocidental: um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos Arquipélagos da Nova Guiné Melanésia” do antropólogo polonês Bronislaw Malinowski, publicado em 1922. Acadêmico, a seguir você verá uma imagem do antropólogo Malinowski interagindo entre trobriandeses durante sua pesquisa de campo. Figura 1 – Argonautas do pacífico ocidental Fonte: https://bit.ly/3J5hYw6. Acesso em: 20 jul. 2022. Naquela época as investigações antropológicas concentravam-se nos estudos de diferentes sociedades ao redor do mundo e seus modos de viver. Aquelas sociedades que não pertenciam à civilização ocidental foram caracterizadas como “sociedades de pouco contato”, cuja tecnologia não era considerada desenvolvida ou que havia baixa divisão do trabalho social. Tais povos que ali habitavam foram chamados em diferentes momentos históricos de “primitivos”, “sociedades simples”, “arcaicos” ou “sociedades frias”, sempre em comparação com as chamadas “sociedade complexas” – aquelas consideradas “civilizadas”, “sociedades modernas” ou “sociedades quentes”. 4 Quer saber mais a respeito de um dos livros mais importantes da história da Antropologia? Assista ao vídeo das “Aulas abertas: teorias e histórias da antropologia – o centenário de argonautas”. Promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Campinas (UNICAMP), com a presença da Prof.ª Dra. Mariza Peirano (Universidade de Brasília): https://bit.ly/3osZpsv. DICA Acadêmico, neste momento, você pode se perguntar: quais seriam então essas “sociedades quentes”? Pois bem, já adiantamos a você: são aquelas das quais pertenciam os pesquisadores e antropólogos. Além disso, é importante que você saiba que ambos os termos, sociedades “frias” e “quentes”, foram introduzidos pelo antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, na tentativa de identificar e classificar as estruturas inconscientes básicas que definiriam as culturas humanas. Assim, aquelas sociedades que estavam mais perto do estado de natureza cujo volume de pessoas era menor e embora dinâmicas nutriam resistência às mudanças culturais foram chamadas de sociedades frias ou simples. Por outro lado, as sociedades quentes ou complexas são aquelas marcadas pelos processos industriais e que foram afetadas pela globalização, pelo progresso e apresentam maior desarmonia e conflitos de desordem social, possuem ainda entre suas características o grande contingente populacional, históricas, estão mais distantes do estado de natureza. No entanto, essas terminologias passaram por revisões críticas dentro da própria disciplina e tem procurado no contexto contemporâneo não se referir aos povos cujas culturas se diferenciam da nossa de “primitivos”, entendendo que isto é uma forma de etnocentrismo. Aliás, importante conceito antropológico que será muito utilizado em nosso entendimento acerca da Antropologia Rural e Urbana. Abordaremos o estudo da Antropologia Rural em nossa próxima unidade. ESTUDOS FUTUROS De acordo com o antropólogo Everardo Rocha (1988), etnocentrismo é uma visão de mundo, na qual a pessoa toma seu próprio grupo como ponto de partida para avaliar e medir valores, hábitos e modelos de existências como se fossem superiores, melhores ou os mais corretos a serem seguidos e assim passa a negar a existência da diversidade. Cabe ainda destacar que o etnocentrismo é uma característica presente em qualquer sociedade ou grupo social, pois todas elas tendem a olhar umas para as outras a partir de si próprias. 5 A partir disso, outro importante conceito antropológico merece atenção: trata-se do relativismo. Este conceito possibilita o conhecimento da diversidade, entendendo os seus próprios valores e contextos, nos quais se realizam, portanto, no encontro com o “Outro” e com a diferença. Assim, o relativismo cultural nos auxilia a não hierarquizar ou emitir juízos de valor que estejam investidos de preconceitos. É importante lembrar que esse Outro se trata daqueles que não pertencem à mesma cultura que o “nós” do pesquisador. O etnocentrismo é produto do Ocidente, que toma seu estágio de desenvolvimento científico e tecnológico como o de maior grau em desenvolvimento humano, ao fazer isto analisa outras sociedades de modo a hierarquizá-las partindo de suas próprias categorias, valores e conhecimento (LÉVI-STRAUSS, 1993). Assim, uma crítica contundente ao evolucionismo praticado na antropologia, permitirá entender que "existem nas sociedades humanas, simultaneamente em elaboração, forças trabalhando em direções opostas: umas tendem à manutenção, e mesmo à acentuação dos particularismos; as outras agem no sentido da convergência e da afinidade" (LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 331). Ao adotarmos o pensamento relativista compreendemos que a diversidade deixaria de ser entendida com base em processos evolutivos e passaria a ser vista de uma perspectiva de valorização da diferença, respeitando suas configurações e as possibilidades de relações de culturas entre si. No Brasil, a antropologia tem uma longa trajetória de pesquisas versadas em estudos de populações indígenas, grupos rurais, grupos urbanos e aqueles grupos definidos conforme a divisão de classes sociais (MELLATI, 1983; OLIVEN; 2007). Essa característica é importante por nos aproximar de nossa própria disciplina aqui estudada: Antropologia Rural e Urbana. A relação entre o eu e o outro ganha agora novos contornos analíticos que privilegiam a perspectiva da alteridade. Do ponto de vista antropológico a alteridade significa que o “eu” só pode ser entendido a partir da interação que estabelece com o “outro”, tal categoria é frequentemente usada como definidora da própria antropologia, por colocar em foco a importância de estudarmos as diferenças entre várias culturas, sociedades e grupos sociais com o interesse de conhecermos e estabelecermos uma relação de respeito mútuo e aprendizado moral a partir das diferenças. Desse modo, os estudos de diferentes contextos, grupos sociais e tempos históricos permitirá compreender as contribuições dos estudos do rural e do urbano e suas implicações para nossa a sociedade contemporânea. As especificidades que estão na descrição de grupos sociais como jovens e tribos urbanas nos permitem conhecer suas práticas, consumo, formas de lazer na cidade e no mundo urbano, ao mesmo tempo em que é possível conhecermos os campesinos, seus processos de trabalho no campo, suas culturas de subsistência bem como seus rituais festivos. E, finalmente, na interação entre esses universos vastos de pesquisas e experiências vividas podemos ainda descobrir o fio invisível que permanece ligando essas interações entre o rural e o urbano no mundo contemporâneo.6 Nesse sentido, o antropólogo em campo busca reunir um vasto material que possa registrar as diferenças entre essas populações de acordo com a observação da organização social, do sistema de parentesco, do idioma daquela população, o modo como manejam alimentos, a maneira de se relacionar com os animais, as práticas rituais de magia e religião, seus sentidos de justiça e direito, assim como diferentes outros aspectos da vida social de um povo, sempre respeitando suas diferenças. A partir dessas considerações iniciais e da breve apresentação desses conceitos elementares e definidores do campo da antropologia, nos Tópico 2 e 3, abordaremos mais diretamente o urbano e o surgimento da Antropologia Urbana. Sistema de parentesco: conforme bom apontamento da antropóloga Cynthia Sarti (1992, p. 71) quando falamos em sistemas de parentesco na antropologia estamos nos referindo as estruturas formais de relação social, que resultam da combinação de três tipos de relações básicas: a) a relação de descendência, que é a relação entre pai e filho e mãe e filho; b) a relação de consanguinidade, que é a relação entre irmãos; e c) a relação de afinidade, ou seja, a que se dá por meio do casamento, pela aliança. Essas três relações são básicas e o estudo do parentesco é o estudo da sua combinação. Essas relações são a estrutura formal universal. Qualquer sociedade se forma pela combinação dessas três relações. A variabilidade está em como se faz essa combinação. NOTA 2 O URBANO Caro acadêmico, até aqui podemos considerar que você já está um pouco familiarizado com o universo da antropologia, uma riqueza sem fim de informações e conhecimento das formas de vida, agora vamos nos aprofundar um pouco no contexto da antropologia urbana, uma subárea da antropologia, na qual se dará nossa disciplina. Uma dimensão interessante é procurar entender as transformações sociais advindas com o meio urbano, isto porque tais transformações definiram uma importante agenda de estudos que cobre, principalmente, processos de mudanças sociais ocorridas após o surgimento do sistema capitalista que foi impulsionado pela Revolução Industrial. Assim, as cidades industriais são uma consequência desse intenso processo de urbanização que marca o século XIX em termos de infraestrutura do espaço social, mas também mudanças de comportamento e interação entre pessoas nesse novo contexto o que nos leva ao estudo aprofundado das diferenças, dos conflitos, das novas formas de sociabilidade nesse ambiente e muitas outras dimensões da vida social agora no meio urbano. 7 FILME TEMPOS MODERNOS – CHARLIE CHAPLIN DICA Modern Times (Tempos Modernos) é um filme do cineasta Charlie Chaplin, no qual seu famoso personagem "O Vagabundo" tenta sobreviver em meio ao mundo moderno e industrializado. Lançado em 5 de fevereiro de 1936 (Nova Iorque), com produção, roteiro, direção e música (Smile) composta por Charlie Chaplin. Fonte: https://bit.ly/2ErrXxM. Acesso em: 3 ago. 2022. Assim, um dos principais objetos de interesse de investigação científica foram as “cidades” e o “urbano”, isto porque efeitos como aglomerações, moradias, jornadas intensas de trabalho, precarização da mão de obra eram notáveis nas formas de organização social da vida urbana. As mudanças profundas oriundas desses acontecimentos modificaram a vida em sociedade não só em aspectos relacionados ao espaço, ao ambiente das cidades, mas também naquilo que se refere ao modo de habitar e os próprios indivíduos. Cientistas sociais acompanharam os primeiros efeitos dessas mudanças nas relações sociais e nas estruturas do ambiente. A partir de então a questão urbana tornou-se uma preocupação por parte de uma rede de pesquisadores interessados nas mudanças advindas desse processo de inchaço nas grandes cidades e, do mesmo modo, como isso impactava na vida rural. Muitos cientistas sociais foram contra os processos intensos de urbanização defendendo que a vida rural com hábitos e população mais homogêneas era uma forma de vida cujos laços sociais eram mais intensos e detentor de maior qualidade. Naquele momento, a vida rural passou a ser modificada com eventos como a migração e o êxodo cada vez mais presentes e intensificados. https://bit.ly/2ErrXxM 8 Em 1903, o sociólogo alemão George Simmel publicou um interessante ensaio intitulado “A metrópole e a vida mental”, e trouxe para o debate científico no campo das ciências sociais essas preocupações em torno das mudanças no binômio rural e urbano. Simmel apresentou um impressionante olhar sobre os estilos de vida urbanos e a questão da personalidade nesse contexto. Sua contribuição observa a organização social e as práticas culturais que caracterizavam as áreas urbanas como consequência da grande aglomeração de pessoas. Em sua rica descrição, somos instigados a perceber as características físicas da cidade em correlação com as características sociais de seus habitantes. Simmel, que era filho de industrial, observava as transformações a partir da cidade de Berlim, onde nasceu. Percebia a mudança de sua cidade natal a partir de uma moderna aglomeração urbana, caracterizada pelo enorme fluxo de pessoas, presença intensa de comércios, práticas de prostituição, assim como uso de bondes e elevada circulação de dinheiro. Para Simmel, Berlim era um modelo da cidade moderna, mais até do que Londres, por ter experimentado um processo tardio de industrialização. A partir da observação sistemática, isto é, uma observação regular da metrópole, o sociólogo alemão encontrou o cenário de seu diagnóstico a respeito da modernidade. Naquele momento Simmel estava diante de um “campo empírico” de experiências de proximidade e a partir disso foi possível elaborar suas reflexões com base nas tensões modernas entre a experiência do indivíduo e da sociedade ou, dito de outro modo, “a base psicológica do tipo metropolitano de individualidade consiste na intensificação dos estímulos nervosos, que resulta na alternação brusca e ininterrupta entre estímulos exteriores e interiores” (SIMMEL, 1979, p. 14). A descrição minuciosa de Simmel forneceu bases teóricas e analíticas essenciais para o desenvolvimento de uma sociologia urbana, posteriormente, também de uma Antropologia Urbana. Além de observar a sociabilidade ali contida, Simmel aprofundou sua análise das emoções e os sentimentos que estavam presentes naquela intensa mudança na vida citadina. Era assim que seu texto se tornava um clássico para os estudos de Antropologia Urbana, nos fazendo mergulhar em uma análise contundente das emoções e as subjetividades no interior de uma grande metrópole. Abordaremos o estudo da migração e do êxodo rural no Brasil na próxima Unidade deste livro, quando aprenderemos Antropologia Rural. ESTUDOS FUTUROS 9 Sua narrativa coloca em evidência aspectos como “a intensificação da vida nervosa”, seu fundamento psicológico e as consequências de uma vida agitada, com alta concentração de indivíduos e que produz menos consciência das diferenças. O raciocínio sociológico de Simmel atua em distinções importantes para compreender a dinâmica do fenômeno urbano, quando ele problematiza diferentes dicotomias (individuo/sociedade, cidade/campo, intelectual/sentimental, cultura subjetiva/cultura objetiva). Uma das principais contribuições está na maneira de observar as emoções oriundas do urbano, da cidade, da intensa relação de indivíduos que passam a naturalizar um ritmo de vida acelerado, um código temporal medido em relógios para marcar o tempo do trabalho, a experiência coletiva de deslocamento em transportes coletivos, quando passa a ser dominante os “egoísmos econômicos” e, portanto, a presença maiscomum do sentimento de indiferença. O dinheiro, também um objeto de sua análise, é um elemento importante para entender a vida urbana, isto porque, por meio desse novo sistema econômico, o dinheiro valida a relação de interdependência que se constitui essencial no mundo da metrópole urbana, pois o indivíduo que agora passa fazer parte dessa dinâmica urbana está imerso em um tipo de economia monetária que lhe confere um conjunto de práticas essenciais ao seu cotidiano: “comparações, cálculos, determinações em numéricas e reduções de valores qualitativos e valores quantitativos” (SIMMEL, 2013, p. 315). O dinheiro será um meio de acesso à bens, mas também uma forma de medir valor para objetos, pessoas e relações, além de abrir um campo vasto para as formas de consumo. A cidade produz efeitos na vida urbana, na sociabilidade e mesmo na psicologia humana. A “atitude blasé”, por exemplo, é uma consequência da vida urbana e produto de um excesso de estímulos nervosos, “é o embotamento em relação a distinção das coisas”, aponta Simmel (2013, p. 317). Assim, um indivíduo que seria visto como antissocial pois não se relaciona com os outros, na verdade estabelece uma relação de indiferença com a multidão, ele caminha no meio dela, mas não interage com ela. O indivíduo urbano na metrópole faz questão do anonimato, é indiferente, não manifesta suas reações. Vejamos um exemplo disso. Um dos acontecimentos mais comuns no cotidiano de uma metrópole urbana é estarmos nos deslocando de casa para o trabalho ou de casa para a escola e somos surpreendidos por um acidente de carro no meio de nosso percurso habitual. Um indivíduo de “atitude blasé” não vai parar ou interromper seu percurso para observar, pelo contrário, ele verá o acidente, mas vai seguir adiante sem estabelecer uma intencionalidade sobre aquele evento. Em outras ocasiões, podemos ter como exemplo, aquele indivíduo que caminha livremente pela cidade para “flanar”, isto é, sem pretensão de estabelecer uma intencionalidade de encontro com outros indivíduos, mas apenas estar por estar caminhando pela rua. Estas seriam análises feitas por Simmel (2013) sobre o urbano e como ele produz novos acontecimentos na vida social, o autor nos apresenta as experiências e percepções da singularidade nesse novo lugar. O indivíduo citadino é então apresentado pelo autor como aquele que cultiva o anonimato e o individualismo, às vezes são considerados como “frios e sem ânimo” ou como indivíduos que nutrem 10 uma “atitude de reserva” no meio social. Nas descrições do contexto de surgimento do fenômeno urbano, a vida na cidade é definida por uma alta diferenciação social, e Simmel (2013) destaca um conjunto de práticas de sociabilidade, assim como de atitudes psicológicas (“leve aversão”, “repulsa mútua”, “indiferenças” e “aversões”) que serão próprias desse meio urbano. Menos interessado em emitir um juízo de valor sobre essas mudanças, Simmel (2013) nos estimula a pensar os efeitos sociais dessas transformações no meio urbano, considerando que a presença intensa de um quantitativo elevado de indivíduos no mesmo espaço gera novas formas de interação que terão efeitos em escala individual e coletiva. Isto deve ser mais bem compreendido como um efeito da forma de relação social experimentada na cidade moderna. Não é ausência do “social” ou do “coletivo”, mas uma nova morfologia do social e de uma presença “quantitativa” do coletivo. Para Simmel (2013), um dos sentidos adquiridos pela vida na metrópole é o conjunto de transtornos e adversidades para acomodar seus acontecimentos, múltiplos, descontínuos, acelerados e inesperados, sempre orientando o indivíduo a ter a razão como precedência para organizar sua vida na metrópole. A seguir, conheceremos detalhes desses processos a partir do estudo de outras categorias analíticas importantes para o campo da Antropologia Urbana na forma como se desenvolveu no Brasil. 3 AS CIDADES Caro acadêmico, a reflexão que propomos aqui permitirá a você o entendimento da complexidade das mudanças da cidade moderna, principalmente nas grandes metrópoles, ao observarmos como esse evento influenciou decisivamente para a consolidação de pesquisas e escolas de investigação dessa área de conhecimento. A segunda metade do século XIX marca profundamente o interesse de diversos estudiosos pertencentes a áreas diferentes na busca pelo entendimento do que estava acontecendo no contexto de grande efervescência por onde surgiam as grandes metrópoles urbanas e é aqui que a cidade assume relevante interesse, tratada enquanto uma categoria de análise científica e um objeto de investigação desse fenômeno urbano. Na antropologia, usamos o termo morfologia social para descrever de que maneira uma sociedade está estruturada. O estudo dessas estruturas permitiria ao antropólogo entender como funcionava e de que maneira estariam interligadas as diferentes partes que integram uma sociedade. NOTA 11 Em seu famoso ensaio “A cidade: sugestões para a investigação do comporta- mento humano no meio urbano”, publicado originalmente em março de 1916, Robert Ezra Park definirá cidade como um “estado de espírito, um corpo de costumes e tradições e dos sentimentos e atitudes organizados, inerentes a esses costumes e transmitidos por essa tradição”. Em outras palavras a cidade é para este autor um laboratório para entender os processos sociais, Park (1979, p. 26) ainda diz “a cidade não é meramente um mecanismo físico e uma construção artificial. Está envolvida nos processos vitais das pessoas que a compõem; é um produto da natureza, e particularmente da natureza humana”. Ao mesmo tempo que alguns estudiosos precipitam uma definição de cidade como uma unidade geográfica e ecológica de um tipo social produto da ação humana, ela também é percebida como o lugar das transações políticas e econômicas e de construção dos novos modos de vida. Desse modo, Park insiste em nos aproximar de uma definição de cidade que procura considerar nuances presentes nesse meio social. Ele observa as mudanças de densidade populacional, assim como o espalhamento das vias de circulação para automóveis, a construção das rodovias, a expansão das profissões, e a intensidade do fluxo urbano que caracterizam o perfil das cidades. A partir desse ponto de vista podemos perceber alguns fatores que são considerados primários na abordagem da cidade, aquilo que motivou um intenso grupo de pesquisadores em uma investigação científica sobre tais transformações. Hoje podemos facilmente entender as rotinas de circulação, navegação e movimento do trânsito na cidade urbana, nas grandes metrópoles, porém naquele momento isso não era tão simples. Fatores como transporte e comunicação, por exemplo, eram importantes dimensões da vida social, pois interferiam na circulação, a mobilidade e o acesso da casa ao trabalho na vida urbana, à época serviços como as linhas de bonde eram mais popularizadas, serviam para deslocar os trabalhadores em seus destinos e objetos como o telefone, os jornais impressos e a publicidade organizavam a comunicação e a propagação de informações. Tudo isso fazia parte de um conjunto muito recente de objetos, formas de viver na metrópole ou de organizar o tempo que não faziam parte da rotina ou dos modos de viver encontrados na vida rural. Só para que você, acadêmico, tenha uma ideia mais clara do que significam essas transformações, tente exercitar o pensamento comparativo, as diferentes maneiras de se comunicar que existiam antes e que temos agora. Se antes da revolução industrial o uso de animais para transporte era mais comum, com a chegada da indústria automobilística vamos aprimorando o uso de transportesintroduzindo o bonde, o ônibus, o carro particular, o carro de aluguel, o táxi, o metrô, o trem, dentre outros. Na comunicação ainda é mais interessante se considerados a presença dos smartphones que tudo podem fazer a um toque das mãos, mas antes a comunicação era por cartas, correspondências, anúncios públicos em jornais impressos, panfletos ou recados. 12 A Revolução Industrial foi um acontecimento histórico que revolucionou as formas de viver em sociedade, transformando aspectos físicos, espaciais e coletivos como também aspectos da vida mental, da subjetividade, das emoções e moralidades entre os indivíduos. De acordo com o antropólogo brasileiro Gilberto Velho, no Brasil, até mais ou menos os anos 1970 os eixos de pesquisa dominantes na antropologia eram a etnologia, as relações interétnicas e os estudos camponeses ou estudos tradicionais, todos eles estavam dentro dos chamados “estudos de comunidade”. Conforme veremos adiante foi mais precisamente neste período que os estudos urbanos ganharam outro enfoque, assim a cidade passou a ser um objeto de interesse científico e um campo fértil de estudos para antropólogos brasileiros interessados em estudar as “redes” e os “sistemas de relações” que se referem às interações sociais (VELHO, 2003, p. 11-12). Diferente das etnografias clássicas entre os Trobriand ou os Nuer, na antropologia urbana a descrição das práticas culturais se torna um desafio ao antropólogo porque nas cidades a cultura é organizada de formas muito diferentes e concentram uma riqueza de conhecimento sobre pessoas, espaços e modos de habitar centrais para o entendimento do meio urbano. Não por acaso Gilberto Velho (1987) escreve, em “Observando o familiar”, a respeito da dificuldade em estabelecer métodos e técnicas de pesquisa que captem a riqueza dessa diversidade pois estamos tão imersos na vida citadina, que é muito provável que jamais pensemos sobre “o que sempre vemos e encontramos pode ser familiar, mas não é necessariamente conhecido”. No Brasil, após os anos 1970 a cidade passará a ser considerada um objeto para a investigação antropológica que se orienta pelo estudo das relações e interações com outros atores sociais. De acordo com o antropólogo brasileiro Guilherme Magnani embora a cidade fosse lugar de importantes etnografias antes desse período, seu foco estava no “estudo de culturas indígenas e seus contatos com a civilização; o estudo das culturas caboclas; e o estudo da aculturação de certos grupos étnicos e raciais, como negros, japoneses, alemães etc.” (MAGNANI, 1996, p. 8). As cidades se tornariam um grande desafio científico, pois agora tinha-se um laboratório de estudos e problemáticas que poderiam ser investigadas a partir de uma perspectiva antropológica. Este novo espaço social trouxe junto com suas modificações espaciais as mudanças internas na vida dos próprios indivíduos. É importante também termos clareza de que a cidade é uma categoria polissêmica, isto é, varia de um lugar para outro mesmo que possam ter aqueles elementos comuns a cada uma delas, sempre encontraremos singularidades a respeito de cada uma delas. Nesse sentido, a cidade é parte de uma reflexão antropológica sobre o urbano e compreende um conjunto de informações de sequências da vida urbana que são coletadas pelo antropólogo e que representam apenas uma ínfima parte desse todo social do mundo urbano. Não é por acaso que a antropologia urbana brasileira crescerá com bastante fôlego em pesquisas empíricas, pois há um universo de conhecimento 13 de narrativas, experiências, práticas, arranjos de organização social e de gestão administrativa que varia de uma cidade para outra. O conjunto dessas informações possibilita, do ponto de vista antropológico, um conhecimento vasto e diversificado a respeito dos diferentes modos de vida no meio urbano. Qual seria, então, a contribuição específica da antropologia nesse entendimento da cidade e o meio urbano? Podemos definir dois critérios iniciais, a saber, o primeiro responde ao tipo de trabalho de investigação científica que se ocupa das relações em escala microssociais. O segundo, está mais associado ao modo de fazer pesquisa etnográfica em que o antropólogo baseia suas atividades de pesquisa em uma coleta de dados de primeira mão, isto é, ele está em campo e faz suas próprias perguntas, observa e interage face a face com a população e o local de sua observação. Essa prática científica oferece uma percepção mais apurada sobre o contexto pesquisado, pois baseia-se em uma relação direta com os interlocutores da pesquisa. Desse modo, a cidade aparece como um elemento chave para a compreensão de uma realidade cada vez mais complexa e heterogênea, em termos de indivíduos, práticas culturais e questões sociais. Conforme já vimos com Simmel (1979) e Wirth (1979) isso pode aparecer na descrição de aspectos de personalidade e hábitos culturais, como também revela nuances da vida social. NOTA Quando nos referimos ao termo microssocial, estamos falando dos processos por meio dos quais as pessoas constroem suas relações de interação, em perspectiva de escala, nos referimos às interações face a face entre pessoas de uma mesma família, grupo juvenil, vizinhança e assim por diante para estudar a integração do indivíduo e sociedade. São relações mais próximas, rotineiras, entre poucos parceiros. Para entender melhor, notem que usamos o termo macrossocial quando queremos designar outras relações, aquelas que dizem respeito ao Estado, sistema político ou modelo econômico, estas são relações estruturais, que estuda a estrutura da sociedade buscando entender o seu modo de funcionamento, quais os mecanismos e as partes que compõem uma sociedade e como se articulam. A cidade não somente é, em graus sempre crescentes, a moradia e o local de trabalho do homem moderno, como é o centro iniciador e controlador da vida econômica, política e cultural que atraiu as localidades mais remotas do mundo para dentro de sua órbita e interligou as diversas áreas, os diversos povos e as diversas atividades em um universo” (WIRTH, 1979, p. 91). Para termos uma noção mais concreta dessas múltiplas percepções que a cidade pode revelar da vida social, consideremos a coexistência de práticas individuais inseridas em um espaço social e culturalmente diferente daquele encontrado na vida rural. Se, por um lado, aqueles indivíduos que migram da zona rural para o meio urbano 14 veem a cidade como uma fonte de oportunidades, liberdade e futuro da modernidade, noutros termos, “a cidade é encarada como um espaço de liberdade e possibilidades, na medida em que o emprego regular é visualizado como uma segurança e independência, inexistentes no campo” (OLIVEN, 2007, p. 36). No Brasil, o fenômeno do êxodo rural marcou significativamente o contexto e a organização social do país, traduzindo um longo processo entre os anos de 1960 e 1980 em que indivíduos e famílias inteiras abandonaram suas residências fixas na vida rural com destino às grandes metrópoles em busca de melhores oportunidades de sobreviver – principalmente aquelas populações mais empobrecidas do interior do Brasil, que sofrendo com a seca, como foi o caso da região nordeste, ou com a escassez de oportunidades, como é o caso da região norte, buscavam nas cidades em grande desenvolvimento um destino para modificar sua vida e de sua família. Nesse período, em torno de 27 milhões de brasileiros saíram da zona rural para a zona urbana. O crescimento da indústria e das próprias cidades eram vistas como oportunidades de trabalho para esses trabalhadores que agora estavam despossuídos de oportunidades de subsistência. Sem esquecermosque também nesse período o intenso processo de mecanização das atividades produtivos substituíram a mão de obra humana por máquinas (ALVES; SOUZA; MARRA, 2011). Essas são mudanças significativas da realidade brasileira e os antropólogos que antes se mostravam preocupados se teriam ou não o que pesquisar após os intensos processos de urbanização da vida social, passaram a perceber que agora deveriam lançar seu olhar sobre os acontecimentos do cotidiano vivido nas grandes cidades, procurando entender como esses indivíduos que passam a habitar a cidade interpretam, agem, escolhem, modificam ou guardam traços pessoais de sua vida rural no espaço urbano. Nesse sentido, a antropologia urbana dava seus primeiros e principais passos na direção de uma renovação da própria disciplina que agora permitia um desafio de compreender a realidade urbana assim como estavam acostumados a fazer em relação às sociedades “simples”, seu clássico objeto de estudo. Há também novidades nesse novo fazer antropológico na cidade, em que pese o ajuste das lentes de observação e pesquisa sobre os acontecimentos no universo de indivíduos que compartilham seu local de vivência, fala o mesmo idioma e compartilha um universo de práticas culturais comuns. Assim, os antropólogos urbanos passaram a aplicar os métodos de pesquisa próprios da antropologia, a etnografia e a observação participante (MALINOWSKI, 1978), para estudar aspectos da vida social no contexto urbano. Assim, definiam duas importantes linhas de pesquisa: aquela que procurava colocar ênfase nos indivíduos e suas práticas sociais e outra que dava ênfase nos estudos do território onde estavam situados, entendendo a cidade e o urbano como aquele espaço social constitutivo da ação desses indivíduos. 15 Caro acadêmico, você já pode se familiarizar um pouco com as principais re- ferências e aspectos das mudanças com a introdução da vida urbana, olhamos para os fenômenos sociais mais amplos e nos aproximamos de um conjunto de categorias conceituais importantes para entendermos essas mudanças e nos aproximar de um exercício reflexivo em que de forma autônoma você possa refletir sobre essas transfor- mações usando esse mapa conceitual. Agora, no próximo, vamos fazer um mergulho nesse sujeito social, aquele indivíduo que chega no meio urbano e como ele é afetado por esse novo lugar. 4 OS SUJEITOS Robert Ezra Park (1979, p. 28), proeminente representante dos estudos urbanos desenvolvidos na renomada Escola de Chicago, afirmava em 1916 que “o homem civilizado é um objeto de investigação igualmente interessante, e ao mesmo tempo sua vida é mais aberta à observação e ao estudo”. Nesse sentido, o indivíduo urbano passou a ser visto como um sujeito dotado de diversidade cultural, e justamente por isso, renovava o interesse e a atualidade da Antropologia e do fazer antropológico que em muito poderia contribuir para entender os problemas urbanos postos com a chegada em massa de indivíduos às grandes cidades. Os clássicos estudos de Simmel e Wirth, aqui já mencionados, nutriam pesquisas com reflexões a respeito desse processo de individualização nas cidades, considerando a questão do individualismo urbano uma importante porta de entrada para compreender o modo de vida urbano. Se tomarmos o exemplo da cidade de Chicago, na década de 1930, facilmente entenderemos quais as motivações de estudos nesse segmento. Ora, nesse período, Chicago era a segunda aglomeração urbana dos Estados Unidos e a quinta do mundo com uma população estimada em três milhões de habitantes, vindos de todas as partes do país e do mundo. Problemas sociais como segregação, delinquência, criminalidade, desemprego, formação de guetos, logo se tornariam temas pungentes de investigação. O que caracteriza o fazer etnográfico no contexto da cidade é o duplo movimento de mergulhar no particular para depois emergir e estabelecer comparações com outras experiências e estilos de vida – semelhantes, diferentes, complementares, conflitantes – no âmbito das instituições urbanas, marcadas por processos que transcendem os níveis local e nacional (MAGNANI, 1996, p. 3). Agora falávamos de cidade como o mundo social do indivíduo urbano, este não era mais considerado um mero estrangeiro individualista, e as etnografias passaram a mostrar a diversidade de sujeitos sociais que estavam reunidos em torno de uma mesma localidade. Os estudos antropológicos demonstrariam que a cidade passaria a constituir seu próprio modo de vida urbano, no qual há uma vasta heterogeneidade de sujeitos como o migrante, o estrangeiro, o malandro, o criminoso, 16 o desviante, o sofisticado, o burocrático, todos tipos sociais de um lugar próprio aos projetos de interação do mundo urbano. O grau de sociabilidade é muito variável e vai sendo moldado com o passar do tempo e o habitar das cidades urbanas, se no início do processo de intensa urbanização os indivíduos eram percebidos como um tanto mais impessoais em relação uns aos outros, com efeito, o passar do tempo mostra novas formas de estabelecer sociabilidade e integração afetiva nesse mundo urbano. As redes de parentesco e amizade ganham novos contornos sociais disputando a intensa impessoalidade comum em lugares como aeroportos, estações de metrô ou rodovias, exemplos de uma intensa e concentrada multidão. Nesse momento já encontramos espaços de convivência para a sociabilidade como casas de show, casa de terreiro, igrejas, centros comunitários, clubes de lazer que se organizam e ancoram as relações sociais de afinidade e pertencimento com uma familiaridade já configurada do espaço urbano, da cidade vivida. Muitos jovens passaram a compartilhar espaços comuns para viverem suas práticas de lazer e afetividade. As famílias de classe média acostumaram-se com a ida frequente aos clubes de lazer particulares, os praticantes de religiões de matriz africana consolidavam seus terreiros e casas de santo como espaços de sociabilidade e práticas de rituais, jovens de diferentes sexualidade passaram a frequentar e construir espaços para práticas de uma sexualidade livre em clubes noturnos, velhos senhores frequentemente passaram a se encontrar na praça do bairro para jogar dominó e cartas, assim como foi possível notar a formação de bairros de acordo com o pertencimento étnico, a exemplo do bairro da Liberdade em São Paulo. “A sociabilidade é a forma pela qual os indivíduos constituem uma unidade no intuito de satisfazer seus interesses, onde forma e conteúdo são na experiência concreta processos indissociáveis” (SIMMEL, 2006, p. 65). NOTA 17 Que tal conhecer um pouco mais das questões de gênero, sexualidade e antropologia? Espia essa dica de Podcast: Gênero, Sexualidade, Antropologia, Quadrinhos | HQ Sem Roteiro Podcast: Monique Malcher estudou Jornalismo na Universidade da Amazônia (UNAMA) e se formou com um TCC sobre Superman. No entanto, muito do que ela lia nos quadrinhos de super-heróis não a tocavam em sua realidade, não por serem obas de ficção, mas por não dialogarem com quem ela era. Até que Fun Home, HQ da estadunidense Alison Bechdel, apareceu em suas mãos e sua vida mudou. Monique hoje faz mestrado em Antropologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA) com um estudo sobre quadrinhos, gênero e sexualidade, focado principalmente nas graphic novels Fun Home e Azul é a Cor Mais Quente, da francesa Julie Maroh. No HQ Sem Roteiro Podcast de hoje, conversamos sobre etnografia, performance de gênero, heteronormatividade e muito mais. Taca o play! Fonte: https://apple.co/3cLyc1D. Acesso em: 20 jul. 2022. INTERESSANTE O que se percebe com a intensificação da urbanização é a presença de novas estratégias de organização dos laços familiares e afetivos na cidade. Assim, surge também a necessidade dos citadinos de estabeleceruma relação com o espaço, a cidade, o urbano e suas atividades de simbolização, rituais ou festivas. Para os sujeitos sociais a cidade pode ser familiar, mesmo mantendo uma relação descontinuada entre o conhecido e não conhecido, entre o familiar e o distante. Dessa maneira, a tensão entre mundos que pareciam distantes e incompatíveis passará a determinar novas possibilidades de conexão, relações e pertencimentos que determinam à nossa maneira de estar na cidade. Identidade e alteridade passam a fazer parte de um binômio característico da antropologia urbana, onde se percebe por quais condições e possibilidades é possível vivenciar a vida citadina com proximidade e criação de vínculos. A construção da identidade e a criação de espaços e guetos que definem um grupo social também é uma forma de dar sentido e apropriação ao espaço da cidade onde esses sujeitos vivem. As chamadas culturas urbanas revelam na verdade um conjunto robusto de diferenças entre grupos sociais que fazem parte desse meio urbano. Eles podem aparecer como estratégias de inclusão e participação ou como agrupamentos que se conectam e praticam exclusão por meio de “bloqueios culturais”. Nesse sentido, cultura seria definida como todo o modo de vida, seus hábitos, suas instituições, seus idiomas e formas de linguagem, bem como uso de símbolos e códigos escritos e morais. Na antropologia urbana, a partir da observação dessas mudanças e formação das metrópoles urbanas, era possível descrever e conhecer uma riqueza de práticas, grupos e comunidades culturais ali presentes. 18 A essa altura cabe considerar que aspectos foram sendo transformados entre o contexto de surgimento das cidades industriais e as cidades urbanas da maneira como habitamos hoje em dia. No início, as pesquisas colocavam uma ênfase a respeito da questão macrossociológica procurando entender as instituições, a estrutura e os componentes que fazer o urbano e a cidade, deixando de lado o interesse pelos sujeitos em sua dimensão microssociológica. A maioria das descrições davam ênfase ao caráter estrutural que modificava e introduzia outros modos de vida no mundo urbano, mas a antropologia urbana no Brasil passou a dar visibilidade a um conjunto de vozes de moradores da cidade que são diferentes. Assim, o enfoque será para uma análise em microescala da questão urbana. Essa mudança de perspectiva fará com que a antropologia urbana revise questões epistemológicas a partir da diferença entre uma antropologia da cidade, aquela que se afina com à sociologia urbana e que pensa a cidade a partir de sua totalidade, e a antropologia na cidade que tentará mostrar as dinâmicas da vida urbana e seu cotidiano a partir das relações ali contidas, olhando para os atores sociais mais do que para a estrutura da cidade. É assim que há uma mudança de escalas e uma consolidação de uma agenda de pesquisas em antropologia urbana no Brasil que dará revelo às múltiplas manifestações culturais, a diversidades de grupos e comunidades sociais no meio urbano, práticas de resistências e aos conflitos urbanos. 19 Neste tópico, você aprendeu: • O contexto de surgimento dos estudos urbanos com o advento da Revolução Industrial e do Sistema Capitalista foi modificando o campo de estudos da antropologia clássica para as novas formas de vida no meio urbano. • Os principais conceitos da antropologia como sociedades simples e complexas, etnocentrismo, relativismo cultural, alteridade, assim como a importância do método etnográfico e o uso da etnografia a partir das contribuições de Bronislaw Malinowski e a técnica da observação participante. • A definição de categorias centrais do campo da antropologia urbana como cidade e urbano. Além disso, estudamos as mudanças ocorridas na formação das cidades e do modo de vida urbano interferindo sobre estratégias de organização dos laços familiares e afetivos na cidade e, como apontado por George Simmel, os impactos da metrópole sobre a vida mental. • Algumas das principais influências teóricas do campo de formação da Antropologia Urbana americana como Robert E. Park e Louis Wirth, assim como as contribuições de George Simmel e no Brasil a importância dos estudos de Gilberto Velho e Guilherme Magnani. • As contribuições da Escola de Chicago e da Escola de Manchester na construção e consolidação de pesquisa sobre o fenômeno urbano no Brasil. Estudamos também a importância dos estudos de interacionismo simbólico, pragmatismo e as análises situacionais e de redes sociais, respectivamente. RESUMO DO TÓPICO 1 20 1 Com base em nossos estudos, há uma contribuição específica da antropologia para o entendimento da cidade e o meio urbano. Sobre ela, assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) A antropologia observa e interage face a face com a população e o local de sua observação. Essa prática científica oferece uma percepção mais apurada do contexto pesquisado, pois se baseia em uma relação direta com os interlocutores da pesquisa. b) ( ) A antropologia propõe uma investigação etnográfica baseada em análise de dados quantitativos. c) ( ) A antropologia inaugura o método de pesquisa chamado grupo focal e suas primeiras pesquisas foram realizadas com sociedades primitivas. d) ( ) A antropologia trabalha com pesquisa operacional, conta com o apoio e a decisão de um único entrevistado para definir seu campo de pesquisa. 2 Em 1903, o sociólogo alemão George Simmel publicou um interessante ensaio intitulado “A metrópole e a vida mental”, e trouxe para o debate científico no campo das ciências sociais as preocupações em torno das mudanças do modo de vida entre mundos rural e urbano. Com base nas definições dos enfoques dessa abordagem de Simmel, analise as sentenças a seguir: I- Uma das principais contribuições está na maneira de observar as emoções oriundas da cidade urbana definida pela intensa relação de indivíduos que passam a naturalizar um ritmo de vida acelerado, adotam um código temporal medido em relógios para marcar o tempo do trabalho e afrouxa as relações sociais de amizade, família e vizinhança. II- A vida citadina é uma grande possibilidade de estreitamento dos laços sociais, segundo Simmel, os indivíduos tendem a exercer mais livremente os afetos e passam a maior parte de seu tempo flanando em parques e caminhadas para estar por estar com quem pessoas que querem se relacionar. III- A experiência coletiva de deslocamento e o inchaço das cidades modernas, favorecem o excesso de individualismo e isso passa a ser dominante na formação psíquica e social do indivíduo, quando os “egoísmos econômicos” emergem e o sentimento de indiferença se manifesta em atitude blasé. Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As sentenças I e II estão corretas. b) ( ) Somente a sentença II está correta. c) ( ) As sentenças I e III estão corretas. d) ( ) Somente a sentença III está correta. AUTOATIVIDADE 21 3 “O urbanismo como modo de vida” do sociólogo estadunidense Louis Wirth (1979) é considerado um importante estudo para a abordagem do urbano na antropologia brasileira. O autor é considerado um dos mais notáveis estudiosos do fenômeno urbano nos Estados Unidos e foi muito influenciado pela sociologia de Simmel. A partir das contribuições de Wirth, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas: Fonte: WIRTH. L. O urbanismo como modo de vida. In: VELHO, O. (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979. p. 89-112. ( ) A entidade tem como objetivo a inserção da Engenharia de Produção na comunidade científica e produtiva no sentido de promover o desenvolvimento social. ( ) A ABEPRO Jovem é responsável pela congregação detodos os profissionais inativos de Engenharia de Produção e busca articular com empresas e instituições de ensino. ( ) A ABEPRO tem como missão assegurar à sociedade a busca permanente de uma prática correta e responsável dos profissionais de Engenharia de Produção. