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Fundamentos Históricos da Educação do Campo (HEC) Sumário UNIDADE I - Antecedentes Históricos do Movimento da Educação do Campo no Brasil ...................................................................................................................................... 3 UNIDADE II - Concepções e Práticas da Educação do Campo .......................... 12 UNIDADE III - Movimento Popular como Escola de Educação ............................ 23 UNIDADE IV - Educação Popular: Ideologia ou Emancipação Social ................ 29 BIBLIOGRAFIA UTILIZADA .............................................................................................. 37 UNIDADE I - Antecedentes Históricos do Movimento da Educação do Campo no Brasil Os direitos não são construções acabadas, estão em permanente reconfiguração, na medida em que são construções históricas. Foram construídos em tensões sociais, políticas e culturais, refletem interesses locais, de grupos. Miguel Arroyo A educação da população do campo no Brasil sempre foi alvo de políticas públicas adotadas de modo a homogeneizar o povo brasileiro, nos mesmos moldes utilizados pela coroa portuguesa, desde a chegada dos jesuítas no Brasil. No início do século XIX, as políticas públicas acreditavam que o problema era decorrido da distância da população rural para as escolas que ficavam no eixo urbano. A partir destas ponderações, inicia-se a ampliação da rede de escolas rurais, distribuídas pelos municípios, geralmente com sede em fazendas e/ou distritos muito pequenos. Na maioria eram casas e/ou galpões que tinham somente dois ou três cômodos, sendo uma sala de aula, com uma única professora, em turmas multisseriadas onde era ministrado o ensino primário. As aulas eram dadas conforme cadernos e materiais didáticos enviados a todas as instituições escolares, produzidos pelo Ministério da Educação, não sendo levadas em conta as peculiaridades destes alunos. [...] a suposição de que o conhecimento “universal”, produzido pelo mundo dito civilizado deveria ser estendido – ou imposto - a todos, de acordo com a “capacidade” de cada um, serviu para escamotear o direito a uma educação contextualizada, promotora do acesso à cidadania e aos bens econômicos e sociais, que respeitasse os modos de viver, pensar e produzir dos diferentes povos do campo. Ao invés disso, se ofereceu, a uma pequena parcela da população rural, uma educação instrumental, reduzida ao atendimento de necessidades educacionais elementares e ao treinamento de mão de obra. (MEC. CADERNOS SECAD 2, 2007, p. 10). Se o ensino primário era desconsiderado de políticas públicas para a educação no meio rural, no ensino secundário e superior faltavam projetos e subsídios para sua continuidade. No início do século XIX, 1909, o Brasil inicia com assinatura do Decreto nº 7.566 em 23 de setembro, pelo presidente Nilo Peçanha a autorização de criação das “Escolas de Aprendizes e Artífices” voltadas para os trabalhadores do campo. Em seu Art. 1º, cita que, “Em cada uma das capitães dos Estados da República o Governo Federal manterá, por intermédio do Ministério da Agricultura, Industria e Commercio, uma Escola de Aprendizes Artificies, destinada ao ensino profissional primário gratuito”. (MEC/SEMTEC.1994). Com efeito, o período republicano referendou a concepção de um ensino profissional com características exclusivas de ensino voltado para os menos favorecidos. A pressão da agricultura na economia brasileira gerou o Decreto nº 8.319, de 20 de novembro de 1910, que trouxe a primeira regulamentação e estruturação do ensino agrícola no Brasil, passando a ser ministrado em quatro categorias, a saber: Ensino Agrícola Superior, Ensino Agrícola Médio, Aprendizes Agrícolas e Ensino Primário Agrícola. Esse Decreto apresenta como finalidade precípua “a instrução técnica profissional relativa à agricultura e às indústrias correlatas, compreendendo: Ensino Agrícola, Ensino de Zootecnia, Ensino de Indústrias Brasil”. (SOBRAL, S/D, p. 82). Somente a partir de 1932, com o Manifesto dos Pioneiros1 e o movimento da Educação Nova, se iniciou uma política pública voltada para este segmento. No documento do Manifesto dos Pioneiros preconizava-se um diagnóstico e sugestão dos rumos que deveria ser a escola que pudesse oportunizar a todos com base em uma cultura geral com humanidades e ciências e outra técnica com divisão para as disciplinas de áreas rurais e industriais. (MEC, 2007). Com esta divisão em cultura geral e técnica, acreditava-se que, os alunos matriculados em áreas rurais pudessem ter o conhecimento global (humanidades e Ciências) com direitos iguais aos alunos das áreas urbanas. O conhecimento técnico seria agrupado em: “extração de matérias-primas- agricultura, minas e pesca; elaboração de matérias-primas”. (MEC, 2007, p.10). 