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) V – F – F. b) ( ) V – F – V. c) ( ) F – V – F. d) ( ) F – F – V. 4 A antropologia é uma ciência social que pode ser definida pelo estudo da diversidade das formas de vida. Uma das grandes áreas de concentração é a Antropologia Urbana que surge de um contexto social de extrema mudança. A partir disso, disserte sobre o fenômeno que deu origem ao subcampo da antropologia urbana. 5 Existem muitas estratégias de pesquisa possíveis de serem adotadas nas atividades de investigação científica da antropologia. A etnografia é uma delas. Nesta proposta, Bronislaw Malinowski é considerado um dos principais autores da antropologia e é também lembrado pelo seu método de pesquisa. Neste contexto, disserte sobre os princípios que fundamentam as relações de pesquisa em antropologia, citando os principais conceitos antropológicos. 22 23 ENTRE ESCALAS E ESCOLAS DE ETNOGRAFIA URBANA UNIDADE 1 TÓPICO 2 — 1 INTRODUÇÃO O termo “antropologia urbana” designa uma subárea da antropologia que, no Brasil, tem seus primeiros estudos na década de 1940 com os chamados “estudos de comunidade”. Tais estudos foram fortemente influenciados pela tradição de estudos da renomada “Escola de Chicago”, nos Estados Unidos, cuja principal característica era o interesse por uma investigação antropológica sobre as cidades e as mudanças a partir da urbanização. Naquele contexto fatores relacionados às transformações sociais, econômicas e culturais que marcaram o final da Segunda Guerra Mundial, sobretudo, após os anos 1960, contribuíram para um inovador ponto de reflexão acerca das condições de vida no contexto da modernidade. Conforme vimos até aqui a ideia de uma antropologia urbana veio de uma preocupação com aspectos do dia a dia nas cidades industriais, principalmente relacionadas com fenômeno urbano em amplo desenvolvimento que acompanha eventos históricos importantes como o enorme contingente populacional e a intensa migração de europeus na passagem do século XIX para o século XX. A partir desse crescimento uma série de conflitos e mudanças ocorrem na cidade e tais manifestações passam a ser chamadas de “patologia social”, exemplo delas são a delinquência, os conflitos entre grupos étnicos, assim como problemas de planejamento urbano como a circulação, mobilidade e as precárias habitações (VELHO, 1979, p. 7-8). Daí o renovado interesse por pesquisas empíricas que pudessem nutrir informações e diagnósticos acerca do que se consolidou como “fenômeno urbano”. Nesse contexto, a diversidade cultural, formas de vida, religiões, consumo, arte, migração, festas, assim como a “favela” passam a ser objetos de interesse pelos quais a antropologia pode se realizar. Nota-se, é claro, que tais mudanças acompanham uma influência por parte do desenvolvimento da Antropologia Urbana que se faz a partir da Escola de Chicago nos Estados Unidos e da Escola de Manchester na Inglaterra, ambas foram recepcionadas no Brasil por duas importantes correntes teóricas capitaneadas pelos antropólogos Gilberto Velho (1987; 2003) e Guilherme Magnani (1996; 2003). É sobre essas escolas e as suas contribuições para antropologia urbana brasileira que falaremos nos próximos subtópicos. 24 Que tal conhecer um pouco mais dois importantes antropólogos brasileiros no campo da antropologia urbana? Olha, acadêmico, aqui você encontra uma entrevista com o antropólogo Gilberto Velho realizada em 13 de agosto de 2009 para o projeto Memória das ciências sociais no Brasil. Confira o seguinte endereço: https:// bit.ly/3otqICO. E não para por aí! Acadêmico, conheça um pouco mais do perfil e da formação do antropólogo Guilherme Magnani nessa entrevista concedida em 9 de outubro de 2017, ao projeto Memória das Ciências Sociais no Brasil. Acesse: https://bit.ly/3cJdMpR. DICA 2 ESCOLA DE CHICAGO A tradicional Escola de Chicago dominou os estudos de sociologia urbana logo das primeiras décadas do século XX, mais precisamente nos anos de 1920. Surgiu a partir da iniciativa de um conjunto de professores e pesquisadores que estavam sediados na Universidade de Chicago, onde surgiu também o primeiro Departamento de Sociologia estabelecido, assim como o primeiro jornal sociológico, o American Journal of Sociology, que passou a ser publicado a partir de 1895. A grande doação do empresário norte- americano John Rockerfeller, investidor da indústria do petróleo, impulsionou o projeto de formação e consolidação de um proeminente conjunto de pesquisadores reunidos em torno das pesquisas sobre Chicago. Figura 2 – Escola de Chicago Fonte: https://bit.ly/3zaPBbu. Acesso em: 20 jul. 2022. 25 A fundação dessa escola está intimamente ligada ao processo de desenvol- vimento das grandes metrópoles relacionadas com o desenvolvimento industrial. Até 1830, Chicago tinha cerca de 350 habitantes reunidos em torno de uma pequena comu- nidade, meio século depois a cidade de Chicago expandiu-se muito rapidamente che- gando a ter três milhões de habitantes – e, como consequência desse intenso processo de urbanização e modernização, vieram também problemas sociais como o aumento da pobreza e do desemprego, bem como acentuada criminalidade e delinquência juvenil, presença de imigração, formação de guetos sociais, verticalização e gentrificação urba- nas, segregação e violências urbanas. Todos esses problemas foram considerados pelos estudiosos da Escola de Chicago “patologias sociais” e se tornariam objeto de interesse e investigação por parte de seus pesquisadores. Importantes autores que estiverem reunidos em torno da Escola de Chicago construíram um programa e agenda de estudos do fenômeno urbano. A primeira geração de sociólogos que integravam a Escola de Chicago era formada pelo próprio Robert Ezra Park (1864-1944), além de nomes como Ernest Watson Burgess (1886-1966), Roderick McKenzie (1885-1940) e William Thomas (1863-1947) e, posteriormente, Louis Wirth (1897-1952). Muitos conceitos, teorias, estudos e métodos de pesquisa utilizados para compreender e explicar as transformações do urbano hoje são influenciados pela produção dessa escola. William Isaac Thomas (1863-1947) realizou um trabalho investigação qualitativa que privilegiava “a visão dos participantes na definição das situações sociais” a partir dos “polacos”, em 1908 realizou sua pesquisa sobre migrantes da Europa Oriental nos Estados Unidos. Thomas destacou-se por introduzir uma pesquisa baseada no uso de documentos pessoais como diários, cartas, autobiografias, dossiês psiquiátricos, bem como aqueles produzidos por outros profissionais como assistentes sociais e cientistas sociais. Um dos seus principais conceitos foi elaborado junto com Florian Znaniecki entre 1918 e 1920, quando afirmaram a partir de sua investigação que os processos de formação do pensamento dos indivíduos são determinados pela interação entre o seu comportamento e a sua situação social. A “desorganização social” sugeria, assim, que a vizinhança, isto é, as relações ali contidas, poderiam atuar na probabilidade de um indivíduo cometer um crime. Robert Ezra Park (1864-1944), entrou para Escola de Chicago em 1911, trazendo sua experiência como jornalista de investigação e a forte influência das publicações do sociólogo alemão Georg Simmel, formulou um programa de investigações que combinava uma análise dos grupos de minorias sociais e a sua relação com o fenômeno urbano. Sua principal característica era arealização de estudos por meio de pesquisas qualitativas combinando ainda conceitos ecológicos para o estudo das cidades e do urbano, assim a sociedade era entendida como um organismo social. 26 Para Park (1979), a cidade era um grande laboratório social a ser estudado, a partir dele poderíamos conhecer o homem urbano e o seu “habitat natural”. O estudo qualitativo da cidade captaria assim as relações sociais entre os cidadãos ali reunidos bem como o meio social onde vivem e sua constante transformação. Foi um dos primeiros a formar seus alunos para aplicação de pesquisas com métodos empregados pela antropologia, pois em seu entendimento esse método possibilitava a investigação dos costumes, crenças, valores, práticas sociais e culturais da vida social no meio urbano. Ernest Watson Burgess (1886-1966) foi um dos pesquisadores recrutados por Park para a formação de uma equipe de pesquisadores empíricos em Chicago. Juntos publicaram o importante livro Introdução à Ciência da Sociologia, em 1921, abordando temas como natureza humana, história da sociologia, interação social, conflitos, assimilação, dentre outros. Sua contribuição vai ser decisiva para contestar o argumento eugênico que definia os problemas sociais da vida urbana como traços de uma herança genética. Assim, Burgess vai afirmar que é a “desorganização social” que vai produzir patologias sociais como causas de doenças, crimes e mazelas sociais do meio urbano. Sua pesquisa sobre criminalidade criou uma forma de medição de sucesso e fracasso com base na observação das práticas sociais de presidiários em liberdade condicional. Desse modo, Burgess vai demonstrar que um presidiário em liberdade provisória sem habilidades profissionais teria uma menor pontuação para contribuir com o sucesso de ressocialização, diferente de um indivíduo dotado de habilidades, estudo e condições de vida que o afastem da possibilidade de reincidir na criminalidade. Roderick McKenzie (1885-1940), Park e Burgess elaboraram o conceito de ecologia humana formulado a partir do estudo do comportamento humano e a posição dos indivíduos no meio urbano. Assim, nessa abordagem o habitat do homem urbano, considerando tanto o espaço físico onde ele mora quanto as relações que ele constrói e mantém, é um dos elementos que que determinará ou influenciar o seu modo de viver e o seu estilo de vida. Tal perspectiva foi muito utilizada para estudos da criminalidade e bairros considerados “perigosos”, apontando para o entendimento de que os comportamentos considerados desviantes são produtos do meio social no qual um indivíduo ou grupo social está inserido. Considerado um dos mais destacados sociólogos da Escola de Chicago, Louis Wirth (1897-1952) procurou desenvolver uma teoria sobre o urbanismo como modo de vida, entendendo que o urbano era uma forma ecológica particular que deveria ser estudada não só em sua dimensão econômica e geográfica, mas fundamentalmente como um espaço social por onde irradiam ideias e práticas sociais. A cidade era pensada como um espaço por onde se exerce influência nos indivíduos que nela habitam, isto porque ela agrega diferentes elementos da vida social do sujeito moderno como a moradia, o local de trabalho, a vida econômica, a vida política e cultural agregando inclusive indivíduos em sua diversidade de atividades, mas também de acordo com o seu pertencimento de gênero, sexualidade, raça e etnia. Para Wirth, quanto maior a cidade maior será a “diferenciação social” expressa no afrouxamento 27 dos vínculos sociais, em uma maior competitividade social, acentuado controle dos indivíduos e mais propensões às distorções da personalidade (anonimato, hiper individualismo, superficialidade, baixa afetividade, menor participação social, ruptura de laços comunitários). A relação de proximidade entre pesquisadores do campo da sociologia e da antropologia se faz por diferentes razões, uma delas está associada ao grande trabalho de campo e estudos empíricos que os “etnógrafos de Chicago”, como também ficaram conhecidos durante muito tempo, desenvolveram a partir desta consolidada escola de estudos. Sua tradição é fortemente influenciada pelo pragmatismo, articulando a observação direta da realidade à análise dos processos sociais urbanos. Tais circunstâncias permitiram aos sociólogos de Chicago inovar em teorias, formulação de conceitos além de desenvolver e renovar métodos e metodologias de análise a partir do urbano. O principal tema produzido em Chicago era a questão urbana, assim como o surgimento das cidades, as mudanças das paisagens das cidades e as transformações do modo de vida no mundo urbano. Essa escola estava comprometida com o trabalho empírico, a pesquisa de campo e a coleta de dados em primeira mão. Cientes do impacto das transformações pelas quais vivenciavam no cotidiano da própria cidade que habitavam, esses pesquisadores investiram em um projeto de pesquisa empírica que deslocava os pés para fora dos gabinetes de pesquisa para que seus pesquisadores fossem eles próprios em busca das singularidades, mudanças e problemas sociais que o fenômeno urbano evidenciava. Nesse sentido, era considerável a experimentação realizada em termos de métodos de pesquisa quando serviram-se fartamente da observação participante e do método de estudo de caso para cobrir um grupo heterogêneo de pesquisas em torno da cidade de Chicago. Era aqui que sociólogos e antropólogos se encontravam influenciados mutuamente. Entretanto, é importante destacar que a Escola de Chicago foi pioneira na experimentação e combinação de métodos, se por um lado não tinha pudor em aplicar métodos da antropologia para pensar o urbano, por outro não deixou de surpreender ao empreender as pesquisas estatísticas combinadas com pesquisas sociais baseadas em estudo de comunidade, quando passou a realizar mapeamentos quantitativos de bairros em desenvolvimento, grupos sociais de imigrantes e registros de atividades até então consideradas desviantes naquele contexto. Assim como podemos hoje identificar uma forte tradição de estudos etnográficos em Chicago, podemos reconhecer seu pioneirismo no trabalho de combinação entre pesquisas quantitativas e qualitativas. Outro importante autor, Everett C. Hughes, destaca-se como um dos principais membros da Escola de Chicago e pioneiro nos estudos de ocupações e profissões na década de 1940. Hughes escreveu inúmeros artigos, hoje considerados clássicos, investigando as consequências subjetivas do trabalho para o indivíduo e demonstrando as estratégias utilizadas para buscar status, prestígio e ganhos nos locais de trabalho (HUGHES, 1958). Hughes foi um dos primeiros a tratar a “carreira” como uma categoria conceitual, informado pela perspectiva interacionista. No Brasil, Gilberto Velho será um dos antropólogos influenciados pelo trabalho de Hughes. 28 Figura 3 – Gilberto Velho Fonte: https://bit.ly/3cGc9ZY. Acesso em: 20 jul. 2022. Para Hughes (1937, p. 404), a carreira deveria ser compreendida como uma “sequência de papéis, status e cargos realizados pelo indivíduo”. Tal concepção incorpora duas perspectivas de análise de uma sociologia das profissões: objetiva e subjetiva. A primeira é aquela que corresponde ao estudo do status e dos cargos já estabelecidos em uma determinada sociedade e a outra coloca em evidenciar a própria percepção dos indivíduos sobre a sua própria vida, isto é, “uma perspectiva dinâmica pela qual a pessoa concebe sua vida como um conjunto e interpreta o significado de suas diversas características, das ações e das coisas que lhe ocorrem” (HUGHES, 1937, p. 409-410). Resumindo uma das principais características da Escola de Chicago era o interessepela relação indivíduo e sociedade. Embora circulassem diferentes influências teóricas, o interacionismo e o pragmatismo são sempre lembrados como correntes de pensamento que atravessa gerações de Chicago e mantem sua transdisciplinaridade. O sociólogo norte-americano Howard Becker nos alerta para as concepções polissêmicas do conceito de interacionismo simbólico, destacando que essa perspectiva se colocava em oposição a noções como as de organização social e estrutura social, categorias muito comuns no pensamento dos pesquisadores oriundos de Harvard ou Columbia, principalmente aqueles que haviam sido alunos de Robert Merton e Talcott Parsons. Assim, o interacionismo simbólico de Chicago pode ser compreendido nos seguintes termos: A unidade básica de estudo era a interação social, pessoas que se reúnem para fazer coisas em comum – exemplificando com um tema antropológico, para constituir uma família, para criar um sistema de parentesco. Disso decorre que um sistema de parentesco é formado pelas ações de pessoas que fazem as coisas que se supõe que parentes devam fazer, e que, enquanto o fizerem, teremos um sistema de parentesco. Quando não o fizerem mais, o sistema de parentesco se torna outra coisa. Portanto, o que nos interessava eram os modos de interação, especialmente as interações repetitivas das pessoas, modos estes que permanecem os mesmos dia após dia, semana após semana. Às vezes, esses modos de agir se alteram substancialmente, devido a uma revolução ou desastre natural, mas, outras vezes, a mudança se dá muito lentamente, à medida que as circunstâncias se modificam. (BECKER, 1996, p. 186) 29 O sociólogo norte-americano Herbert Blumer (1900-1987) chamou de interacionismo simbólico uma perspectiva teórica que considera o caráter processual da ação dos indivíduos. Blumer estaria interessado na ação interpessoal, partindo da premissa de que o indivíduo tem a capacidade única de criar e fazer uso de símbolos, por exemplo, linguagem e comunicação. Nessa perspectiva, uma teoria da ação pressupõe que o indivíduo pode aprender e assumir papéis moldando o “self” em uma atividade reflexiva. Assim, ele pode apreender, moldar, formular e transformar ações sobre o seu próprio comportamento. Exemplar disso é o uso das redes sociais hoje em dia. Pensa bem, acadêmico, ao entrar na internet e usar as redes sociais encontramos uma infinidades de informações disponíveis, com o passar do tempo vamos aprendendo a utilizar a linguagem virtual, adotando formas de nos comunicar melhor e de maneira mais clara, também vamos aprendendo que nem tudo pode ser dito ou compartilhado que há leis e normas sociais que vão moldando a nossa forma de nos comunicar nessa nova era. Para Blumer (1969, p. 2), os indivíduos agem em relação às coisas com base nos significados que essas coisas têm para eles, entendendo que tais significados derivam da interação social vivida entre os próprios indivíduos e esses significados são controlados por meio dos processos de interpretação que um indivíduo usa para lidar com as situações e as coisas com as quais ele interage. Em essência, então, embora reconhecendo que as definições sociais orientam a ação, Blumer enfatizava que o processo interpretativo envolve mais do que uma aplicação reflexa dessas definições. Ao nos encontrarmos em uma determinada situação, devemos decidir quais dentre as muitas coisas presentes nessa situação são relevantes. Temos que determinar para que objetos ou ações precisamos dar sentido, e quais podemos negligenciar. Além disso, é necessário descobrir quais são, dentre os muitos significados que podem ser atribuídos a uma coisa, aqueles que se mostram mais apropriados nesse contexto (BLUMER, 1969, p. 27). Outra influente corrente de pensamento da Escola de Chicago é o pragmatismo que surge no final do século XIX com Charles Peirce, William James e John Dewey. Peirce entendia a experiência (experience) como ‘experimento (experiment)’, ou seja, como prática de laboratório, onde os procedimentos aos quais se quer dar atenção são preparados, controlados e postos sob alta condição de verificabilidade. James considerou a noção de experiência de um ponto de vista, digamos, mais psicológico. Ele não desprezava a maneira pela qual Peirce, como ‘homem de laboratório’, via a experiência, mas trouxe o termo para perto da noção de ‘vivência’. John Dewey, por sua vez, observando seus dois antecessores, procurou dissertar sobre o termo experiência de modo a torná-lo mais amplo e útil. Dewey reconduziu o termo a seu campo primordial, o da prática social (GHIRALDELLI JUNIOR, 2007, p. 16). 30 O pragmatismo se consolidou como uma importante filosofia. Talvez porque sua perspectiva sugere uma diversidade de verdades que podem surgir da experiência de interação social em que linguagem, regras, atitudes são avaliadas a partir das consequências e do valor de seu uso. Assim, para William James (1907), por exemplo, o pragmatismo é a tentativa de interpretar cada noção traçando suas respectivas consequências práticas. Resumidamente, este tópico trouxe uma leitura em ampla escala daquela que pode ser considerada a mais proeminente escola sociológica de estudos urbanos no mundo. Há uma rica produção empírica que merecidamente poderia ser descrita não fosse os objetivos que devemos cumprir com a nossa disciplina, isto é, conhecer a Antropologia Urbana sob a influência dessa escola de pensamento. Nesse sentido, antes de passarmos para o próximo tópico, lembremos pontos centrais desse estudo, por exemplo, os principais temas encontrados na produção empírica da Escola de Chicago foram os estudos de trajetórias sociais e urbano- espaciais de imigrantes, as mobilidades urbanas no interior das grandes metrópoles, os movimentos e agrupamentos de multidões, as relações sociais de vizinhança, a vida associativa e modos de controle social nos bairros, a segregação espacial das minorias, a criminalidade e delinquência juvenis, as gangues e guetos, as pessoas em situação de rua e a prostituição. Ao realizar investigações desses temas, pretendia-se conhecer os efeitos do fenômeno urbano e suas diferentes características mediante um registro feito em escalas: local/global, rural/urbano, micro/macro, campo/cidade. Desse modo percebemos que os efeitos do urbanismo também alcançam outras dimensões da vida social, exemplar disso, é a divisão social do trabalho, a presença de instituições da modernidade e a nova ordem moral em vigor nesses grandes centros. Com isso a organização social da cidade também vai definir “regiões morais” ou “mundos sociais”, em que há intensa presença de pequenos mundos sociais que convivem, mas podem simplesmente não interagir. Assim, temos duas escalas em evidência, a cidade também abriga uma ordem espacial ou noutros termos, a ecologia humana e ao observar essas nuances entre ordem moral e espacial conhecemos as diferentes lutas políticas e sociais que vão emergir dessa competição acirrada pela sobrevivência em um novo contexto urbano. Esse desenho ou mapa conceitual do espaço da cidade vai introduzir a divisão do espaço com zonas bem caracterizadas e segmentadas, por onde podemos facilmente identificar o local exato do centro da cidade e o que nele vamos encontrar, bem como qual a zona de bairros residenciais, dentro dessa escala de bairros os quais seriam aqueles mais verticalizados e os mais horizontais, onde estariam os moradores da classe trabalhadora, onde podemos encontrar os artistas de uma cidade, bancos, escolas, prefeituras, hospitais cada equipamento desse também agrega uma funçãoe está em uma zona da cidade, assim como os chamados bairros universitários, comunidades periféricas, favelas, morros, estabelecimentos como bares, restaurantes, hotéis, pousadas, supermercados e feiras livres. 31 Tudo isso é parte dessa “ordem espacial” e que ao pesquisador interessado em conhecer a cidade pode, por meio do interacionismo simbólico, encontrar suas zonas fronteiriças, suas demarcações imaginadas e os sentidos próprios que os indivíduos dão para esses contextos, é na observação das pessoas, das relações sociais, que podemos nos aproximar do sentido forte de uma antropologia urbana a partir das lentes da Escola de Chicago. Talvez um dos principais legados dessa escola seja a utilização da etnografia como método de pesquisa empírica para pesquisar a cidade e o urbano, assim como o fator de aplicar esse método por meio de uma investigação coletiva. Desse modo, os “etnógrafos de Chicago” contribuíram de maneira significativa para entender a cidade como um complexo cultural, colocando atenção sobre o tempo, o espaço e as formas de interação que nela serão encontradas e dando um passo muito importante em direção aos estudos dos conflitos sociais a partir da análise dos desvios, conflitos étnicos, disputas por espaço, luta de classes, comportamento político, vida associativa, ações coletivas, liberdade sexual, expressões culturais e a heterogeneidade da vida social nas grandes cidades. Agora que já conhecemos um pouco da Escola de Chicago, seus principais autores e pesquisadores, bem como seus conceitos, teorias e categoriais centrais passaremos ao estudo de outras importante corrente de pensamento e escola que vai contribuir para a formação do campo da antropologia urbana no Brasil: a Escola de Manchester. 3 ESCOLA DE MANCHESTER Caro acadêmico, a Escola de Manchester foi considerada outra importante influência teórica e metodológica para a formação do campo da Antropologia Urbana, a Escola de Manchester é uma das principais escolas de antropologia do mundo. Seu surgimento está associado com as pesquisas desenvolvidas no instituto Rhodes-Livingstone (atualmente Instituto Nacional de Pesquisa de Zambia). Fundado em 1938 seus pesquisadores realizaram um conjunto robusto de pesquisas etnográficas que cobrem o período final do colonialismo britânico e início da independência em 24 de outubro de 1964. O instituto reunia estudos a respeito da África, durante muito tempo foi gerido pelo governo e representantes de segmentos interessados em manter o regime colonialista. O estudo dos fenômenos sociais e culturais na África foram utilizados como instrumento de estratégias políticas para alimentar o aparelho administrativo colonial com informações de regiões de interesse econômico e político definidas como cinturão do cobre, região central da Zâmbia e da República Democrática do Congo, que inclui a Rodésia do Norte, hoje Zâmbia, Zimbabué e Malawi e as cidades de Ndola, Kitwe, Chigala, Luanshya e Mufulira. 32 Na época, o comércio do cobre era intenso e com ele vieram consequentes transformações sociais decorrentes da expansão econômica diante da maior jazida de cobre do mundo. A mineração do cobre em larga escala nos anos de 1920 acentuou o processo de urbanização industrial da região e causou uma revolução. Godfrey Wilson foi o primeiro diretor do instituto e realizou pesquisas dos processos de urbanismo e urbanização que estavam se intensificando naquele momento. Após a Segunda Guerra Mundial, Wilson se afastou do cargo por vontade própria devido sua preocupação com as populações colonizadas. Ele tinha uma visão de que a sociedade colonial africana tinha um espaço social muito singular onde havia, simultaneamente, a presença de chefes políticos, aldeões, administradores distritais e mineiros do cobre. Tal singularidade revelava também importantes questões a respeito dos processos de mudança urbana e interesses políticos contrários aos dos administradores coloniais. Naquele momento as mudanças sociais foram intensificadas e estavam relacionadas também com o surgimento de novas nações na era pós-colonial. De acordo com o antropólogo Peter Fry (2011, p. 2) “a independência das antigas colônias britânicas era assunto de conversa, mas não de estudo propriamente dito”. Além disso, esse período marca uma tensão política com a própria antropologia e os membros da Escola de Manchester estavam fortemente unidos contra o racismo e o sistema colonial, a participação deles no Rhodes-Livingstone assim como o fato de muitos serem de origem sul-africana refletem uma posição política de oposição à administração colonial. A história da Escola de Manchester é confundida com a história de Max Gluckman (1911-1975). No que diz respeito ao método de pesquisa e às questões administrativas e políticas que ardiam na época. Gluckman foi um proeminente antropólogo que entre os anos 1941 e 1947 esteve à frente do Instituto Rhodes-Livingstone, após esse período é admitido como professor da Universidade de Oxford. Em 1934, Gluckman vai realizar seu doutorado na Universidade de Oxford, como bolsista da Rhodes, é nesse momento que ele se aproxima de Radcliffe-Brown e Evans-Pritchard, ele estava interessado no estudo da relação entre as dinâmicas de equilíbrio e mudanças sociais na África Meridional. Entre os anos de 1936 e 1938 Gluckman desenvolve seu trabalho de pesquisa de campo na Zululândia, a partir do qual publica um texto considerado fundamental para os estudos antropológicos “Análise de uma situação social na Zululândia moderna” (FELDMAN-BIANCO, 1987). Antes de falarmos da importância e as contribuições dessa obra para os estudos de Antropologia Urbana, é necessário entender que sua ida para Oxford em 1949 vai ser determinante para o sucesso da Escola de Manchester, pois será nesse momento o surgimento do Departamento de Antropologia Social da Universidade de Manchester, onde Gluckman reuniu um seleto grupo de alunos que viriam a contribuir para sua abordagem política dos processos sociais. 33 Gluckman foi aluno do antropólogo Radcliffe-Brown de quem herdou o método estrutural-funcionalista que serviu de base para suas próprias pesquisas, no entanto ele foi além na busca por uma compreensão da mudança social concebida como criação contínua de uma estrutura social dinâmica (ERICKSON; MURPHY, 2015). Gluckman estudou as principais transformações que ocorreram na região privilegiando uma abordagem comparativa das sociedades africanas antes e depois da urbanização e dos processos de modernização, dando especial atenção aos processos políticos relacionados à gestão do território. Não se pode facilmente separar o desenvolvimento das ideias de Gluckman e a obra que ele inspirou no Instituto Rhodes-Livingstone. Elas fundiram-se nas produções da “Escola de Manchester”, a qual, na década de 1950, tornou-se uma reconhecível mutação do estruturalismo britânico (KUPER, 1978, p. 182-183). A preocupação de Gluckman com a natureza da estabilidade social e, do seu par de oposição, a mudança social é traço característico de sua obra e da distinta Escola de Manchester, especialmente por ser partir dessa perspectiva que seus alunos desenvolveriam um campo de estudos original em torno de pesquisas nas áreas urbanas e nos meios rurais tradicionais etnografados pelos antropólogos. Na antropologia o método estrutural-funcionalista, baseado nos métodos das ciências naturais, postula que é possível identificar as leis que regulamentam e organizam o funcionamento de uma sociedade. A partir desse método Radcliffe-Brown dentre outros antropólogos procuravam identificar as estruturas e os sistemas de relações sociais que tornam uma sociedade integrada e estável. NOTA A região do cinturão do cobre (Copperbelt)foi onde esse conjunto de pesquisadores se reuniram para entender os processos sociais migratórios entre o campo e a cidade. Observaram os impactos das migrações no contexto rural, a consequência social da urbanização na vida dos trabalhadores e mostraram como as “tribos” concentravam mão de obra na divisão social do trabalho, interferindo também nos costumes locais. Gluckman dividiu seus colaboradores para cobrir a África central a partir de quatro eixos de pesquisa: minas e cidades mineiras, áreas rurais isoladas, áreas rurais próximas aos centros onde concentravam mão de obra e economia monetarizada e áreas agrícolas europeias. A partir disso foram estudados os efeitos da migração laboral e da urbanização na organização familiar e de parentesco, assim como na vida econômica, nos valores políticos, nas crenças e práticas religiosas e mágicas presentes em cidades e aldeias. Além disso, estudos dos efeitos de monetarização na economia e formação de grupos 34 sociais a partir de novas relações entre o mundo urbano e o mundo rural mostravam a importância das minas, das lojas e das missões nos novos arranjos relacionais, agora não eram apenas os moradores locais se deslocando do campo para a cidade, mas uma intensa migração de europeus, indianos e outros grupos sociais em torno de um território de intensa transformação. Figura 4 – Max Gluckman e John Barnes Fonte: https://bit.ly/3Oyz7iP. Acesso em: 20 jul. 2022. Um dos principais artigos de Gluckman, “Análise de uma situação social na Zululândia” moderna, publicado originalmente em 1940, oferece uma rica descrição da análise de situações sociais e mudanças rápidas. O artigo realiza uma análise das redes sociais entre brancos (equipe administrativa, policiais) e negros (zulus), dentro de um contexto político de guerra, intensa transformações políticas e econômicas e forte divisão entre os dois grupos. Ao observar a inauguração de uma ponte ele percebe que participavam daquele evento tanto o grupo de brancos com funcionários da administração e policiais, quanto o grupo de negros com a presença de chefes locais zulus, trabalhadores que construíram a ponte e pessoas residentes, revelando uma situação social específica para a análise dos conflitos. O ponto de vista defendido por Gluckman era que, embora os membros dos diferentes grupos de cor estivessem simbólica e concretamente divididos e opostos em todos os aspectos, eles eram forçados, entretanto, a interatuar em esferas de interesse comum (KUPER, 1978, p. 173). A recomendação principal, do ponto de vista metodológico, para o antropólogo é que em campo reúna observações de situações sociais ou uma série de situações e a partir delas possa extrair perguntas para realizar sua análise de profundidade. O chamado método de casos estendidos (extended case method), deslocava a antropologia da análise de normas e valores para o foco na vida social “real”, no qual esse conjunto de regras era frequentemente utilizados de acordo com a racionalidade dos indivíduos na 35 ação, em situações concretas. Oxford estimulou em Gluckman o interesse pela análise dos conflitos a das relações de grupos em oposição, na qual o equilíbrio social era mantido pela incorporação da tensão por meio de “rituais da rebelião”, atos convencionais e socialmente legitimados para manter a estabilidade social, neles o ritual detém uma dimensão construtiva para ajudar a evitar o conflito real. Assim, em Zululândia o grupo dominante era o branco, os rituais de rebelião era uma forma de alinhar uma unidade entre os grupos, mesmo com a presença de conflitos. Os rituais tinham o poder de chamar a atenção para o conflito, reforçando a necessidade de autoridade legítima naquele lugar para conter os distúrbios da ordem social. A análise situacional propõe a utilização de casos como ilustrativos e demonstrativos da observação do antropólogo, servindo de elemento didático para falar da ordem social no contexto pesquisado. Nesse sentido, vários episódios de um mesmo evento podem construir uma narrativa ao esmiuçar e analisar as relações sociais presentes no contexto e assim fazer um movimento de observação entre escalas, isto é, do particular chegar ao geral. Assim, a noção de situação implica a compreensão de que a própria noção de identidade é situacional, um africano maquinista de trem em uma situação pode muito bem ser um importante líder político ou chefe de uma tribo em outra situação. A partir da interessante pesquisa do antropólogo Jonh Barnes e da publicação do artigo clássico “Redes sociais e processo político”, em 1987, o conceito de “redes sociais” para os estudos de comunidade ficou bastante popular na antropologia. Barnes demonstrou as relações sociais a partir da interação entre as sociedades africanas e a administração colonial por meio de pesquisa etnográfica no contexto da recente e intensa modernização no continente africano. O antropólogo percebe, e por meio do conceito de redes sociais explica, como os indivíduos podem e de fato participam de vários grupos sociais ao mesmo tempo como família, trabalho, educação, lazer, dentre outros segmentos. Com isso Barnes evidencia as características presentes em diferentes ligações que um mesmo indivíduo possui em relação a outros indivíduos na observação dos diferentes grupos que ele pertence. Assim, é possível extrair o potencial elucidativo da ação social, entender quais motivos e o contexto específico nos quais o indivíduo age de uma forma e não de outra (FELDMAN-BIANCO, 1987). Assim, a forma de apreensão da realidade social a rede aparece como uma categoria de análise e resumidamente significa um conjunto de relações interpessoais. Jaap van Velsen, em seu artigo de 1987, “A análise situacional e o método de estudo de caso detalhado”, aborda diretamente a “análise situacional” ou o “método de estudo de caso detalhado”. Uma das suposições na qual a análise situacional está baseada é a de que as normas da sociedade não constituem um todo coerente e consistente. São, ao contrário, frequentemente vagas e discrepantes. É exatamente este fato que permite sua manipulação por parte dos membros da sociedade no sentido de favorecer seus próprios objetivos sem necessariamente prejudicar sua estrutura aparentemente duradoura de relações sociais. Por isso a análise situacional privilegia o estudo das normas em conflito (FELDMAN- BIANCO, 1987, p. 369) 36 Nessa perspectiva teórica, os antropólogos priorizam a observação dos conflitos sociais entre indivíduos que fazem parte do mesmo grupo observado. A escala de observação é microssocial e não desconsidera variáveis macrossociais como gênero, classe ou raça, mas integra tais escalas na análise de uma situação que pode revelar aspectos de uma estrutura. Isto se refere à coleta efetuada pelo etnógrafo de um tipo especial de informações detalhadas. No entanto, isto também implica o modo específico em que esta informação é usada na análise, sobretudo a tentativa de incorporar o conflito como sendo ‘normal’ em lugar de parte ‘anormal’ do processo social (VELSEN in FELDMAN-BIANCO, 1987, p. 345). Entende-se que os indivíduos produzem diversas relações sociais em um determinado contexto, inclusive em um conflito, e que seu estudo aprofundado das normas e valores pode favorecer a análise do que se passa no interior de uma sociedade, entendendo quais estão contidas e definem as interações entre os indivíduos presentes ali. O conflito enquanto uma situação social com forte componente de análise permite perceber a diversidade de valores contraditórios que podem estar em um indivíduo, mas ao deslocar o eixo de observação do comportamentosocial para uma situação específica é possível conhecer inúmeras regras e a maneira como cada indivíduo faz uso delas. A análise é feita a partir da observação do comportamento de um mesmo indivíduo em diferentes situações, nas quais encontramos modos de agir e formas de pensar. A orientação para o uso da análise situacional é de que o antropólogo faça sua observação a partir de casos que fazem parte de um processo social, trata-se de uma análise baseada na observação dos processos sociais. O antropólogo polonês Bronislaw Malinowski será lembrado pela Escola de Manchester pelo método de observação participante, este privilegia a observação do contexto pesquisado a partir de uma vivência integrada do pesquisador com os indivíduos da sociedade ou grupo social no qual irá realizar a pesquisa, considerando a aceitação, o convite e a integração nessas relações como definidoras de uma potencial forma de relação social entre pesquisador e grupo em longa duração. Para compor suas pesquisas, os antropólogos de Manchester também utilizaram documentos históricos, registros escritos e dados estatísticos na produção de suas pesquisas antropológicas. Gluckman vai incorporar essa metodologia para sua pesquisa em Zululândia, tentando estabelecer uma relação de proximidade e familiaridade com o cotidiano e as práticas sociais comuns entre os zulus. Tal atitude levou Gluckman a vestir-se com trajes tradicionais zulus, buscando uma pretensa igualdade naquele lugar. Hoje isso não é recomendado e tem levantado inúmeras críticas, uma vez que ao utilizar roupas específicas de uma cultura isso não vai tornar o antropólogo um membro dela, rotinizar trajes, linguagens ou técnicas corporais do grupo pesquisado muitas vezes é interpretado como um falseamento da relação social e demonstra uma relação mais instrumental do que de reconhecimento e respeito. 37 Além de todos esses métodos e técnicas de pesquisas empregadas na análise situacional, a Escola de Manchester por estar interessada em conhecer o contexto pesquisado em sua totalidade também percebeu que há uma pluralidade de sentidos, normas e indivíduos ali. Por isso, a etnografia realizada na África Central era tão rica e estimulante ao pensamento antropológico, pois naquele contexto de intensas mudanças no espaço físico e social entre o rural e o urbano foi possível compreender aquela realidade social em construção. Uma transição entre modos de vida, práticas sociais e redefinição de normas e valores entre uma modernidade e um sistema capitalista industrial que rapidamente alterou contextos como o da África Central etnografada pelos legendários antropólogos de Manchester. A Escola de Manchester por essas razões se tornou uma referência para os estudos de Antropologia Urbana, em relação à Escola de Chicago, a dimensão política se mostrou muito mais presente fosse na análise ou na posição dos seus pesquisadores em face da contraposição aos interesses da administração colonial. Nesse sentido, destaca-se pelo interesse no estudo das cidades pós-coloniais africanas, que naquele momento estavam transitando para mudanças de bases políticas e econômicas, antes da intensa modernização os indivíduos da África Central eram membros de grupos tribais, organizados em suas próprias dinâmicas de parentesco e práticas sociais. Após a chegada da Revolução Industrial e mudança política para novas formas de governos e organização do espaço com os traços das grandes metrópoles urbanas esses indivíduos passaram a enfrentar mudanças no seu modo de vida, tornando-se mão de obra, operários das grandes construções urbanas e distanciando-se de vários elementos constitutivos de sua identidade tribal. Além de Gluckman, outros importantes pesquisadores que consolidaram a “Escola de Manchester” foram Freddie Bailey, John Barnes, Elizabeth Colson, Arnold Epstein, Philip Mayer, Clyde Mitchell, Victor Turner, Jaap Van Velsen, Peter Worsley, Ian Cunnison, Max Marwick, Thomas Watson e Bruce Kapferer e Abner Cohen. Alguns foram alunos e outros colaboradores de Gluckman e podem facilmente serem identificados a partir das características de suas pesquisa, observando-se sempre a presença do método e o tema comum a todos eles conforme destaca Adam Kuper “a fissão na aldeia foi o tema escolhido por Turner; a integração política vertical foi o de Mitchell, trabalhando em uma aldeia Yao; a migração de mão de obra foi o problema abordado por Watson; as acusações de bruxaria serviram à pesquisa de Marwick, e assim por diante” (KUPER, 1978, p. 179). A antropologia Urbana terá sempre na Escola de Manchester uma fonte inesgotável de pesquisas, métodos e teorias para renovar a investigação antropológica dos indivíduos, da cidade e do contexto urbano. Esse conjunto de pesquisadores tornou indispensável uma abordagem focada em uma escala microssocial da observação das situações e eventos que podem ajudar a entender a complexidade dos indivíduos. 38 A ciência antropológica, embora tenha recebido inúmeras críticas quanto ao seu uso para fins coloniais, com a experiência da Escola de Manchester discutiu-se extensivamente a posição política e as questões em torno da relação com as sociedades que estavam enfrentando processos de modernização marcados por exploração, precarização e descaracterização da vida social. Se, por um lado, o impacto da industrialização revela problemas sociais imediatos como aqueles que podem ser vistos na observação direta, por outro, a produção antropológica passou por transformações que vão moldar os modos de fazer antropologia. A Escola de Manchester faz parte de uma tradição da antropologia que calibrou bem essas questões, além disso deu ênfase ao seu método de estudo consolidando a investigação antropológica a partir da análise de situações sociais focada em problemas particulares estabelecendo relação com o contexto cultural, político, econômico e social mais amplo. Nesse sentido, as contribuições de antropólogos de Manchester nos estudos do desenvolvimento no contexto de expansão do capitalismo trouxeram uma perspectiva do estudo das condições sociais de vida no curso de sua transição, entre o rural e o urbano. Ao conhecermos um pouco das influências e as contribuições etnográficas propostas pela Escola de Manchester vamos mudar a nossa escala de conhecimento para enxergar os desdobramentos desses potenciais conflitos do mundo urbano por meio de outras formas de organização da vida social por meio dos ajuntamentos coletivos, das mobilizações sociais e da formação coletiva. Nosso percurso nos conduzirá para a análise de conflitos sociais mais próximos ao tempo contemporâneo, falo das demandas de cidadania, das lutas sociais por direitos à moradia e das diferentes formas de associação. 39 Neste tópico, você aprendeu: • O conceito de “antropologia urbana”, isto é, uma subárea da antropologia que, no Brasil, os seus primeiros estudos foram na década de 1940, com os chamados “estudos de comunidade”. Tais estudos foram fortemente influenciados pela tradição de estudos da renomada “Escola de Chicago”, nos Estados Unidos, cuja principal característica era o interesse por uma investigação antropológica sobre as cidades e as mudanças a partir da urbanização. • Os conceitos da Escola de Chicago e seus principais autores, além de suas teorias e métodos de pesquisa. Estudamos aquela que pode ser considerada a mais proeminente escola sociológica de estudos urbanos no mundo. Estudamos uma rica produção empírica, que influenciou sobremaneira a Antropologia Urbana não só em aspectos teóricos, como também o interacionismo e pragmatismo. Sobre os métodos e técnicas de pesquisa, estudamos o uso das metodologiasqualitativas e quantitativas no que se relaciona ao fenômeno urbano. • Conceitos da Escola de Manchester e seus principais autores, teorias e métodos de pesquisa. As contribuições de antropólogos de Manchester nos estudos do desenvolvimento no contexto de expansão do capitalismo trouxeram uma perspectiva do estudo das condições sociais de vida no curso de sua transição, entre o rural e o urbano. Ao conhecermos um pouco das influências e as contribuições etnográficas propostas pela Escola de Manchester vamos mudar a nossa escala de conhecimento para enxergar os desdobramentos desses potenciais conflitos do mundo urbano por meio de outras formas de organização da vida social por meio dos ajuntamentos coletivos, das mobilizações sociais e da formação coletiva. • Os diferentes contextos políticos nos quais se desenvolveram essas escolas de pensamento. Considerando os impactos dos processos de intensa urbanização e desenvolvimento capitalista para mudanças culturais, políticas, econômicas e sociais em sociedades que vivenciaram a experiência abusiva do sistema colonial. Naquele contexto fatores relacionados às transformações sociais, econômicas e culturais que marcaram o final da Segunda Guerra Mundial, sobretudo, após os anos 1960, contribuíram para um inovador ponto de reflexão acerca das condições de vida no contexto da modernidade. RESUMO DO TÓPICO 2 40 1 Diferentes fatores relacionados às transformações sociais, econômicas e culturais que marcaram o final da Segunda Guerra Mundial, sobretudo, após os anos 1960, contribuíram para um inovador ponto de reflexão acerca das condições de vida no contexto da modernidade. O interesse por uma investigação antropológica nas cidades e as mudanças a partir da urbanização deu origem à “antropologia urbana”, este termo designa uma subárea da antropologia que, no Brasil, tem seus primeiros estudos na década de 1940 com os chamados “estudos de comunidade” e são fortemente influenciados por duas escolas de pensamento clássicas. Sobre estas grandes escolas do conhecimento da Antropologia Urbana, assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) Autores da Escola de Chicago construíram um programa de estudos do fenômeno urbano a partir de pesquisas realizadas em Chicago e a Escola de Manchester surge vinculada ao Instituto Nacional de Pesquisa de Zambia que desenvolveu pesquisas na África Meridional. b) ( ) A Escola de Chicago se desenvolveu porque estava localizada em um importante território de petróleo que influenciou o desenvolvimento de pesquisas a respeito dessa indústria, enquanto a Escola de Manchester nasceu na Inglaterra e suas pesquisas deram origem aos estudos da escravidão. c) ( ) A Escola de Chicago e a Escola de Manchester fazem parte da Escola de Antropologia Urbana Universal que produziu pesquisas quantitativas ao redor do mundo. d) ( ) Robert Park e George Simmel são, respectivamente, considerados os pais fundadores e os principais autores da Escola de Chicago e da Escola de Manchester. 2 Considera-se fundamental a relação de proximidade entre pesquisadores do campo da sociologia e da antropologia nos estudos urbanos e isto se dá por diferentes razões, uma delas está associada ao grande trabalho de campo e estudos empíricos que os “etnógrafos de Chicago”, como também ficaram conhecidos durante muito tempo, desenvolveram a partir desta consolidada escola de estudos. Com base nas definições e teorias mobilizadas pela Escola de Chicago, analise as sentenças a seguir: I- Sua tradição é fortemente influenciada pelo pragmatismo, articulando a observação direta da realidade à análise dos processos sociais urbanos. II- Na antropologia urbana o método estrutural-funcionalista de Chicago, baseado nos métodos das ciências naturais, postula que é possível identificar as leis que regulamentam e organizam o funcionamento de uma sociedade. III- No interacionismo simbólico a unidade básica de estudo é a interação social, pessoas que se reúnem para fazer coisas em comum. Nessa perspectiva, a teoria da ação pressupõe que o indivíduo pode apreender, moldar, formular e transformar ações sobre o seu próprio comportamento. AUTOATIVIDADE 41 Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As sentenças I e II estão corretas. b) ( ) Somente a sentença II está correta. c) ( ) As sentenças I e III estão corretas. d) ( ) Somente a sentença III está correta. 3 Considerada importante influência teórica e metodológica para a formação do campo da Antropologia Urbana, a Escola de Manchester é uma das principais escolas de antropologia do mundo e se destacou por estar interessada em conhecer o contexto pesquisado em sua totalidade, desenvolvendo métodos e técnicas de pesquisa percebeu que há uma pluralidade de sentidos, normas e indivíduos em um mesmo contexto social. De acordo com as contribuições metodológicas de seus estudos etnográficos, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas: ( ) A análise situacional de Max Gluckman propõe a utilização de casos como ilustrativos e demonstrativos da observação do antropólogo, servindo de elemento didático para falar da ordem social no contexto pesquisado. Nesse sentido, vários episódios de um mesmo evento podem construir uma narrativa, depurando as relações sociais presentes no contexto pesquisado é possível fazer um movimento de observação entre escalas, isto é, do particular ao geral. ( ) O antropólogo Radcliffe-Brown foi a principal influência teórica da Escola de Manchester, seus estudos ensinam como os antropólogos devem consolidar sua visão de mundo a respeito das sociedades estudadas, seu método sugere que o pesquisador em campo tome seu próprio grupo como ponto de partida para avaliar e medir valores, hábitos e modelos de existências como se fossem superiores, melhores ou os mais corretos a serem seguidos. ( ) O antropólogo John Barnes, por meio do conceito de redes sociais, explica como os indivíduos podem e de fato participam de vários grupos sociais ao mesmo tempo (família, trabalho, educação, lazer). Com isso evidencia as características presentes em diferentes ligações que um mesmo indivíduo possui em relação a outros indivíduos na observação dos diferentes grupos que ele pertence. Assim, é possível entender quais motivos e o contexto específico nos quais o indivíduo age de uma forma e não de outra. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) V – F – F. b) ( ) V – F – V. c) ( ) F – V – F. d) ( ) F – F – V. 42 4 Cientes do impacto das transformações pelas quais vivenciavam no cotidiano da própria cidade que habitavam, os pesquisadores da Escola de Chicago investiram no projeto de pesquisa empírica que os deslocava para fora dos gabinetes estimulando que fossem eles próprios em busca das singularidades, mudanças e problemas sociais que o fenômeno urbano evidenciava. Nesse sentido, era considerável a experimentação realizada em termos de métodos de pesquisa quando serviram-se fartamente da observação participante e do método de estudo de caso para cobrir um grupo heterogêneo de pesquisas em torno da cidade de Chicago. Considerando a importância das pesquisas de Chicago, escolhas pelo menos dois de seus autores e disserte sobre suas pesquisas e as contribuições para o estudo da cidade e do urbano. 5 A história da Escola de Manchester é confundida com a história de Max Gluckman (1911-1975). No que diz respeito ao método de pesquisa e às questões administrativas e políticas que ardiam na época de sua fundação. Gluckman foi um proeminente antropólogo que entre os anos 1941 e 1947 esteve à frente do Instituto Rhodes- Livingstone, após esse período é admitido comoprofessor da Universidade de Oxford e foi o responsável por criar o Departamento de Antropologia Social na Universidade de Manchester. Disserte sobre as contribuições científicas de Gluckman a partir do que ele chamou de “análise situacional”. 43 TÓPICO 3 — MOVIMENTOS SOCIAIS, SUBCULTURAS E IDENTIDADES URBANAS UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Aprendemos nos tópicos anteriores o contexto social no qual a Revolução Industrial e o intenso processo de modernização produziram impactos incontornáveis em muitas regiões do mundo. Fizemos uma imersão nas contribuições da Escola de Chicago e da Escola de Manchester, importantes escolas de pensamento, e descobrimos como ambas vão produzir estudos que visem demonstrar como o espaço social vai ser modificado mediante os processos de construção e consolidação do mundo urbano. Dado o caráter “desenvolvimentista” do capitalismo moderno e os impactos sociais a partir do final da década de 1960 no Brasil, experimentamos uma mudança no campo de estudos e análise da cidade e do urbano. Há uma nítida mudança de foco na análise do social, mesmo encontrando um conjunto de etnografias do mundo rural inspiradas pela Escola de Chicago, ainda nos anos 1940, a antropologia passou a observar a diversidade e as transformações que vinham acontecendo de maneira intensa nas grandes metrópoles com o desenvolvimento da urbanização. É notável que nessas novas relações de alteridade também estavam presentes uma certa familiaridade com o social, com os indivíduos e mesmo com a cidade que é o lócus de observação, mas também de moradia e pertencimento dos próprios antropólogos. Essa proximidade vai colocar algumas questões epistemológicas em perspectiva para o antropólogo que deseja fazer etnografia na cidade. Se a experiência de observação anterior reunia uma produção focada nas transformações das comunidades, na mudança do campo para a cidade, agora é possível observar o que na cidade há de mudança, quais os grupos que agora fazem parte da construção e da disputa de uma cidade urbana. Há uma intensa mobilização de grupos sociais que passam a constituir o lugar da cidade, negros, indígenas, população rural que migra para as grandes metrópoles, comunidades religiosas, grupos de diferentes sexualidades e gêneros, assim como as chamadas minorias sociais fazem parte desse todo urbano que está presente no cotidiano das grandes cidades. A antropologia que se investe da tarefa de etnografar e conhecer essas diferenças tem um campo fértil de estudos que passa a construir uma agenda de pesquisa em torno do que conhecemos hoje como Antropologia Urbana. É nessa perspectiva que vamos abordar o surgimento desse campo neste tópico, quando aprenderemos os indivíduos, as coletividades e os conflitos que fazem parte dos estudos de antropologia na urbanidade. 44 2 MOVIMENTOS SOCIAIS E SUBCULTURAS URBANAS Até aqui já deu para você, acadêmico, se aproximar e apreender conceitos, teorias e práticas antropológicas no mundo urbano. Neste tópico, caro acadêmico, vamos conhecer um pouco mais dos problemas urbanos, dos conflitos, das mobilizações e das lutas sociais a partir da análise dos movimentos sociais. Parte importante do estudo antropológico do modo de vida urbano vem do interesse de pesquisadores e pesquisadoras que veem os inúmeros grupos sociais que se desenvolvem e se organizam coletivamente a partir da cidade. Uma parte desses pesquisadores lidam com a categoria cidade como um lócus de observação etnográfica, por onde antropólogos podem ver a diversidade dos modos de agrupamento, manifestações sociais e ações coletivas, bem como registrar a alteridade entre os sujeitos que se agrupam e lutam pelo direito à cidade, à moradia e aos diferentes modos de vida. Considerado um importante estudo que marca uma abordagem do urbano na antropologia brasileira é o texto “O urbanismo como modo de vida” do sociólogo estadunidense Louis Wirth (1979). O autor é considerado um dos mais notáveis estudiosos do fenômeno urbano nos Estados Unidos e muito influenciado Simmel. Wirth elaborou sua interpretação do fenômeno urbano contribuindo para uma “teoria sociológica e sociopsicológica do urbanismo” (VELHO, 1979, p. 8). Para esse autor, uma característica marcante do modo de vida urbano na vida dos indivíduos da idade moderna é a alta concentração em agregados gigantescos, quando um maior número de indivíduos passa a viver em centros cada vez mais inchados de pessoas, atividades econômicas e instituições da modernidade, em torno dos quais “irradiam as ideias e as práticas que chamamos civilização”. Assim, Wirth (1979, p. 90-92) define a importância de entender o urbano e conhecer a cidade, para ele “uma definição sociologicamente significativa do que seja cidade procura selecionar aqueles elementos do urbanismo que marcam como um modo distinto de vida dos agrupamentos humanos”. Em maior ou menor escala a vida social no meio urbano ainda se relaciona com práticas e sentidos do mundo rural, há uma influência histórica da vida rural que segue com o indivíduo que foi morar na cidade urbana. Dessa forma, Wirth nos estimula a perceber que estamos conectados por práticas sociais herdadas de uma vida anterior que não desaparece, mas se ajusta, se modifica e produz algo entre esses dois mundos em interação. Sobre esse modo de vida urbano, Wirth (1979) destaca os desenvolvimentos tecnológicos no transporte e no sistema de comunicação como marcas concretas dessa nova época na história humana que estende sua atuação para além do contorno geográfico da cidade, levando suas práticas e valores para o ambiente rural. Destaca ainda a presença de uma enorme concentração de instalações e atividades relativas à indústria, assim como atividades comerciais, econômicas, administrativas, políticas, 45 sem esquecer dos equipamentos culturais e de lazer como imprensa, estações de rádio, teatros, bibliotecas, museus, salas de concerto, óperas, hospitais, instituições educacionais de nível superior, como faculdades e universidades, centros e institutos de pesquisa, organizações profissionais, instituições religiosas e filantrópicas, grupos recreativos, dentre outros presentes nesse aglomerado urbano. É notável que as descrições realizadas por esses autores mobilizam uma perspectiva mais negativa acerca da vida urbana, reconhecendo sempre os aspectos da falta ou da dificuldade que estão presentes na rotina de uma grande metrópole urbana. Ao reconhecer o significado social desses aspectos Simmel (1979) e Wirth (1979) nos possibilitam um exercício comparativo com as práticas e o modo de vida rural, ambos consideram importante o registro dessas novas práticas de sociabilidade que serão encontradas no meio urbano, mas apontam para a baixa dos vínculos sociais primários, que na vida urbana tendem a ser substituídos por vínculos sociais secundários. Ora, com muitos habitantes e a densidade demográfica elevada as relações sociais de vizinhança, amizade e parentesco na cidade tendem a perder elo. Isto acontece em face da própria modificação das relações sociais marcadas pelas mudanças quanto ao tempo disponível para convivência com familiares ou estar por estar com amigos e namorados, assim como o tempo disponível para passeios e atividades de lazer sempre muito reduzidos em face das extensas jornadas de trabalho, pelo menos nas classes populares. Na cidade os contatos pessoais podem ser face a face, mas também reduzidos, impessoais, superficiais, transitórios e fragmentários, lembrando aqui aspectos citados por Simmel, a “reserva”, a “indiferença” e o “ar blasé” são características que os habitantes do meio urbano tendem a manifestar em suas relações sociais(WIRTH, 1979, p. 101). Além disso, o caráter transitório das relações urbano-sociais pode explicar outros signos importantes da vida urbana como a “sofisticação” e a “racionalidade”, elementos que, em geral, são utilizados para caracterizar positivamente uma pessoa ou grupo social pertencente ao meio urbano. É fato que no meio urbano nosso contato físico é mais estreito, os edifícios com aglomerados de apartamentos reúnem um grande contingente de pessoas no mesmo perímetro, mas isso não significa contatos sociais mais íntimos, pelo contrário, notamos uma vida cada vez mais distante de uma relação com a vizinhança. Podemos nos ver todos os dias, dividir o elevador na mesma hora ou pegar o mesmo ônibus para ir ao trabalho, no entanto, esse alto reconhecimento facial que opera no cotidiano da vida urbana não é convertido em uma experiência autêntica de reconhecimento ou amizade. A partir disso é possível que tenhamos cada vez mais afinidade com signos que estão presentes em nosso cotidiano do que com as pessoas que cruzam nosso caminho. É nesse ponto que as subculturas, os movimentos sociais e as identidades urbanas ganham nosso interesse. 46 A urbanização do mundo é um evento notável da vida moderna, insere um conjunto de modificações profundas em diferentes esferas da vida social, por exemplo, família, educação, trabalho, lazer, moradia, educação, consumo, transporte, comunicação. No entanto, não podemos deixar de lembrar que esse processo aconteceu de forma muito intensa e desordenada e foi responsável pelo aumento dos problemas urbanos do contexto presente. O urbanismo como modo de vida revela uma tendência a adquirirmos uma sensibilidade ao universo dos artefatos e com isso progressivamente vamos nos distanciando das pessoas, acumulando mais objetos e produtos fabricados pela indústria capitalista que tem sempre algo novo para nos satisfazer. Assim, relacionando aspectos desse período de formação do mundo urbano e do contexto social atual não podemos perder de vista que as modificações no urbano transformaram para o bem ou para o mal não só o espaço físico, as cidades urbanas, como também a maneira de nos relacionar entre si e estabelecer vínculos sociais e construir a nossa identidade. A heterogeneidade de grupos e pessoas na vida urbana permite que possamos nos relacionar com maior mobilidade, mas também com maior instabilidade e insegurança em nossas relações sociais, embora, de fato possamos participar de vários grupos, tribos urbanas ou associações que podem nutrir experiências de pertencimento diferentes isso tende a deslocar os indivíduos para relações cada vez mais impessoais e distantes. Esta seria uma forma de perceber o urbanismo como modo de vida com Louis Wirth. Mas há outras. Vejamos. A presença massificada de pessoas na cidade também poderá favorecer a formação de agrupamentos do espaço urbano e a investigação antropológica permite compreender as diferentes formas de expressão, pertencimento e identidades que compõem essa cidade. Michel de Certeau (1994) chamou a esse tipo social de “cidade praticada”, uma maneira de olhar para os sujeitos que vivenciam e percebem a cidade ao seu modo. Considerando essa vastidão de possibilidades e formação de novas identidades no meio urbano, a antropóloga Andressa Morais (2012) realizou uma etnografia com um grupo social urbano chamado “okupas”, escrito com “k” por se tratar de uma identidade associada com a filosofia anarquista que protesta contra o sistema capitalista, pois este produz intensa verticalização e urbanização em que sujeitos sociais de classe populares são empurrados para as franjas da cidade e lhes são negados sua identidade política e cultural. Dialogando com Certeau (1994, p. 174) a cidade-conceito é pensada como “um lugar de transformações, objetos de intervenções, mas sujeito sem cessar enriquecido com novos atributos: ela é ao mesmo tempo maquinaria e o herói da modernidade”. Para Morais Lima (2012, p. 40) a cidade a partir dos seus interlocutores okupas “não deve ser lida apenas como um lugar estratégico para uma ação contínua da economia capitalista, uma ação orientada pelos interesses dos especuladores imobiliários e dos investidores da construção civil”. Nesse sentido, o movimento social urbano conhecido 47 como “okupa” aborda a cidade de uma outra perspectiva, aquela na qual é possível encontrar modos de viver que sejam diferentes. Para os “okupas” interlocutores da pesquisa de Morais Lima (2012) a cidade é um palco de disputas pelo direito de morar, viver e cultivar práticas e formas de vida que sejam diferentes. Assim, “ocupar” seria uma forma de praticar a cidade, uma reinvenção do social, do urbano e dos sujeitos que nela vivem. Há entre os diferentes grupos okupas práticas de lazer, solidariedade e cultivo de formação política orientadas pela filosofia anarquista e libertária, mas a cada casa “ocupada” há um conjunto de sujeitos que são diferentes, que procuram intervir no meio urbano para afirmar um protesto contra o capitalismo que gentrifica (isola) e aumenta a camada de despossuídos na vida urbana. O movimento okupa surgiu na Londres da década de 1960 para contestar um modo de vida urbano que priorizava o desenvolvimento via intensa industrialização (processo aqui já apresentado a partir das contribuições de Simmel e Wirth). Os movimentos sociais de juventude diante de um cenário de vida urbana intensa e sem possibilidade de respeito à diversidade dos modos de ser, bem como pela falta de espaço para moradia e boas condições de trabalho passam a ocupar espaços vazios que servem para especulação imobiliária a fim de transformá-los em espaços culturais, comunidades de pessoas que lutam pelo direito de um modo de vida libertário. Naquela época de surgimento do movimento okupa o foco das ocupações eram as antigas fábricas que fechavam decretando falência ou que tiveram algum acidente e produziu um vazio urbano, isto é, o prédio ficava exposto ao abandono e permanecia na paisagem da cidade apenas nutrindo o valor acumulativo do terreno, o proprietário sequer fazia manutenção para garantir a limpeza e prevenir acidentes. Figura 5 – Símbolo e bandeira Okupa Fonte: https://bit.ly/3J6w2FG. Acesso em: 21 jul. 2022. 48 Dadas as especificidades históricas e contextuais, no Brasil, há também esse perfil de ocupação urbana em que os okupas fazem sua intervenção em lugares que possuem dívidas com o poder público ou com os trabalhadores que empregavam e deixaram sem restituição trabalhista. Esse é um vínculo que cruza uma identidade política com uma identidade estética, valorização de uma vida cultural diferente, considerando que o perfil dos okupas são de jovens anarquistas e punks, nos quais a maioria se veste de preto, com signos de uma cultura punk, tatuagens, piercings, coturnos, moicanos, dentre outras características temos um bom exemplo de uma identidade urbana. No Brasil esse movimento chegou primeiro no sul, devido ao contato com outros jovens libertários que se comunicavam e pertenciam a grupos de música anarcopunks e compartilhavam experiencias coletivas de ocupar esses espaços para realizar manifestações culturais como shows de garagem, exposições de arte, saraus poéticos e transformar espaços ociosos em “zonas livres autônomas”, plantando hortas, fazendo compostagem, adotando uma dieta alimentar vegana e praticando diferentes maneiras de habitar a vida no meio urbano. Se por um lado, podemos identificar as diferentes transformações na paisagem urbana com a presença cada vez mais intensa de prédios e edifícios verticalizados, por outro também é possível identificarmos o vazio urbano, a degradação,esqueletos arquitetônicos que ficam espalhados em zonas centrais e em bairros considerados de elite. Esses vazios são agentes de um tipo de prática capitalista chamada especulação imobiliária, quando os proprietários não reparam ou fazem a manutenção daquele espaço e deixam acumular lixo, insetos e dívidas com o poder público, esperando o bairro e o entorno se desenvolver e aumentar o valor do metro quadrado para vender o terreno e investir em um poder de mercado imobiliário. Os okupas contestam a prática da especulação imobiliária por duas vias, a saber, primeiro por questionar o abandono e a função social da propriedade privada que gera para a população maior insegurança e prejuízos quanto ao valor de habitação nas zonas centrais da cidade, onde a maior parte da população trabalha, empurrando essas pessoas para uma habitação precária e longe dos centros urbanos, gerando maior dependência de transportes coletivos e ampliando a vulnerabilidade desses sujeitos ao mercado privado. Por outro lado, sua herança cultura está vinculada com um tipo de subcultura jovem, urbana, marginalizada que promove uma intervenção também na esfera cultural, tem um estilo de vida minimalista, produzem um tipo de música de protesto, adotam a perspectiva de uma vida livre de violência, por isso são associados ao veganismo, isto é, não se alimentar de nada que provoque violência, dentre outras características que podem ser bem visualizadas na etnografia intitulada “Okupar, resistir e insistir: etnografia das práticas de ocupação urbana em Fortaleza-CE” (MORAIS LIMA, 2012). 49 Acadêmico, quer saber mais desse tipo de movimento ou conhecer outras referências sobre o tema? Fique de olho nessa dica de série argentina da Netflix chamada Okupas. Foi uma série muito popular na Argentina que ganhou quatro prêmios Martín Fierro (Emmy argentino), incluindo o de melhor minissérie. DICA Fonte: http://twixar.me/DmMm. Acesso em: 21 jul. 2022. Esse tipo social de movimento se caracteriza sobretudo pela prática autônoma, libertária, que reivindica um modo de ser diferente, que valoriza a autonomia, construir espaços com pessoas que nutrem afinidades políticas, afetivas e sociais. De certa forma, ao insistir na construção de um espaço libertário do meio de um espaço investido de interesses econômicos do capitalismo financeiros, entendemos que há uma alógica distinta que nega um único modo de viver no urbano e tenta imprimir uma existência diferente, politizando essa ocupação urbana e navegando socialmente construindo uma boa relação com a vizinhança. Morais Lima demonstra em sua etnografia que os vizinhos dessa okupa se relacionavam bem com os moradores da casa, ajudavam com doações de água, roupas e comida. Também quando entrevistados revelavam que a chegada no grupo no local mudou a paisagem urbana, pois a presença de usuários de drogas e praticantes de furtos e roubos da vizinhança que utilizam esse prédio abandonado assim como o acúmulo de lixo e insetos gerava desconforto e insegurança para os moradores que diante de um grupo diferente, com uma identidade bem-marcada, mesmo produzindo estranhamentos com o passar do tempo, gerava uma nova sociabilidade. As chamadas subculturas urbanas ou tribos urbanas são grupos de pessoas que compartilham gostos, valores, códigos, práticas e uma estilo de vida semelhantes e que estão reunidas na metrópole. O conceito “tribo urbana” foi criado pelo sociólogo francês Michel Maffesoli em 1985, o livro “Le temps des tribus: le déclin de l'individualisme dans les sociétés postmodernes” publicado em 1988, apontou para a criação de uma nova forma de agrupamento social na sociedade moderna, na qual a necessidade de um grupo era definida por estar em um estrato de geração particular e criaram formas de convivência e interesse comum constituindo um conjunto de valores, práticas e ajuntamento coletivo para a formação de uma identidade própria. Trata-se de um fenômeno urbano que com o desenvolvimento das grandes metrópoles acompanhou a dinâmica dos grandes centros e se multiplicam continuamente em microgrupos, que diante de um intenso processo de massificação ancoradas no hiperindividualismo e homogeneidade para o sujeito urbano, optam por contestar e inserir novos elementos para a formação de uma identidade 50 heterogênea. Assim, cada “subcultura social urbana” possui uma estrutura interna particular que pode definir hábitos alimentares, condutas políticas, pensamos filosóficos, vocabulário e linguagem próprias (gírias), gosto musical compartilhado, engajamento político, religião, maneiras de vestir ou andar, dentre outros fatores. O fato é que esse subgrupo urbano surgiu junto com a formação dos centros urbanos, muitos nascem como movimentos de contracultura, como os punks ou hippies, mas há uma diversidade desses grupos no meio urbano e eles organizam um modo de vida diferente da maioria do que é compartilhado socialmente, assim como criticam a política e economia que sustentam o sistema capitalista. As tribos urbanas são fenômenos sociais comuns a contextos urbanos distintos. No Brasil, o antropólogo paranaense Guilherme Magnani (1992) foi um dos autores que partiu dessa linha analítica construída pelo francês Michel Maffesoli e em uma perspectiva antropológica criticou o uso do conceito de “tribo urbana”, gerando grande produção etnográfica e interesse por parte de pesquisadores brasileiros interessados em questionar o uso dessa categoria para compreender as dinâmicas do meio urbano, para Magnani (1992, p. 50), o uso do termo estaria associado "primitivo, selvagem, natural, comunitário" e empobreceria a visão da diversidade de grupos e identidades da metrópole. Um dos clássicos textos de José Guilherme Cantor Magnani é o “Antropologia urbana e os desafios na metrópole” em que o autor trata da aplicação da antropologia para o entendimento do fenômeno urbano, adotando como ponto de partida as dinâmicas culturais e as diferentes formas de sociabilidades encontradas na grande metrópole. Parte da crítica que Magnani apresenta ao conceito de “tribos urbanas” vem a ser melhor desenvolvido nesse texto, quando o autor vai abordar a noção de “escala” que tende a reproduzir um padrão de investigação antropológica na metrópole como aqueles desenvolvidos nas clássicas etnografias realizadas em comunidades e sociedades pré- industriais, assim a dimensão da “aldeia”, da “comunidade” e do “pequeno grupo” são termos que se apresentam como um desafio para o entendimento do contexto urbano, pois teriam de ser contextualizados e problematizados em relação ao modo de vida urbano. Além disso, outra importante característica apresentada pelo autor sugere ferramentas metodológicas que permitam ao antropólogo estabelecer o que pretende analisar a partir de um “ponto de vista” que pode ser de longe e fora (macro), o pesquisador externo indo observar uma comunidade diferente da sua e de um ponto de vista de perto e de dentro (micro), quando o pesquisador parte para a observação da sua própria comunidade de pertencimento, seu grupo social. Magnani (1992) chama a atenção para a grande produção e interesse da antropologia pelo estudo de sociedades “primitivas”, com isso considera que uma investigação do meio urbano e as transformações sociais que nele acontecem devem receber igual atenção e interesse dos antropólogos, pois a vida está aberta à observação e ao estudo, os problemas e a riqueza cultural está também presente no meio urbano. 51 A produção desse autor foi responsável por fornecer um grupo diversificado de categorias de análise da antropologia urbana, só para termos uma ideia, algumas delas são: pedaço, trajeto, circuito, mancha, pórtico. Todas essas categorias de análise fazem parte deum vocabulário dos interlocutores de pesquisa do antropólogo, quando ao observar e interagir com esses sujeitos apreendeu os sentidos e as palavras que eles utilizam para falar de sua experiência de habitar a metrópole urbana. Vamos agora conhecer um pouco melhor a formação e construção das identidades urbanas, como a antropologia pode auxiliar a ver as diferenças e compreender que estamos todos habitando um mundo em que a alteridade é uma condição da existência humana. Neste tópico, já nos aproximamos um pouco dessa discussão a partir do caso dos Okupas, teremos pela frente novos atores. 3 IDENTIDADES URBANAS Caro acadêmico, o estudo do urbano pela antropologia se dá em face de um contexto de época quando muitos antropólogos percebem que as mudanças provocadas pela industrialização e urbanização eram inevitáveis e que as transformações estavam acontecendo diante de si mesmos, como sujeitos que vivenciavam o urbano, a cidade e suas mudanças. Uma primeira movimentação vem desse interesse por parte de pesquisadores das ciências sociais em observação da cidade, investigar e analisar as mudanças em curso na sua própria sociedade. Um dos primeiros livros que ainda permanece uma importante referência no campo da Antropologia Urbana é “O fenômeno urbano”, organizado pelo antropólogo Otávio Velho, e publicado originalmente em 1967. O livro é uma coletânea de textos assinados por pesquisadores da Escola de Chicago e que foram traduzidos para o português. Diversos pesquisadores incorporam as suas análises a respeito da cidade e do urbano, aquilo que vem a ser o conteúdo dessa coletânea. As mudanças e os problemas enfrentados pelas grandes cidades em contínua transformação são reunidos em temas amplos que eram encontrados nas grandes metrópoles, como a criminalidade, as subculturas juvenis, as migrações do rural para o urbano, a formação e inchaço das favelas, assim como outros assuntos como o desemprego, as culturas dissidentes, a falta de moradia, estavam no centro de problemas sociais da cidade urbana em desenvolvimento. A década de 1970 é um marco na consolidação da subárea Antropologia Urbana no campo disciplinar da antropologia brasileira. O estudo cada vez mais crescente das populações urbanas despertaram interesse de muitos pesquisadores e o campo de estudos só fez crescer diante de um contexto político, econômico, cultural e acadêmico que marcou o país naquele momento. Contexto de intensa efervescência política e cultural em vista da repressão e perseguição trazidas pelos chamados “anos de chumbo” da ditadura militar. Os conflitos sociais estavam em evidência, a repressão política acompanhava o crescimento urbano, a pobreza e a marginalização de grupos sociais vulnerabilizados. As ciências sociais tinham muito a investir em suas análises 52 de um período de tamanho registro de mudanças. Não por acaso, muitos cientistas sociais passaram a se engajar mais politicamente em face da intensa repressão contra pesquisas que falavam dos problemas sociais que o Brasil enfrentava, assim como dos grupos sociais que viviam a experiência de exclusão tanto econômica quanto social. Cabra Marcado Para Morrer – Filme de Eduardo Coutinho Em 1962, o líder da liga camponesa de Sapé (PB), João Pedro Teixeira, é assassinado por ordem de latifundiários. Um filme sobre sua vida começa a ser rodado em 1964, com a reconstituição ficcional da ação política que levou ao assassinato e direção de Eduardo Coutinho. As filmagens são interrompidas pelo Golpe Militar de 1964. Dezessete anos depois, em 1981, Eduardo Coutinho retoma o projeto e procura Elizabeth Teixeira e outros participantes do filme interrompido. DICA Data de lançamento: 3 de dezembro de 1984 (Brasil). Diretor: Eduardo Coutinho. Roteiro: Eduardo Coutinho. Produtora: Mapa Filmes do Brasil. Produção: Eduardo Coutinho, Zelito Viana. Disponível em: https://youtu.be/VxzgLPyLIf4. Fonte: https://bit.ly/3cKrXe4. Acesso em: 26 jul. 2022. Assim, o estudo aprofundado da cidade permitiria ao antropólogo a investigação desse sujeito social habitante da cidade urbana e que estava inserido nesse contexto social. Enquanto para a sociologia e a ciência política a dimensão privilegiada de análise estava concentrada na divisão social do trabalho, na estrutura de classes, para os antropólogos o interesse agora se projetava nos sujeitos que habitam e dão sentido a essa experiência de viver e disputar a cidade, o urbano, nas condições adversas que marcavam a época. Nesse sentido, o estudo aprofundado e em longa duração, próprio da investigação antropológica procurava conhecer os grupos urbanos, assim como compreender a maneira como estavam organizados, como davam sentido às manifestações que realizavam, como classificam e constroem sua organização e mobilização no meio urbano. A etnografia se mostrava uma ferramenta metodológica de grande relevância para apreender essas diferentes nuances, pois, ao mesmo tempo, a partir do método etnográfico, é possível conhecer o contexto social e a realidade do sujeito em interação, https://youtu.be/VxzgLPyLIf4 https://bit.ly/3cKrXe4 53 condição de pesquisa própria da observação participante (MALINOWSKI, 1978). Considerando essa perspectiva também podemos defender que a etnografia permite ao pesquisador visibilizar e valorizar as experiências de grupos sociais vulnerabilizados pela desigualdade. Parte significativa do crescimento desses estudos está associada à ampliação do espaço acadêmico universitário com a pós-graduação em antropologia. Assim, programas de pós-graduação vinculados às universidades como Universidade Federal do Rio de Janeiro (Museu Nacional) e a Universidade de São Paulo estavam fortemente empenhados no estudo dessas dinâmicas do urbano. No caso, alguns temas tornaram- se presentes entre os pesquisadores vinculados a esses programas, por exemplo, o desvio e o comportamento social, moradias e unidades habitacionais, região moral e estudo de favelas e comunidades, práticas festivas e de lazer, estudos de escolas de samba e manifestações culturais, assim como o estudo de movimentos sociais, associações e ações coletivas, gênero, sexualidade, questões raciais, relações sociais e famílias no meio urbano, migrações e religiões. A Antropologia Urbana aos poucos foi consolidando um subcampo de estudos que passou a receber cada vez mais reconhecimento e prestígio da esfera pública pelo trabalho de pesquisa realizado com os sujeitos sociais do contexto pesquisado, assim não só as instituições se interessavam pelo conteúdo dessas pesquisas como os próprios entrevistados (interlocutores da pesquisa) passaram a se interessar pelos estudos e o trabalho desenvolvido com eles, seus grupos e suas comunidades. Um tipo de vínculo e reconhecimento do trabalho científico passou a dar outro olhar para o urbano para o modo de fazer pesquisa e antropologia no modo de vida urbano. A Antropologia Urbana aparece muitas vezes como um contraponto dos estudos clássicos da disciplina, em que o objeto de investigação e análise antropológica eram as sociedades isoladas, tradicionais ou de pouco contato com as características de uma modernidade em intenso desenvolvimento (MARCUS, 1991). No entanto, no Brasil, especialmente, após esse processo de intensa investigação e estudos das populações urbanas a própria Antropologia Urbana se consolidou como a área que cobre os estudos dos grupos urbanos, sua complexidade e as sociedade modernas. Os sujeitos, identidades e agrupamentos são cada vez mais diferentes e ocupam o mesmo espaço social na cidade urbana, soma-se a este fato o processo de globalização que envolve uma intensa e vasta rede de relações sociais, políticas, econômicasque ensejam as relações no mundo urbano. A globalização da qual fala Ulf Hannerz (1999) dá outros contornos às relações sociais, agora marcadas por uma intensa interconectividade entre indivíduos, mas também uma efervescente mistura de relações sociais entre grupos e identidades diversas. As formas de comunicação e linguagem tornam-se globalizadas, a diversidade social ganha precedência nas grandes metrópoles que se tornam cada vez mais cosmopolitas produzindo novas dinâmicas culturais. 54 O sujeito urbano é heterogêneo, passa a constituir sua identidade marcada por diferentes pertencimentos sociais. Sua identidade pode se associar por afinidades com relação ao pertencimento local, isto é, morar no mesmo bairro ou condomínio, por um identificação com relação a um gosto musical, samba ou punk rock, assim como ao estabelecer vínculos religiosos, ser candomblecista ou católico, ter um grupo de trabalho, reuniões de happy hour com os colegas do mesmo escritório ou encontros regulares com profissionais da mesma área de trabalho, assim como pode se definir por pertencer ao mesmo estrato social de classe e frequentar espaços de lazer e consumo comuns, bem como por pertencer a mesma identidade racial, gênero ou sexualidade. A crescente complexificação das relações sociais se tornam assim um interessante modo de observar e entender as mudanças da vida social a partir do meio urbano e como essas mudanças impactam em diferentes modos de vida, suas forças produtivas, a maneira de deslocar ou se comunicar, a inserção de novos processos administrativos ou políticos, tudo isso é parte de uma maneira de estar na cidade e no urbano. “Deterioração dos espaços e equipamentos públicos com a consequente privatização da vida coletiva, segregação, evitação de contatos, confinamento em ambientes e redes sociais restritos, situações de violência etc.” (MAGNANI, 2002, p. 12). Essas são características que influenciam na escolha da cidade como objeto de análise e investigação por parte de antropólogos brasileiros. Os povos indígenas e as populações rurais agora estão em contato com o aquilo que foi nomeado “progresso” e o mundo urbano se apresenta como esse contexto social de grande interação entre grupos que antes não habitavam ou compartilhavam os mesmos gostos ou modos de vida. Dois antropólogos brasileiros contribuíram significativamente para expansão e desenvolvimento dessa subárea de estudos, são eles: Gilberto Velho e Guilherme Magnani. O antropólogo brasileiro Gilberto Velho, consolidou o campo de pesquisas do urbano abordando diferentes temas, mas seu diferencial eram os estudos de classes médias urbanas, especialmente aquelas que estavam no Rio de Janeiro, onde ele morava e era professor no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/ UFRJ. Em 1972, Velho publica “A Utopia Urbana: um estudo de antropologia social”, considerado um clássico nos estudos de Antropologia Urbana. A investigação de Velho concentra-se no estudo antropológico do bairro de Copacabana no Rio de Janeiro, habitante de um prédio de apartamentos conjugados, ele tornou a experiência familiar de habitar aquele lugar um objeto de análise a respeito da vida social no meio urbano. A antropologia tem a grande vantagem de ter uma saudável tradição de ceticismo e critica que pode nos ajudar a ver e superar as ideias velhas e preconceituosas. Não creio que o estudo da própria sociedade seja uma heresia dentro da trajetória de reflexão antropológica, mas significa sem dúvida, uma ampliação e complexificação de nosso campo de estudo. Logo é uma tarefa a ser assumida com todos os riscos e desgaste que envolve (VELHO, 1987, p. 20). 