1 Escola Nova é um dos nomes dados a um movimento de renovação do ensino que foi especialmente forte na Europa, nos Estados Unidos e no Brasil, na primeira metade do século XX. A Constituição Federal de 1937 estabeleceu em seu artigo 150 uma educação primária para todos e gratuita, porém não trouxe o princípio da obrigatoriedade. Desta forma, os filhos dos trabalhadores, rurais e urbanos colocavam o trabalho em primeiro lugar. No campo, os filhos iniciavam muito cedo a trabalhar da “lida”. A Lei 4.024/1961 inicia a discussão de universalização na educação, porém ainda assim, a obrigatoriedade de todas as crianças nas escolas somente se consolida com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Se havia falta de políticas públicas para educação urbana, a educação rural nem entrava nas pautas das discussões. Mesmo tendo havido avanços na década de 30, conforme mostrado no texto com o Manifesto dos Pioneiros, esses foram interrompidos com a ditadura militar na década de 1960. Este modelo de ensino, porém não atendeu as classes populares. De acordo com os documentos MEC (2007), esta política educacional a partir de 1942, com a promulgação das Leis Orgânicas da Educação Nacional, evidenciava que o ensino iria continuar privilegiando as classes dominantes. De acordo com essas Leis, o objetivo do ensino secundário e normal seria “formar as elites condutoras do país” e o do ensino profissional seria oferecer “formação adequada aos filhos dos operários, aos desvalidos da sorte e aos menos afortunados, aqueles que necessitam ingressar precocemente na força de trabalho”. (MEC, 2007, p.11). A partir da década de 1960 houve mudança na legislação para atender a educação do campo. Estas mudanças ocorreram por motivo do êxodo rural para as cidades, criando bolsões de favela nas periferias. Para conter este avanço, iniciaram-se políticas públicas para manter as escolas rurais com estímulo financeiro e pedagógicos voltados a esta população. Em meados da década de 1960, por ocasião da implantação do modelo Escola-Fazenda no ensino técnico agropecuário, os currículos oficiais foram elaborados com enfoque tecnicista para atender ao processo de industrialização em curso. No mesmo período, ocorreu um vigoroso movimento de educação popular. Protagonizado por educadores ligados a universidades, movimentos religiosos ou partidos políticos de orientação de esquerda. Seu propósito era fomentar a participação política das camadas populares, inclusive as do campo, e criar alternativas pedagógicas identificadas com a cultura e com as necessidades nacionais, em oposição à importação de ideias pedagógicas alheias à realidade brasileira. (MEC. CADERNOS SECAD 2, 2007:11 apud RIBEIRO, 1993:171). Com o golpe militar de 1964 todos os movimentos de mobilização para a melhoria da educação no país foram desarticulados. Diante das altas taxas de analfabetismo e para poder conter os dados a nível internacional, foi instituído o Movimento Brasileiro de Alfabetização– Mobral, “o qual se caracterizou como uma campanha de alfabetização em massa, sem compromisso com a escolarização e desvinculada da escola”. (MEC, 2007:11) Mesmo tendo o golpe militar paralisado as discussões para políticas públicas de educação do campo, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1971, conhecida como Lei nº 5.692/71, define-se uma nova política para o ensino técnico agrícola. Pelo Decreto nº 72434, de 09 de julho de 1973, é criada a COAGRI - Coordenadoria Nacional do Ensino Agrícola, com a finalidade de “proporcionar, nos termos desse decreto, assistência técnica e financeira a estabelecimentos especializados em ensino agrícola” do MEC. (SOBRAL, S/D, p. 828-89). Segundo as pesquisas de Sobral (s/d), a GOAGRI representou um marco na história das Escolas Agrícolas. Sendo um órgão autônomo da administração direta, conseguiu ampliar e ainda manter 33 (trinta e três) Escolas Agrícolas criadas em todo o território nacional. A COAGRI ampliou e/ou reformou seus prédios e instalações; equipou as escolas com laboratórios, salas-ambiente, unidades educativas de produção, quadras para esporte, bibliotecas e acervos; regularizou as terras, num total de 13.345hectares; implantou os serviços de orientação educacional e de supervisão educacional; implementou e consolidou o sistema escola-fazenda; consolidou as cooperativas-escola; vem