55 Gilberto Velho procurou demonstrar como viviam os moradores de Copacabana em relação ao bairro, o sentido de pertencimento, a afirmação positiva de estar e morar em um bairro de fama internacional e revelou suas incongruências, considerando também a abordagem socioespacial que Velho realiza naquele lugar, demonstrando a precariedade de espaço, o custo de vida, a relação de vizinhança e os desafios de estranhar aquela familiaridade. Do ponto de vista antropológico, o estudo do antropólogo carioca fornece não só boas pistas para entender as mudanças no estilo de vida, modos de habitação e ocupação da cidade, mas é extremamente rico em termos metodológicos, pois será a partir desta experiência etnográfica que Velho vai postular a observação participante mediante o equilíbrio entre a dimensão da familiaridade e do estranhamento como perspectivas epistemológicas da antropologia feita na cidade, no urbano. Influenciado pela Escola de Chicago, Gilberto Velho parte da perspectiva interacionista para desenvolver sua análise do contexto pesquisado, observando as crenças, valores, normas, visões de mundo, classe social, região, religião, escolaridade como elementos constitutivos da experiência do indivíduo no meio urbano. Nessa perspectiva, o antropólogo pretende compreender como os moradores do bairro de Copacabana, residentes no prédio em que o estudo foi realizado, dão significado e sentido às suas práticas sociais, seus comportamentos, bem como eles se apropriam do espaço social e dos arranjos urbanos nos quais se inserem na cidade, sejam eles físicos ou culturais. Por isso a importância do método etnográfico, pois ele permite que o antropólogo descreva esses sujeitos, seus comportamentos, sua visão de mundo, seu idioma e formas de linguagem, bem como aspectos gênero, raça, classe, sexualidade, religião, trabalho e tantas manifestações materiais e imateriais de seu modo de vida. Sempre a partir de uma interação que se faz com os sujeitos urbanos, os interlocutores de pesquisa do antropólogo. Gilberto Velho, em seu estudo de Copacabana, destaca os indivíduos que moram no prédio a partir de suas interações com o bairro, os vizinhos e suas relações para fora dali, situando a construção de seu modo de vida em interface com a cultura do bairro, a cultura da cidade e a cultura urbana de forma geral. O antropólogo oferece diferentes maneiras de olhar para a cidade, evidencia as sociabilidades constitutivas desse todo social urbano, aborda os conflitos e a experiência de desvio, dá importância aos movimentos sociais e articula diferentes dimensões da vida urbana e suas singularidades. As etnografias desenvolvidas por Gilberto Velho são ricas para o campo da antropologia, mas também para o leitor interessado em conhecer a diversidade dos modos de ser que estão na cidade. O antropólogo sempre perspicaz em suas descrições nos fornece um modo de deslocarmos nosso olhar sobre os sujeitos, a cidade e a vida social que ele observou. Atento aos padrões de comportamentos, assim como às normas sociais em momentos de interação dos sujeitos pesquisados, Velho nos permite um exercício constante de relativismo, isto é, de entender aos nossos vizinhos em seus próprios termos, assim nos aproximamos de um olhar atento àqueles que cruzam com a gente na rua, que dividem o metrô ou ônibus e que passam por nós no 56 shopping. A etnografia da sociedade complexa, essa que compõe a cidade urbana e suas singularidades, é uma maneira do pesquisador enxergar nossas diferenças, nossas singularidades e compreender o quanto somos diferentes mesmo estando em uma mesma cidade ou bairro, como é o caso de Copacabana. Se olharmos para expressões culturais regionais o volume de informações, práticas e sujeitos se amplia ainda mais. Teremos um conjunto ainda mais diverso de nossas singularidades, no qual aparecem a diversidade étnica, a diversidade religiosa, a vida cultural ou até mesmo os nossos hábitos alimentares, tudoisso pode ser visto a partir de diferentes registros etnográficos. No campo religioso, por exemplo, no Brasil há diferentes manifestações como o Candomblé, a Umbanda, o Protestantismo, o Catolicismo, o Espiritismo, dentre outras manifestações religiosas. O estudo etnográfico dessas religiões e suas práticas auxiliam a entender suas normas, seus valores, suas práticas e compreender a diversidade dos rituais de fé que fazem parte da identidade brasileira. Ao colocar em evidência essa diversidade, a antropologia auxilia no conhecimento daquilo que não se conhece e que pode ser objeto de preconceito e ofensa. Assim, os trabalhos que versam sobre essas temáticas permitem entender como sujeitos sociais expressam sua espiritualidade e que podem ter suas práticas reconhecidas sem se tornarem objeto de agressão ou violência na forma da intolerância religiosa. Todos esses são fenômenos que estão presentes no meio urbano e que fazem parte da cultura complexa da cidade. Essa diversidade de estilos de vida, práticas culturais e visões de mundo não determinam uma cultura única, mas ressaltam a pluralidade que compõe a vida urbana e os sujeitos sociais que nela habitam. Por outro lado, Gilberto Velho também vai chamar a atenção para os processos de “massificação” da sociedade complexa, isto é, com a intensa modernização e industrialização o desenvolvimento da vida nas metrópoles também produz transformações que geram padrões de comportamento, sociabilidade, interação, costumes e rotinas. Um interessante costume, exemplar desse processo de massificação das sociedades complexas, é o consumo de telenovelas, assim como de redes sociais. Cada segmento de classe social compartilha elementos comuns de interesse, assim como interpretações particulares daquilo que está consumido, mas todos estão usando. A partir das telenovelas podemos acessar conteúdos diversificados do modo de vida em diferentes metrópoles urbanas brasileiras, as novelas que destacam os sujeitos e sua vida no bairro do Leblon, aquelas que fazem referência ao período de escravização e a luta da população negra para exercer sua liberdade no contexto de uma cidade moderna, algumas destacam práticas religiosas, outras evidenciam conflitos familiares e a diversidade dos sujeitos e das identidades urbanas. Lembra de alguma novela marcante a respeito desses temas? Reflita. 57 Quem não lembra dos inúmeros comentários na rua, em casa ou no trabalho sobre a trama de Avenida Brasil? Não conhece? Não assistiu? Pega essa dica, acadêmico, e nos intervalos de estudo aproveite para assistir à novela e lembrar dos conceitos antropológicos. DICA Disponível em: https://bit.ly/3S4c2rc O meio urbano estudado por Gilberto Velho nos apresenta as influências que mídias sociais, produtos e instituições exercem na formação e construção do nosso estilo de vida, dos nossos costumes e nossos valores socialmente compartilhados. A escola, a universidade, o trabalho, a vizinhança, a igreja, o clube, a comunidade, o bar, o shopping ou o teatro são expressões desse conjunto de instituições da vida complexa que agencia e produz identidades sociais na vida urbana. É a partir dessa percepção que o antropólogo vai postular a importância da “metamorfose”, isto é, a recepção dessas informações. Além disso, Gilberto Velho vai demonstrar que essa recepção não é a mesma para todos que a veem, elas são interpretadas socialmente de maneira diferente e muitos de nós podem se afetar por elas enquanto outros não. Nesse sentido, destacamos os sujeitos urbanos e a construção de suas identidades, como eles são heterogêneos em suas possibilidades de ação, interpretação e conhecimento de mundo, podendo assumir papéis distintos em contextos situacionais diferentes. Para entender melhor essa dimensão, convidamos você à leitura do texto complementar sobre a população em situação de rua e seus direitos. 58 LEITURA COMPLEMENTAR POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA E O “DIREITO A TER DIREITOS” Tomás Henrique de Azevedo Gomes Melo Ao longo dos últimos anos, venho me dedicando a uma pesquisa da trajetória social do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR). Em 2009, iniciei trabalho de campo com pessoas que moravam nas ruas da cidade de Curitiba -Paraná, momento em que a cidade se destacava por ser dotada de uma rede de atendimento socioassistencial relativamente complexa, com diversos agentes e secretarias envolvidas no trabalho com essa população. Havia, sobretudo, um momento de ebulição política em torno da questão “população de rua”, com o envolvimento de diversos agentes, entre ONGs, grupos religiosos de distintas congregações, agentes estatais de diversas secretarias municipais, além do Ministério Público do Estado e pessoas em situação de rua que se encontravam para debater publicamente os desafios de uma política adequada para este segmento. Desde este período, acompanhei diversas atividades do MNPR e pude presenciar o fortalecimento institucional de uma pauta que começou a ganhar notoriedade e visibilidade pública em algumas cidades do país. Um importante marcador social desse contexto se estabeleceu quando o ex-presidente Luiz Inácio “Lula” da Silva assinou o Decreto nº 7.053/2009, que institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua, documento que define as características do segmento populacional a ser atendido. Deste processo recente, um dos resultados que mais me chamou atenção foi o fortalecimento político de pessoas que se reconhecem enquanto população de rua, que passam a fazer parte ativa dessa rede e que começam a atuar no MNPR, principal núcleo aglutinador de proposições no plano da ação pública por parte do segmento. Ainda que os antecedentes que forjam os termos e definições do que se tornou a “população em situação de rua” mostrem seus primeiros contornos na década de 1950 na cidade de São Paulo, é na década de 1990 que estas iniciativas ganham força e se configura uma atividade mais intensa, com mobilizações voltadas a questionar a ausência de políticas públicas para o segmento. Do final da década de noventa em diante, a politização em torno da questão “população de rua” se acentua, com um intenso processo que resulta na constituição de manifestações, fóruns, seminários, encontros e demais espaços específicos para a organização. Um dos resultados fundamentais deste período foi a criação do referido Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), lançado publicamente em 2005, a partir do entendimento da necessidade de se criar um movimento de bases sólidas, com atuação em nível nacional e organizado pelas próprias pessoas em situação de rua na defesa de seus direitos. 59 Concordando com Costa (2007: 19), afirmo que a situação de rua ganhou nuances na medida em que cresceu e se expandiu, tornando-se algo cada vez mais presente no cotidiano das cidades. Junto a isto, entrelaçam-se novos discursos, práticas e instituições que refletem sua presença marcante. No bojo dessas transformações nos grandes centros, o fenômeno torna-se uma questão a ser amplamente debatida. No entanto, o que considero fundamental apontar é que a existência do MNPR incide e transforma diretamente o modo como o debate estava organizado: o estabelecimento do MNPR marca em definitivo a existência de um espaço de fala e reconhecimento das pessoas em situação de rua enquanto interlocutores válidos no campo de disputas políticas e nas questões que se referem à vida em situação de rua. Os esforços em torno do movimento produzem a mobilização de diversos segmentos da sociedade, o que culmina em percepções renovadas da questão – não apenas como foco de políticas setoriais ou objeto de debates, mas como interlocutores possíveis na arena pública.É importante ressaltar, antes de tudo, que a população de rua não tem uma tradição de organização por reivindicação, a exemplo de outros segmentos sociais. Dentre as principais razões indicadas pelos militantes do MNPR da dificuldade de “organizar esse povo”, a primeira delas diz respeito aos desafios concernentes à “redistribuição”, visto que existem dificuldades materiais inegáveis para “organizar” um segmento social que vive em situação de extrema vulnerabilidade social. Segundo militantes que entrevistei e acompanhei em diversas atividades, esses desafios fariam parte do que se referem por “imediatismo da rua”. Ou seja, é absolutamente difícil aproximar pessoas de atividades de organização e militância quando elas estão o tempo todo vivendo em função de atender suas necessidades primordiais, o que só é possível a partir de dinâmicas, temporalidades e circuitos que muitas vezes não concedem grande autonomia aos sujeitos (tais como rotinas institucionais de albergues, centros de convivência diurnos e demais serviços de acolhimento). Mesmo as pessoas que não se utilizam desse tipo de serviço e passam a maior parte de seu tempo na rua, têm suas agendas determinadas por outras atividades tão ou mais “imediatistas”: a ocupação e salvaguarda dos espaços de suas “malocas” ou “mocós” e seus pertences; os horários de atendimento dos serviços prestados por voluntários que servem alimentação (as chamadas “bocas de rango”); as rotinas de trabalhos, como a catação de materiais recicláveis; as atividades dos “flanelinhas”, que cuidam de carros em pontos que precisam ser ocupados e defendidos para não serem perdidos para a concorrência, dentre outros exemplos. Todas essas atividades e rotinas institucionais, seja na rua ou nos chamados equipamentos da assistência social, têm em comum o fato de que não se organizam mediante uma programação de longo prazo, já que não existem garantias de vaga em albergues ou de alimentação. Para garantir qualquer coisa é necessário se auto-organizar diariamente para o acesso à alimentação, ao local de pernoite, até ao banheiro ou ao 60 banho. Desta forma, a questão que se coloca é: como chamar à organização pessoas com tal nível de vulnerabilidade, com toda a sua rotina orientada para a resolução imediata de suas necessidades, sem garantias futuras e pouquíssima margem para auto- organização? Posto de outro modo, trata-se do desafio de aproximar pessoas para atividades que visam à construção de melhorias para o futuro – das quais ninguém tem garantias – enquanto todas as atividades cotidianas para a sobrevivência são organizadas para atender as necessidades mais imediatas. Outra parte do problema, também indicado frequentemente pelos militantes do MNPR, diz respeito às demais especificidades desse modo de vida, tais como o fato de grande parte dessa população ter chegado à situação de rua em virtude do desenvolvimento de quadros de depressão, consumo de drogas e de trajetórias apresentadas como situações de desamparo, processos de ruptura de vínculos familiares e demais elos comunitários com as localidades de origem, além da privação econômica. Estes processos, muitas vezes indicados como motivos para o início da vida nas ruas, são compreendidos como fatores de forte cunho emocional que fragilizam as energias e motivações dos sujeitos. Uma vez na rua, há um novo mundo a ser visto, repleto de novas regras, etiquetas e uma moralidade própria que inspira as condutas. Este amplo e complexo cenário indicado rapidamente aqui, é o pano de fundo a partir do qual os militantes do MNPR analisam a situação de seus “companheiros de rua”. Tal formulação poderia ser resumida a partir da concepção de que “a rua”, enquanto um espaço abstrato (ruas, praças, vielas, equipamentos de atendimento em que moradores de rua convivem), com regras e lógica própria, é marcada por experiências de sofrimento e traumas profundos que determinam irremediavelmente a vida individual, processo frequentemente sintetizado por frases como: “Você sai da rua, mas a rua não sai de você”. O que gostaria de apontar aqui, portanto, é que se a situação de rua é marcada por faltas e fragilidades, ela também se estabelece como um mapa de possibilidades renovadas, condutas marcadas pela necessidade e criatividade para dar resolução ao leque de dificuldades que se a figura. Compõe um contexto de privação material que também estabelece marcadores e fronteiras identitárias, pertencimentos e diferenças. No entanto, se estes aspectos estão intimamente ligados, especialmente no que diz respeito às ditas dificuldades de organização política, eles estão igualmente presentes no que tange à inclusão desse segmento em grande parte das políticas sociais. Pois, pelo menos em sua produção inicial, a maioria das políticas não foi idealizada de modo a garantir a essas pessoas o acesso aos bens sociais. A falta de uma referência habitacional e de um documento que comprove a residência foi um dos maiores impedimentos para acessar praticamente tudo: do Programa Bolsa Família ao atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS), passando pela inclusão em programas de habitação popular (Minha Casa, Minha Vida) até mesmo para a matrícula dos/as filhos/as no ensino público ou, ainda, em casos em que indivíduos em conflito com a lei recebem liberdade provisória ou prisão domiciliar e acabam sendo 61 punidos novamente por não terem uma referência domiciliar. Nos últimos anos, o MNPR travou uma grande luta para fazer com que certas especificidades da vida na rua fossem reconhecidas enquanto tal, para então criar alternativas para inclusão em programas sociais ou mesmo para assegurar o acesso à saúde. A partir da Instrução Operacional Conjunta Senarc/SNAS/MDS nº 7 de 22 de novembro de 2010, estabelece-se uma modalidade de inclusão facilitada no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico). Esta instrução tornou possível o cadastramento sem a necessidade da documentação anteriormente exigida para a inclusão nos Programas Sociais como o Bolsa Família, dentre outros benefícios para os quais o CadÚnico se faz necessário, tais como a isenção de inscrição em concursos públicos, a inclusão no BPC (Benefício por Prestação Continuada) e para candidatar-se a programas habitacionais. A resolução para a questão se deu de uma forma que poderíamos considerar “simples” e foi composta basicamente por duas ações: a primeira delas era criar uma categoria específica para pessoas em situação de rua na primeira parte do cadastramento, no qual normalmente a pessoa deveria caracterizar seu domicílio (a natureza do material da construção, quantidade de cômodos etc.). A outra ação foi considerar que estas pessoas sem endereço fixo poderiam ter como local de referência algum equipamento ou serviço da assistência social no município em que se encontram. Exemplo semelhante é o da Portaria n° 940, de 28 de abril de 2011, que regulamenta o Sistema do Cartão Nacional de Saúde e em um de seus artigos dispensa à população de rua e os ciganos da apresentação do comprovante de residência para cadastramento no SUS: Ciranda no II Congresso do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR). Tais ações, em um primeiro momento, foram destacadas como se fossem meramente problemas técnicos a serem resolvidos, alcançando-se o público que até então estava de fora dos programas sociais a partir de alguns pequenos ajustes. É importante notar que esse tipo de formulação vai de encontro àquilo que Ferguson (2009, p. 256) se refere como um processo de despolitização presente na redução da pobreza a um problema técnico, com a consequente promessa de resolução técnica para questões políticas. A fabricação destetipo de separação entre técnica e política ou entre mercado e Estado, por sua vez, tem como um de seus resultados a reificação do “Estado”, apagando sua dimensão política e obliterando os efeitos de poder produzido pela própria distinção entre esses domínios (VIANNA, 2013, p. 16-17). Em última instância, trata-se de um tipo de “efeito de reconhecimento” da existência de um segmento populacional pela precariedade material de seu modo de vida e que, portanto, passa a ser aceito em tais programas. De todo modo, esta inclusão mediada pela atenção a determinadas especificidades, sem as quais o atendimento não seria possível, produz legibilidade, tal como compreendido por Das e Poole (2004, p. 16). No entanto, mais do que a forma como o estado torna uma população legível, o que interessa saber é o alcance que isso pode ter nas práticas engendradas por este “reconhecimento”. 62 O que se percebe é que boa parte dos esforços recentes por uma inclusão qualitativa da população de rua em programas sociais e por acesso a direitos tem sido realizado nesse plano, o que torna absolutamente necessário reconhecer as especificidades de um modo de vida para tentar impactar positivamente o segmento em termos de redistribuição. Redistribuir, pelo menos no caso da população em situação de rua, significa necessariamente reconhecer especificidades de um modo de vida historicamente estigmatizado, criminalizado e não raramente massacrado. Fonte: MELO, T. H. A. G. População em situação de rua e o "direito a ter direitos". Novos Debates, Brasília, DF, v. 1, n. 2, p. 198-206, 2015. 63 Neste tópico, você aprendeu: • Conhecer as diferentes manifestações sociais presentes no meio urbano e as novas relações de alteridade que estavam presentes. Identificou que há uma certa familiaridade com o social, com os indivíduos e mesmo com a cidade que é o lócus de observação, mas também de moradia e pertencimento dos próprios antropólogos. • Identificou questões metodológicas no campo das pesquisas em antropologia urbana a partir da experiência de observação etnográfica que reúne uma produção focada nas transformações das comunidades, na mudança do campo para a cidade e percebeu que o antropólogo busca observar o que na cidade há de mudança, quais os grupos que agora fazem parte da construção e da disputa de uma cidade urbana. • Aprendeu a reconhecer a diversidade de grupos sociais no meio urbano e suas demandas, assim como passou a conhecer os diferentes modos de mobilização de grupos sociais que passam a constituir o lugar da cidade (negros, indígenas, população rural que migra para as grandes metrópoles, comunidades religiosas, grupos de diferentes sexualidades e gêneros), e foram chamados de minorias sociais ou grupos e tribos urbanas. • Percebeu como as mudanças do espaço social interferem na subjetividade dos indivíduos no meio urbano. Aprendeu as diferentes identidades e construção de grupos sociais na cidade que reivindicam não só o reconhecimento dos seus modos de vida mas também reivindicam melhores condições de vida na cidade diante de problemas sociais que surgem no meio urbano com o inchaço das cidades e a infraestrutura precária para lidar com grandes aglomerados de pessoas. RESUMO DO TÓPICO 3 64 1 O texto “O urbanismo como modo de vida” do sociólogo estadunidense Louis Wirth (1979) é um importante estudo que marca uma abordagem do urbano na antropologia brasileira. O autor é considerado um dos mais notáveis estudiosos do fenômeno urbano nos Estados Unidos. Wirth elaborou sua interpretação do fenômeno urbano contribuindo para uma “teoria sociológica e sociopsicológica do urbanismo”. Sobre estas grandes contribuições ao conhecimento da Antropologia Urbana, assinale a alternativa CORRETA: Fonte: WIRTH. L. O urbanismo como modo de vida. In: VELHO, O. (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979. p. 89-112. a) ( ) Uma definição sociologicamente significativa do que seja cidade procura selecionar aqueles elementos do urbanismo que marcam como um modo distinto de vida dos agrupamentos humanos. b) ( ) Uma característica marcante do modo de vida urbano na vida dos indivíduos da idade moderna é a alta criação de vínculos sociais primários, famílias e parentes. c) ( ) Para Wirth não estamos conectados por práticas sociais herdadas de uma vida anterior, pois quando vamos para a cidade a nossa cultura desaparece e produz algo totalmente urbano. d) ( ) A heterogeneidade de grupos e pessoas na vida urbana permite que possamos nos relacionar com maior mobilidade, estabilidade e segurança em nossas relações sociais. 2 Com a Revolução Industrial e o acerelado processo de urbanização, tornou- se crescente a população da cidade e isto complexificou as relações sociais. Tais mudanças se tornam assim um interessante modo de observar e entender o novo modo de vida urbano. Com base nessas mudanças, analise as sentenças a seguir: I- Essas mudanças impactam diferentes modos de vida, suas forças produtivas, a maneira de deslocar ou se comunicar, a inserção de novos processos administrativos ou políticos, tudo isso é parte de uma maneira de estar na cidade e no urbano. II- Segundo Gilberto Velho, os sujeitos urbanos e a construção de suas identidades são homogêneos, porque os indivíduos urbanos interpretam e conhecem o mundo somente como as telenovelas mostram e assim aprender a se tornar todos iguais, não há espaço para mudança. III- Para Guilherme Magnani é parte da maneira de estar na cidade e no urbano perceber a deterioração dos espaços e equipamentos públicos com a consequente privatização da vida coletiva, segregação, evitação de contatos, confinamento em ambientes e redes sociais restritos, situações de violência etc. AUTOATIVIDADE 65 Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As sentenças I e II estão corretas. b) ( ) Somente a sentença II está correta. c) ( ) As sentenças I e III estão corretas. d) ( ) Somente a sentença III está correta. 3 Parte importante do estudo antropológico do modo de vida urbano vem do interesse de pesquisadores e pesquisadoras que veem os inúmeros grupos sociais que se desenvolvem e se organizam coletivamente a partir da cidade. Uma parte desses pesquisadores lidam com a categoria cidade como um lócus de observação etnográfica, por onde antropólogos podem ver a diversidade dos modos de agrupamento, manifestações sociais e ações coletivas, bem como registrar a alteridade entre os sujeitos que se agrupam e lutam pelo direito à cidade, à moradia e aos diferentes modos de vida. A partir desse olhar antropológico, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas: ( ) O urbanismo como modo de vida revela uma tendência a adquirirmos uma sensibilidade ao universo dos artefatos e com isso progressivamente vamos nos distanciando das pessoas, acumulando mais objetos e produtos fabricados pela indústria capitalista que tem sempre algo novo para nos satisfazer. ( ) O conceito de tribos urbanas se refere aos grupos sociais formados por etnias indígenas que migram das aldeias mãe para morar na cidade urbana e assim formam novos grupos indígenas. ( ) As chamadas subculturas urbanas ou tribos urbanas são grupos de pessoas que compartilham gostos, valores, códigos, práticas e uma estilo de vida semelhantes e que estão reunidas na metrópole. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) V – F – F. b) ( ) V – F – V. c) ( ) F – V – F. d) ( ) F – F – V. 4 A presença massificada de pessoas na cidade também poderá favorecer a formação de agrupamentosdo espaço urbano e a investigação antropológica permite compreender as diferentes formas de expressão, pertencimento e identidades que compõem essa cidade. Michel de Certeau (1994) chamou a esse tipo social de “cidade praticada”, uma maneira de olhar para os sujeitos que vivenciam e percebem a cidade ao seu modo. Disserte sobre um tipo social de grupo urbano citado no texto. Fonte: CERTEAU, M. A Invenção do Cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, Vozes, 1994. 66 5 Existem muitas estratégias de pesquisa e de observação possíveis de serem adotadas nas atividades etnográficas. A observação participante é uma delas. Nesta proposta, a relação entre os pesquisadores e os interlocutores se torna mais próxima, pois existe uma mudança de atitude e atenção maior no aspecto de qualidade e na forma de criação de vínculos entre sujeitos em interação. Neste contexto, disserte sobre as principais contribuições dos estudos de Gilberto Velho e Guilherme Magnani para a Antropologia Urbana. 67 REFERÊNCIAS ALVES, E.; SOUZA, G. S.; MARRA, R. Êxodo e sua contribuição à urbanização de 1950 a 2010. Revista de Política Agrícola, Brasília, DF, ano XX, n. 2, jun. 2011. Disponível em: https://bit.ly/3vg0GqA. Acesso em: 4 maio 2022. BECKER, H. A escola de Chicago. Mana, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p. 177-188, out. 1996. Disponível em: https://bit.ly/3oC1lP7. Acesso em: 20 maio 2022. BECKER, H. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. 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Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979. p. 89-112. 70 71 ANTROPOLOGIA RURAL UNIDADE 2 — OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • compreender especificidades das pesquisas sobre o mundo rural para a formação do subcampo da antropologia rural; • familiarizar-se com os conceitos de “rural” e “novas ruralidades” a partir dos estudos das escolas de pensamento; • perceber as interligações entre os diferentes sistemas de produção social, econômica e política no mundo rural; • conhecer a diversidade de grupos sociais e suas diferentes formas de organização social ao abordarmos os modos de produção, formação de identidades sociais e os conflitos que ensejam o campo. A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – CONCEITOS E TRADIÇÕES TEÓRICAS NOS ESTUDOS DE CAMPESINATO E DA RURALIDADE TÓPICO 2 – POVOS TRADICIONAIS E SEUS MODOS DE USO E OCUPAÇÃO DO ESPAÇO RURAL TÓPICO 3 – ORGANIZAÇÕES ECONÔMICAS, RELAÇÕES SOCIAIS E MORALIDADES NO MUNDO RURAL Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações. CHAMADA 72 CONFIRA A TRILHA DA UNIDADE 2! Acesse o QR Code abaixo: 73 TÓPICO 1 — CONCEITOS E TRADIÇÕES TEÓRICAS NOS ESTUDOS DE CAMPESINATO E DA RURALIDADE UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO Caro acadêmico, estamos numa travessia de conhecimento antropológico e etnográfico que navega pelos estudos da antropologia considerando suas subáreas, rural e urbana, já vimos na primeira unidade aqueles conceitos mais elementares da antropologia e fizemos um mergulho nos estudos da vida urbana, passando pelas principais escolas de pensamento e considerando alguns estudos etnográficos que nos permitiram conhecer um pouco melhor como se faz uma investigação antropológica no mundo urbano. Figura 1 – Batizado na Roça, Anita Malfatti Fonte: https://bit.ly/3Q1FyeY. Acesso em: 19 ago. 2022 Além disso, também foi possível dialogar com alguns autores que se dedicaram ao estudo sistemático das transformações sociais a partir da Revolução Industrial e da implementação do sistema capitalista,considerando as diferentes mudanças ocorridas com a formação das cidades urbanas, grandes metrópoles e modos de vida que foram afetados por essas dinâmicas de interação que passaram a surgir nesse no modo de vida urbano. 74 Pois bem, você já deve ter percebido que há inúmeras transformações políticas, sociais, econômicas e culturais. Nossa abordagem anterior destacou apenas alguns aspectos desse novo modo de vida urbano, mas você sabe que é apenas um pedaço de um vasto conhecimento em termos de pesquisas sociais sobre essas mudanças. Então, renovamos agora o compromisso de partir desses estudos e procurar conhecer cada vez mais o mundo social e suas transformações para chegar exatamente no ponto que estamos vivendo agora: a vida contemporânea. Autores, escolas e estudos são como mapas conceituais, que servirão a você para aprofundar o seu conhecimento. Acadêmico, você já percebeu até aqui o quanto é instigante e sedutor conhecer, aprender e entender tantos aspectos da vida social através das lentes de análise da antropologia. Agora nossa travessia de conhecimento vai nos levar à subárea Antropologia Rural, vamos mergulhar em pesquisas, autores e teorias que se dedicaram a estudar e investigar as diferentes formas de vida que compõem o mundo rural, esse habitat social que também foi palco de transformações importantes em decorrência das novas atividades produtivas que surgem com a Revolução Industrial e o Sistema capitalista. Mas antes de nos aprofundarmos no estudo sistemático da antropologia rural é importante que você entenda que as populações rurais estão sempre em interação com outros grupos sociais, inclusive do meio urbano, que é fundamental compreendermos que o mundo rural não é um lugar “isolado”, distante de mudanças sociais ou “atrasado”, ao ter essa compreensão você está exercitando o pensamento antropológico de relativizar essas distâncias sociais entendendo de forma rigorosa e contextualizada que apenas existem diferenças nos modos de ser e de viver seja no ambiente urbano ou no ambiente rural. Um passo importante nessa dimensão de aprendizado que a antropologia sugere é perceber que existem influências sociais do mundo rural no mundo urbano e do mundo urbano no mundo rural. Se você lembrar bem, logo no início da primeira unidade, nós fizemos uma curiosa imersão nos estudos clássicos de antropologia para falar das mudanças e perspectivas que a própria ciência antropológica vai vivenciar na medida em que a vida vai se transformando. Exemplo disso foi o entendimento acerca dos primeiros estudos antropológicos que estavam interessados em “catalogar” e “preservar” os conhecimentos dos “povos primitivos”, era o principal objeto de estudo da antropologia clássica e só mais tarde a antropologia passa a se interessar pelo estudo das “sociedades complexas” ao dar início ao estudo e às novas pesquisas em populações rurais. Então, acadêmico, fique atento e preste muita atenção que nesta unidade nós aprofundaremos o nosso conhecimento na antropologia rural e, já de partida, lembre- se que durante um bom tempo a antropologia chamou essa subárea de estudos de 75 campesinato. Também vamos entender o porquê e quais são os demais eixos de pesquisa, seus principais autores e etnografias sobre esse campo. Ao longo desta unidade, você encontrará alguns autores que estudaremos aqui, mas sempre terão outras dicas que podem levar você a explorar outros campos de pesquisa por meio de recomendações de livros, revistas, podcasts, vídeos, documentários e muito mais. 2 OS ESTUDOS DO RURAL NA FORMAÇÃO DA ANTROPOLOGIA BRASILEIRA Os primeiros trabalhos relacionados ao estudo do ambiente rural ou do campo acontecem numa época em que a antropologia ainda não era uma área acadêmica bem estruturada no Brasil. Sobre isso, cabe aqui fazermos uma breve contextualização desse período de formação da antropologia brasileira e vamos partir das contribuições do trabalho intitulado “A Antropologia no Brasil: um roteiro” que foi publicado em 1983 (republicado em 2007) pelo antropólogo Júlio Cezar Melatti (2007). Preste bem atenção, acadêmico, este autor procurou traçar uma genealogia da formação do campo da antropologia brasileira destacando três principais períodos dos estudos antropológicos no Brasil: o primeiro reconstrói os trabalhos produzidos até 1930, o segundo momento se dá a partir de 1930 e vai até 1960 e o terceiro momento é aquilo que vem após 1960 e chega aos anos 1980 período de escrita e publicação do referido artigo. Nesse primeiro momento destacado por Melatti (2007), isto é, até os anos 1930, a antropologia brasileira ainda não era um campo bem delimitado no Brasil, não havia, por exemplo, uma formação acadêmica em Antropologia e era um momento em que começava a surgir como um subcampo das ciências humanas na Europa. Parte curiosa do registro de material que serviria aos estudos antropológicos começa com uma grande contribuição de viajantes, cronistas, missionários e de outros profissionais como médicos, militares, juristas e engenheiros que interessados nos relatos compartilhados de viagens passavam a descrever aspectos dessas experiências. Seus relatos serviram como material de pesquisa documental para os antropólogos e outros estudiosos. Esses pesquisadores, quase todos autodidatas em Antropologia, a par de seus levantamentos a respeito de índios, negros, sertanejos, mostravam na maior parte dos casos um certo interesse no destino das populações que estudavam e seu lugar na formação do povo brasileiro, cujo futuro era objeto de suas preocupações (MELATTI, 2007, p. 5). 76 O romance de Daniel Defoe, Robinson Crusoé, é considerado um marco cronológico e conceitual na definição da modernidade. A obra, publicada em 1719, concentra diversas características da Era Moderna (1453-1789) e é sempre lembrada como uma referência para entender o contexto de transição para a Modernidade. Além disso, para nossos interesses aqui do livro é um exemplo interessante das contribuições da literatura e dos relatos de viagem como fontes para interpretação do mundo social. São duas dicas em uma, o romance foi recentemente reeditado e ganhou uma versão belíssima da Editora Ubu (https://www.ubueditora.com.br/robinson-crusoe.html). DICA E, em 1954 também ganhamos uma produção cinematográfica (dirigida por Luis Buñuel, México, Estados Unidos, 1954. Drama/Aventura), a qual você poderá assistir em: https://bit. ly/3Kxb4k4. SINOPSE: a história clássica de Robinson Crusoé, um homem que foi arrastado para uma ilha deserta depois de um naufrágio. O único filme de Luis Buñuel financiado por um estúdio americano. PREMIAÇÕES E FESTIVAIS Venice Film Festival 1954. Academy Awards 1955 | Nomeado: Best Ator in a Leading Role. Locarno International Film Festival 1960. BAFTA Awards 1955 | Nomeado: Best Film from any Source. Fonte: https://bit.ly/3CIZAIu. Acesso em: 30 ago. 2022. Figura – Contribuições da literatura Alguns desses colaboradores que serão lembrados por Melatti (2007) são Roquette Pinto, Nina Rodrigues, Sílvio Romero e Euclides da Cunha. Estes autores contribuíram com registros a respeito dos povos indígenas, negros e sertanejos no período que vai do final do século XIX ao início do século XX, tendo como principal afinidade teórica compartilhada entre eles o uso das teorias de “determinismo geográfico” e “determinismo biológico” para pensar a formação da nação brasileira. https://bit.ly/3CIZAIu 77 Esses autores foram duramente criticados por afirmarem em seus argumentos a hierarquia entre raças, estabelecendo que haveria sociedades superiores e outras inferiores, no caso brasileiro o argumento elaborado por eles afirmava que a formação da nossa sociedade com base na mestiçagem seria ruim para o país, pois apartir dessa mistura aquelas características associadas à raça negra ou indígenas eram vistas como prejudiciais e inferiores em relação ao branco, muitos pesquisadores brancos reforçavam esses estereótipos com teorias racialistas que tenderia enfatizar as supremacias genéticas de uns grupos, grupos brancos, sobre outros, negros e indígenas, e tal premissa estava inspirada em teorias racialistas europeias que viam na mestiçagem um bloqueio ao desenvolvimento da nação. A rigor o conceito de mestiçagem ou miscigenação refere-se aos processos de mistura ou composição racial entre diferentes raças, etnias e culturas. Sobre o termo você poderá aprofundar sua leitura a partir das contribuições de Sergio Costa (2001): No presente contexto, só pode ser apresentado com o status de hipótese é que a mestiçagem, como ideologia de Estado, deixa de existir no Brasil contemporâneo, verificando-se que elementos essenciais desse construto político são crescentemente colocados em questão. Trata-se aqui da busca de novos canais de expressão de identidades culturais e da redescoberta de raízes étnicas, ofuscadas ou neutralizadas no período de vigência da ideologia da mestiçagem. A observação das transformações no espaço público brasileiro nas últimas três décadas evidencia um processo de pluralização cultural e política expresso em desenvolvimentos muito variados, destacando-se entre esses: etnicização de muitas identidades políticas, vertiginoso crescimento do associativismo étnico, um novo direito indígena que pressupõe não mais uma paulatina assimilação dos grupos indígenas mas a permanente preservação de suas formas de vida. Detalhasse três fenômenos particularmente representativos de tais transformações (COSTA, 2001, p. 149). Além disso, conforme explica o pesquisador Flávio Raimundo Giarola, essas teorias foram amplamente compartilhadas e difundidas por meio da ciência que “recebeu largo espaço no Brasil, questionando e disputando espaços inclusive com a religião e a Igreja, até então grandes fontes dos discursos fechados” e “competentes da época”, afirma o pesquisador da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), no artigo “Racismo científico: o legado das teorias bioantropológicas na estigmatização do negro como delinquente”. O que se observa entre as críticas elaboradas sobre essa abordagem precon- ceituosa e limitada é que essas ideias vão produzir um conjunto de interpretações distor- cidas de pessoas negras e indígenas, compartilhadas por meio de “exposições antropo- lógicas”, nas quais indígenas e negros eram transportados de suas terras originárias e levados para espaços de exposição publicas onde eram exibidos publicamente, como mostra a imagem a seguir. 78 Figura 2 – Exposições públicas Fonte: https://bit.ly/3pSk3Tw. Acesso em: 21 ago. 2022. Sobre as teorias racialistas você pode ler este interessante artigo: • COSTA, S. A mestiçagem e seus contrários – etnicidade e nacionalidade no Brasil contemporâneo. Tempo Social – Rev. Sociol, S. Paulo, v. 13, n. 1, p. 143-158, maio 2001. IMPORTANTE A rigor, o único dentre os citados que não compartilhava dessa visão estereotipada da mestiçagem era Roquette Pinto, pois em sua argumentação a mistura entre raças poderia fornecer o melhor de cada uma delas para a formação do país, da nação brasileira. Nesse sentido, cabe ainda destacar que Pinto atribuía força explicativa ao argumento de que a educação estabeleceria maior contribuição social do que a eliminação de raça. Nina Rodrigues, por outro lado, reforçava a hierarquia afirmando a supremacia racial branca como superior e atribuindo aos negros um perfil inferior, seus trabalhos serviram para reforçar estereótipos racializados negativos sobre pessoas negras e será duramente criticado por suas posições. Os problemas sociais do Brasil eram explicados com bases nessas teorias racialistas que atribuíam aos próprios negros, indígenas e sertanejos a responsabilidade pelas desigualdades e as condições sociais que vivenciavam sem considerar os impactos do processo escravocrata, da colonização e da ausência de um projeto político que de fato abrigasse a diversidade de povos, culturas e formas de vida da nação brasileira. Agora, acadêmico, veja que o determinismo geográfico é uma teoria elaborada pelo geógrafo alemão Friedrich Ratzel [1882] (MORAES, 1994), que afirma que as condições espaciais, isto é, geográficas, exercem influência das características pessoais de um grupo social. O determinismo biológico parte de outro pressuposto que afirma que as características 79 genéticas definem as capacidades físicas, psicológicas e biológicas de um ser humano de acordo com o grupo ao qual pertence (etnia). Ambos se assemelham por afirmarem que as diferenças culturais podem ser explicadas pela origem genética, isto é, biológica. Contestando essa abordagem, o antropólogo brasileiro Roque de Barros Laraia (2001) afirmou que qualquer criança poderá ser educada em qualquer cultura, tendo uma situação em que possa ser socializada e ter acesso ao aprendizado. Com isto, o autor reforça o argumento de que as diferenças de comportamento entre as pessoas não são determinadas biologicamente, mas devem ser entendidas antes de tudo pela história cultural de cada um. O comportamento do ser humano depende de um processo de enculturação, isto é, um processo de aprendizado social. Não é a raça que determina o comportamento, mas o processo de aprendizagem cultural. Sabemos que as teorias deterministas têm um componente racista em sua elaboração, assim, muitos antropólogos contestaram tais pressupostos, o antropólogo Franz Boas (2004; 2010), por exemplo, critica veementemente essas afirmações deterministas apresentando dados empíricos de suas pesquisas em que mostrará que há uma diversidade cultural muito mais ampla e que pode ser vista empiricamente quando enxergamos práticas diferentes entre grupos sociais que vivem em localidades geográficas parecidas, exemplar disso são os grupos distintos como os esquimós e os lapões. No Brasil, Gilberto Freyre será lembrado como um autor que supera essa visão das teorias deterministas após a publicação da obra clássica Casa Grande & Senzala em 1933. Freyre havia convivido com Franz Boas em sua passagem pela Universidade de Columbia, seu argumento vai no sentido inverso ao dos autores filiados ao “determinismo” quando afirmou, a partir de uma análise do processo histórico de formação do Brasil, que a miscigenação não representava atraso ao desenvolvimento do país, mas um componente rico de diversidade cultural em que as três raças contribuem de forma virtuosa para a integração do país. Em 1936, Freyre publicou outro importante livro Sobrados e Mucambos, no qual analisa as contribuições culturais particulares dessa matriz de formação do Brasil que é definida pelos seus processos históricos e pela interação dessas diferentes raças. Mais tarde este autor também será criticado pelo excesso de romantização dessa teoria da harmonia entre as “três raças” (indígenas, negros e brancos), a principal crítica ao pensamento deste autor está no fato dele não reconhecer as implicações do racismo na sociedade brasileira ao camuflar essas desigualdades com uma visão “romanceada” baseada numa hierarquia entre brancos e não brancos (negros e indígenas). No presente, não deixa de ser interessante olhar para as contribuições de Gilberto Freyre a partir da perspectiva de Silvio Almeida (2018) que nos convida a imaginar o futuro do Brasil livre de racismo, respeitando os povos indígenas e convivendo harmoniosamente na construção de uma nação que respeita a diversidade e enaltece a construção dessa integração interracial. 80 Muita informação interessante atéaqui, não é, acadêmico? Mas não para por aí, voltemos nosso olhar para essas etapas de formação da antropologia, localizando os estudos clássicos do campo. Na continuidade do que é proposto por Melatti (2007) o segundo período definido é aquele que vai de 1930 até 1960 e é considerado um marco para a profissionalização da área, isto porque foi nesse período que a Antropologia passou a ser uma área das Ciências Sociais e um campo de estudos com formação acadêmica. No ano de 1934 a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Brasil foi criada na Universidade de São Paulo (USP). Entre seus quadros profissionais destacam-se os nomes de Claude Lévi-Strauss, Roger Bastide e Emílio Willems. As Ciências Sociais estavam em pleno desenvolvimento na época, no mesmo ano a Escola de Sociologia e Política também foi fundada, destacando-se entre seus professores os nomes de Donald Pierson e Herbert Baldus. Conforme destacado por Melatti (2007, p. 11) “sem dúvida foi em São Paulo, pelo número de professores, pelo número de alunos e pelo espírito de renovação, o principal foco de irradiação da Etnologia nesse período”. Além dessas escolas, fora do espaço acadêmico universitário, foram criadas em 1937 a Sociedade de Etnografia e Folclore e em 1941 a Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnologia. Na antropologia falamos em etnologia para nos referir aos estudos que se dedicam à análise de situações sociais e documentos registrados pela etnografia de forma detalhada para descrever grupos sociais, etnias ou culturas de um povo de forma comparada. A etnografia estuda um grupo particular em minucia, enquanto a etnologia se serve de diferentes etnografias para realizar um estudo comparado desses dados etnográficos das diferentes sociedades. A Etnologia tem um interesse maior sobre o estudo de sociedades consideradas “nativas”, como os povos indígenas de diferentes partes do mundo, povos africanos ou povos asiáticos, por exemplo. Você pode aprofundar um pouco mais as perspectivas em etnologia a partir da conferência realizada em 29 de agosto de 1994 na Faculdade de Ciências e Letras de Assis, com promoção do Programa de Pós-Graduação em História com a conferencista: Joanna Overing (Escola de Economia – Universidade de Londres). A antropóloga Joanna Overing apresenta uma palestra sobre a sociedade indígena Piaroa, cuja área se estende pela Amazônia, Venezuela e Colômbia. Joanna fala da cultura desse povo e como eles veem o homem branco. Também fala da importância da cosmologia e a cosmovisão promovida dentro daquele grupo. Este vídeo integra o acervo audiovisual do Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa (CEDAP) da Faculdade de Ciências e Letras de Assis (UNESP-FCL). O conteúdo pode ser acessado na íntegra por meio de solicitação. Acesse: http://www.assis.unesp.br/#!/cedap. Você pode fazer uma visita virtual ao Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo clicando nesse link: https://mae.usp.br/. INTERESSANTE https://www.youtube.com/redirect?event=video_description&redir_token=QUFFLUhqbjE4SVJfM0JmZkRXWEtDT0VQMENTbjlXYVRaZ3xBQ3Jtc0tuRVJzdFg5UXZZUTQ3QTUyWTljMk8ySXVMN2M4RXZpZnFOR0p1SWtKSDR2ZTNHVnZPenNzbWszNEpoMk8xeURuQTRYdkM0cWo3QWlKZE1PU1VZc1hSYm5jbGh2VDBvbTVSMUdVWDRoVi1hRFBrb0hmOA&q=http%3A%2F%2Fwww.assis.unesp.br%2F%23%21%2Fcedap&v=MyC3r4w3kYE https://mae.usp.br/ 81 É a partir da década de 1930 que há uma forte influência de estudos norte- americanos no país com a vinda de antropólogos do calibre de Ruth Landes, Charles Wagley e Donald Pierson. A chegada desses pesquisadores influenciará fortemente o campo da antropologia no Brasil até o final da década de 1960. Esses autores contribuem para fortalecer perspectivas teóricas e metodológicas por meio de estudos sobre mudança social, mudança cultural e processos de aculturação. De acordo com Melatti (2007, p. 13), estes antropólogos ampliaram a pesquisa em grupos de comunidade. “[...] tiveram por objeto tanto a população negra, como os grupos indígenas, bem como imigrantes europeus e asiáticos e seus descendentes e ainda a população de áreas de povoamento antigo e economicamente estagnadas”. Todavia, a década mais importante para nossa abordagem aqui neste livro é a década de 1940, pois, segundo Melatti (2007), os estudos chamados de “aculturação” envolvendo as relações entre indígenas e brancos são um marco para época por utilizar a teoria funcionalista para estudar a cultura indígena em sua totalidade, a partir principalmente da sua organização social, sua religião e sua cosmologia. Dentre os principais autores desse período destacam-se Charles Wagley, Eduardo Galvão e Egon Schaden. Nessa época, os trabalhos de pesquisa desses antropólogos caracterizavam-se pelo circuito de expedições que tinham por finalidade abranger o maior número possível de territórios e diferentes grupos indígenas (MELATTI, 2007). Entretanto, veja bem, acadêmico, conforme aponta Melatti (2007) tinham grupos de pesquisadores que estavam interessados em estudar a população negra, também nesse período, alguns deles são Roger Bastide, Edson Carneiro, Ruth Landes e Arthur Ramos, cujo interesse de pesquisa estava focado na análise das práticas culturais africanas que continuaram a existir no Brasil, após o processo colonial de escravização. Para estes autores, mesmo enfrentando o deslocamento forçado com a perda de várias referências de sua própria cultura de origem em detrimento da alta exposição às crenças e valores culturais do grupo dominante, ainda era possível encontrar traços culturais africanos presentes nas práticas, valores e hábitos desses remanescentes. É nesse contexto de pesquisa e nesse período que os estudos de antropologia urbana se cruzam com os estudos de comunidade por efeitos do deslocamento de análises para o campo das cidades brasileiras onde estarão grupos religiosos, grupos étnicos e formas de vida em interação ou os chamados estudos de contato interétnicos que envolve também os estudos de grupos de imigrantes, exemplar disso são os estudos de Emílio Whillems sobre os alemães, os trabalhos de Ruth Cardoso sobre os japoneses, assim como os estudos de Eunice Durham sobre os italianos. Esses trabalhos discutiam aculturação a partir dos estudos de comunidade. Porém, a partir de 1952, chegam sucessivamente três missões científicas da Universidade de Tóquio para estudar os japoneses e seus descendentes no Brasil em colaboração com pesquisadores brasileiros. O primeiro a chegar, em 1952, foi Seiichi Izumi, que volta outra vez ao Brasil em 1955 à frente de uma equipe; em 1957 chega uma 82 equipe dirigida por Fumio Tada. Ao mesmo tempo em que esses pesquisadores japoneses atuavam, desenvolviam-se os trabalhos de Hiroshi Saito, em colaboração com eles, e, ainda, os de Egon Schaden e de Ruth Correia Leite Cardoso (MELATTI, 2007, p. 14-15). Os chamados estudos de comunidade vão se consolidar entre as décadas de 1940 e 1950, encontrando ainda bastante produção até a década de 1970. Autores como Emílio Willems, Oracy Nogueira, Donald Pierson e Antônio Cândido são lembrados como expoentes desse período, de acordo com Melatti (2007). Estes estudos empregavam como atividade de pesquisa o convívio e a inserção do antropólogo na comunidade pesquisada, ao estabelecer essa relação de pesquisa o antropólogo teria uma visão ampliada e de maior duração com a comunidade. Esses estudos foram utilizados como referência fundamental no desenvolvimento das etnografias realizadas em contextos urbanos, pesquisadores tomaram esses trabalhos como modelo metodológico para realizar estudos urbanos. Roberto Cardoso de Oliveira (1928-2006) formou-se em Filosofia na Universidade de São Paulo (USP) no início da década de 1950, mas é na Antropologia que sua carreira se consolida. Seu primeiro contato com a disciplina ocorreu ainda naUSP, por meio das aulas ministradas pelo sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995), que anos mais tarde orientaria sua tese de doutorado intitulada Urbanização e Tribalismo: a interação dos índios Terena em uma sociedade de classes (1966). Após a graduação, constrói sua trajetória antropológica em quatro instituições: primeiramente no Museu do Índio em 1954, onde iniciou um trabalho junto aos índios Terena, localizados no estado do Mato Grosso (atual Mato Grosso do Sul), e participou dos cursos de especialização em Antropologia Cultural ministrados por Darcy Ribeiro (1922-1997). Em 1958 torna-se professor no Museu Nacional, onde continua seus trabalhos em Etnologia, junto aos Terena e aos Ticuna, do Alto Solimões, desenvolvendo o conceito de fricção interétnica. Ali cria o curso de especialização em teoria e pesquisa em Antropologia Social, baseado em um modelo que alia dedicação integral a ensino teórico e prático. Posteriormente, organiza com David Maybury-Lewis (1929-2007) o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social na mesma instituição. Em 1972 transfere-se para a Universidade de Brasília (UnB), com a missão de criar o programa de mestrado e doutorado em Antropologia. Nesse período dedica-se a outros temas de pesquisa, voltando-se para uma reflexão epistemológica sobre o fazer antropológico. Esse retorno à Filosofia aprofunda-se com a mudança e contribuição para o curso de doutorado em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em 1985. Seu objetivo era desenvolver uma reflexão sobre o fazer antropológico no Brasil e em outros países considerados “periféricos”. Ao final da década de 1990 retorna à UnB, onde permanece trabalhando no Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas (atualmente Departamento de Estudos Latino-Americanos) até a sua morte em 2006. O breve apanhado de sua trajetória mostra que Cardoso de Oliveira participou ativamente do processo de institucionalização da disciplina antropológica no país, liderando a criação de programas de mestrado e doutorado. INTERESSANTE 83 É importante destacar que ele tomaria parte nos primeiros trabalhos de avaliação da pós-graduação na área, participando de comissões da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES); o antropólogo contribuiu decisivamente para o aprimoramento da pós-graduação no Brasil. Este engajamento institucional veio acompanhado de intenso trabalho intelectual e docente, que resultou em uma significativa produção acadêmica. Seus principais livros publicados são: O Índio e o Mundo dos Brancos (1964), A Sociologia do Brasil Indígena (1972), Sobre o Pensamento Antropológico (1988) e O Trabalho do Antropólogo (1998). O projeto intelectual de Roberto Cardoso de Oliveira pode ser dividido em dois momentos: as pesquisas sobre fricção interétnica e aquelas sobre o fazer antropológico no Brasil, em países que denominou “centrais” e “periféricos”. Os primeiros estudos projetam uma reflexão sobre as relações entre indígenas e sociedade nacional. O antropólogo propõe olhar para esse contato como uma disputa dos elementos da cultura a serem incorporados e da interdependência de recursos materiais e naturais; uma situação de contato entre sociedades e culturas, por meio de interesses opostos e interdependentes. Tal abordagem surge como alternativa ao conceito de aculturação, ou seja, da progressiva incorporação dos índios à cultura do mundo dos brancos, conceito então predominante no Brasil. A abordagem política em relação às sociedades indígenas, iniciada pelos estudos de aculturação encontra na crítica de Cardoso de Oliveira um espaço para ir além da associação corrente entre política e dominação: ele insere aí a noção de identidade étnica pensada como irredutível às mudanças sociais e culturais decorrentes do contato. Gostou da leitura, acadêmico? Se desejar continuar lendo sobre esse autor, confira a referência da Enciclopédia de Antropologia, onde consta o texto completo. Fonte: https://bit.ly/3ASXbsf. Acesso em: 26 ago. 2022. A década de 1950 será importante para os estudos indígenas e nomes como Darcy Ribeiro e Roberto Cardoso de Oliveira serão destacados como aqueles principais pesquisadores desse período, suas contribuições imprimem um novo olhar para a antropologia. Isto acontece em face dos trabalhos destes pesquisadores se voltarem para o uso de pesquisa de campo etnográfica com trabalho fortemente dirigido para a análise da relação e integração entre povos indígenas e sociedade nacional. Melatti (2007) lembra que esse período foi determinante para consolidação da antropologia no Brasil, mas mais importante ainda foi para a agenda de estudos indígenas tornando a Etnologia um ramo de pesquisa de grande fôlego na antropologia brasileira. 84 Figura 3 – Consolidação da antropologia no Brasil Fonte: https://bit.ly/3pWCyGd. Acesso em: 26 ago. 2022. Seguindo a abordagem de Melatti (2007), o terceiro período é definido como a partir da década de 1960 e todas as iniciativas institucionais mencionadas anteriormente vão consolidar e impulsionar a produção científica em diferentes ramos e subáreas da antropologia, exemplo disso são a antropologia rural e a antropologia urbana. Em 1968 é criado, então, o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional na Universidade Federal do Rio de Janeiro que será um destacado centro de estudos e pesquisas com área de concentração em Etnologia, logo em seguida no ano de 1971 é criado o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Campinas e em 1972 é criado o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília. Com a expansão do campo acadêmico os estudos de comunidade foram perdendo força e passaram a dar lugar para outras áreas de pesquisa como os estudos regionais, com destaque para os estudos de campesinato, trabalhadores rurais e os impactos diante da expansão do mundo urbano e a formação de outro grupo social: os trabalhadores urbanos (MELATTI, 2007, p. 22). Há, por exemplo, uma mudança de perspectiva teórica entre os antropólogos dos estudos etnológicos, quando passam a substituir o estudo da aculturação na relação entre indígenas e brancos pelo estudo da fricção interétnica, proposta elaborada por Roberto Cardoso de Oliveira (1962, p. 86). Chamamos ‘fricção Inter étnica’ o contato entre grupos tribais e segmentos da sociedade brasileira, caracterizados por seus aspectos competitivos e, no mais das vezes, conflitais, assumindo esse contato muitas vezes proporções ‘totais’, i.e., envolvendo toda a conduta tribal e não tribal que passa a ser moldada pela situação de fricção Inter étnica. 85 Assim, não era mais o interesse da perda de traços e da identidade indígena no contato com o branco, agora a etnologia interessava-se por evidenciar os conflitos entre valores dissonantes dos indígenas e da sociedade nacional. Em 1960, Roberto Cardoso de Oliveira publicou seu livro “O processo de assimilação dos Terena”, em seguida, em 1964, publicou “O Índio no Mundo dos Brancos: a situação dos Tukúna do Alto Solimões” e, logo depois, “Identidade, etnia e estrutura social” (1976). Estas obras representam um marco para os estudos etnológicos com foco na análise da presença de indígenas na sociedade nacional. Essa subárea de pesquisa vai influenciar fortemente a atuação dos antropólogos na defesa dos direitos indígenas, fazendo do seu trabalho de pesquisa uma fonte de produção de conhecimento das necessidades, direitos e demandas indígenas. Ainda nos anos de 1960 o antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira (1963) introduz uma nova maneira de realizar pesquisa no Brasil a partir do projeto “Estudo de áreas de fricção interétnica no Brasil”, no qual o pesquisador vai investir nas relações entre as sociedades indígenas e a sociedade nacional. A noção de poder ganha visibilidade na elaboraçãode pesquisas sobre povos indígenas levando em conta as posições de dominação e de subordinação que tomam os membros das sociedades em contato, o conflito entre as técnicas, regras, valores das mesmas sociedades colocados em perspectiva. Na década de 1970 a atuação da ABA passa a se intensificar no trabalho com a atuação no mundo acadêmico e na mobilização de direitos e interesses de populações indígenas, isto porque os estudos antropológicos realizados com populações indígenas foi um importante instrumento que combinou o conhecimento científico com a luta social para defender direitos dessas populações, “como demarcação de terras, assistência médica, instrução, administração direta pelos índios de sua produção para mercado e outros” (MELATTI, 2007, p. 24). Será nesse período que os estudos de estrutura social das sociedades indígenas com uso da teoria estruturalista ganham força com a contribuição de David Melbury-Lewis Projeto Harvard-Brasil Central que estabelecia parceria entre a Universidade de Harvard e o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (PPGAS/MN). A influência desse projeto se dá na realização das pesquisas em que “há um esforço no sentido de captar os modelos nativos, a fim de também submetê-los à interpretação geral do pesquisador” (MELATTI, 2007, p. 26). De acordo ainda com este autor, alguns pesquisadores como Roque Laraia, Júlio Cezar Melatti e Roberto DaMatta fizeram parte desse projeto. Inclusive, a teoria estruturalista vai fornecer uma nova base conceitual com o foco nos estudos de mitos e ritos que será utilizada pelo antropólogo Roberto DaMatta para refletir sobre a sociedade brasileira em seu livro “Carnavais, malandros e heróis” publicada pela primeira vez em 1979. Pretendia-se chegar a uma visão geral da sociedade brasileira através da soma de muitos exemplos distribuídos pelas diversas regiões do Brasil. Além desse objetivo geral, tais estudos estavam quase sempre voltados para objetivos específicos, como mudança cultural, persistência da vida tradicional, problemas de imigrantes, educação e vários outros (MELATTI, 2007, p. 18). 86 Para finalizar este subtópico, é importante que você, acadêmico, lembre- se que até a década de 1970 a realização de pesquisas em pequenas cidades utilizando uma abordagem qualitativa com observação direta vai continuar alimentando o campo da antropologia com os estudos de comunidade, tendo inclusive forte influência sobre pesquisas em sociedades indígenas, conforme apontado por Júlio Cezar Melatti. Atualmente, estima-se que existam 305 povos indígenas do Brasil, o que significa 0,4% da população e aproximadamente 900.000 pessoas, segundo o Censo de 2010. Usamos o termo “povos indígenas” para fazer referência ao grupo de pessoas que são descendentes dos povos que habitavam o Brasil quando houve a invasão europeia. Naquela época contabilizavam-se sete milhões de indígenas de várias etnias. Há uma diversidade de povos indígenas e os guajajaras e os guaranis são os maiores grupos. Observe, acadêmico, que usei o termo “povos indígenas” de forma proposital, pois o termo "índio" tem cada vez mais entrado em desuso, isto acontece porque há uma compreensão de que o termo “índio” reforça estereótipos e os próprios indígenas articulam uma crítica ao uso desse termo, pois se sentem aprisionados numa compreensão distorcida de si mesmos e que reforça desigualdades e a negação de sua identidade e sua pluralidade. Os povos indígenas fazem parte também dos povos e comunidades tradicionais”, que se refere aos povos que ocupam ou reivindicam seus territórios com base na sua ocupação permanente ou temporária, por isso “territórios tradicionalmente ocupados”. Os membros dessas comunidades tradicionais têm uma forma de vida própria e em geral diferente daquela encontrada na sociedade nacional, isto que caracteriza esses grupos como aqueles detentores de uma identidade e de direitos que lhes são próprios. Para você ter uma ideia dessa diversidade observe as contribuições do etnólogo alemão Curt Nimuendajú (1883-1945) que foi considerado o pai da etnologia brasileira. A seguir, você encontra um recorte do famoso Mapa Etno-Histórico do Brasil e Regiões Adjacentes, elaborado por ele e que dá uma dimensão dessa diversidade dos povos indígenas. INTERESSANTE Fonte: https://bit.ly/3wJanOV. Acesso em: 26 ago. 2022. 87 VERSÃO DIGITAL DO MAPA ETNO-HISTÓRICO DE NIMUENDAJÚ Iphan com colaboração do Museu Goeldi Em 2017, houve o lançamento de uma reedição do Mapa Etno-Histórico do Brasil e Regiões Adjacentes, de Curt Nimuendajú e versão digital do mapa original. O lançamento do mapa fez parte da programação do aniversário de 80 anos do Iphan. Veja o texto da Agência Museu Goeldi, que fala do etnólogo, sua produção e o mapa. Agência Museu Goeldi – Uma das mais célebres obras cartográficas produzidas no Brasil, e considerada um marco dos estudos das línguas e culturas indígenas, estará disponível na internet a partir do dia 27 de setembro, no portal do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). São mais de 900 referências sobre etnias e línguas indígenas, coletadas entre os séculos XVI e XX, e catalogadas em 1943 no Mapa Etno-Histórico do Brasil e Regiões Adjacentes pelo etnólogo alemão Curt Unckel, conhecido mundialmente como Curt Nimuendajú. “Curt Nimuendajú desenhou, à nanquim, três versões não idênticas para o mapa-etnográfico. A primeira versão foi elaborada para a Smithsonian Institution (EUA), em 1942; a segunda, em 1943, para o Museu Paraense Emílio Goeldi (Belém – BR), a pedido de Carlos Estevão de Oliveira; e a última versão, provavelmente a mais completa, foi traçada em 1944 para o Museu Nacional (RJ – BR). “Acho uma iniciativa louvável disponibilizar na internet este trabalho grandioso, meticuloso e que exigiu de seu construtor profundos conhecimentos de Etnologia, de História, de localização de povos indígenas e seus deslocamentos pelo Brasil da época. Com certeza, contribuirá e muito com a pesquisa nas áreas de antropologia, etnologia, história e tantas outras áreas afins”, destaca a pesquisadora da Coordenação de Ciências Humanas do Museu Goeldi, Alegria Benchimol, que há anos se dedica ao estudo e documentação do acervo etnológico do Goeldi. Figura – Monumento à Curt Nimuendajú no Parque Zoobotânico do Museu Goeldi http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4784439Z7 88 Utilizando a técnica de restauração digital, a versão original do mapa, que mede quatro metros quadrados, foi fotografada quadrante por quadrante, em alta resolução. Com isso, será possível, na versão digital, visualizar as informações em tamanho ainda maior que em sua versão física. Além da versão digital do mapa, será lançada também uma edição revisada e ampliada da obra – um mapa e um livro (impresso e digital). A digitalização do mapa é parte do projeto Plataforma Interativa de Dados Geo-Históricos, Bibliográficos e Linguístico-Culturais da Diversidade Linguística no Brasil, realizado pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e pelo Iphan, por meio da equipe técnica do Inventário Nacional da Diversidade Linguística do Departamento do Patrimônio Imaterial (INDL/DPI/Iphan). Um dos objetivos do projeto é utilizar novas tecnologias da informação e da comunicação para promover o acesso a conteúdo como a restauração digital do mapa original, a versão digital na íntegra dos documentos históricos e etnográficos mencionados por Curt Nimuendajú, além de mapas e informações contemporâneas da diversidade linguística no Brasil. Os coordenadores editoriais, Marcus Vinicius Carvalho Garcia (Iphan) e Jorge Domingues Lopes (UFPA), contam que lançar a publicação de uma nova edição do Mapa Etno-Histórico do Brasil e Regiões Adjacentes e disponibilizar a versão digitalizadado original na internet é tornar acessível à sociedade um dos mais importantes documentos etnográficos produzidos no Brasil. A reedição apresenta uma revisão completa do documento, contendo, inclusive, pequenos ajustes que foram identificados no processo de pesquisa. A publicação, de 120 páginas, está organizada em forma de coletânea, com textos que servem como guias para a leitura do mapa. O projeto conta com o apoio técnico e institucional do Museu Paraense Emílio Goeldi, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Figura – Curt Nimuendajú e o Mapa Etno-Histórico 89 Curt Nimuendajú e o Mapa Etno-Histórico – Curt Unckel (1883-1945) nasceu na cidade alemã de Jena e tornou-se etnólogo a partir da experiência de contato e de pesquisa com povos indígenas no Brasil. Foi batizado pelos guaranis como Nimuendajú (“o que fez seu assento”, “o que se estabeleceu”, conforme tradução livre do linguista Aryon Rodrigues). Foi um dos principais pesquisadores da diversidade social e cultural da Amazônia e, além de uma vasta obra intelectual, também produziu três versões do mapa etno-histórico. Após Nimuendajú fixar residência na Amazônia, passou a colaborar com o Museu Goeldi, como pesquisador e curador pioneiro até seu falecimento. “Nimuendajú, naturalizado brasileiro em 1922, foi considerado como a principal figura da etnologia brasileira do seu tempo. Foi um autodidata fecundo intelectualmente que se destinou a coletar, pesquisar, ensinar e disseminar os conhecimentos que adquiriu em 40 anos de atividades dedicadas aos povos indígenas do Brasil”, acrescenta Benchimol. Elaborado artesanalmente, o mapa, considerado como uma obra fundamental para o conhecimento das terras baixas da América do Sul, classifica 40 famílias linguísticas e identifica cada uma delas com tonalidades ou cores específicas. Para o antropólogo George Zarur, o mapa de Nimuendajú é uma obra clássica da antropologia brasileira, síntese de todo um conhecimento antes fragmentado e disperso. Fonte: https://bit.ly/3crl81D. Acesso em: 26 ago. 2022. 3 OS ESTUDOS DE COMUNIDADE Os chamados estudos de comunidade foram marcantes nas décadas de 1940 e 1950, quando os pesquisadores passaram a utilizar o método de observação direta para pesquisar pequenas cidades ou vilas tendo como inspiração os estudos clássicos da etnologia focados em sociedades “tribais”. Este grupo de pesquisas pensa o grupo social como uma unidade de análise para apreender uma realidade social. Os estudos de comunidade foram bastante populares nesse período por fornecer uma metodologia que permitiria aos pesquisadores elaborar uma compreensão ampliada da sociedade brasileira. A ideia central era que muitos pesquisadores associados a essa perspectiva metodológica poderiam realizar inúmeras pesquisas ao redor do Brasil e juntas elas forneceriam um olhar sobre o que define a sociedade brasileira, apontando suas diferenças, traços culturais, manifestações religiosas e estruturas sociais dos grupos estudados. Naquele período buscava-se explicações e conceitos que definissem o Brasil, na perspectiva de alguns autores desse período isso seria possível se eles reunissem o maior número de informações por meio dos estudos de comunidade em todas as regiões do país. http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4784439Z7 90 Para além dessa dimensão há outras que reúnem esses pesquisadores, como o interesse no estudo das mudanças culturais considerando por exemplo a migração do campo para a cidade, os impactos das novas formas de produção no meio rural, a persistência da vida tradicional mesmo com o desenvolvimento do meio urbano, processos de educação, imigração, dentre outros. Estes estudos representam uma importante relação entre os estudos clássicos e os estudos urbanos, na definição proposta por Oracy Nogueira, tais estudos assumem: O sentido restrito de estudo de um grupo local, de base territorial, integrado numa mais ampla e complexa estrutura social, de que é tomado como amostra, pelo autor, para o conhecimento de determinadas situações ou problemas. Tais estudos implicam, pois, a transferência, para o campo de investigação das sociedades mais complexas, de uma perspectiva metodológica que de há muito pouco os antropólogos e etnólogos vinham aferindo e enriquecendo, no estudo das sociedades mais simples, pré-letradas ou primitivas (NOGUEIRA, 2018, p. 126). Aliás, destacamos o estudo de Oracy Nogueira que trouxe como tema Família e comunidade, estudo sociológico de Itapetininga (1962), realizado em uma cidade do interior de São Paulo. Por estudos de comunidades temos em vista aqueles levantamentos de dados sobre a vida social em seu conjunto, relativos a uma área cujo âmbito é determinado pela distância a que se situam nas várias direções, os moradores mais afastados do centro local de maior densidade demográfica, havendo entre os moradores do núcleo central e os da zona circunjacente, assim delimitada, uma interdependência direta para a satisfação de, pelo menos, parte de suas necessidades fundamentais (NOGUEIRA, 2018, p. 127). Por um lado, os estudos de comunidade permitiram um olhar em escala microssocial sobre uma comunidade específica, mas por outro era criticado por não fornecer uma boa análise em perspectiva macrossocial, conectando as observações de um grupo particular aos problemas e desafios encontrados na estrutura social nacional. As comunidades ou grupos sociais estudados poderiam ter alguns poucos habitantes até aglomerados urbanos com mais de 15 mil habitantes urbanos, assim como habitantes de pequenos aglomerados rurais. Inclusive destaca-se no campo da antropologia trabalhos que investigam a economia como uma subárea onde encontramos uma “antropologia rural”, isto porque parte desses estudos estavam interessados em compreender a agricultura, a pecuária, as atividades da indústria em ascensão de extrativismo vegetal e animal. Nesse sentido, os estudos de comunidade se tornaram um importante movimento teórico no Brasil por estarem engajados no levantamento de informações e dados de pesquisa da realidade brasileira de maneira mais ampla. 91 As observações diretas poderiam fornecer informações do comportamento social de um grupo, qual a sua linguagem comum, suas atitudes, seus hábitos alimentares, suas práticas religiosas, suas festividades, sua economia, a maneira como ocupam a terra, o modo como se relacionam entre si e com os animais e os espíritos da floresta, enfim, inúmeras formas de aprender aquela realidade social. Segundo Nogueira, os estudos de comunidade possibilitam uma diferenciação significativa em relação aos estudos de grande escala (com dados estatísticos), pois permitem acessar o conhecimento das pessoas em relação às suas subjetividades, seus valores, seus costumes, ampliando a compreensão dos aspectos interindividuais socialmente compartilhados. O próprio Oracy Nogueira chama a nossa atenção para estudos de comunidade clássicos, são eles: • O de Emílio Willems, Cunha, tradição e transição em uma cultura rural do Brasil, São Paulo: Diretoria de Publicidade Agrícola da Secretaria da Agricultura, 1947. • O de Lucila Herrmann, Evolução da estrutura social de Guaratinguetá num período de trezentos anos. Revista de Administração, a. II, n. 5-6, p. 1-326, março-junho de 1948. • O de Donald Pierson, Cruz das Almas, a brazilian village. Washington: Smithsonian Institution, Institute of Social Anthropology, publicação n. 12, 1951. • O de Charles Wagley, Amazon town, a study of man in the tropics. New York; The Macmillan Company, 1953. Para Nogueira, os estudos de comunidade contribuíram porser agente de uma mudança social e cultural, mas também por fornecer uma “visão realista sobre a vida dos pequenos e rústicos aglomerados do interior e da população rural, mostrando o seu lado dramático e humano, seus problemas e suas dificuldades, suas condições reais e suas aspirações, seus recursos e sua experiência” (NOGUEIRA, 2018, p. 130). Entretanto, conforme destacado por Julio Cezar Melatti (2007) os estudos de comunidade receberam algumas críticas como o fato de não darem a devida importância à análise dos documentos e registros históricos, recebendo uma crítica por não considerarem a análise da vida social desses grupos como um processo, que pode haver mudanças. Tais críticas ainda apontam para a dificuldade desses autores em articular a dimensão das relações sociais que existem entre essas comunidades e a sociedade nacional, contribuindo para uma visão reducionista, limitada e artificial que congela e isola esses grupos dentro do seu próprio contexto. O que torna esse subtópico especial é maneira que a antropologia vai se transformando a partir do estudo e da pesquisa com essas populações e vai modificando sua perspectiva teórica, metodológica e política. 92 Pense bem, se os estudos clássicos focavam no determinismo para sustentar suas posições preconceituosas a respeito de grupos e populações étnicas que são diferentes, com o renovado olhar da investigação antropológica brasileira essas perspectivas vão se mostrando limitadas e o exercício de relativismo e afirmação da alteridade se coloca em primeiro plano no fazer antropológico. Também é notável o fato de que estudos clássicos que davam ênfases em aspectos econômicos, políticos e culturais de grupos indígenas passam a introduzir novas formas de olhar para as relações sociais em determinados territórios e a perceber outros grupos sociais não indígenas presentes nesses contextos. É a partir desse deslocamento que os estudos de populações camponesas se encontram com os estudos de etnológicos, mostrando sua relação, seus conflitos, a diversidade que há quando se considera o aspecto regional, pois este também vai revelar outras nuances da vida social em torno do conflito de posse e usos da terra. A seguir você terá a oportunidade de aprender e conhecer um pouco de alguns desses grupos sociais aqui mencionados, na leitura complementar você o desafio de exercitar a “alteridade”, preste bem atenção ao texto de Horace Miner, nele encontramos uma rica maneira de perceber como nossos olhares sobre outro mundo, ou grupo social pode ser condicionado e preconceituoso. Nos próximos tópicos vamos avançar um pouco mais em alguns desses estudos, conheceremos formas de uso e subsistência dessas populações, em seguida, no último tópico, abordaremos aqueles confrontos e formas de vida que estão no nosso tempo, faremos uma atualização acerca dos estudos das populações rurais no Brasil contemporâneo. Então, acadêmico, aproveite bem as leituras e faz uma revisão respondendo as autoatividades, nos vemos no Tópico 2. 93 Neste tópico, você aprendeu: • O contexto que envolve a formação da Antropologia brasileira. • As principais pesquisas que contribuíram para a formação do campo Antropologia Rural. • Estudou o contexto histórico e marcos teóricos do campo da Antropologia Rural. • Aprendeu os autores clássicos e sua abordagem acerca das identidades e territorialidades no mundo rural. • Aprendeu o marco dos estudos de comunidade e sua influência teórica e metodológica para as pesquisas sobre as populações do mundo rural no Brasil. RESUMO DO TÓPICO 1 94 1 Os primeiros trabalhos relacionados ao estudo do ambiente rural ou do campo acontecem numa época em que a antropologia ainda não era uma área acadêmica bem estruturada no Brasil. Sobre isso, importantes contribuições foram catalogadas no trabalho intitulado “A Antropologia no Brasil: um roteiro”, que foi publicado em 1983 (republicado em 2007) do antropólogo Júlio Cezar Melatti (2007). Assim, este autor procurou traçar uma genealogia da formação do campo da antropologia brasileira, destacando três principais períodos dos estudos antropológicos no Brasil. Sobre esses grandes períodos do conhecimento da Antropologia, assinale a alternativa CORRETA: Fonte: MELATTI, J. C. A Antropologia no Brasil: Apresentação. Anuário Antropológico, v. 7, n. 1, p. 227, 2007. Disponível em: http://twixar.me/gmMm. Acesso em: 6 set. 2022. a) ( ) O primeiro período reconstrói os trabalhos produzidos até 1930, o segundo momento se dá a partir de 1930 e vai até 1960 e o terceiro momento é aquele que vem após 1960 e chega aos anos 1980. b) ( ) O primeiro período é definido por aquelas etnografias publicadas até 1830, o segundo período marca a produção dos relatos de viagem entre 1830 e 1960, o último período é definido por antropologia contemporânea e marca o conjunto de trabalhos realizados após 1980. c) ( ) Roberto Cardoso de Oliveira, Julio Cezar Melatti e Franz Boas são as principais referências de cada um desses períodos. d) ( ) Nina Rodrigues, Roque Barros Laraia e Roger Bastide são representantes do primeiro período definido por Melatti. 2 Considera-se fundamental a mudança de perspectiva teórica e metodológica de acordo com os três períodos assinalados por Melatti (2007). Com base nas definições e teorias mobilizadas pelo autor, analise as sentenças a seguir: Fonte: MELATTI, J. C. A Antropologia no Brasil: Apresentação. Anuário Antropológico, v. 7, n. 1, p. 227, 2007. Disponível em: http://twixar.me/gmMm. Acesso em: 6 set. 2022. I- A formação da antropologia brasileira foi marcada por influências de autores estrangeiros, alguns principais dos autores do período dos estudos de “aculturação” foram Charles Wagley, Eduardo Galvão e Egon Schaden. II- Os trabalhos de pesquisa desses antropólogos citados acima caracterizavam-se pelo circuito de expedições que tinham por finalidade abranger o menor número possível de territórios e similares grupos indígenas. III- Na década de 1940 os chamados estudos de “aculturação” envolvendo as relações entre indígenas e brancos são um marco para época por utilizar a teoria funcionalista para estudar a cultura indígena em sua totalidade, a partir principalmente da sua organização social, sua religião e sua cosmologia, AUTOATIVIDADE 95 Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As sentenças I e II estão corretas. b) ( ) Somente a sentença II está correta. c) ( ) As sentenças I e III estão corretas. d) ( ) Somente a sentença III está correta. 3 Considerada importante influência teórica e metodológica para a formação do campo da Antropologia Rural, os estudos de comunidade é uma das principais áreas de antropologia e se destacou por estar interessada em conhecer o contexto pesquisado em sua totalidade. De acordo com as contribuições de seus estudos etnográficos, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas: ( ) Os chamados estudos de comunidade vão se consolidar entre as décadas de 1940 e 1950, encontrando ainda bastante produção até a década de 1970. Autores como Emílio Willems, Oracy Nogueira, Donald Pierson e Antônio Cândido são lembrados como expoentes desse período. ( ) O antropólogo Radcliffe-Brown foi a principal influência teórica da Escola de Comunidade, seus estudos ensinam como os antropólogos devem consolidar sua visão de mundo sobre as sociedades estudadas, seu método sugere que o pesquisador em campo tome seu próprio grupo como ponto de partida para avaliar e medir valores, hábitos e modelos de existências como se fossem superiores, melhores ou os mais corretos a serem seguidos. ( ) É nesse período que os estudos de antropologia urbana se cruzam com os estudosde comunidade por efeitos do deslocamento de análises para o campo das cidades brasileiras onde vão estar grupos religiosos, grupos étnicos e formas de vida em interação ou os chamados estudo de contato interétnicos que envolve também os estudos de grupos de imigrantes, exemplar disso são os estudos de Emílio Whillems sobre os alemães, os trabalhos de Ruth Cardoso sobre os japoneses, assim como os estudos de Eunice Durham sobre os italianos. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) V – F – F. b) ( ) V – F – V. c) ( ) F – V – F. d) ( ) F – F – V. 4 Cientes do impacto das transformações pelas quais o cotidiano do mundo rural apresentava, diferentes abordagens e pesquisadores tentaram entender a multiplicidade de termos, conceitos e categorias que procuram dar conta desse universo imenso de conhecimento que envolve as populações que vivem no campo. Assim, a Antropologia Rural pode ser definida como uma subárea da antropologia que se dedica ao estudo dessas populações a partir da investigação antropológica e do uso da etnografia. Alguns antropólogos se dedicaram ao estudo dos modos de vida com destaque para as relações de parentesco, etnicidade, alimentação, práticas festivas, rituais religiosos, territorialidade, economia, saúde, moradia, novas 96 tecnologias no campo, dentre outras áreas de estudos. Considerando a importância dessas pesquisas no contexto brasileiro, disserte sobre duas influências teóricas do primeiro período mencionadas por Melatti (2007) que contribuíram para o estudo da diversidade do rural e das populações rurais no Brasil (indígenas, negros, sertanejos). Fonte: MELATTI, J. C. A Antropologia no Brasil: Apresentação. Anuário Antropológico, v. 7, n. 1, p. 227, 2007. Disponível em: http://twixar.me/gmMm. Acesso em: 6 set. 2022. 5 Os antropólogos rurais observam a maneira como se formam as famílias, os grupos sociais, suas formas de interagir entre si e com outros grupos, assim como é importante registrar as condições de vida dessas populações, considerando inclusive o grupo étnico ao qual pertencem os moradores que vivem na área estudada. Disserte sobre a importância da reforma agrária no contexto de enfrentamento às desigualdades sociais, lembre-se da diversidade de grupos sociais que são atingidos por essa política social e cite alguns deles. 97 POVOS TRADICIONAIS E SEUS MODOS DE USO E OCUPAÇÃO DO ESPAÇO RURAL UNIDADE 2 TÓPICO 2 — 1 INTRODUÇÃO Caro acadêmico, a seguir, faremos algumas considerações dos itinerários percorridos por algumas temáticas do campo. Embora mantenha como referência os dados da criação distribuição e desenvolvimento das diferentes linhas de pesquisa, apresento a você exemplos de modos de ocupação e uso do espaço rural. Figura 4 – Espaço rural Fonte: https://bit.ly/3AxlnzV. Acesso em: 26 ago. 2022. No entanto, primeiro, nessa seção introdutória gostaria de retomar dois temas tradicionais na antropologia brasileira, pois se trata de áreas de extrema relevância histórica e social, já mencionei, por exemplo, quando apresentei a formação da antropologia no Brasil, a etnologia indígena e os estudos de comunidade aplicados a diferentes contextos (rural e urbano) desempenharam forte influência na formação da antropologia. A etnologia indígena é considerada uma grande tradição de estudos e foi articulada com outra área de conhecimento chamada Antropologia da Sociedade Nacional, de acordo com o antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira (1988) essa área organizou e definiu as bases de formação do campo acadêmico e de produção em pesquisa na antropologia desde seus primórdios. 98 Para Roberto Cardoso de Oliveira (1988) há uma área chamada Identidade, Território e Relações Interétnicas que se ocupou substancialmente de uma subárea de estudos da Etnologia Indígena quando se interessou pelos estudos de contato interétnico, da etnicidade e do indigenismo. Conforme apontado pela antropóloga Alcida Rita Ramos (1990), foi assim, por exemplo, que essas duas subáreas passaram a representar duas perspectivas ao mesmo tempo complementares e distintas, em algumas situações, até oponentes quando se trata de estudos sobre populações indígenas. Por um lado, uma se voltou para os estudos de organização social e política, religião, arte e cosmologia, enquanto a outra dedicou-se aos estudos das relações sociais e políticas das populações indígenas com a sociedade nacional. No contexto atual, se olharmos para as pesquisas nessa área veremos que essa bifurcação categorizada em Etnologia Indígena e Identidade, Território e Relações Interétnicas espelham essa dualidade e ruptura. A Etnologia Indígena, por exemplo, tem pesquisas mais concentradas no Sudeste do país, mas com alguma ocorrência no Nordeste. Isso acontece pelo renovado estado de colaboração que as pesquisas possibilitam quando diferentes instituições e pesquisadores constroem e alimentam redes de trabalho e pesquisa voltados a temas comuns. No atual cenário nacional essa colaboração se tornou ainda mais intensa em face do foco da etnologia para as temáticas que envolvem o meio ambiente, território, gênero, sexualidade, educação escolar indígena, saúde da população indígena, experiências de deslocamentos de indígenas para o ambiente urbano, assim como outros temas (AMOROSO; SANTOS, 2013; BELTRÃO; LACERDA, 2017). Cabe ainda destacar que no contexto contemporâneo essa temática tem adquirido novo fôlego em pesquisas a partir das contribuições de antropólogos indígenas, como Gersem Baniwa (2016) e Tonico Benites (2014), assim como da instigante e renovada contribuição que surge da experiência de colaboração entre indígenas e antropólogos, exemplo recente desse tipo de colaboração é o trabalho de colaboração que resultou num excelente livro intitulado “A queda do céu” de Bruce Albert e Davi Kopenawa (2015). 99 Figura 5 – Filme “A queda do céu” Fonte: https://bit.ly/3CIxnkM. Acesso em: 26 ago. 2022. O livro é uma escrita colaborativa entre o líder xamã yanomami Davi Kopenawa junto com o antropólogo Bruce Albert, tendo como fonte os relatos colhidos na língua nativa Yanomami e traz um registro único do testemunho da cultura desse povo na perspectiva de um alerta global sobre a Amazônia. Conheça, agora, alguns dos indígenas que decidiram se tornar antropólogos: • Gersem Baniwa nasceu em São Gabriel da Cachoeira (AM), graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) em 1995, tornou-se mestre em Antropologia Social pela Universidade de Brasília (UnB) em 2006, onde também obteve seu doutorado em Antropologia em 2010. Atualmente, tornou-se o primeiro professor indígena do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília. INTERESSANTE Figura – O primeiro professor indígena Fonte: https://bit.ly/3TsN7yn. Acesso em: 26 ago. 2022. 