oferecendo cursos para habilitar seu corpo docente, e promovendo concursos públicos para a admissão de servidores técnicos e administrativos, bem como aperfeiçoando e reciclando diretores, professores, técnicos e pessoal administrativo. (SOBRAL, S/D, p. 89 apud Brasil - MEC, 1994, p. 21). Apesar de todo este avanço, as escolas agrícolas não serviam aos trabalhadores do campo, pois eram escolas que na maioria funcionavam como internatos, tendo os filhos dos grandes latifundiários de terra garantia da matrícula. Os filhos das famílias de pequenos agricultores não eram os alunos destas escolas, pois o sustento das famílias era no trabalho braçal, da colheita e precisavam dos filhos para aumentar a renda familiar. Porém, somente a partir da Constituição Federal de 1988, com a universalização da Educação Básica e a obrigatoriedade de todas as crianças e jovens na escola, a educação do campo inicia as discussões. A partir deste marco o compromisso com a educação do campo passa a ser consolidado por lei. A LDBEN 9.394/96 passa a tratar especificamente com adequações no trabalho pedagógico, calendários e outras particularidades desta modalidade de ensino. A partir desse contexto de mobilização social, a Constituição de 1988 consolidou o compromisso do Estado e da sociedade brasileira em promover a educação para todos, garantindo o direito ao respeito e à adequação da educação às singularidades culturais e regionais. Em complemento, a atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n° 9.394/96) estabelece uma base comum a todas as regiões do país, a ser complementada pelos sistemas federal, estaduais e municipais de ensino e determina a adequação da educação do calendário escolar às peculiaridades da vida rural e de cada região. (MEC. CADERNOS SECAD 2, 2007:12) Pensar na educação do campo nas duas últimas décadas é também repensar na nomenclatura dada. Educação rural é diferente da educação do campo. De acordo com o dicionário de Educação do campo, De modo geral, o destinatário da educação rural é a população agrícola constituída por todas aquelas pessoas para as quais a agricultura representa o principal meio de sustento [...] Trata-se dos camponeses, ou seja, daqueles que residem e trabalham nas zonas rurais e recebem os menores rendimentos por seu trabalho. Para estes sujeitos, quando existe uma escola na área onde vivem, é oferecida uma educação na mesma modalidade da que é oferecida às populações que residem e trabalham nas áreas urbanas, não havendo, de acordo com os autores, nenhuma tentativa de adequar a escola rural às características dos camponeses ou dos seus filhos, quando estes a frequentam (CALDART et al, 2012, p.295). O mesmo dicionário também nos oferece uma definição para a educação do campo. A Educação do Campo nomeia um fenômeno da realidade brasileira atual, protagonizado pelos trabalhadores do campo e suas organizações, que visa incidir sobre a política de educação desde os interesses sociais das comunidades camponesas. Objetivo e sujeitos a remetem às questões do trabalho, da cultura, do conhecimento e das lutas sociais dos camponeses e ao embate (de classe) entre projetos de campo e entre lógicas de agricultura que têm implicações no projeto de país e de sociedade e nas concepções de política pública, de educação e de formação humana (CALDART et al, 2012, p.295). Romper com esta nomenclatura é uma das lutas dos trabalhadores hoje do campo. Romper com a educação rural é uma das prioridades da educação do campo. A mudança na compreensão desse conceito reflete muito mais do que uma simples nomenclatura. Ela é inevitavelmente o resultado de um olhar politicamente referendado na busca pelos direitos sociais e nas questões que envolvem a defesa da educação politécnica (CALDART, 2015), a agroecologia (ALTIERI, 2014), agricultura orgânica, reforma agrária, soberania alimentar, entre outros aspectos. Esses são fatores indispensáveis na concretização de projetos político- pedagógicos que busquem encarar a realidade e atender as necessidades das populações do campo. Ações que pressionam as lideranças governamentais na criação e organização de políticas públicas para/com os trabalhadores e trabalhadoras do campo. (SANTOS, 2017, p. 212). Santos (2017) defende que a partir da LDBEN 9.394/96, o reconhecimento da diversidade e a singularidade do campo foram pensados, quando a legislação preconiza a concepção de uma educação para todos, presente no texto. De acordo com o autor, Vários instrumentos legais estabelecem orientações para atender esta realidade, de modo a “adequar” as suas especificidades, como exemplificam os artigos 23, 26 e 28, que tratam das questões de organização escolar e pedagógicas. Esta LDB, em seu artigo 28, estabelece as seguintes normas para educação no meio rural: Na oferta da educação básica para a população rural, os sistemas de ensino proverão as adaptações necessárias à sua adequação, às peculiaridades da vida rural e de cada região, especialmente: I. conteúdos curriculares e metodologia apropriada às reais necessidades e interesses dos alunos da zona rural; II. organização escolar própria, incluindo a adequação do calendário escolar às fases do ciclo agrícola e às condições climáticas; III. adequação à natureza do trabalho na zona rural. (BRASIL, 1996). (SANTOS, 2017, p.214). Nos artigos acima citados da LDBEN 9.394/96, são observados os avanços que a legislação estabelece em relação às novas políticas públicas para a educação do campo, principalmente no inciso II, com autonomia das escolas do campo na flexibilização do calendário escolar para adequar as fases de colheita. Esta pedagogia, conhecida como pedagogia da alternância, de acordo com Santos (2017, p. 214), [...] estabelece um currículo flexível para atender aos objetivos de que, em tempos e espaços alternados – Tempo Escola (TE) e Tempo Comunidade (TC) – os jovens do campo tenham condições de acesso à escolarização, conhecimentos científicos, valores produzidos em família, comunitários e os saberes da terra. O autor também relata que, [...] a pedagogia da alternância pode contribuir com a formação dos jovens da seguinte maneira: desenvolvendo a reflexão crítica, a responsabilidade individual e coletiva e fortalecendo as famílias do campo na tentativa de envolver os sujeitos na busca de um mundo mais solidário, justo, humano e ético. (SILVA, 2008; BEGNAMI, 2013). Os avanços e reivindicações históricas presentes na Constituiçãode 1988 e na LDB, contribuíram para o acúmulo de forças e fortalecimento dos sujeitos envolvidos nesse processo de formação. (SANTOS, 2017, p.214). Os movimentos sociais foram construindo esta realidade ao longo da história da educação rural em nossos país, pois as políticas públicas sempre foram inconsistentes e/ou interrompidas a cada novo governo. Estes movimentos lutaram e lutam pela defesa do “meio rural como espaços de vida, da diversidade cultural e identitária, das lutas, resistências e sonhos, portanto, territórios que carecem de políticas direcionadas a essa realidade. Não apenas uma mera transposição do que é elaborado no meio urbano”. (SANTOS, 2017, p.215). Como somente a lei estabelecida no papel não tem ação, sem uma articulação política, em 1998, a entidade organizacional foi criada para promover as ações de mobilização da escolarização do campo. Dentre as ações realizadas, Santos (2017) pontua como conquista desta Articulação: ➢ Conferências Nacionais Por Uma Educação Básica do Campo – em 1998 e 2004; ➢ Criação do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) em 1998, vinculado ao gabinete do Ministério Extraordinário da Política Fundiária. Em 2001, o Programa passa a fazer parte do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), no Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). ➢ instituição pelo CNE – Conselho Nacional de Educação, das Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo, em 2002 e a instituição do Grupo Permanente de Trabalho de Educação do Campo (GPT), em 2003. (SECAD, 2004); ➢ I Conferência Nacional Por Uma Educação Básica do Campo. Uma parceria entre o MST, UnB, UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), UNESCO (Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura) e CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). Segundo Santos (2017), a I Conferência Nacional por uma Educação Básica do campo foi um divisor na luta pelo reconhecimento dos sujeitos do campo, Nela foram debatidas as condições de escolarização face aos problemas de acesso, manutenção e promoção dos alunos; a qualidade do ensino; as condições de trabalho e a formação do corpo docente, além dos modelos pedagógicos de resistência que se destacam, enquanto experiências inovadoras no meio rural. A socialização desses modelos sinalizava a construção de uma proposta de educação do campo e não mais educação rural ou educação para o meio rural. (SANTOS, 2017, p.216). Em 2004, foi criada a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, no Ministério da Educação, “à qual está vinculada a Coordenação- Geral de Educação do Campo”. Esta nova estrutura fortalece as ações e o “reconhecimento de suas necessidades e singularidades” da educação