100 • Indígena Ava Kaiowá, nasceu na aldeia de Sassoró-Tacuru, no Mato Grosso do Sul. Tonico Benites é graduado em Pedagogia na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UFMS) em 2004, obteve seu mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (Museu Nacional/ UFRJ) em 2009 e doutorado em Antropologia Social pela mesma universidade em 2014. Atualmente é professor visitante e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Fronteiras PPGSOF da Universidade Federal de Roraima – UFRR. Figura – Professor visitante e pesquisador • Nascida na terra indígena umutina, próxima à cidade de Barra dos Bugres, Mato Grosso, Eliane Boroponepa Monzilar possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), Especialização em Educação Escolar Indígena pela Faculdade Intercultural Indígena e é mestra em Desenvolvimento Sustentável Juntos a Povosde Terras Indígenas pela Universidade de Brasília, onde também obteve seu doutorado em Antropologia Social em 2019. Atualmente é gestora da Escola Estadual Indígena Jula Paré, Secretaria de Estado de Educação e Cultura-Seduc/MT. Fonte: https://bit.ly/3Tuxwys. Acesso em: 26 ago. 2022. Figura – Gestora da Escola Estadual Indígena Jula Paré Fonte: https://bit.ly/3Tuxwys. Acesso em: 26 ago. 2022. 101 Identidade, Território e Relações Interétnicas é de longe a área de pesquisas que agrega o maior número de antropólogos, é a temática mais abordada na disciplina, sem dúvida, acadêmico, você já deve ter percebido a partir das leituras anteriores que esse interesse de pesquisa está diretamente associado ao nosso passado histórico, assim como a sua herança e os desdobramentos sociais que se dão a partir de eventos históricos, situações de contato e confronto e, sobretudo, relacionados à vulnerabilidade que grupos sociais étnicos enfrentam diante de projetos econômicos exploratórios que desrespeita esses grupos. Cabe ainda destacar na Etnologia Indígena a temática da identidade, território e relações interétnicas aparecem no Brasil hoje concentradas em duas perspectivas antropológicas, a saber, os estudos ameríndios cujo foco se dá sociocosmologia indígenas, concentradas no Sudeste e Sul, tendo como referência as produções do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (1999) e os estudos que dão ênfase às questões de etnicidade e contexto multiétnico, predominante no Nordeste, a partir de contribuições do antropólogo João Pacheco de Oliveira (2004). As pesquisas antropológicas nessa área têm ampliado cada vez mais sua produção, sobretudo, considerando as questões de territorialização e ambiente que afetam não somente as populações indígenas, mas também quilombolas, camponeses e “tradicionais” de modo mais amplo. O que essa área tem nos mostrado, e auxiliado a entender o Brasil contemporâneo, é o renovado olhar sobre o Campesinato, as questões de desenvolvimento e o meio ambiente. Sobretudo, conforme destacado pela antropóloga Andrea Zhouri (2012) a articulação dessas temáticas possibilita o tratamento adequado das questões que vulnerabilizam esses grupos sociais. Note, acadêmico, que a antropologia rural como uma categoria nem sempre é articulada pelos antropólogos, a maioria das linhas de pesquisa aqui apresentadas dão conte de um conjunto muito diverso de pesquisas e os grupos sociais contemplam o que pode nos auxiliar a definir e entender esse “rural”. Os estudos etnológicos indígenas é um caminho, mas há outros, conforme vimos. Nos próximos subtópicos vamos analisar outras contribuições que nos possibilitem entender essas diferentes formas de agrupamento social, identidade, territorialização e ocupação dos espaços com seus usos. Entretanto, acadêmico, não esqueça que o diferencial da antropologia é a ênfase na diferença, na diversidade dos modos de ser e de viver, assim o método etnográfico é uma importante ferramenta de pesquisa porque nos fornece uma maneira particular de apreender a diferença ao estabelecer relações por meio de pesquisa intensa, densa e localizada, desenvolvendo no antropólogo uma capacidade de conhecer, aprender e renovar seu entendimento do outro e de si mesmo, multiplicando sempre suas perspectivas e seus horizontes de pesquisa. Foi assim que ao estudar as populações indígenas percebeu- se outras formas não indígenas de habitar o espaço social do campo, do mundo rural e assim reconhecer a diversidade de grupos que estão nesse meio e em contato. Vamos conhecer um pouco sobre eles. A seguir, após esta introdução, você aprenderá o campo da Antropologia Rural, Campesinato e formas de uso e ocupação de território. 102 2 ANTROPOLOGIA RURAL NO BRASIL Caro acadêmico, há uma multiplicidade de termos, conceitos e categorias que tentam dar conta desse universo imenso de conhecimento que envolve as populações que vivem no campo. Assim, a Antropologia Rural pode ser definida como uma subárea da antropologia que se dedica ao estudo dessas populações a partir da investigação antropológica e do uso da etnografia. Alguns antropólogos se dedicaram ao estudo dos modos de vida com destaque para as relações de parentesco, etnicidade, alimentação, práticas festivas, rituais religiosos, territorialidade, economia, saúde, moradia, novas tecnologias no campo, dentre outras áreas de estudos que apenas com livro não seria possível dar conta. Logo, a nossa tarefa é conhecer os principais conceitos e teorias que definem esse campo, assim como será importante aprender alguns desses estudos etnográficos e a partir deles despertar o interesse para que você possa buscar cada vez mais informações, conteúdo diversificado e conhecimento aprofundado a respeito de uma dessas áreas que desperte sua curiosidade. O termo “antropologia rural” nem sempre foi utilizado pelos antropólogos para definir um campo de pesquisa, mas os fenômenos que eles estudavam eram próprios do mundo rural. A antropologia rural estuda os modos de vida rural que não fazem parte da vida citadina, em contraposição ao modo de vida urbano. Exemplar disso são estudos de comunidade e os estudos de campesinato, que são termos mais usuais encontrados na antropologia. Enquanto uma agenda disciplinar a antropologia rural é bem mais recente, mas em termos de pesquisa, como podemos ver no Tópico 1, já existiam estudos antropológicos focados na análise dessas formas de vida tradicionais. Muitos pesquisadores que aqui já foram citados não usam o termo antropologia rural, entretanto o universo de suas pesquisas caracteriza seus estudos de comunidade e/ou de campesinato. Falaremos em detalhes de cada um desses termos adiante. Uma das principais características da antropologia rural é o foco no estudo qualitativo que essa área oferece, isto é, utiliza um método de pesquisa empírica, na qual o uso da etnografia é feito para observar as condições sociais das populações que vivem no campo. Os antropólogos rurais observam a maneira como se formam as famílias, os grupos sociais, suas formas de interagir entre si e com outros grupos, assim como é importante registrar as condições de vida dessas populações, considerando inclusive o grupo étnico ao qual pertencem os moradores que vivem na área estudada. Acadêmico, para tornar mais claro o entendimento desse tipo de pesquisa, pense na desigualdade econômica e de acesso às terras produtivas em áreas rurais onde trabalhadores rurais buscam a reforma agrária. Cabe destacar aqui o que significa a reforma agrária no Brasil, por exemplo, para Cardart, Pereira e Frigotto (2012) o reconhecimento do valor social da terra está no centro da reforma agrária, entendendo que o acesso à terra precisa vir acompanhado de um conjunto de políticas de infraestrutura que alcance os pequenos agricultores, como é o caso da educação, saúde e transporte, assim como é importante uma política que favoreça o campesinato, com oferta de crédito, assistência técnica e acesso aos mercados. 103 Para saber mais dos conflitos e as perspectivas da reforma agrária no contexto atual, te convido para assistir esse vídeo documentário produzido em 2021 e que pode auxiliar a compreender a complexidade presente no tema. E você já sabe, basta clicar e se abrir para o conhecimento: https://bit.ly/3R2qj74. • Documentário: Parou por quê? A reforma agrária no governo Bolsonaro. • SINOPSE do documentário, que recebeu menção honrosa no Prêmio Vladimir Herzog 2021: A reforma agrária saiu da lista de prioridades do governo federal há mais de uma década, entretanto, na gestão de Jair Bolsonaro, a criação de novos assentamentos para alojar famílias sem-terra foi totalmente paralisada. Para este ano, o orçamento do Incra– o órgão responsável pela política de reforma agrária – sofreu uma redução de 90%. Paralelamente a esse desmonte, cresce a violência no campo. No sul do Pará, região notória pelos conflitos por terra, uma avalanche de despejos deve sair do papel em 2021. E milhares de famílias podem ser retiradas de ocupações de terra consolidadas há anos. DICA CRÉDITOS • Direção e roteiro: Carlos Juliano Barros. • Direção de fotografia, montagem e finalização: Caue Angeli. • Produção executiva: Ana Magalhães. • Produção: Juliana Fuhrmann / Marília Ramos / Marta Vieira Santana. • Técnico de som: Eduardo Rodrigues de Souza. • Design e animação: Toca Hub. • Mixagem de som: Pedro Penna. • Pesquisa: Guilherme Zocchio. • Imagens adicionais: Arquivo Repórter Brasil. • Fotos: Leonardo Sakamoto / Folha de S. Paulo / O Globo / Revista Exame / TV Globo / UOL. • Uma realização do reporterbrasil.org.br. • Este documentário foi realizado com o apoio da DGB Bildungswerk. O conteúdo é de responsabilidade exclusiva da Repórter Brasil. A reforma agrária no Brasil é executada pela União por meio da compra e desapropriação de latifúndios particulares que são considerados improdutivos, quando o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) executa esse processo ao distribuir e lotear essas terras desapropriadas para as famílias que desejam cuidar e tornar essa terra produtiva. O INCRA também atua nas políticas públicas de assistência a esses pequenos produtores rurais, prestando assistência financeira, consultorias e viabilizando insumos para que essas famílias possam produzir nessas terras. O INCRA é vinculado ao Governo Federal e foi criado em 1970, sua principal função é gerir a reforma agrária de maneira justa e sistematizada, assim como atualizar e manter o cadastro nacional de imóveis rurais, bem como identificar, demarcar e titular terras destinadas aos assentamentos e comunidades tradicionais quilombolas. 104 Aqui, acadêmico, você já deve ter percebido que há uma diversidade de grupos sociais que foram mencionados durante nossa abordagem sobre a antropologia rural. Note que a categoria “povos e comunidades tradicionais” implica o reconhecimento da presença de indígenas, comunidades remanescentes de quilombos, pescadores artesanais, ribeirinhos, povos ciganos, trabalhadores rurais, povos de terreiros, os pantaneiros, os faxinalenses do Paraná e região, as comunidades de fundo de pasto da Bahia, os caiçaras, dentre outros, juntos eles representam uma parcela significativa da população brasileira que ocupam o território nacional, segundo dados do Ministério cada um desses grupos tem suas próprias formas de vida, de cuidar e preservar a terra, seus costumes e bem- viver. Entre esses povos e comunidades tradicionais há também aspectos singulares que determinam e caracterizam como próprios seus modos de ser e de viver, como por exemplo: territórios tradicionalmente ocupados, produção e organização social. O uso do método etnográfico nessas áreas de estudo serve também para prevenir impactos socioambientais, assim como orientar o desenho de políticas públicas que visem reduzir desigualdades sociais e ampliar a cidadania para as populações que enfrentam problemas para manter sua subsistência e a continuidade de suas famílias. Um antropólogo fazendo pesquisa nesses contextos tende a observar todas as áreas que compõem a vida desse grupo social, adotando uma perspectiva holística como a obra Argonautas do Pacífico Ocidental, etnografia clássica escrita por Bronislaw Malinowski (1884-1942) e publicada em 1922, é bom exemplo de uma etnografia com uma visão de holística, uma vez que observa os diferentes aspectos da vida social de um grupo. Embora você já tenha tido contato com o método etnográfico cabe aqui chamar a sua atenção para o uso de diferentes ferramentas metodológicas na construção de uma pesquisa etnográfica em contextos rurais. Assim, o estudo do campo será feito por meio da observação direta da realidade naquela comunidade ou grupo social, mas também será utilizado o recurso das entrevistas e pesquisa documental. O uso de diferentes recursos auxilia o antropólogo a dar maior rigor na sua prática científica, a “observação participante” (MALINOWSKI, 1978) permite que esse pesquisador vivencie por um tempo maior de convivência com o grupo pesquisado e aprenda sua forma de viver no cotidiano e nas interações, por outro lado a análise de documentos como, por exemplo, os registros de viagens permitem acessar características daquela sociedade ao longo do tempo anterior ao do pesquisador. No Brasil temos uma tradição muito forte de estudos antropológicos nessa área de conhecimento, um desses estudos é considerada uma importante referência desse período e se trata da tese de doutorado de Florestan Fernandes intitulada “A função social da guerra na sociedade tupinambá” (1952), neste trabalho o autor desenvolve uma análise a partir de materiais produzidos por cronistas sobre a sociedade indígena Tupinambá, dando relevo a aspectos como o função social da guerra e a organização social nesta sociedade. Trabalhos como este é uma iniciativa de aprofundar uma análise fazendo uso de materiais documentados por cronistas, ensaístas e viajantes. 105 A pesquisa empírica envolve um esforço e um trabalho minucioso de diferentes aspectos das diferentes sociedades e sua organização social. A partir desses trabalhos sabemos que há uma diferença entre grupos indígenas que eles não são homogêneos, compreendemos que cada etnia tem suas características próprias e necessidades específicas para a sua manutenção e reprodução social. Exemplo disso é observar o uso do tempo, a divisão do trabalho, os rituais funerais, as formas de nomear animais, espíritos e pessoas, bem como as diferentes práticas de alimentação e medicina tradicional aparecem na “descrição densa” (GEERTZ, 2013) desses grupos sociais pelos antropólogos que se interessam por fazer atividade científica com essas comunidades. Fala-se em descrição densa como Descrição densa para se referir ao trabalho do antropólogo Clifford Geertz (1926-2006), a partir do texto Uma Descrição Densa: Por uma Teoria Interpretativa da Cultura (Thick Description: The Interpretation of Cultures 1973), que propõe um conceito inspirado nos escritos do filósofo Gilbert Ryle (1900–1976), principalmente em "What is le Penseur Doing?" (1971). Geertz elabora princípios metodológicos para a etnografia como o registro qualitativo, visual, sonoro e escrito, da cultura. Para conhecer um pouco mais do conceito de descrição densa articulado pelo antropólogo Clifford Geertz assista ao vídeo do Professor Bernardo Lewgoy, disponível em: https://bit.ly/3R26ugh. Fonte: GEERTZ, C. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura. In: GEERTZ, C. A Interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 3-24. INTERESSANTE Uma das principais atividades de pesquisa é a realização da árvore genealógica de uma comunidade quilombola, ao fazer estudo segmentado por gênero, idade e etnia, o antropólogo pode selecionar um grupo específico para desenvolver sua investigação e assim apresentar padrões de cultura, formação familiar, divisão de trabalho ou mesmo aspectos de vulnerabilidade quanto à saúde ou acesso à educação. As comunidades remanescentes de quilombo geralmente estão vulneráveis quanto ao acesso às políticas públicas e ao documento de titulação de suas terras. Assim, a pesquisa etnográfica auxilia na reconstrução social de eventos importantes sobre uma comunidade desse tipo, por exemplo, dados como em que período aquele grupo social chegou àquela localidade, quais as famílias que pertencem à comunidade, qual a extensão de suas atividades produtivas, onde plantam, o que plantam, qual o tempo de colheita, quais os recursos disponíveisnaquela localidade, não havendo acesso facilitado à água, por exemplo, o estudo irá indicar o grau de vulnerabilidade que a comunidade está exposta quanto a sua subsistência e também a exposição às doenças e à fome. https://pt.wikipedia.org/wiki/Clifford_Geertz https://pt.wikipedia.org/wiki/1926 https://pt.wikipedia.org/wiki/2006 https://pt.wikipedia.org/wiki/1973 https://pt.wikipedia.org/wiki/Gilbert_Ryle https://pt.wikipedia.org/wiki/Gilbert_Ryle https://pt.wikipedia.org/wiki/1900 https://pt.wikipedia.org/wiki/1971 https://pt.wikipedia.org/wiki/Etnografia 106 Também podemos olhar por outro ângulo, nos perguntarmos como uma população pode sobreviver tanto tempo em um mesmo espaço social em condições de vulnerabilidade com a exposição de invasores de territórios indígenas. Muitas etnografias que são realizadas no Brasil visam não só conhecer essas dinâmicas territoriais que marcam a vida dessas populações, mas recontar sua história, sua cosmologia e qual o sentido que aquele lugar tem para a comunidade. O conteúdo das etnografias realizadas com as populações do campo busca também colocar em relevo aspectos relacionados à economia e aos conflitos e disputas territoriais como uma forma de dar visibilidade a essas populações. Conforme vimos, a década de 1960 foi um marco nos estudos antropológicos de populações rurais. Momento importante porque há uma reorientação de base metodológica de e teórica. O antropólogo brasileiro Roberto Cardoso de Oliveira foi fundamental na inserção da perspectiva de estudos interétnicos, pois não só deslocou o campo teórico de estudos como também inseriu um olhar que substitui os estudos de aculturação – em que se acreditava que a cultura dominante englobava a cultura dominada, no caso sociedade nacional e povos indígenas –, pelos estudos de fricção interétnica nos quais os conflitos sociais ganham visibilidade demonstrando a resistência de grupos indígenas, por exemplo, a projetos exploração e expansão territorial. Passaremos agora ao estudo do campesinato, assim como abordaremos os diferentes grupos que estão presentes nesses estudos e que fazem parte das chamadas comunidades tradicionais, momento em que também você terá a oportunidade de conhecer o conceito e as suas características. 3 CAMPESINATO Caro acadêmico, você deve ter percebido que é um movimento comum na ciência construir argumentos e, em seguida, eles passarem por revisões conceituais, aprimoramentos e algumas teorias ou metodologias também podem entrar em desuso. Foi mais ou menos o que aconteceu com os estudos de comunidade, com as críticas elaboradas aos estudos de comunidade, as pesquisas guiadas por esse tipo de abordagem vão perdendo lugar e cedendo espaço para outros temas, substituídos por pesquisas de caráter mais regional, nas quais se analisam problemas como o do campesinato, o dos assalariados rurais, dos trabalhadores urbanos e das frentes de expansão da indústria e da modernidade. Os estudos de fricção interétnica e etnologia, aqui já mencionados em tópico de introdução, assim como os estudos de comunidade, conduziram a interpretações de que certos grupos étnicos foram tomados como camponeses como é o caso do trabalho de Paulo Marcos Amorim que estudou os Potiguara da Paraíba em “Índios camponeses” (AMORIM apud MELATTI, 2007). Além disso, essas pesquisas acabam conduzindo diferentes pesquisadores para o interesse nos estudos de campesinato não indígena. 107 Agora, os “estudos de comunidade” passariam a dar lugar para os “estudos regionais” e parte dessa visibilidade e mudança de perspectiva veio a partir das críticas acionadas no período anterior. “O projeto liderado por Roberto Cardoso de Oliveira e Maybury-Lewis, em 1968, teve por objetivo comparar duas regiões brasileiras expostas a mudanças motivadas pelos modernos programas de desenvolvimento: o Nordeste, de população densa, estabelecida há muito e foco de emigração; e o Centro-Oeste, de população mais recente, alvo de frentes de expansão” (MELATTI, 2007, p. 28). Esse projeto foi realizado por professores e alunos do então recém-criado Programa de Pós- Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional. No entanto o trabalho realizado na zona da mata nordestina vai produzir uma intensa e rica linha de estudos que investigou os trabalhadores nas zonas açucareiras, nesse contexto a dimensão do trabalho ganha precedência na análise dos antropólogos que por meio desses estudos apontam as mudanças que os trabalhadores enfrentam diante de um contexto de urbanização e inovação. Nesse sentido, os pesquisadores vão mostrar que esses trabalhadores foram expulsos dos engenhos, a dificuldade que eles encontram para se estabelecer nas cidades, a mudança no modo de trabalho que flexibiliza os acordos entre trabalho assalariado e trabalho temporário nas empresas açucareiras, o trabalho familiar em terras de criação de gado no interior do nordeste, o aparecimento e desenvolvimento das feiras nas cidades da zona da mata, o sentido que os próprios trabalhadores dão para o seu trabalho, a organização familiar nesse novo contexto, dentre outros aspectos. Alguns desses trabalhos que podem exemplificar esse tipo de estudo são: “Emprego e mudança socioeconômica no Nordeste”, elaborado por Moacir Palmeira et al. (1977) e “Mudança social no Nordeste” (1979), “A arte do ouro” (1979), “Trabalho assalariado e trabalho familiar no Nordeste”, de Lygia Sigaud (1981), o projeto “Campesinato e plantation no Nordeste”, de Afrânio Garcia Júnior, Beatriz Alasia de Heredia e Marie France Garcia (1980). Os livros de José Sérgio Leite Lopes “O vapor do diabo” (1978), Beatriz Maria Alasia de Heredia “A morada da vida” (1979), Doris Rinaldi Meyer “A terra do santo e o mundo dos engenhos” (1980) e Lygia Sigaud com “A nação dos homens” (1980) e “Os clandestinos e os direitos” (1979). Além disso, Melatti (2007) menciona outra frente de trabalho na área do campesinato que vai se desenvolver na margem oriental da Amazônia, onde se destacam os trabalhos de Otávio Guilherme Velho sobre as frentes que afetaram a área de Marabá “Frentes de expansão e estrutura agrária” (1972), de Francisca Isabel Vieira Keller sobre a região de Imperatriz “O homem da frente de expansão” (1975), de Teresinha Helena de Alencar Cunha sobre essa mesma região, além das pesquisas de Laís Mourão Sá e Alfredo Wagner Berno de Almeida sobre o campesinato maranhense. 108 Outro conjunto de pesquisas foram desenvolvidas entre no leste e no norte de Mato Grosso como “A dinâmica regional do Centro-Oeste”, de Mireya Suárez et al. (1977), o projeto “Campesinato e peonagem numa área de expansão capitalista” reuniu pesquisadores como Mireya Suárez, Eurípedes da Cunha Dias, Neide Esterci e Luís Roberto Cardoso de Oliveira, na época era aluno de pós-graduação do Museu Nacional. O foco das pesquisas nessa região estava concentrado nos “problemas enfrentados pelo avanço das frentes de expansão” (Melatti, 2007, p. 29). Serão consideradas dentro dos estudos regionais outro conjunto de pesquisas que tratam de “Hábitos e ideologias alimentares em grupos sociais de baixa renda”, conduzido por Klaas Woortmann e Otávio Guilherme Velho e que se distribuiu em onze pesquisas de campo, por áreas rurais e urbanas, nos estados do Pará, Maranhão, Paraíba, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Goiás e Distrito Federal. Klaas Woortmann publicou, como produto dessa pesquisa, “Hábitos e ideologias alimentares em grupos sociais de baixa renda” em 1978. Além desses trabalhos surge outro campo de deslocamento que se concentra em temas específicos e procura se diferenciar dos anteriores estudos de comunidade, que não busca a análise da totalidadede uma comunidade, mas o foco em um aspecto. Assim, teríamos agora os “estudos em comunidade” caracterizados pelo exercício comparativo, um exemplo desse tipo de pesquisa é aquele que se realizam em comunidades de pescadores como o de Raimundo Heraldo Maués “A ilha encantada” (1983), que vai tratar das formas tradicionais de medicina numa comunidade de pescadores do Pará e Maria Angélica Maués que discutiu os status das mulheres nessa mesma comunidade. A antropóloga Mariza Peirano investigou as proibições alimentares e publicou a respeito em “A reima do peixe” (1979). Há uma série de trabalhos que não foram mencionados aqui, mas o que desejamos que você aprenda é a diversidade de pesquisas e como elas vão produzir conteúdos que falam também de outras áreas da antropologia, como, por exemplo, desigualdade social, identidade étnica, sistemas de classificação, reprodução social, saúde, religião, trabalho, dentre outros. A antropóloga Giralda Seyferth (2011, p. 399) destaca algumas características do campesinato no Brasil: Assim, a questão do "trabalho familiar" é central na discussão sobre a pequena produção camponesa que não é necessariamente geradora de uma formação (econômica) particular, pois adapta e interioriza a seu modo princípios econômicos mais gerais. Daí a controvérsia sobre as vantagens e as desvantagens em relação à exploração capitalista na agricultura, com a configuração de uma "questão agrária", iniciada em fins do século XIX na Europa, quando também começaram os vaticínios sobre o fim do campesinato. 109 Se no início da formação da antropologia o foco das atividades de pesquisa estava concentrado nos povos “primitivos” com a revolução industrial e a formação do mundo urbano, as mudanças que implicam as populações rurais passaram a ser um objeto de atenção dos antropólogos. Até aqui, acadêmico, já foi possível perceber que as populações rurais estão em contínuo processo de mudança e interação com outros grupos sociais. O fato de identificar essa relação de interação com outros grupos sociais serve também para explicar as influências que uns exercem sobre os outros, não por acaso já vimos como os estudos de comunidade e os estudos regionais foram importantes para perceber a diversidade de grupos sociais que fazem parte do mundo rural. No próximo subtópico vamos conhecer o conceito de povos e comunidades tradicionais, assim como vamos poder nos aproximar de algumas dessas comunidades a fim de conhecer suas características e situar suas perspectivas para o estudo da antropologia brasileira. 4 COMUNIDADES TRADICIONAIS A política nacional de desenvolvimento sustentável de povos e comunidades tradicionais tem como marco referencial o Decreto nº 6.040/2007 que estabeleceu os critérios para definir um povo ou grupo de indivíduos que possa ser classificado como uma comunidade tradicional. Assim, podemos resumir em quatro aspectos principais que podem ser utilizados para caracterizar um grupo como comunidade tradicional, a saber: a) as práticas culturais; b) a organização social; c) o território específico; e d) a tradição ancestral. Assim, as práticas culturais próprias que significa que esse grupo tem atividades e características e formas de uso e manuseio de artefatos que são constitutivas daquele grupo, isto é, são elementos que os identificam como pertencentes a um grupo específico e que cria uma relação de identificação entre indivíduos que pertencem ao mesmo grupo e cria uma identificação deles para grupos externos que não compartilham dessas características. Logo, uma comunidade indígena pode ser definida como tradicional com base nessa descrição. A sociedade nacional reconhece os Tupinambás como um grupo indígena baseado nessa definição, por estabelecer com esse grupo uma relação que reconhece suas diferenças. Já quando se fala em organização social de comunidades tradicionais é para lembrar o modo como esse grupo se organiza politicamente, entendendo que muitos deles possuem um tipo de liderança que se constrói com base nas relações de parentesco ou de práticas econômicas ou se tem grupos específicos que compõem um grupo mais amplo, mas que mantem algum grau de diferenciação entre suas atividades. Exemplo disso são os povos indígenas do Brasil, que compõem um grupo social, mas que cada 110 etnia possui suas características particulares e formas de se organizar socialmente, isto é, tem variação de grupo a grupo. O terceiro elemento importante nessa definição é ter um território específico para essa população, em geral, a maioria das comunidades e povos tradicionais tem uma forte marcação identitária com o seu território. Essa definição se constrói com base na relação que essa comunidade estabelece com aquele território específico, por exemplo, pescadores que vivem próximo a um rio ou uma praia, a identidade dele é definida em relação com o ambiente territorial que eles ocupam, pois, sua forma de existir passa por se relacionar com aquele território, seus modos de usos e ocupação daquele lugar definem também seu pertencimento e influenciam em sua subsistência. O território pode variar, estar situado numa região litorânea, no sertão, próximo aos rios, dentro das florestas, na foz de um rio, na caatinga, dentre outros espaços. Assim, é compreensível que essa comunidade estabeleça uma relação específica com o território ocupado, pois é a respeito dele que seus habitantes aprendem a viver e sobreviver, respeitando e preservando seu uso e ocupação como uma forma de manutenção de uma relação com este território que não seja violenta, exploratória e destrutiva, pois eles possuem conhecimentos tradicionais para um uso e um modo de ocupação de convivialidade com o meio ambiente, os animais e tudo que há naquele território de maneira sustentável. Por último destacamos a tradição ancestral aquela cultura e suas características de ocupação e reprodução social foram transmitidas de geração em geração, entendendo que a coesão daquele grupo, suas características, seus artefatos, sua política, sua economia não foram criadas no contexto presente, mas dentro de um processo histórico com base no aprendizado socialmente compartilhado de gerações anteriores para as novas gerações. Logo, a geração atual tem o papel social de preservar as práticas culturais passadas com o intuito de permanecer estabelecendo uma boa relação com o território socialmente ocupado por ela. Estas são características determinam a formação do que se entende conceitualmente como comunidades ou povos tradicionais no Brasil. Já vimos que existem inúmeras comunidades tradicionais, em nossa análise neste livro vamos dividir entre comunidades indígenas e não indígenas (quilombolas, ribeirinhos, caiçaras, ciganos, dentre outros), porque sabemos que há um volume expressivo de comunidades indígenas no Brasil e com características muito diferentes entre si. No que se refere às comunidades não indígenas podemos ainda encontrar características comuns em relação às indígenas, por estarem próximas entre si, compartilharem algumas práticas comuns, mas não são pertencentes a mesma comunidade. Nesse sentido, acredito que o quadro geral apresentado é suficientemente complexo e exige de nós um exame mais detalhado acerca de exemplos que possam auxiliar você, acadêmico, a realçar essas características, desafiar limites e entender as dinâmicas sociais que compõem essas diferenças. Assim, que tal avançar em alguns exemplos? 111 4.1 INDÍGENAS A população indígena no Brasil representa cerca de 900 mil pessoas, segundo dados coletados pelo Instituto de Geografia e Estatística (IBGE) no último censo realizado em 2010, que neste ano de 2022 será atualizado. Naquele período de levantamento de dados, 572.083 desses indígenasviviam na zona rural enquanto 324.834 estavam morando nas zonas urbanas, totalizando 896.917 indígenas vivendo em todas as regiões do país, inclusive no Distrito Federal. Um acordo entre a FUNAI e o IBGE, celebrado em 2018 criou um site para registrar censo indígena e tem o propósito de auxiliar na realização do censo que é importante como elemento para auxiliar na construção e implementação de políticas públicas voltadas para essas populações. O Amazonas é o estado com a maior população indígena do Brasil, 284,5 mil, seguido por Mato Grosso com 145,3 mil, Pará com 105,3 mil e Roraima com 83,8 mil. Além disso, estados como Pernambuco e Mato Grosso do Sul registraram um maior número de pessoas em áreas indígenas, respectivamente, 80,3 mil e 78,1 mil. Dentre as regiões com o maior número de indígenas destaca-se a Região Norte com 560,4 mil, seguido pela Região Nordeste com 234,7 mil, Centro-Oeste com 224,2 mil, Sul com 59,9 mil e Sudeste com 29,8 mil. Segundo o Censo IBGE (2010), estima-se que haja 305 povos indígenas no Brasil e isso representa 0,47 % da população brasileira. Os povos indígenas ou povos originários são aqueles que já habitavam aqui antes da chegada dos colonizadores europeus, mesmo após o reconhecimento em matéria de lei, com a Promulgação da Constituição Federal de 1988 que reconheceu a organização social, os costumes, as línguas, as crenças, as tradições e o direito originário desses povos em relação ao seu local de moradia e ocupação, ainda hoje essa parcela da população brasileira sofre com invasões, violências e a demora na demarcação de suas terras. A luta pela terra segue sendo uma constante para os povos indígenas. No Brasil há 274 línguas indígenas faladas, em termos linguísticos fazem parte do Tronco Tupí as famílias linguísticas Tupí Guaraní, Arikém, Awetí, Jurúna, Mawé, Mondé, Mundurukú, Puroborá, Ramaráma e Tupar. Já as famílias linguísticas Jê, Maxacalí, Sobre o acordo firmado entre FUNAI e IBGE, que trata de destacar o segmento indígena nas bases de dados sobre a população, confira: https://indigenas.ibge.gov.br/. DICA https://indigenas.ibge.gov.br/ 112 Krenák, Yathê, Karajá, Ofayé, Guató, Rokbabtsá e Boróro compõem o Tronco Macro-Jê. Esses 305 povos indígenas possuem cultura, língua e organização política próprias, o que os reúne entorno do uso da categoria povo, no entanto, o termo “etnia” é utilizado para valorizar o aspecto cultural que diferencia esses povos. Os povos originários sofreram com a violência física, com a espoliação de suas terras, mas também com o genocídio em decorrência de doenças e da morte social e cultural, isto é, o etnocídio de seus saberes, sua cultura, seu conhecimento, de sua visão de mundo e de sua filosofia. Enquanto os povos indígenas estabelecem uma relação de afinidade e proximidade intensas com a terra, que está associada à concepção de vida e nada tem a ver com mercadoria, a sociedade nacional, baseada em valores ocidentais, parte da ideia de terra como posse e mercadoria, uma propriedade estabelecendo uma relação de distanciamento com a natureza e com isso oferecendo um modo de vida diferente, baseado na extração e exploração de recursos naturais para acumulação e não para subsistência ou respeito ao meio ambiente. O termo comunidades indígenas é um marco importantíssimo na configuração social do nosso país que vem a ser utilizado para demarcar políticas sociais de reconhecimento e de implementação de políticas públicas voltadas a essa parcela da população, isto porque os povos indígenas são pré-coloniais, significa que eles habitam e ocupavam o território brasileiro antes da chegada dos europeus colonizadores aqui em nosso país e ao considerar essas dimensões pretende-se criar mecanismos que promovam o reconhecimento de sua identidade, de suas terras, de seus direitos e de suas epistemologias. Ao falarmos em reconhecer suas epistemologias, significa que os diferentes povos indígenas estavam organizados à sua maneira, já moravam, ocupavam e dominavam as práticas de uso e ocupação para seu próprio consumo e subsistência e tinham domínio de seu espaço social, lembrando que eles estavam divididos em inúmeras tribos e etnias. A chegadas das expedições europeias representam um processo doloroso da nossa história, pois significa a invasão e o uso de formas de exploração e violência para tomar o território dos povos indígenas. Para você ter uma ideia, acadêmico, veja o que está acontecendo com os números povos e comunidades indígenas em uma escala histórica e demográfica. A população diminuiu expressivamente. Os índices demográficos estão cada vez mais diminuindo e se você pensar bem, acadêmico, aqueles poucos povos que ainda resistiram ao tempo enfrentam hoje a vulnerabilidade da pandemia de covid-19 e a invasão de suas terras por práticas ilegais de exploração de minério, desmatamento de árvores e construção de hidrelétricas que ameaçam o ecossistema de subsistência dessas populações. 113 É muito importante que nós lembremos da grande diversidade de povos indígenas, a variação de grupos também está associada com os modos de ocupação e uso do território, isto é, aqueles povos que habitavam as profundezas da floresta amazônica, os povos indígenas que estavam localizados nas margens litorâneas, cada grupo em regiões diferentes de todo o território brasileiro produzia características diferentes entre eles. Significa que, ainda que todos sejam indígenas, há diferenças e variações entre cada grupo. Inclusive muitos mantinham relações rivalidade e outros associavam-se em alianças. As pesquisas antropológicas como as de Roberto Cardoso de Oliveira e Darcy Ribeiro contribuíram muito na consolidação de uma antropologia engajada nas lutas dos povos indígenas diante do Estado brasileiro que não via suas necessidades, demandas e riscos de desaparecimento. Assim, uma importante instituição foi fundada para contribuir com preservação dos territórios indígenas e segurança dos povos indígenas. Estamos falando da Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Esta instituição tem por objetivo a proteção dos povos indígenas e dos seus territórios, ao colocar em ação as atividades de proteção, a FUNAI foi alvo de inúmeros ataques – fosse internamente, sofrendo com cortes e sucateamento de sua estrutura organizacional, fosse pelas ações de grupos invasores e de latifundiários, que tentavam cada vez mais invadir e ampliar as áreas de exploração. Conflitos entre indigenistas e invasores acontecem até hoje o mais recente deles chocou o mundo quando um indigenista da FUNAI, Bruno Pereira, e um jornalista britânico, Dom Phillips, desapareceram e foram encontrados mortos na região do Vale do Javari. Sobre o caso Bruno Pereira e Dom Phillips, leia a seguinte matéria: http://glo.bo/3KzcOJq. DICA Para entender melhor o conceito de etnogênese, leia o artigo do historiador e antropólogo José Mauricio Arruti. Disponível em: https://bit.ly/3AYOX2Q. INTERESSANTE 114 4.2 QUILOMBOLAS As comunidades quilombolas são formadas por grupos de pessoas que são descendentes de africanos que foram escravizados durante o período colonial. Significa que a maioria dessas comunidades se formaram a partir da luta de escravizados pelo direito à liberdade, estas comunidades são registros da resistência e a memória ancestral. Figura 7 – Luta de escravizados Fonte: https://bit.ly/3AYBurP. Acesso em: 26 ago. 2022. As comunidades de remanescentes de quilombo representam também uma forma de mobilização e luta de negros que foram escravizados para escapar do sistema colonial de escravização. Assim, os negros que na época foram escravizados fugiam e formavam pequenas comunidades em territórios que pudessem abrigar com maior segurança e dificultasse a ação de seusperseguidores coloniais. Esse lugar foi chamado de quilombo, lugar de resistência política, cultural e religiosa, onde formavam uma comunidade quilombola. O encontro entre essas pessoas nesse novo lugar foi marcado por um modo de vida em que as práticas de resistência política, assim como hábitos alimentares, formas de professar sua fé, núcleos familiares e afetivos foram se constituindo para a construção de uma vida livre de violência e com alguma perspectiva de subsistência interna. A vida nesses quilombos nutria outras formas de convivência, numa tentativa de manter tradições de seus lugares de origem, atualizar sua língua, reforçar suas práticas religiosas, compartilhar suas experiências de dor e sofrimento e articular uma formação coletiva para a resistência ao sistema colonial. A necessidade de se esconder para sobreviver era tão marcante e vital que muitas comunidades demoraram muito tempo para serem descobertas mesmo após a abolição da escravatura em 1888, no entanto, atualmente essas pessoas enfrentam novos problemas para se manterem em comunidade. E, então, acadêmico, agora você deve se perguntar: quais seriam esses problemas hoje em dia? 115 Vamos lembrar que essas comunidades quilombolas estão espalhadas por todo o território brasileiro, que é imenso, para regularizar a situação social de reconhecimento do território como remanescente de quilombo é preciso um trabalho de elaboração e pesquisa da comunidade, suas práticas e modos de vida, o desenho de sua genealogia, a demarcação do território mediante processos de reconhecimento de suas fronteiras, o registro de suas atividades políticas e de organização social, seu sistema de parentesco, seus hábitos alimentares, usos e modos de ocupação do lugar, dentre outros aspectos. Mesmo após o reconhecimento público de que se trata de uma comunidade quilombola há ainda problemas quanto à infraestrutura básica, por exemplo, acesso à água potável, rede de esgotos, energia elétrica, acesso à educação, saúde e condições de trabalho. Além dessa dimensão da estrutura da comunidade, há que se observar as políticas de assistência governamentais para a criação e manutenção dessas áreas em condições dignas de vida. Quer saber um pouco mais dos direitos das comunidades quilombolas no Brasil? Então, acadêmico, se liga nesse podcast: https://spoti.fi/3pTHETK. DICA 4.3 CAIÇARAS A comunidade caiçara é um grupo social tipicamente litorâneo que se formou a partir das relações miscigenas entre populações indígenas, populações negras e colonos europeus em torno do bioma Mata Atlântica ocupando a faixa de terra seca que fica entre o Mar do Atlântico e a Serra. Em geral, são comunidades encontradas no litoral sudeste do Brasil – São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná até Santa Catarina -, mas também está no nordeste do país, em regiões da Bahia com os jangadeiros e do Maranhão com os balseiros. Sua marca predominante é o território limiar entre a terra e a água. O que os define como uma comunidade tradicional é sua forma de vida baseada no tipo de agricultura chamada itinerante, na qual a pesca, o extrativismo vegetal e o artesanato são predominantes. Duas atividades predominantes nessas comunidades são a pesca marítima artesanal, não predatória, e a agricultura primitiva, isto é, sem utilizar tecnologias mecanizadas para suas práticas agrícolas, sendo assim cultivam práticas mais tradicionais e de agricultura e pesca, como a coivara e a pesca de tipo puçá, para o próprio consumo. Assim como o modo de preparar, armazenar e utilizar alimentos como farinha e o peixe traduzem uma marca cultural de herança indígena, em que se destaca um uso diverso da mandioca, o preparo do peixe defumado e cozidos lentos para feitura de pirão. 116 Entre suas manifestações culturais podemos destacar aqui aquelas que os caiçaras mantém vivas, por exemplo, o fandango português que se tornou Patrimônio Imaterial Cultural em 2012, o tamanqueado e a Folia do Divino (que acontece em Paraty- RJ) e virou Patrimônio Imaterial Cultural do Brasil em 2013 e o Boi mamão que é uma variação do boi bumbá e combina o som da rabeca, da viola branca de sete cordas e do machetinho. Dentre as dificuldades encontradas pelas comunidades caiçaras para sua sobrevivência estão as mudanças que começaram a surgir ainda na década de 1950 quando as regiões onde essas populações residiam passaram a ser objeto de interesse comercial com o crescimento da especulação imobiliária em face de sua proximidade com o mar e, por outro lado, por estar entre um faixa de terra entre o mar e serra, seus limites encontram zonas de proteção ambiental bem preservadas da Mata Atlântica. Entre os anos de 1970 e 1980 essas populações passaram a se mobilizar coletivamente e se organizaram para lutar pelo reconhecimento cultural e territorial da cultura caiçara. Quer saber mais a respeito dos caiçaras? Conheça o trabalho de pesquisa de Gabriel Bertolo (2015) em: https://bit.ly/3wJaGtc. DICA 4.4 RIBEIRINHOS Povos ribeirinhos ou comunidades ribeirinhas são aqueles grupos sociais que estão situados nas proximidades de rios, igarapés, igapós e lagos da floresta, utilizando a prática da pesca artesanal como sua principal fonte de subsistência e sobrevivendo as variações sazonais da água e do clima no seu cotidiano de vida e de trabalho. Em geral, cultivam pequenos roçados para seu próprio consumo e praticam atividades extrativistas para sua sobrevivência, nutrindo-se das condições oferecidas pela natureza. A proximidade com o rio vai se mostrar essencial na maneira como a cultura ribeirinha vai se desenvolver, isto porque essa localização exerce influência sobre sua identidade e subsistência. Entre suas atividades essenciais estão a pesca, a caça e o extrativismo vegetal e é uma população predominante na região amazônica. O rio é elemento constitutivo da identidade dessa comunidade. Um dos acontecimentos históricos que marcou profundamente as comunidades ribeirinhas foi o período do Ciclo da Borracha, quando esses povos se deslocavam para fazer a extração do látex e retirar a seringa dos seringais para a produção da borracha. 