diferenciada para o campo. (MEC. CADERNOS SECAD 2, 2007:12). A partir da criação da Secretária de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, várias ações se iniciaram. Além do fortalecimento da Educação Básica nas escolas de campo, foi retomado o projeto de escolas técnicas profissionalizantes voltadas com cursos para os trabalhadores e famílias residentes no campo. Através da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, foram iniciadas parcerias com as universidades federais no Brasil para a criação dos cursos de Licenciaturas em Educação do campo, com a finalidade de formar professores para atuarem na educação básica e lecionar nas escolas localizadas em áreas rurais, conhecido como PROCAMPO – Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do campo, que de acordo com os dados do MEC, O sentido do Procampo é promover licenciaturas que tenham como princípio formar educadores através das áreas do conhecimento e não apenas os saberes fragmentados, habilitados por disciplinas, como ocorre na maioria das instituições de ensino superior. A formação docente por área de conhecimento pode atender aos anseios de educadores com o compromisso de emancipação dos povos campesinos. Os educadores do campo necessitam compreender a relevância do seu papel na elaboração de alternativas para organizar o trabalho escolar, enquanto prática social. Esta formação deve possibilitar ao educador a capacidade de implementar e propor transformações necessárias à rede escolar que atenda à população camponesa. O educador do campo, além de agente educativo é componente essencial na transformação da sociedade. Segundo (SANTOS, 2017, p. 2018. apud CALDART, 2002, p. 36): Apesar de todos os avanços já conquistados, a educação do campo ainda necessita de discussões para ir além do que já está estabelecido nas legislações e nos programas criados pelo Estado, para tornar real uma educação de qualidade para todos, em território nacional e não cair, como no início do século XIX na falência destas. UNIDADE II - Concepções e Práticas da Educação do Campo Para entender a concepção de educação do campo é necessário compreender a visão urbanocentrica2. Necessário também reestabelecer um conceito de que o que está no campo é atrasado e não urbanizado. No paradigma da Educação do Campo, para o qual se pretende migrar, preconiza- se a superação do antagonismo entre a cidade e o campo, que passam a ser vistos como complementares e de igual valor. Ao mesmo tempo, considera- se e respeita-se a existência de tempos e modos diferentes de ser, viver e produzir, contrariando a pretensa superioridade do urbano sobre o rural e admitindo variados modelos de organização da educação e da escola. (MEC. CADERNOS SECAD 2, 2007:13) Essa migração, constante nos documentos legislativos do MEC, vem atender a população de forma diferenciada, prestando mais atenção em um modelo educacional que visa o direito universal à educação, bem como um projeto de desenvolvimento típico do local, e não mais um desenvolvimento baseado nas cidades maiores. Estar no campo, não significa desenvolvimento, ou mesmo “atraso”, mas significa um modo diferente de ver a realidade para além dos prédios e shopping Center. Significa estar ciente de seu querer viver no campo, na terra, na agricultura familiar, e em outros afazeres que a cidade já não permite. Esta consciência de sua população não a faz querer uma educação igualmente diferenciada nas questões da qualidade, mas sim, uma educação onde a qualidade do conhecimento universal possa ser aprendida e ao mesmo tempo sem querer sair do seu local. Ao contrário, continuar vivendo no campo, com os instrumentos que a educação oferece para ter uma melhor qualidade de vida. Os conceitos relacionados à sustentabilidade e à diversidade complementam a educação do campo ao preconizarem novas relações entre as pessoas e a natureza e entre os seres humanos e os demais seres dos ecossistemas. Levam em conta a sustentabilidade ambiental, agrícola, agrária, econômica, social, política e cultural, bem como a equidade de gênero, étnico-racial, intergeracional e a diversidade sexual. (MEC. CADERNOS SECAD 2, 2007:13). 2 O termo urbanocêntrico é aqui utilizado para se referir a uma visão de educação na qual o modelo didático-pedagógico utilizado nas escolas da cidade é transferido para as escolas localizadas nas zonas classificadas como rurais, sem que sejam consideradas as reais necessidades das populações identificadas com o campo. (MEC. CADERNOS SECAD 2, 2007:13) São estas relações dos conceitos relacionados a educação do campo, que necessitam serem colocadas em prática pelas políticas públicas, atendendo sua população de forma que, a educação de qualidade chegue a todos, e ao mesmo tempo atenda suas particularidades, dando o direito a educação preconizada na Constituição Federal do Brasil de 1988. 