117 Estima-se que existem 350 comunidades ribeirinhas na região amazônica, a Cuiú-cuiú é uma delas. Cerca de 37 mil habitantes dessas comunidades vivem isolados à beira de rios, com pouco ou nenhum acesso às políticas de assistência. Um dado característico dessas comunidades envolve sua relação com a natureza, no sentido de que mesmo estando ali essas pessoas estabelecem uma relação de respeito com a natureza, procurando preservar esse território em uma relação de sustentabilidade com o meio ambiente. Aliás, a rigor, esta relação de sustentabilidade com a natureza é uma marca de todas essas comunidades tradicionais aqui mencionadas (indígenas, quilombolas, caiçaras, ribeirinhas), todavia, cabe ainda falarmos das palafitas, um tipo de construção feita pelos ribeirinhos que são casas que resistem a variação do nível dos rios, quanto ao seu período de seca e de cheia, uma espécie de construção flutuante, embora seja construída num nível acima daquele considerado a cheia do rio, assim quando o rio sobe a casa fica preservada e não corre o risco de alagamento. Figura 8 – Comunidades Fonte: https://bit.ly/3wGytty. Acesso em: 21 ago. 2022. Vale a pena conferir o trabalho das pesquisadoras Talita de Melo Lira e Maria do Perpétuo Socorro Rodrigues Chave intitulado “Comunidades ribeirinhas na Amazônia: organização sociocultural e política”. Confira em: https://bit.ly/3AyUPP1. DICA 118 Por fim, é relevante destacar que as comunidades tradicionais estabelecem formas de relação com o seu espaço, cada uma delas estabelece à sua maneira um valor e uma importância sobre o espaço vivido e é observando essa vivência e os processos sociais que se desenvolvem a partir dali que podemosidentificar as relações culturais, existenciais que um grupo estabelece com o espaço. Finalizamos este tópico rico em informações a respeito de diferentes comunidades tradicionais, conceitos, autores e um pouco da antropologia das populações rurais do Brasil. Claro, o conhecimento é inesgotável e aqui você, acadêmico, tem sempre um mapa para buscar aprofundamento e novos conhecimentos com as Gio Dicas. Em nosso próximo tópico vamos abordar as organizações econômicas, as dife- rentes relações sociais e as moralidades presentes no mundo rural trazendo contribuições de outro conjunto de pesquisas das relações agrárias e ruralidades. Lembre-se, antes de partir para um novo percurso de leituras, passe este conteúdo em revisão e faça a sua autoatividade. 119 Neste tópico, você aprendeu: • A história de formação da antropologia rural no Brasil. • Os diferentes estudos e pesquisas que consolidaram os estudos de antropologia rural como o Campesinato. • Aprendeu o conceito de povos e comunidades tradicionais. • Conheceu diferentes povos tradicionais como indígenas e não indígenas RESUMO DO TÓPICO 2 120 1 Conforme apontado pela antropóloga Alcida Rita Ramos (1990), nos estudos das populações indígenas no Brasil, duas subáreas passaram a representar perspectivas ao mesmo tempo complementares e distintas – em algumas situações, até oponentes. Quando se trata de estudos das populações indígenas essa área organizou e definiu as bases de formação do campo acadêmico e de produção em pesquisa na Antropologia desde seus primórdios. Sobre estas grandes contribuições ao conhecimento da Antropologia Rural, essa autora chama a atenção para duas bifurcações que dela derivam. Sobre o exposto, assinale a alternativa CORRETA: Fonte: RAMOS, A. R . Memórias Sanumá: Espaço e Tempo em uma sociedade Yanomami. Brasília: Editora UnB, 1990. a) ( ) Etnologia Indígena e Identidade, Território e Relações Interétnicas espelham essa dualidade e ruptura. b) ( ) Antropologia dos Índios rurais e Estudos de conflitos e pacificação. c) ( ) Antropologia Rural da Cosmologia Indígena e Estudos de Territorialidade e Desterritorialização. d) ( ) Etnologia Ameríndia e Antropologia da Terra e Mundo Rural. 2 A Antropologia Rural pode ser definida como uma subárea da antropologia que se dedica ao estudo das populações do campo a partir da investigação antropológica e do uso da etnografia. Alguns antropólogos se dedicaram ao estudo dos modos de vida com destaque para as relações de parentesco, etnicidade, alimentação, práticas festivas, rituais religiosos, territorialidade, economia, saúde, moradia, novas tecnologias no campo, dentre outras áreas de estudos. Com base nessas definições, analise as sentenças a seguir: I- A Antropologia Rural estuda os modos de vida rural que não fazem parte da vida citadina, em contraposição ao modo de vida urbano. II- Segundo João Pacheco de Oliveira, os sujeitos indígenas e a construção de suas identidades são homogêneos, porque os indivíduos indígenas interpretam e conhecem o mundo somente de forma limitada e não há espaço para mudança. III- O termo “antropologia rural” nem sempre foi utilizado pelos antropólogos para definir um campo de pesquisa, mas os fenômenos que eles estudavam eram próprios do mundo rural. Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As sentenças I e II estão corretas. b) ( ) Somente a sentença II está correta. c) ( ) As sentenças I e III estão corretas. d) ( ) Somente a sentença III está correta. AUTOATIVIDADE 121 3 Parte importante do estudo antropológico do modo de vida rural vem do interesse de pesquisadores e pesquisadoras que veem os inúmeros grupos sociais que se desenvolvem e se organizam coletivamente a partir do campo e das comunidades. Uma parte desses pesquisadores lidam com a categoria campesinato como um lócus de observação etnográfica, por onde antropólogos podem ver a diversidade dos modos de agrupamento, manifestações sociais e ações coletivas, bem como registrar a alteridade entre os sujeitos que se agrupam e lutam pelo direito à terra e aos diferentes modos de vida. A partir das contribuições da antropóloga Giralda Seyferth (2011), classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas: Fonte: SEYFERTH, G. Campesinato e o Estado no Brasil. Mana [on-line]. 2011, v. 17, n. 2, p. 395-417, 2011. ( ) A autora destaca como uma característica do campesinato no Brasil a questão do "trabalho familiar" que pensada como central na discussão sobre a pequena produção camponesa que não é necessariamente geradora de uma formação (econômica) particular, pois adapta e interioriza a seu modo princípios econômicos mais gerais. ( ) O conceito de campesinato se refere aos grupos sociais formados por etnias indígenas que migram das aldeias-mãe para morar na cidade urbana e assim formam novos grupos indígenas. ( ) Daí a controvérsia sobre as vantagens e as desvantagens em relação à exploração capitalista na agricultura, com a configuração de uma "questão agrária", iniciada em fins do século XIX na Europa, quando também começaram os vaticínios sobre o fim do campesinato. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) V – F – F. b) ( ) V – F – V. c) ( ) F – V – F. d) ( ) F – F – V. 4 A política nacional de desenvolvimento sustentável de povos e comunidades tradicionais tem como marco referencial o decreto 6040/2007 que estabeleceu os critérios para definir um povo ou grupo de indivíduos que possa ser classificado como uma comunidade tradicional. Apresente os critérios definidos nesta normativa e que estão citados no texto. 5 Existem inúmeras comunidades tradicionais, em nossa análise vimos que estas se dividem entre comunidades indígenas e não indígenas. Neste contexto, disserte sobre o conceito de comunidades tradicionais citando pelo menos dois exemplos. 122 123 TÓPICO 3 — ORGANIZAÇÕES ECONÔMICAS, RELAÇÕES SOCIAIS E MORALIDADES NO MUNDO RURAL UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO Caro acadêmico, vimos até aqui que expansão de estudos e pesquisas antropológicas das populações rurais se desenvolveram de forma intensa e cobriam temas focados na questão territorial e de reconhecimento da identidade. No Tópico 1, você pôde aprender o processo histórico de formação da antropologia e seus desdobramentos em estudos dos grupos sociais situados no mundo rural. Até então os estudos de comunidades e a etnologia indígena foram os principais marcos de referência para o desenvolvimento desse campo. Assim, entre as décadas de 1940 e 1970 esses estudos representaram fortemente o campo de estudos em torno de comunidades e grupos que eram lidos e definidos com base na sua localização espacial, seus traços culturais e em contraposição ao modo de vida urbano. Figura 9 – Modo de vida urbano Fonte: https://bit.ly/3AYAunt. Acesso em: 26 ago. 2022. Na década de 1980 os estudos das comunidades rurais estavam associados com a identidade negra e camponesa e exerceram muita influência sobre os processos de reconhecimento de territórios e regularização de terras. Nesse período, o campo de estudos em etnologia indígena já estava consolidado como um campo expressivo e o volume de pesquisas nessa área permitiu uma especialização de estudos em que essas comunidades tradicionais foram estudadas de forma mais independente umas das outras ressaltando aspectos epistemológicos e ontológicos em torno das reinvindicações de direitos territoriais, jurídicos, educacionais, de saúde e nesse sentido vão constituindo diferenças em que pese um processo de afastamento da identidade camponesa ou noutros termos do campesinato brasileiro. 124 Aponta-se para uma diferença significativaentre aquelas comunidades tradi- cionais apresentadas no Tópico 2, das comunidades e grupos que falaremos aqui. As lutas sociais por territórios foram constitutivas de comunidades tradicionais como indígenas, quilombolas, caiçaras e ribeirinhos, e se destacam justamente por terem sido posicionadas como fenômenos do mundo rural brasileiro. Nesse sentido, a abordagem acerca dos conceitos de terra, território e territorialidade proposta por Dominique Galllois (2004) que veremos no próximo subtópico faz referência exatamente a este ponto. Entretanto, para uma visão mais plural ainda é preciso localizar alguns componentes desse percurso historiográfico, sobretudo considerando a categoria terra, que geralmente está associada a identidade do camponês. Assim, teríamos dois campos de entendimento a respeito dos grupos sociais e sua relação com o rural, as comunidades tradicionais estariam situadas no polo das lutas por território, enquanto os camponeses se estabelecem nas lutas pela terra. As lutas por território nas quais situam-se indígenas, quilombolas e demais comunidades tradicionais reivindicam a demarcação coletiva de suas terras, isto é, o reconhecimento formal de que determinados espaços compõem a identidade coletiva de um grupo social e representa uma luta por direitos culturalmente diferenciados, assim a relação com esse território é uma relação de pertencimento coletivo e responsabilidade coletiva pelo território, não como uma posse ou uma propriedade individual. Por outro lado, as dinâmicas que envolvem as lutas por terra se caracterizam por demandas políticas cujo centro de suas discussões destacam a categoria “classe” que mobiliza direitos universais e constitui sujeitos políticos como trabalhadores sem-terra ou mulheres rurais, por exemplo, implicando em uma relação de meio de produção, no entanto, grupos rurais estabelecem uma relação com a terra por meio de elementos constitutivos de vínculos materiais, espirituais e simbólicos, conforme destacado pelo antropólogo André Dumas Guedes (2016). Vejamos, no próximo tópico, a abordagem conceitual de categorias como terra, território e territorialidade. 2 TERRITÓRIO E TERRITORIALIDADE O território pode ser definido com base nas relações de poder que o atravessam e é um conceito muito importante para compreender adequadamente todos os conflitos e a história de formação e desenvolvimento dessas comunidades tradicionais que você acabou de conhecer. Assim, acadêmico, quando você leu a respeito dos povos indígenas percebeu que havia ali uma diversidade de etnias que ocupavam de forma diferente espaços dentro do que sabemos ser o Brasil. Então, com a chegada dos europeus os limites entre essas etnias, bem como o espaço do território brasileiro já ocupado pelos povos indígenas é alvo de interesses econômicos e invasão, desrespeitando sua cultura, seu espaço e suas fronteiras. 125 Essa relação de poder é desigual e hierárquica e busca expansão do poder econômico, político e cultural. Essa relação de poder vem sempre marcada pela dimensão política, não por acaso, parte da antropologia que desenvolveu estudos de etnologia indígena vai chamar nossa atenção para as relações entre povos indígenas e sociedade nacional, procurando estabelecer uma noção de cidadania ampliada, em que se respeite as formas de ser e de habitar dessas populações que possuem sentidos, linguagens e organização social diferentes da sociedade nacional, basta lembrar o conceito de fricção interétnica do antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira que vimos no subtópico anterior. Estudos antropológicos evidenciam que há diferentes lógicas espaciais entre essas comunidades tradicionais. Por exemplo, entre povos indígenas há noções de organização territorial que se estruturam de acordo com as formas de viver e usar o espaço (GALLOIS, 2004). Logo, a dinâmica fluida de mobilidade espacial encontrada em diferentes comunidades indígenas explicaria também a ausência de uma estrutura fixa como a noção de fronteira. Na verdade, o que a literatura antropológica mostra é que essa dimensão de limites e fronteiras vem a ser constituída no momento de contato, quando o Estado passa a impor processos de regularização fundiária no intuito de delimitar territórios. Para Dominique Gallois (2004, p. 40) “nenhuma sociedade existe sem imprimir ao espaço que ocupa uma lógica territorial” e, acadêmico, é exatamente nessa perspectiva que você pode compreender o sentido social de um território para uma comunidade indígena. Cada comunidade tem sua própria lógica territorial a respeito do espaço e ela é constitutiva do modo de vida dessas populações. A antropóloga coloca em discussão as diferentes perspectivas dos conceitos de terra, território e territorialidade. Nesse sentido, a autora nos convida a pensar nas descontinuidades territoriais que podem surgem diante do tempo e da função que cada grupo social desenvolve com a região. Refletindo sobre a realidade de povos indígenas, Gallois (2004) nos mostra que essas regiões podem ser mutáveis pela ação do tempo, pela relação de proximidade e distanciamento entre grupos, seja pelos processos de extinção de grupos ou de surgimento de outros grupos, e por isso mais correto é partir da abordagem da territorialidade. As noções de terra e território já foi objeto de diferentes estudos antropológicos como os de Seeger e Viveiros de Castro (1979) e de Oliveira Filho (1989; 1996), todos eles vão nos mostrar que essas categorias são acionadas de maneira distinta pelos atores envolvidos no processo de reconhecimento e demarcação de uma Terra Indígena. Logo, o conceito de “terra indígena diz respeito ao processo político-jurídico conduzido sob a égide do Estado, enquanto território remete à construção e à vivência, culturalmente variável, da relação entre uma sociedade específica e sua base territorial” (2004, p. 4). 126 Nesse sentido, é necessário levar em consideração aspectos importantes dessa relação entre povos e território, para isso a autora sugere a abordagem da territorialidade uma vez que esta permite uma avaliação cuidadosa das relações entre terras que foram ocupadas em caráter permanente, aquelas terras que são utilizadas para atividades produtivas e as terras imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao bem-estar e a reprodução física e cultural dos povos indígenas (GALLOIS, 2004). Tais formas de olhar para dimensão territorial revela em muitos casos as sobreposições de umas sobre as outras, quando na verdade essas dimensões devem ser lidas a partir das formas de organização territorial de cada comunidade indígena. Assim, se por acaso desconsiderar as singularidades de cada grupo na maneira como organização sua territorialidade, elas relações de sobreposições mencionadas acima podem interferir na delimitação de uma terra indígena de maneira errônea e como consequência desse erro reduzir a abrangência das relações territoriais à produção e às atividades de subsistência (GALLOIS, 2004). Terra não é o mesmo que território, de acordo com estudos antropológicos aqui mencionados, considera-se que cada comunidade indígena possui uma lógica própria espacial e social, em sendo assim há diferentes formas de organização territorial e é nesses termos que o território de um grupo pode ser pensado como substrato de sua cultura (GALLOIS, 2004). No próximo subtópico, faremos uma exposição da formação das identidades a partir do território e seus sentidos sociais. 3 IDENTIDADE, TERRITÓRIO E NOVAS QUESTÕES DO MUNDO RURAL Existe uma literatura baseada na análise de movimentos sociais contemporâneos que demonstram os diferentes sentidos sociais que a terra e o território adquirem emrelação aos grupos sociais que que lutam por ela. Ao longo deste subtópico você, acadêmico, pode se familiarizar um pouco com as demandas e os sentidos múltiplos que essas categorias assumem para grupos indígenas e não indígenas. Também pode entender que esses diferentes grupos são muito maiores do que aqueles que estão mencionados nesse livro, portanto, fica o convite para que você busque o conhecimento vasto que há nesses diferentes grupos. Além disso, você também aprendeu a diferenciar categorias analíticas importantes ao estudo do campo da Antropologia Rural, entendendo como e quando ela começa e quais as etnografias que foram importantes no processo de formação desse subcampo de estudos. Ainda é relevante destacar a maneira como categorias analíticas como terra, território e territorialidade auxiliam em nosso processo de entendimento da diversidade de grupos, suas demandas de reconhecimento e de acesso e respeito ao seu modo de vida quando se parte da luta por acesso à terra. 127 Para encerrar nossa unidade, vamos aprofundar um pouco a questão dos sentidos sociais das lutas por terra e território, para então quando avançarmos ao último capítulo deste livro você possa entender a complexidade das dinâmicas entre o rural e o urbano nas suas intersecções. Aqui foi privilegiado o olhar sobre as comunidades tradicionais, consideramos mesmo que brevemente a exposição de diferentes grupos a fim de permitir um olhar mais plural sobre essas identidades e lutas sociais. Em conformidade com o que aponta o antropólogo André Guedes (2016) o “território” é percebido como elemento central às lutas de diferentes movimentos sociais e deve ser pensado sempre em referência à sua capacidade de abarcar e evidenciar particularidades e identidades específicas. Essa categoria assume também um papel importante na esfera pública quando em situações de conflito ela é acionada para denunciar limites e abusos quanto aos impactos e efeitos sociais de projetos de acumulação e espoliação capitalista, tendo como referência as ameaças à vida de povos indígenas e demais povos tradicionais ameaçados de terem o bioma onde vivem e de onde dependem para viver atravessados por exploração, violências e esgotamento das fontes naturais de subsistências. Dentro dessa perspectiva uma outra categoria analítica é acionada, isto é, a “desterritorialização”, que visa dar conta de um modo de enunciar um conjunto de efeitos negativos promovidos por empreendimentos distintos dos modos de vida tradicionais. Guedes (2016) defende que essa categoria é extremamente relevante para a dimensão política dessas lutas sociais para pensar nos efeitos sociais de grandes projetos que impacto negativamente na vida de diversas populações tradicionais. Esse termo implica análises empobrecidas que não dão conta de efeitos possíveis e pensáveis não imediatamente, mas em longa escala (GUEDES, 2016). Veja, acadêmico, todos esses autores aqui mencionados têm contribuído para entender uma diferença importante quanto ao sentido de terra e território quando acionadas dimensões sociais e econômicas, por um lado, evidenciando um sentido particular de um tipo de expressão espacial em que um modo de vida se desenvolve e necessita para sua reprodução e existência. Por outro lado, há um esforço em demonstrar os impactos e efeitos nocivos quando há uma imposição de projetos econômicos que veem a terra e o território apenas como um recurso econômico. Assim, é possível levarmos a sério as demandas mobilizadas pelas comunidades tradicionais acerca de sua territorialidade, frequentemente lembrada como algo para além da posse individual e do sentido estritamente econômico que compõe a ideia de propriedade. Logo, é importante evocar toda a dinâmica que está inserida no reconhecimento das demandas de povos e comunidades tradicionais que resulta de uma inter-relação entre aspectos como organização social, concepções naturais e ecológicas, biológicas e culturais. 128 Assim as lutas territoriais de povos e comunidades tradicionais nas últimas décadas ganharam maior protagonismo na esfera pública brasileira, se comparado com as lutas por “terra” de movimentos camponeses (ALMEIDA, 2007). Alguns projetos econômicos e políticos hegemônicos tem contribuído para uma consolidação de lutas sociais que tem por objetivo o enfrentamento mais direto aos projetos modernizantes que exploram e dizimam populações sem respeito às legislações ou ao direito das comunidades e povos tradicionais. Os contextos são complexos, os grupos são inúmeros e os sentidos sociais que cada um deles atribuem às suas demandas também são singulares. É preciso entender a coexistência de diferentes sentidos nessas disputas, no sentido de ampliar a nossa capacidade de reconhecer a diferença, preocupados com os impactos e os efeitos que um empreendimento econômico pode suscitar toda uma comunidade de pessoas. Certamente no próximo capítulo quando falaremos dessas imbricações entre a dimensão rural e urbana em fricção poderemos entender melhor quais esses efeitos, quais os limites e as potencialidades que essas lutas sociais despertam no tempo presente. A década de 1980 trouxe uma infinidade questões em disputa na arena pública brasileira, conforme já foi dito aqui um dos seus acontecimentos mais marcantes é a promulgação da Constituição Federal de 1988 que trouxe em seus marcos jurídicos o reconhecimento de sujeitos políticos como os indígenas e não indígenas, no entanto, é também nesse período que outras lutas e conflitos sociais espaço contexto do campo, organizações pautadas na defesa ambiental e étnica. De acordo com o antropólogo Mauro Almeida (2007) nesse período vamos encontrar uma mudança nas “narrativas agrárias”, Almeida é enfático ao afirmar que não significa que a luta camponesa perdeu lugar, mas que está não será a única luta presente nesse contexto. Também nesse período falou-se no fim da “antropologia das sociedades agrárias”, razão pela qual você, acadêmico, já deve ter percebido nos subtópicos anteriores quando vimos o surgimento e o desenvolvimento da antropologia brasileira. O que este autor tenta enfatizar é que este fim é meramente artificial, pois na prática um enorme contingente de populações, comunidades e organizações vão emergir mobilizando categorias analíticas e políticas do campesinato, por exemplo, “barrancos e florestas, ilhas e praias, chapadas e brejos, babaçuais e açaizais, canaviais e cafezais, ribeirinhos e seringueiros, quilombolas e caiçaras, sertanejos e montanheses, coletores e plantadores, saberes, tradições e memórias, fazeres” (ALMEIRDA, 2007, p. 177). No caso dos povos indígenas destaca-se reivindicações e organizações de novos sujeitos que não estavam registrados na literatura antropológica ou mesmo eram reconhecidos em matéria de serviços especializados como é o caso da FUNAI, povos como os Tinguí-Botó, os Karapótó, os Kantaruré, Jenipancó, os Tapeca e os Wassu, que nesse momento passam a serem chamados de “índios emergentes” ou “novas etnias”, segundo aponta o antropólogo João Pacheco de Oliveira (1998). 129 Assim aparece, por exemplo, o termo “etnogênese”, empregado por Gerald Sider (1976), no contexto de uma oposição ao etnocídio. Não caberia tomá-la como conceito ou mesmo noção, pois este e outros autores, que também aplicam a mesma ideia na etnografia de populações indígenas (como Goldstein, 1975), sequer sentem a necessidade de melhor defini-la, tomando-a como evidente. Em termos teóricos, a aplicação dessa noção – bem como de outras igualmente singularizantes a um conjunto de povos e culturas pode acabarsubstantivando um processo que é histórico, dando a falsa impressão de que, nos outros casos em que não se fala em “etnogênese” ou de “emergência étnica”, o processo de formação de identidades estaria ausente (OLIVEIRA, 1998, p. 62). O que Pacheco de Oliveira chama atenção e com razão é para o fato de que é um erro classificar esses povos indígenas que foram reconhecidos tardiamente entre os anos 1970 e 1980 como sendo pertencentes a “novas etnias” ou “índios emergentes” quando na verdade as transformações sociais que ocorreram no Brasil nesse período interferem de forma intensa sobre esses processos, sobretudo quando do encontro com outras culturas e povos que fazem parte dessa trajetória, como é o caso dos povos indígenas do Nordeste que no século XVI foram submetidos à escravização, pacificação e aldeamentos forçados diante de alianças ou guerras em contatos com os colonizadores (OLIVEIRA, 2006; 2010). O que se destaca mais fortemente nesse período é que há uma inserção étnica na agenda pública de lutas políticas e isto representa um deslocamento de concepções políticas na maneira como os movimentos sociais em que vigoram as demandas étnicas passa a mobilizar como uma categoria central “identidade étnica” e um conjunto de categorias como as descritas acima que valorizam esse lugar da etnicidade nas lutas políticas por sujeitos tradicionais. Essa pluralidade de atores e novos sujeitos políticos em que passam a afirmar de forma positiva sua identidade, por exemplo, indígenas, quilombolas, quebradeiras de coco babaçu, seringueiros, caiçaras, ribeirinhos, ressignificam o conteúdo de suas lutas afirmando positivamente sua identidade étnica frente ao modo como tais identidades foram estigmatizadas socialmente. Nesse caso, conforme destacado por Pacheco de Oliveira (1998, p. 64) é que nesses contextos sociais “a atualização histórica não anula o sentimento de referência à origem, mas até mesmo o reforça. É da resolução simbólica e coletiva dessa contradição que decorre a força política e emocional da etnicidade”. O que explica porque não houve uma consolidação de um subcampo com o nome de Antropologia Rural, tendo em vista que, num primeiro momento, as pesquisas a respeito desses sujeitos sociais estavam inseridas na categoria “camponês”, como esses os processos de efervescência política ocorridos na década de 1980 na luta pela redemocratização muitos grupos que estavam invisíveis dentro da categoria camponês passam a afirmar suas identidades até então estigmatizadas e invisibilizadas, demandando inclusive a sua afirmação também no território e então redefinindo “o padrão de conflitividades e o campo relacional de antagonismos”, conforme sugere Cruz (2011, p. 7). 130 O que complexifica a questão agrária é que nesse momento categorias como identidade, etnia e território passam a vigorar como principais demandas articuladas nessas novas lutas sociais, revelando uma série de outros conflitos inseridos no campo, sobretudo quando se fala em limites e fronteiras agrícolas na região da Amazônia. É assim que Vianna Jr, (2008) vai argumentar sobre as diferenças entre pautas e demandas do passado com as desse período, quando as afirmações étnicas e sobre o uso tradicional da terra e dos seus recursos naturais vão impactar as políticas públicas de acesso à terra, fazendo um deslocamento de políticas redistributivas de terra no âmbito da reforma agrária para políticas de demarcação indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais. Noutros termos, não de utilizar instrumentos redistributivos da Reforma Agrária para atender demandas por terra para povos tradicionais, mas agora passa a vigorar uma demarcação adequada dos territórios dessas comunidades tradicionais. Ocorre uma diversificação os novos ciclos de lutas sociais no campo, quando a questão étnica passa a ganhar mais fôlego diante da questão agrária novas demandas surgem, outros valores sociais aparecem e mobilizam novos reportórios de luta política, entre eles o direito ao meio ambiente – com forte ênfase na preservação da floresta amazônica –, à identidade e ao território destacam-se junto a reivindicações pela Reforma Agrária, direitos trabalhistas e as lutas de pequenos produtores rurais e sem-terra. As questões sobre campesinato, reforma agrária, agronegócio, êxodo rural, lutas camponeses e sem-terra veremos com maiores detalhes na próxima unidade quando falaremos das relações urbano e rural. ESTUDOS FUTUROS Agora, acadêmico, você já conheceu diversos aspectos das lutas sociais que envolve o campo e as questões de identidade e cultura na luta pela demarcação territorial. Também viu algumas das principais referências em pesquisas nessa área, o próximo passo é fazer uma boa leitura de revisão do conteúdo dessa unidade e em seguida praticar o seu conhecimento com o auxílio das autoatividades. Ah, não se esqueça de aproveitar a leitura complementar, pois é uma forma diferente de exercitar alteridade, estranhamento, relativismo e raciocínio comparativo. O texto escolhido possibilita outras formas de conhecer esses temas. Bons estudos! Até a Unidade 3! 131 LEITURA COMPLEMENTAR RITOS CORPORAIS ENTRE OS NACIREMA Horace Miner O antropólogo está tão familiarizado com a diversidade das formas de comporta- mento que diferentes povos apresentam em situações semelhantes, que é incapaz de surpreender-se mesmo em face dos costumes mais exóticos. De fato, se nem todas as combinações logicamente possíveis de comportamento foram ainda descobertas, o antropólogo bem pode conjeturar que elas devam existir em alguma tribo ainda não descrita. Deste ponto de vista, as crenças e práticas mágicas dos Nacirema apresentam aspectos tão inusitados que parece apropriado descrevê-los como exemplo dos extremos a que pode chegar o comportamento humano. Foi o Professor Linton, em 1936, o primeiro a chamar a atenção dos antropólogos para os rituais dos Nacirema, mas a cultura desse povo permanece insuficientemente compreendida ainda hoje. Trata-se de um grupo norte-americano que vive no território entre os Cree do Canadá, os Yaqui e os Tarahumare do México, e os Carib e Arawak das Antilhas. Pouco se sabe de sua origem, embora a tradição relate que vieram do Leste. Conforme a mitologia dos Nacirema, um herói cultural, Notgnihsaw, deu origem à sua nação; ele é, por outro lado, conhecido por duas façanhas de força: ter atirado um colar de conchas, usado pelos Nacirema como dinheiro, através do rio Po-To-Mac e ter derrubado uma cerejeira na qual residiria o Espírito da Verdade. A cultura Nacirema caracteriza-se por uma economia de mercado altamente desenvolvida, que evolui em um rico habitat. Apesar do povo dedicar muito do seu tempo às atividades econômicas, uma grande parte dos frutos deste trabalho e uma considerável porção do dia são dispensados em atividades rituais. O foco destas atividades é o corpo humano, cuja aparência e saúde surgem como o interesse dominante no ethos deste povo. Embora tal tipo de interesse não seja, por certo, raro, seus aspectos cerimoniais e a filosofia a eles associadas são singulares. A crença fundamental subjacente a todo o sistema parece ser a de que o corpo humano é repugnante e que sua tendência natural é para a debilidade e a doença. Encarcerado em tal corpo, a única esperança do homem é desviar estas características por meio do uso das poderosas influências do ritual e do cerimonial. Cada moradia tem um ou mais santuários devotados a este propósito. Os indivíduos mais poderosos desta sociedade têm muitos santuários em suas casas e, de fato, a alusão à opulência de uma casa, muito frequentemente, é feita em termos do número de tais centros rituais que possua. Muitas casas são construções de madeira, toscamente pintadas, mas as câmeras de culto das mais ricas têm paredes de pedra. 132As famílias mais pobres imitam as ricas, aplicando placas de cerâmica às paredes de seu santuário. Embora cada família tenha pelo menos um de tais santuários, os rituais a eles associados não são cerimônias familiares, mas sim cerimônias privadas e secretas. Os ritos, normalmente, são discutidos apenas com as crianças e, neste caso, somente durante o período em que estão sendo iniciadas em seus mistérios. Eu pude, contudo, estabelecer contato suficiente com os nativos para examinar estes santuários e obter descrições dos rituais. O ponto focal do santuário é uma caixa ou cofre embutido na parede. Neste cofre são guardados os inúmeros encantamentos e poções mágicas sem os quais nenhum nativo acredita que poderia viver. Tais preparados são conseguidos por meio de uma série de profissionais especializados, os mais poderosos dos quais são os médico-feiticeiros, cujo auxílio deve ser recompensado com dádivas substanciais, contudo, os médico-feiticeiros não fornecem a seus clientes as poções de cura; somente decidem quais devem ser seus ingredientes e então os escrevem em sua linguagem antiga e secreta. Esta escrita é entendida apenas pelos médico-feiticeiros e pelos ervatários, os quais, em troca de outra dadiva, providenciam o encantamento necessário. Os Nacirema não se desfazem do encantamento após seu uso, mas os colocam na caixa-de-encantamento do santuário doméstico. Como tais substâncias mágicas são especificas para certas doenças e as doenças do povo, reais ou imaginárias, são muitas, a caixa-de-encantamentos está geralmente a ponto de transbordar. Os pacotes mágicos são tão numerosos que as pessoas esquecem quais são suas finalidades e temem usá-los de novo. Embora os nativos sejam muito vagos quanto a este aspecto, só podemos concluir que aquilo que os leva a conservar todas as velhas substâncias é a ideia de que sua presença na caixa-de-encantamentos, em frente à qual são efetuados os ritos corporais, irá, de alguma forma, proteger o adorador. Abaixo da caixa-de-encantamentos existe uma pequena pia batismal. Todos os dias cada membro da família, um após o outro, entra no santuário, inclina sua fronte ante a caixa-de-encantamentos, mistura diferentes tipos de águas sagradas na pia batismal e procede a um breve rito de ablução. As águas sagradas vêm do Templo da Água da comunidade, onde os sacerdotes executam elaboradas cerimônias para tornar o líquido ritualmente puro. Na hierarquia dos mágicos profissionais, logo abaixo dos médico- feiticeiros no que diz respeito ao prestígio, estão os especialistas cuja designação pode ser traduzida por "sagrados homens-da-boca". Os Nacirema têm um horror quase que patológico, e ao mesmo tempo fascinação, pela cavidade bucal, cujo estado acreditam ter uma influência sobre todas as relações sociais. Acreditam que, se não fosse pelos rituais bucais seus dentes cairiam, seus amigos os abandonariam e seus namorados os rejeitariam. Acreditam também na existência de uma forte relação entre as características orais e as morais: Existe, por exemplo, uma ablução ritual da boca para as crianças que se supõe aprimorar sua fibra moral. O ritual do corpo executado diariamente por cada Nacirema inclui um rito bucal. Apesar de serem tão escrupulosos no cuidado bucal, este rito envolve uma prática 133 que choca o estrangeiro não iniciado, que só pode considerá-lo revoltante. Foi-me relatado que o ritual consiste na inserção de um pequeno feixe de cerdas de porco na boca juntamente com certos pós mágicos, e em movimentá-lo então numa série de gestos altamente formalizados. Além do ritual bucal privado, as pessoas procuram o mencionado sacerdote-da-boca uma ou duas vezes ao ano. Estes profissionais têm uma impressionante coleção de instrumentos, consistindo em brocas, furadores, sondas e aguilhões. O uso destes objetos no exorcismo dos demônios bucais envolve, para o cliente, uma tortura ritual quase inacreditável. O sacerdote-da-boca abre a boca do cliente e, usando os instrumentos acima citados, alarga todas as cavidades que a degeneração possa ter produzido nos dentes. Nestas cavidades são colocadas substâncias mágicas. Caso não existam cavidades naturais nos dentes, grandes seções de um ou mais dentes são extirpadas para que a substância natural possa ser aplicada. Do ponto de vista do cliente, o propósito destas aplicações é tolher a degeneração e atrair amigos. O caráter extremamente sagrado e tradicional do rito evidencia-se pelo fato de os nativos voltarem ao sacerdote-da-boca ano após ano, não obstante o fato de seus dentes continuarem a degenerar. Esperemos que quando for realizado um estudo completo dos Nacirema haja um inquérito cuidadoso sobre a estrutura da personalidade destas pessoas. Basta observar o fulgor nos olhos de um sacerdote-da-boca, quando ele enfia um furador num nervo exposto, para se suspeitar que este rito envolve certa dose de sadismo. Se isto puder ser provado, teremos um modelo muito interessante, pois a maioria da população demonstra tendências masoquistas bem definidas. Foi a estas tendências que o Prof. Linton (1936) se referiu na discussão de uma parte específica dos ritos corporal que é desempenhada apenas por homens. Esta parte do rito envolve raspar e lacerar a superfície da face com um instrumento afiado. Ritos especificamente femininos têm lugar apenas quatro vezes durante cada mês lunar, mas o que lhes falta em frequência é compensado em barbaridade. Como parte desta cerimônia, as mulheres ousam colocar suas cabeças em pequenos fornos por cerca de uma hora. O aspecto teoricamente interessante é que um povo que parece ser preponderantemente masoquista tenha desenvolvido especialistas sádicos. Os médico-feiticeiros têm um templo imponente, ou latipsoh, em cada comunidade de certo porte. As cerimônias mais elaboradas, necessárias para tratar de pacientes muito doentes, só podem ser executadas neste templo. Estas cerimônias envolvem não apenas o taumaturgo, mas um grupo permanente de vestais que, com roupas e toucados específicos, movimentam-se serenamente pelas câmaras do templo. As cerimonias latipsoh são tão cruéis que é de surpreender que uma boa proporção de nativos realmente doentes que entram no templo se recupere. Sabe-se que as crianças pequenas, cuja doutrinação ainda é incompleta, resistem às tentativas de levá-las ao templo, porque "é lá que se vai para morrer". Apesar disto, adultos doentes não apenas querem mas anseiam por sofrer os prolongados rituais de purificação, 134 quando possuem recursos para tanto. Não importa quão doente esteja o suplicante ou quão grave seja a emergência, os guardiões de muitos templos não admitirão um cliente se ele não puder dar uma dádiva valiosa para a administração. Mesmo depois de ter se conseguido a admissão, e sobrevivido às cerimônias, os guardiães não permitirão ao neófito abandonar o local se ele não fizer outra doação. O suplicante que entra no templo é primeiramente despido de todas as suas roupas. Na vida cotidiana o Nacirema evita a exposição de seu corpo e de suas funções naturais. As atividades excretoras e o banho, enquanto parte dos ritos corporais, são realizados apenas no segredo do santuário doméstico. Da perda súbita do segredo do corpo quando da entrada no latipsoh, podem resultar traumas psicológicos. Um homem, cuja própria esposa nunca o viu em um ato excretor, acha-se subitamente nu e auxiliado por uma vestal, enquanto executa suas funções naturais num recipiente sagrado. Este tipo de tratamento cerimonial é necessário porque os excreta são usados por um adivinho para averiguar o curso e a natureza da enfermidade do cliente. Clientes do sexo feminino, por sua vez, têm seus corpos nus submetidos ao escrutínio, manipulação eaguilhadas dos médico-feiticeiros. Poucos suplicantes no templo estão suficientemente bons para fazer qualquer coisa além de jazer em duros leitos. As cerimônias diárias, como os ritos do sacerdote-da-boca, envolvem desconforto e tortura. Com precisão ritual as vestais despertam seus miseráveis fardos a cada madrugada e os rolam em seus leitos de dor enquanto executam abluções, com os movimentos formais nos quais estas virgens são altamente treinadas. Em outras horas, elas inserem bastões mágicos na boca do suplicante ou o forçam a engolir substâncias que se supõe serem curativas. De tempos em tempos o médico-feiticeiro vem ver seus clientes e espeta agulhas magicamente tratadas em sua carne. O fato de que estas cerimônias do templo possam não curar, e possam mesmo matar o neófito, não diminui de modo algum a fé das pessoas no médico feiticeiro. Resta ainda um outro tipo de profissional, conhecido como um "ouvinte". Este "doutor-bruxo" tem o poder de exorcizar os demônios que se alojam nas cabeças das pessoas enfeitiçadas. Os Nacirema acreditam que os pais enfeitiçam seus próprios filhos; particular- mente, teme-se que as mães lancem uma maldição sobre as crianças enquanto lhes ensinam os ritos corporais secretos. A contra magia do doutor-bruxo é inusitada por sua carência de ritual. O paciente simplesmente conta ao "ouvinte" todos os seus problemas e temores, principalmente pelas dificuldades iniciais que consegue rememorar. A memória demonstrada pelos Nacirema nestas sessões de exorcismo é verdadeiramente notável. Não é incomum um paciente deplorar a rejeição que sentiu, quando bebê, ao ser des- mamado, e uns poucos indivíduos reportam a origem de seus problemas aos feitos traumáticos de seu próprio nascimento. Como conclusão, deve-se fazer referência a certas práticas que têm suas bases na estética nativa, mas que decorrem da aversão profunda ao corpo natural e suas funções. 135 Existem jejuns rituais para tornar magras pessoas gordas, e banquetes cerimoniais para tornar gordas pessoas magras. Outros ritos são usados para tornar maiores os seios das mulheres que os têm pequenos e torná-los menores quando são grandes. A insatisfação geral com o tamanho do seio é simbolizada no fato de a forma ideal estar virtualmente além da escala de variação humana. Umas poucas mulheres, dotadas de um desenvolvimento hipermamário quase inumano, são tão idolatradas que podem levar uma boa vida simplesmente indo de cidade em cidade e permitindo aos embasbacados nativos, em troca de uma taxa, contemplarem-nos. Já fizemos referência ao fato de que as funções excretoras são ritualizadas, rotinizadas e relegadas ao segredo. As funções naturais de reprodução são, da mesma forma, distorcidas. O intercurso sexual é tabu enquanto assunto, e é programado enquanto ato. São feitos esforços para evitar a gravidez, pelo uso de substâncias mágicas ou pela limitação do intercurso sexual a certas fases da lua. A concepção é na realidade, pouco frequente. Quando grávidas as mulheres vestem-se de modo a esconder o estado. O parto tem lugar em segredo, sem amigos ou parentes para ajudar, e a maioria das mulheres não amamenta seus rebentos. Nossa análise da vida ritual dos Nacirema certamente demonstrou ser este povo dominado pela crença na magia. É difícil compreender como tal povo conseguiu sobreviver por tão longo tempo sob a carga que impôs sobre si mesmo, mas até costumes tão exóticos quanto estes aqui descritos ganham seu real significado quando são encarados sob o ângulo relevado por Malinowski, quando escreveu: Olhando de longe e de cima de nossos saltos postos de segurança na civilização desenvolvida, é fácil perceber toda a crueza e irrelevância da magia. Mas sem seu poder de orientação, o homem primitivo não poderia ter dominado, como o fez, suas dificuldades práticas, nem poderia ter avançado aos estágios mais altos da civilização. Fonte: https://bit.ly/2H24xPq. Acesso em: 26 ago. 2022. 136 Neste tópico, você aprendeu: • Conheceu os principais conceitos do campo da antropologia rural no Brasil. • Aprendeu as diferentes comunidades e povos tradicionais. • Aprendeu que as lutas territoriais de povos e comunidades tradicionais nas últimas décadas ganharam maior protagonismo na esfera pública brasileira. • Conheceu a importância da luta social pela terra na afirmação dos diferentes modos de vida. RESUMO DO TÓPICO 3 137 1 As lutas sociais por territórios são constitutivas de comunidades tradicionais como indígenas, quilombolas, caiçaras e ribeirinhos, e se destacam justamente por terem sido posicionadas como fenômenos do mundo rural brasileiro. Nesse sentido, a partir da abordagem acerca dos conceitos de terra, território e territorialidade proposta por Dominique Galllois (2004), assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) Terra indígena diz respeito ao processo político-jurídico conduzido sob a égide do Estado, enquanto território remete à construção e à vivência, culturalmente variável, da relação entre uma sociedade específica e sua base territorial. b) ( ) A terra é uma categoria conceitual exclusiva das comunidades e povos tradicionais e diz respeito às políticas de reconhecimento da reforma agrária. c) ( ) A territorialidade é uma categoria semelhante ao conceito de campo, ela significa uma emaranhado de terras em que há diferentes grupos sociais habitando conjuntamente. d) ( ) O território é o conceito central para definir do direitos dos latifundiários, é importante porque a partir dele é possível invadir espaços e se apossar deles para o desenvolvimento econômico. 2 Considera-se os estudos de comunidades e a etnologia indígena como os principais marcos de referência para o desenvolvimento do subcampo Antropologia Rural no Brasil. Com base nas definições dos enfoques das pesquisas nessa área, analise as sentenças a seguir: I- Dentre as décadas de 1940 e 1970 os estudos em etnologia indígena representaram fortemente o campo em torno de comunidades e grupos que eram lidos e definidos com base na sua localização espacial, seus traços culturais e em contraposição ao modo de vida urbano. II- Exemplos de modalidades tradicionais de Etnologia Indígena são o Campesinato e a Estudos de Comunidade. III- Na década de 1980, os estudos a respeito das comunidades rurais estavam associados com a identidade negra e camponesa e exerceram muita influência dos processos de reconhecimento de territórios e regularização de terras. Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As sentenças I e II estão corretas. b) ( ) Somente a sentença II está correta. c) ( ) As sentenças I e III estão corretas. d) ( ) Somente a sentença III está correta. AUTOATIVIDADE 138 3 Conforme apontado pela antropóloga Dominique Gallois (2004) os estudos antropológicos evidenciam que há diferentes lógicas espaciais entre essas comunidades tradicionais. De acordo com os princípios e as normativas elencadas nos estudos antropológicos, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas: Fonte: GALLOIS, D. T. Terras ocupadas? Territórios? Territorialidades? In: FANY, R. (org.) Terras Indígenas & Uni- dades de Conservação da natureza: o desafio das sobreposições. São Paulo, Instituto Socioambiental, 2004. ( ) As noções de terra e território já foi objeto de diferentes estudos antropológicos como os de Seeger e Viveiros de Castro (1979) e de Oliveira Filho (1989; 1996), todos eles vão nos mostrar que essas categorias são acionadas de maneira distinta pelos atores envolvidos no processo de reconhecimento e demarcação de uma Terra Indígena. ( ) O conceito mais importante para as comunidade indígenas é o desterritorialidade que se refere aos processos de deslocamentos dos povos indígenas do campopara a cidade. ( ) Para Gallois (2004) o conceito de “terra indígena diz respeito ao processo político- jurídico conduzido sob a égide do Estado, enquanto território remete à construção e à vivência, culturalmente variável, da relação entre uma sociedade específica e sua base territorial. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) V – F – F. b) ( ) V – F – V. c) ( ) F – V – F. d) ( ) F – F – V. 4 Os conflitos que se relacionam às comunidades tradicionais têm relação com a noção de poder que nesse contexto é uma marca desigual e hierárquica predominante na busca pela expansão do poder econômico, político e cultural por projetos econômicos da sociedade moderna. Uma das grandes áreas de estudos desse tema é a Etnologia Indígena. Disserte sobre esta área de concentração e sobre as temáticas envolvendo os conflitos de territorialidade a partir de dois autores com publicações na área. 5 Existe uma literatura baseada na análise de movimentos sociais contemporâneos que demonstram os diferentes sentidos sociais que a terra e o território adquirem em relação aos grupos sociais que lutam por ela. Neste contexto, disserte sobre os princípios que fundamentam as lutas dos camponeses e as lutas dos povos e comunidades tradicionais pela terra a partir da década de 1980. 139 ALMEIDA, A. W. B. Calhambolas, quilombolas e mocambeiros: a força mobilizadora da identidade e a consciência da necessidade. Revista Eletrônica Afros e Amazônicos. v. 2, n 1, 2010. ALMEIDA, M. Narrativas agrárias e a morte do campesinato. Ruris – Revista do Centro de Estudos Rurais, Campinas, v. 1, n. 2, p. 157-186, 2007. AMOROSO, M.; MENDES DOS SANTOS, G. (Org.). Paisagens ameríndias: lugares, circuitos e modos de vida na Amazônia. 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TÓPICO 1 – O CONTINUUM ENTRE O URBANO E O RURAL NA PRODUÇÃO DE IDENTIDADES SOCIAIS TÓPICO 2 – MODOS DE PRODUÇÃO, CONSUMO E USO DE RECURSOS TÓPICO 3 – A QUESTÃO AMBIENTAL: TENSÕES, FRONTEIRAS E DISPUTAS Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações. CHAMADA 144 CONFIRA A TRILHA DA UNIDADE 3! Acesse o QR Code abaixo: 145 TÓPICO 1 — O CONTINUUM ENTRE O URBANO E O RURAL NA PRODUÇÃO DE IDENTIDADES SOCIAIS UNIDADE 3 1 INTRODUÇÃO Caro acadêmico, conforme vimos na unidade anterior, comunidades ou povos tradicionais como indígenas e quilombolas (dentre outros) são grupos sociais que fazem parte e constituem de modo ativo o espaço rural brasileiro tanto na maneira como constituem suas referências socioculturais na manutenção de suas territorialidades quanto o modo como produzem e nutrem o ambiente, de acordo com as práticas sustentáveis. Nessa relação entre o rural e o urbano, tivemos a oportunidade de enxergar a formação de novas identidades no ambiente urbano a partir do intenso processo de urbanização e construção das cidades. Agora, poderemos compreender outras dinâmicas imersas nesse processo que aqui chamaremos de “continuum”, para fazer referência a uma maneira de olhar para os diferentes processos e acontecimentos que se dão a partir da relação sequencial entre o rural e o urbano de forma contínua, isto é, há elementos do rural que podem se manter presentes no urbano, assim como acontece com o inverso. Adiante veremos exemplos disso. Mesmo considerando as legislações em matéria de reconhecimento dos territórios tradicionalmente ocupados, também podemos identificar a distância que há para salvaguardar esses territórios, suas práticas e seus modos de viver no contexto contemporâneo em que há uma diversidade de ataques aos povos e ao seu território: os conflitos envolvendo a disputa de terras insiste em não reconhecer essas identidades e marcam essa relação entre o rural e o urbano naquilo que se faz mais notável aos nossos olhos: os conflitos, as invasões e as violências que incidem sobre essa parcela da sociedade brasileira em todas as regiões do país onde quer que elas se encontrem. No Brasil, devido ao nosso passado histórico marcado pelas práticas coloniais, foi implantado um sistema de concentração de terras sob o poder de poucos indivíduos. O conceito de latifúndio foi durante muito tempo utilizado para se referir ao acúmulo de grandes extensões de terra por um proprietário. Mais tarde, com o Estatuto da Terra, a dimensão da propriedade privada foi articulada com a função social de sua ocupação. Benedito Marques (2015, p. 62) conceitua latifúndio, partindo do Estatuto da Terra, como “imóvel rural que tem área igual ou superior ao módulo rural e é mantido inexplorado ou 146 com exploração inadequada ou insuficiente às suas potencialidades”. Agora a dimensão de “uso” vai flexionar o conceito de modo a refletir sobre potencialidades da terra que pode sofrer por se manter improdutiva apenas para especular, isto é, acumular um valor de monetário, desvinculado de um valor social. Você pode se interrogar sobre o papel do Estado na preservação, na autonomia ou no reconhecimento desses territórios, logo poderá lembrar que viu na Unidade anterior que em matéria de legislação e instituições tivemos alguns avanços sobre essas questões, mas também puderam ver os limites em conter a expansão de conflitos e ataques aos povos e seus territórios e é nesse o ponto que o Estado precisa estar atento para conter essas violências contra os povos tradicionais e contra seus territórios, atualizando legislações, fiscalizando o cumprimento das fronteiras e fortalecendo aquelas instituições que são responsáveis pela valorização, reconhecimento e apoio a esses povos, por exemplo, a FUNAI e o INCRA. Os estudos em antropologia do espaço rural muito têm contribuído para demonstrar de que maneira o sentido de terra, território e territorialidade incidem para o reconhecimento pleno dos direitos dessas comunidades e como uma fonte empírica de produção em pesquisa sobre os impactos que o descumprimento dessas fronteiras causam na vida dessas populações. Conforme estudamos, a antropologia tem um número expressivo de trabalhos voltados para os estudos dessas comunidades tradicionais ao longo do tempo e fornece uma importante contribuição científica para entender as lutas e os direitos sociais mobilizados por esses grupos para o cumprimento de leis, para o respeito ao seu modo de vida e para o reconhecimento de sua existência. Olhando para uma perspectiva histórica tivemos a oportunidade de nos aproximar de estudos clássicos, categorias e teorias do campo da antropologia que foram determinantes para a compreensão dessa subárea de estudos. Agora, acadêmico, nós vamos nos deter um tempo presente, o mundo contemporâneo e as dinâmicas e conflitos sociais que alcançam o mundo rural e como o urbano se conecta com elas. Até aqui, acadêmico, você já deve ter aprendido que a construção das identidades nos espaços rurais passa por uma compreensão do modo como os povos e comunidades tradicionais articulam entre suas práticas sociais a relação com a natureza e a cultura. Desse modo, é possível que você já esteja familiarizado com a ideia central de que os povos e comunidades tradicionais não devem ser entendidos como “sociedades atrasadas” (qualquer dúvida sobre este ponto volte à introdução da Unidade 1), mas como parte do movimento de interação da sociedade no compartilhamento dos seus saberes e das suas formas de vida para o entendimento acerca de questões econômicas, produtivas ou de projeto de desenvolvimento rural. 147 Nesse sentido, os conhecimentos tradicionais assim como os saberes populares compartilhados a partir das experiências múltiplas de uso, ocupação e construção de territórios por povos e comunidades tradicionais perdem referência para o “novo” e a promessa “moderna” de Revolução Industrial. Logo, aqueles saberes que prosperaram durante séculos entre essas comunidades perdem espaço para uma visão etnocêntrica da ciência moderna que passa a vigorar sobre o domínio do campo científico tornando essas práticas e saberes tradicionais irrelevantes e “atrasados” para o desenvolvimento da nação. Além disso, há outro movimento de exploração por parte desse novo espírito econômico que se expande cada vez mais rápido ao redor do mundo, a chamada biopirataria, que consiste na extração e exploração ilegais de recursos naturais, como plantas, animais e materiais genéticos presentes nos biomas brasileiros, e dos saberes tradicionais para transformar em monopólio econômico de grandes industriais estrangeiras por meio do registro de patentes. Como consequência dessa ação devastadora há extinção de espécies, perda da biodiversidade, prejuízos socioeconômicos, desequilíbrio ecológico e subdesenvolvimento em matéria de inovação, ciência e tecnologia nacional. Nos próximos tópicos vamos falar um pouco dessas dinâmicas entre o rural e o urbano no contexto do desenvolvimento global e dos processos de disputas e conflitos territoriais que se dão no mundo contemporâneo. Alguns conceitos e teorias ganharão destaque e algumas pesquisas empíricas serão essenciais para nosso processo de aprendizagem sobre essa diversidade. 2 ALGUMAS CATEGORIAS ANALÍTICAS Caro acadêmico, há diversos estudos antropológicos das populações do campo, muitos deles foram apresentados na Unidade anterior. Nesta Unidade, você conhecerá os recentes estudos na perspectiva dodesenvolvimento econômico, a partir de outro olhar sobre o mundo rural, agora abordando questões agrárias, as noções de rural e ruralidades, bem como outros grupos sociais que estão inseridos nessa possibilidade de abordagem do universo que transita entre rural e urbano, seus impactos, suas continuidades, seus deslocamentos e seus conflitos. Antes de passar para a análise e abordagem dos modos de produção, consumo e uso de recursos nesse segmento (continuum) entre rural e urbano, bem como avançar sobre as questões ambientais a partir da análise dos conflitos e das tensões em torno das disputas por outros sujeitos, será necessário aprender algumas categorias comuns a esse campo de análise. De acordo com Maria Nazaré Wanderley, “a grande propriedade patronal no Brasil está na origem de uma ruralidade dos espaços vazios” (WANDERLEY, 2001, p. 36). A modernização do campo teve como projeto as novas configurações produtivas, onde destacam-se as seguintes características: o intenso uso de máquinas, inovações tecnológicas, uso de adubos e fertilizantes químicos e aplicação de capital financeiro. Esses são traços de um processo contemporâneo no mundo econômico capitalista que 148 introduz novas demandas de produção em escala maior: o desenvolvimento de recursos comunicacionais e de meios de transporte mais rápidos também possibilitaram mudanças nos modos de produção no espaço rural, interferindo no modo de vida da população do campo. Sobre o conceito de rural, a própria Maria Nazaré Wanderley sugere que. Do ponto de vista sociológico, quando se fala em “rural”, aponta-se para duas características que são consideradas fundamentais: por um lado, uma relação específica dos habitantes do campo com a natureza, com a qual o homem lida diretamente, sobretudo por meio de seu trabalho e do seu habitat. Trata-se, sem dúvida, das representações do espaço natural e do espaço construído, visto que a “natureza rural”, precisamente porque é rural, isto é, “objeto de múltiplas atividades e usos humanos, é a menos natural possível”. Por outro lado, relações sociais, também diferenciadas, que Mendras definiu como “relações de interconhecimento”, resultantes da dimensão e da complexidade restritas das “coletividades” rurais (MENDRAS, 1976). Destas relações resultam práticas e representações particulares a respeito do espaço, do tempo, do trabalho, da família etc. (MATHIEU; JOLLIVET, 1989, p. 15 apud WANDERLEY, 2000, p. 88). Para Oliveira (2001, p. 75), em outras palavras: A lógica do desenvolvimento do modo capitalista de produção é contraditória e combinada, pois ao mesmo tempo em que [...] constrói/ destrói formações territoriais em diferentes partes do mundo, faz com que frações de uma mesma formação territorial conheçam processos desiguais de valorização, produção e reprodução do capital. O que esses autores argumentam é que há inúmeras mudanças nesse mundo rural, que tornam cada vez mais vaga a imagem de um ambiente agrícola e tradicional, passando a incorporar atividades e práticas consideradas tipicamente do mundo urbano. As implicações serão acompanhadas pela expansão e concentração de terras, lavouras com investimentos de capital financeiro e uma mudança na perspectiva onde as atividades de produção tradicionais comumente conhecidas como “camponesas” passam a sofrer com a produção de commodities. A população do campo passa viver a experiência de escassez, desemprego, falta de oportunidades, pauperização e como consequência dessa intensa industrialização do campo ocorre o fenômeno do êxodo rural: o impacto inicial é dessa transição de pessoas da zona rural para as zonas urbanas, chegando em um novo contexto de intensa industrialização encontra dificuldades para se habitar aos novos ritmos da intensa vida urbana, cujos laços sociais, como vimos na outra Unidade, tendem a afrouxar e uma perspectiva cada vez mais individual se sobressai nessas relações. Além disso, as atividades de trabalho também serão diferentes, o manejo da terra, a plantação não será a atividade principal mas sim atividades próprias da indústria. 149 Caro acadêmico, quer saber um pouco mais dos impactos do êxodo rural no contexto de transformações sociais do Brasil com o avanço da urbanização e acirramento das desigualdades sociais vividas pelas populações do campo? Assista ao documentário O Êxodo Rural, o qual faz parte do acervo do Laboratório de Imagem e Som em Antropologia da Universidade de São Paulo. Título Original: O Êxodo Rural. Direção: Mario Kuperman. Sinopse: atraídos pelas cidades os habitantes do campo perdem a sua vinculação com o meio rural, provocando migrações internas. A legislação trabalhista rural vigente e a conquista, cada vez maior, de áreas de pastagens são responsáveis pelo êxodo rural. Duração: 24'. Ano de produção: 1989. Produção: Futura Filmes. País: Brasil. Idioma: português. Fonte: https://lisa.fflch.usp.br/node/342. Acesso em: 13 set. 2022. DICA Nesse sentido, as condições de vida são modificadas e a própria compreensão de rural se atualiza em relação aos impactos da urbanização que alcança esse espaço social. As diferenças espaciais e sociais entre o rural e o urbano passam a se tornar cada vez mais diluídas, novas dinâmicas surgem e é o momento em que passamos a interpretar essas transformações a partir do conceito de ruralidades. Um processo dinâmico em constante reestruturação dos elementos da cultura local mediante a incorporação de novos valores, hábitos e técnicas. Tal processo implica um movimento em duas direções, nas quais se identificam, de um lado, a reapropriação de elementos da cultura local a partir de uma releitura possibilitada pela emergência de novos códigos e, de outro lado, a apropriação pela cultura urbana de bens culturais e naturais do mundo rural, produzindo, assim, uma situação que pode contribuir para alimentar a sociabilidade e reforçar os laços com a localidade (CARNEIRO, 2012, p. 50). Nesse processo de conhecer as dinâmicas entre o rural e o urbano uma categoria que ganha sentido para o entendimento deste campo de estudos é desenvolvimento: o conceito quando localizado em período histórico como o do surgimento do capitalismo e da Revolução Industrial se associa a uma compreensão de processo de evolução, crescimento, progresso, em uma perspectiva de mudança. O desenvolvimento enquanto conceito e/ou abordagem teórica, ainda que possa ser datado no século XX, concentra-se, mais precisamente, ao conjunto de transformações pelas quais as sociedades europeias passaram tanto no padrão e estilo de capitalismo como pela necessidade de reconstrução no pós-guerra (Primeira e Segunda). Nesse sentido, o desenvolvimento como ideia central para se refletir sobre o mundo (capitalista) passa necessariamente pela questão da industrialização (LEME, 2015, p. 496). https://lisa.fflch.usp.br/node/342 150 Isto se dá em face das transformações ocorridas com a Revolução Industrial (a qual abordamos na Unidade 1) e, em especial, as mudanças que decorrem dela no espaço rural. Assim, diante de uma nova forma de produzir as inovações tecnológicas, passam a vigorar nesse novo sistema produtivo e o território brasileiro passa por diversas mudanças. Dentre algumas dessas mudanças, podemos destacar o uso mais comum de máquinas na produção de lavouras, a substituição de mão de obra humana pelas máquinas, o uso cada vez mais intenso de adubos e fertilizantes químicos, uso cada vez mais rotineiro de agrotóxicos, e à integração desse sistema produtivo ao mercado financeiro. Figura 1 – Sistema produtivo Fonte: https://bit.ly/3RTJpwo. Acesso em 31 ago. 2022. Tais transformações são resultados de um avanço cada vez maior do sistema capitalista em direção ao campo, resultado de um processo chamado mundialização. Essas transformações, que ocorrem de maneira acentuada a partir da segunda metade do século XX, fazem parte da modernidade e como projeto transformador suas implicaçõesvão desde uma nova concepção de ciência e método científico com a ruptura do pensamento medieval e introdução do iluminismo, que prega a razão como a única maneira de acessar o conhecimento, até mudanças nas estruturas da vida social quando as relações de trabalho e economia capitalista passam a vigorar sobre a organização das sociedades, no que se refere ao acelerado processo de industrialização e a intensa urbanização, que fornecem um olhar sobre o mundo rural e agrário como atrasados e obstáculos ao desenvolvimento nos moldes capitalistas. A mundialização acelera o crescimento da relação de dependência entre povos e nações, sobretudo, com o advento da comunicação e desenvolvimento tecnológico que tende a encurtar distâncias e diminuir fronteiras culturais. Exemplar disso é a chegada de internet e sistemas de telefonia nas zonas rurais, incorporando novas formas de comunicação e informação, assim como a busca cada vez maior de produtos orgânicos por parte daquelas pessoas que moram na cidade urbanizada e deseja um alimento cultivado longe de agrotóxicos e preservando uma relação de sustentabilidade com a terra. 151 Nesse sentido, podemos compreender adequadamente o conceito de mundialização a partir daquilo que foi proposto pelo sociólogo Octavio Ianni (1994), em seu famoso artigo “Globalização: Novo paradigma das ciências sociais”, no qual o autor analisa os processos e estruturas sociais a partir dos dilemas vigentes. As noções de espaço e tempo, fundamentais para todas as ciências sociais, estão sendo revolucionadas pelos desenvolvimentos científi- cos e tecnológicos incorporados e dinamizados pelos movimentos da sociedade global. As realidades e os imaginários lançam-se em outros horizontes, mais amplos que a província e a nação, a ilha e o arquipélago, a região e o continente, o mar e o oceano. As redes de articulações e as alianças estratégicas de empresas, corporações, conglomerados, fundações, centros e institutos de pesquisas, uni- versidades, igrejas, partidos, sindicatos, governos, meios de comuni- cação impressa e eletrônica, tudo isso constitui e desenvolve tecidos que agilizam relações, processos e estruturas, espaços e tempos, geografias e histórias: o local e o global estão distantes e próximos, diversos e mesmos. As identidades embaralham-se e multiplicam-se. As articulações e as velocidades desterritorializam-se e re-territorializam- -se em outros espaços, com outros significados: o mundo se tor- na mais complexo e mais simples, micro e macro, épico e dramático (IANNI, 1994, p. 155). O processo de urbanização, como vimos na Unidade 1, é intensificado e muito rápido, pois produz transformações no ambiente e as relações: o Estado se torna um aliado ao avanço dessa ideologia do mundo moderno como progresso, alimentado pela crença no desenvolvimento econômico como horizontes possíveis de vencer a pobreza e oferecer uma “vida melhor” ao reduzir as desigualdades sociais. No entanto, o desenvolvimento tecnológico almejado como mudança radical de vida e transformação para as diferentes sociedades vai se mostrando limitada: o mundo mundializado, globalizado e moderno alimenta uma lógica “predatória” em que prevalece uma perspectiva economicista baseada no lucro, na produção em massa e no trabalho assalariado sem perspectivas de direito e dignidade trabalhista. Não por acaso as transformações com o sistema de transporte e comunicações serão determinantes para esse fio “continuum” entre o urbano e o rural que passa a ser cada vez mais objeto de intervenções que servem ao processo de mundialização, isto é, um fenômeno social em que a Europa, berço da Revolução Industrial, passa a aglutinar mercados com a expansão do capitalismo e integrando espaços tradicionais de produção, subsistência e formas de vida sustentáveis pela lógica da expansão econômica orientada pelo uso exploratório, radical e violento dos territórios e das populações neles inseridas: o projeto de desenvolvimento capitalista foi tornado possível com a exploração e invasão de terras e populações inúmeras ao redor do mundo pelos europeus, por meio do projeto expansionista baseado no sistema colonial. A concepção de desenvolvimento que nos foi apresentada está ancorada nesta perspectiva, a qual hoje discutimos os impactos e consequências que nos foi deixada como legado. Na Unidade 2, nós tivemos a oportunidade de conhecer um pouco da realidade de diferentes comunidades tradicionais, considerando aspectos como a relação que esses povos estabelecem com 152 a natureza e o ambiente onde vivem, de modo que fazem um uso sustentável das riquezas sem comprometer os biomas, desaparecimento de povos indígenas, escravização dos povos africanos, exploração dos recursos nativos, usurpação de minerais e saberes tradicionais para fins predatórios são algumas dessas consequências. Quando se trata de desenvolvimento para os nossos estudos aqui, acadêmico, devemos ter em mente as mudanças ocorridas com a urbanização e a industrialização, conforme pontuado na Unidade 1 deste livro, assim como é importante considerar o conceito de desenvolvimento rural, por sua vez implica um conjunto de práticas e tecnologias aplicadas ao ambiente rural, utilizadas para exploração e utilização dos recursos naturais ali disponíveis e se associa a construção de novos mercados, novos produtos e novas formas de trabalho. Em outro momento, o conceito vem a ser atualizado associando-se a dimensões mais amplas como a ambiental, a social, a cultural e a econômica para associar o uso adequado do rural para ampliar a capacidade de subsistência dos pequenos produtores, afastando-se de uma compreensão de modernização agrícola, industrialização ou urbanização do campo. Momento em que passa a circular o conceito de desenvolvimento rural sustentável, empregado para estimular nas áreas de agricultura familiar, reforma agrária, terras indígenas ou comunidades tradicionais um uso adequado da terra e dos recursos dela provenientes, atentando-se para o ecossistema respeitando a necessidade de reprodução das próximas gerações, isto é, respeitando o meio ambiente é possível melhorar a qualidade de vida da população, do solo, da alimentação e da economia sem esgotar a capacidade daquele ambiente com um uso desordenado e exploratório que extraí o máximo de recursos até esgotar a capacidade de recuperação do ambiente e assim impedindo sua produção para futuras gerações, bem como causando impactos desastrosos no meio ambiente. Para avançarmos mais nessa relação entre o rural e o urbano a partir dessas questões aqui apresentadas, cabe ainda lembrar umas das categorias elementares da antropologia que vai guiar você, acadêmico, ao conhecimento antropológico de uma outra perspectiva, aquela que vai valorizar o contexto e a realidade dos sujeitos sociais e onde vivem, procurando sempre se colocar em perspectiva com o Outro, esse que é diferente de você, que está em situação de desvantagem por efeito desse processo exploratório que destruiu suas terras, dizimou seu povo, explorou mão de obra e extorquiu suas fontes de significado, isto é, o sentido socialmente compartilhado pelos povos tradicionais que ocupam um determinado lugar. Para os Guarani e kaiowá, por exemplo, a sua territorialidade se constitui como um elemento fundamental da sua identidade e do sentido da própria vida. Eles dão significado a sua existência na experiência de viver, habitar e entender o mundo a partir da terra. Não por acaso, diante de conflitos intensos e processos de invasão de suas terras muitos deles passaram a praticar o suicídio, vivenciando uma experiência de perda de sentido e significado diante da violência e da supressão de seu território. Abandonar o etnocentrismo é crucial para entender os conflitos e as disputas que estão presentes na relação rural e urbano. 153 Antes de passarmos para o próximo tópico, assista a este vídeo sobre a situação dos Guarani-Kaiowáno Momento Agroecológico que mostra as práticas de cura do povo Guarani-Kaiowá e a importância da retomada do território para a preservação dos saberes. Acesse: https://bit.ly/3U8fWAI. DICA Acadêmico, no próximo tópico, abordaremos situações do presente nas quais impactam os modos de produção, as formas de consumo e uso de recursos entre o rural e o urbano. 3 O RURAL E O MODERNO Caro acadêmico, a partir dos anos de 1970 as ciências sociais brasileiras passaram a se interessar cada vez mais pelo estudo das mudanças na vida social rural a partir do olhar sobre a modernização da agricultura, bem como a formação das classes sociais nesse campo social em torno do mundo agrário. Nesse período os estudos do campesinato estavam marcados pelo interesse numa análise das transformações das sociedades modernas. O campesinato nesse período foi lido como um modo de produção pré-capitalista, cujas formas de funcionamento não poderiam ser entendidas a partir das teorias e explicações do sistema capitalista, mas de uma forma de produção pré-capitalista que nas afirmações mais enfáticas compartilhadas da época viam no campesinato seu desaparecimento. Mesmo que uma boa parte dos estudos da época, conforme vimos nas Unidades anteriores, demonstrassem a vitalidade desses modos de produção, a tese mais difundida entre autores clássicos das ciências sociais afirmava que se tratava de um pequeno contingente de grupos, que em consequência da expansão cada vez maior e mais rápida do capitalismo desapareceria, era apenas um resíduo do campesinato e “penetração do capitalismo no campo” (WANDERLEY, 2001, p. 12). Os camponeses desse período eram vistos como inimigos do progresso e do desenvolvimento, anticapitalistas que num contexto de transição entre sociedades rurais e urbanas, detinham alto potencial de mobilização e luta social se colocando enfaticamente contra às classes dominantes agrárias, bem como os proprietários de terra e os empresários da agricultura. No entanto, conforme argumenta Wanderley (2001), na verdade esse conjunto de atores sociais estavam mais empenhados em defender sua identidade, seu modo de vida e enfrentar as guerras anticolonialistas que nutriam a ideia do progresso baseada no apagamento dessas populações do campo em nome de uma suposta emancipação nacional. 154 Os estudos do mundo rural nos anos 1970 tentaram entender em que medida ainda era possível haver uma reprodução do campesinato tendo em vista que havia uma “persistência” de uma gama de pequenos produtores familiares que combinavam uma agricultura tradicional com traços de modernização e capitalismo, não demorou e os pesquisadores passaram a perceber que o campesinato não desapareceu e a “classe dos bárbaros”, como foram chamados (WANDERLEY, 2001, p. 13), fizeram inúmeros pesquisadores se voltarem ao estudo da natureza social e econômica desse campesinato persistente, que passou a se reproduzir em diferentes contextos das sociedades modernas. Wanderley (2001) afirmará que o processo de desenvolvimento econômico e social do Brasil longe de uniformizar a nossa sociedade, produziu uma diversidade de atores, modos de produção e relações sociais diversificados demonstrando uma complexidade cada vez maior dessas fronteiras relacionais. Logo perceberíamos que com o desenvolvimento do urbano e a aceleração do capitalismo seria necessário entender o campesinato no interior das sociedades modernas capitalistas e não fora delas. De acordo com as pesquisas de Wanderley (2001), o campesinato contribuiu e continua contribuindo fortemente para a sociedade, não só na condição de um pequeno proprietário de terra (quando isso pode acontecer) ou pequeno “empresário”, mas como um trabalhador. Porém, ao contrário da relação direta entre o capital e o trabalho, que define a condição do assalariado, a reprodução do campesinato nas sociedades capitalistas tem como fundamento uma relação indireta, cujos termos são dados pela polarização autonomia-subordinação, isto é, a busca incessante de um espaço de autonomia pelos camponeses, face aos mecanismos de subordinação do capital. Indireta, precisamente, porque reproduz, nas circunstâncias dadas, um produtor de mercadorias (WANDERLEY, 2001, p. 15). O que a autora enfatiza é a diversidade de situações de reprodução do campesinato no contexto da América Latina. Dito isso, afirma-se que esse perfil de produção teve grande capacidade de adaptação frente a expansão capitalista, resistindo aos contextos de mudanças econômicas, sociais, políticas e ambientais. No entanto, Wanderley é assertiva em dizer que essa capacidade de adaptação é resultado de inúmeras estratégias familiares, isto é, “mais do que as diferenças quanto aos níveis de renda auferida, que apenas reconstrói o perfil momentâneo dos agricultores familiares, é a diferenciação das estratégias familiares que está na origem da heterogeneidade das formas sociais concretas da agricultura familiar” (WANDERLEY, 2001, p. 15). A agricultura familiar se manteve persistente ao longo da história porque nela há um conjunto de atores sociais que protagonistas de suas próprias vivências, situados em sua dimensão espacial, política, econômica, social e ambiental renovam suas estratégias e modos de produção e se mantém resistentes em meio às imposições externas com inovações. 155 Wanderley (2001) desenvolveu uma importante pesquisa sobre os produtores de algodão do município do Leme, em São Paulo, em que demonstrou que uma parte significativa dos agricultores familiares que residiam na sede municipal, à época, uma cidade de aproximadamente 70 mil habitantes, situada num eixo considerado urbano e industrial, mantinham residência em sítios relativamente próximos, tendo como aporte para esse trânsito “rural e urbano” um sistema de transporte acessível que ajudou a manter um fio continuum entre o meio rural e a cidade urbana. Em geral, a maioria dos agricultores, homens adultos, serviram-se dessa acessibilidade do sistema de transporte para continuar a manter suas maneiras tradicionais de interação e contato com o meio rural, além da produção, eram fortemente apegados aos hábitos culturais expressos em suas formas de lazer, por exemplo, pescarias, festas e rituais religiosos e encontros informais com amigos dos sítios. Nesse sentido, a pesquisadora continuava a fortalecer a tese de que o mundo rural não deveria ser compreendido de forma isolada da sociedade moderna, mas em interação com ela, uma vez que as relações entre campo-cidade estavam cada vez mais complementares entre si. Assim, para Wanderley (2001, p. 18), “o mundo rural pode ser entendido como um lugar de vida, que se define enquanto um espaço singular e um ator coletivo”. Ao colocar sua afirmação nesses termos, Wanderley mostra que as tramas espaciais e sociais, assim como as trajetórias de desenvolvimento vividas pelos habitantes desse universo dão o sentido social a uma relação campo-cidade, vivida como complementariedade e integração. Esse tipo de relação se expressa por meio de dinâmicas internas e externas da vida social do mundo rural em sua diversidade. Assim, o acesso da população rural a bens de consumo, eletrodomésticos, bens e serviços são indicadores do grau de interação e complementariedade sobre o qual Wanderley (2001) afirma. Por outro lado, a autora vai afirmar que a vida social local vai ser marcada pelo acesso a bens que são considerados essenciais para sua permanência no campo, destaca-se nesse sentido as oportunidades de trabalho que parecem sempre mais escassos nas áreas rurais. O que ocasionaria uma precariedade das condições no meio rural seria a necessidade de deslocamento, acesso a serviços e bens que não se realizam ou quando acontece é de forma precarizada. Assim, mais do que acentuar as diferenças entre o campo e a cidade, Wanderley (2001, p. 57) nos mostrará que há um conjunto de contradiçõesencontradas na agricultura brasileira em torno da propriedade da terra. Assim, Afrânio Garcia Jr. (1990) também vai argumentar nessa mesma direção, mostrando que: tomar a presença crescente de trabalhadores pagos em dinheiro na diária ou por tarefa realizada em todos os tipos de explorações agrícolas por desenvolvimento do trabalho assalariado, por processo de proletarização, por desenvolvimento capitalista, não especifica nada, não proporciona o conhecimento das determinações desse processo (GARCIA JR., 1990, p. 276). 156 A formação desse contingente de trabalhadores está associada diretamente a condição de concentração fundiária vivida em nosso país. E parte desses trabalhadores foram precarizados em face de terem uma vida concentrada no mundo rural e nos modos de produção da agricultura cuja principal fonte de subsistência é o trabalho na terra e ao se deparar com uma expansão do capital produtivo, secas, falta de políticas públicas e ampliação da concentração de terras vão se tornar uma massa de trabalhadores com baixa remuneração e perda de suas terras. Essas frágeis condições vão converter aqueles que eram pequenos produtores e pequenos proprietários de terras em uma massa de assalariados precarizados, cuja fonte de renda principal é o trabalho na agricultura. A passagem de colono/morador para trabalhador assalariado não significou, necessariamente, nem uma mudança de patrão (não me refiro aqui à pessoa individual de cada patrão, mas à categoria social, cujo elemento permanente é precisamente a propriedade da terra), nem mesmo uma mudança da natureza do trabalho efetuado. Expulso da terra enquanto morador, o assalariado a ela retorna para realizar, na maioria das vezes, trabalho semelhante ao que já fazia anteriormente. atividades fragmentadas, não qualificadas, ligadas às tarefas manuais que a modernização das grandes culturas não conseguiu superar (WANDERLEY, 2001, p. 58). Essa mudança deve ser percebida como uma incapacidade da agricultura brasileira, em especial, os setores mais modernos, de incorporar o progresso técnico e as inovações tecnológicas e de se libertar da concepção parcial de propriedade da terra. Um dos resultados mais expressivos dessas transformações sociais é o emprego do trabalho compulsório ou de semiescravidão em grandes empresas agropecuárias, uma superexploração do trabalho que alimenta a reprodução da propriedade fundiária e se distancia de uma visão associada a um processo de moderno de divisão social do trabalho ou de unificação dos mercados de trabalho rural e urbano. Sobre as consequências dessas relações sociais presentes no rural brasileiro, Wanderley (2001, p. 59) afirma “a base da extrema exploração de uma força de trabalho sem qualificação profissional, sem garantia de proteção efetiva das leis trabalhistas e com acesso precário aos bens e serviços fundamentais ao cidadão”. Assim a “pobreza rural” virou tema de inúmeras pesquisas a exemplo daquela realizada por Eugênia Trancoso Leone, em 1994, quando demonstrou o aumento expressivo da proporção de pobres no mundo rural. As famílias que residem em áreas urbanas, mas dependem de uma baixa renda do trabalho do chefe na agricultura, têm uma série de dificuldades para materializar as possibilidades oferecidas pela vida na cidade. Essas dificuldades têm a ver com as deficiências de infraestrutura de serviços urbanos e com a insuficiência do nível de renda de boa parte dessas famílias. Em consequência, elas não têm acesso a um mínimo de condições básicas que são imprescindíveis a qualquer morador das cidades. Por esse motivo, apesar de se notar uma diferença substancial de estilo de vida entre os residentes de áreas rural e urbana, não é em absoluto claro que tais diferenças impliquem uma condição de vida melhor para os que moram na 157 cidade. A vida nas cidades requer um nível de renda que a agricultura não tem proporcionado à maioria daqueles que nela trabalham ainda que já tenham residência urbana (LEONE, 1994, p. 124). Após conhecer, aprender e compreender contextos, teorias e categorias analíticas pertinentes em nossos estudos da relação rural e urbano você já está familiarizado com as interfaces e diversidades de relações e práticas que fazem parte desse universo da vida social. Assim, para finalizar esse tópico que tal fazer um exercício de revisão? O objetivo é que você, acadêmico, também faça um movimento reflexivo de deslocamento para contextos mais próximos que evoquem relações entre esse continuum rural e urbano no tempo contemporâneo. Aproveite. Nos vemos no próximo tópico! 158 Neste tópico, você aprendeu: • As dinâmicas entre o rural e o urbano no contexto do desenvolvimento global e dos processos de disputas e conflitos territoriais que se dão no mundo contemporâneo. • Alguns conceitos e teorias essenciais para o entendimento do contexto analisado, que ganharão destaque a partir de algumas pesquisas empíricas sobre os temas essenciais para nosso processo de aprendizagem no entendimento da diversidade cultural que envolve o rural e o urbano. • Há inúmeras mudanças vividas no mundo rural, que tornam cada vez mais vaga a imagem de um ambiente agrícola e tradicional, passando a incorporar atividades e práticas consideradas tipicamente do mundo urbano, distanciando-se, assim, de uma visão etnocêntrica do rural como atrasado. • Há implicações acompanhadas pela expansão e concentração de terras, lavouras com investimentos de capital financeiro e uma mudança na perspectiva onde as atividades de produção tradicionais comumente conhecidas como “camponesas” passam a sofrer com a produção de commodities. • A expansão econômica desenfreada interferiu na qualidade de vida e as formas de subsistência encontradas na população do campo, reconhecendo como essas pessoas passam a viver a experiência de escassez, desemprego, falta de oportunidades, pauperização e como consequência dessa intensa industrialização do campo ocorre o fenômeno do êxodo rural. RESUMO DO TÓPICO 1 159 1 De acordo com Maria Nazaré Wanderley, “a grande propriedade patronal no Brasil está na origem de uma ruralidade dos espaços vazios” (2001, p. 36). Parte importante dos processos de modernização do campo teve como projeto as novas configurações produtivas nos espaços rurais, onde destacam-se algumas características. Sobre essas características assinale a alternativa CORRETA: WANDERLEY, M. N. B. A ruralidade no Brasil moderno. Por um pacto social pelo desenvolvimento rural. In: Giarraca, N. Una nueva ruralidad en América Latina? Buenos Aires: clacso, 2001. p. 31-44. a) ( ) O intenso uso de máquinas, inovações tecnológicas, uso de adubos e fertilizantes químicos e aplicação de capital financeiro. b) ( ) A intensa migração dos moradores da cidade para o campo em busca de trabalho; o uso de agrotóxicos para melhorar a produção e a inclusão de novas legislações trabalhistas. c) ( ) As perspectivas da sustentabilidade foram centrais para esse contexto, onde prevaleceram as operações e processos da produção da agricultura familiar. d) ( ) Inovações tecnológicas no campo ampliaram a preservação dos biomas, o reconhecimento da diversidade e o respeito às comunidades tradicionais. 2 Considerando os processos de mudanças sociais e as dinâmicas entre o rural e o urbano, uma categoria que ganha sentido para o entendimento deste campo de estudos é desenvolvimento. Com base nas definições dos enfoques do referido conceito, analise as sentenças a seguir: I- Tal conceito quando localizado em período histórico como o do surgimento do capitalismo e da Revolução Industrial se associa a uma compreensão de processo de evolução, crescimento e progresso. II- A agricultura familiar e o roçado são considerados exemplos de inovações tecnológicas da produção agrícola que marcam o progresso no campo, representando