2.1 A Educação no Campo: Diagnóstico3 Ainda que permaneça a tendência de urbanização da população brasileira, dados do IBGE constatamum expressivo contingente de pessoas que vivem no campo. Além disso, conforme documento elaborado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira do Ministério da Educação: [...] se considerarmos como critérios de ruralidade a localização dos municípios, o tamanho da sua população e a sua densidade demográfica, conforme propõe Veiga (2001), entre os 5.560 municípios brasileiros, 4.490 deveriam ser classificados como rurais. Ainda de acordo com esse critério, a população essencialmente urbana seria de 58% e não de 81,2%, e a população rural corresponderia a, praticamente, o dobro da oficialmente divulgada pelo IBGE, atingindo 42% da população do país. Dessa forma, focando o universo essencialmente rural sugerido pela proposta do pesquisador, é possível identificar em torno de 72 milhões de habitantes na área rural. (BRASIL. MEC/Inep, 2006: 07-08). As pesquisas realizadas pelo Inep têm apontado como principais dificuldades em relação à educação do campo: • insuficiência e precariedade das instalações físicas da maioria das escolas; • dificuldades de acesso dos professores e alunos às escolas, em razão da falta de um sistema adequado de transporte escolar; • falta de professores habilitados e efetivados, o que provoca constante rotatividade; 3 Este Tópico da Unidade II foi retirado do Caderno nº 2 de Educação do Campo: diferenças mudando paradigmas. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, elaborada pelo Ministério da Educação em 2007,p.18-24, com base no documento elaborado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep/MEC) intitulado Panorama da Educação do Campo. Brasília: Inep/MEC, 2006. • falta de conhecimento especializado sobre políticas de educação básica para o meio rural, com currículos inadequados que privilegiam uma visão urbana de educação e desenvolvimento; • ausência de assistência pedagógica e supervisão escolar nas escolas rurais; • predomínio de classes multisseriadas com educação de baixa qualidade; • falta de atualização das propostas pedagógicas das escolas rurais; • baixo desempenho escolar dos alunos e elevadas taxas de distorção idade- série; • baixos salários e sobrecarga de trabalho dos professores, quando comparados com os que atuam na zona urbana; • necessidade de reavaliação das políticas de nucleação das escolas e de implementação de calendário escolar adequado às necessidades do meio rural. o que diz respeito ao perfil socioeconômico da população rural, os indicado No que diz respeito ao perfil socioeconômico da população rural, os indicadores mostram que é grande a desigualdade existente entre as zonas rural e urbana e entre as grandes regiões. Segundo dados organizados pelo Inep, em 2004, cerca de 30,8 milhões de cidadãos brasileiros viviam no campo em franca desvantagem social. Apenas 6,6% da população rural economicamente ativa apresentava rendimento real médio acima de 3 SM. Na zona urbana, nessa mesma faixa de renda, concentrava-se 24,2% da população. Na Região Sul, a faixa de rendimento acima de 3 SM concentrava 13,6% da população rural, enquanto na Região Nordeste este percentual correspondia a 1,7%, sendo que ¾ da população tinha rendimento médio inferior a 1SM. Tabela 1- Número de pessoas de 10 anos ou mais de idade, economicamente ativas, por categoria de rendimento real médio e situação do domicílio - Brasil e Regiões Geográficas - 2004 Para os especialistas, estamos diante da vulnerabilidade da população do campo, decorrente do desamparo histórico a que vem sendo submetida, a qual se reflete nos altos índices de analfabetismo e no baixo desempenho escolar. Assim, conforme tabela abaixo, 25,8% da população rural adulta (de 15 anos ou mais) é analfabeta, enquanto na zona urbana essa taxa é de 8,7%. Observe-se que, em regiões onde as condições socioeconômicas são controladas e igualadas ao grupo urbano, o desempenho dos alunos é igual. Ainda segundo a mesma fonte, conforme tabelas a seguir, em 2004, a taxa de frequência de crianças entre 7 e 14 anos nas escolas do ensino fundamental das áreas urbanas foi de 97,5% e de 95,5% para as crianças da zona rural, demonstrando que, em termos de universalização, a escola urbana e a rural estão muito próximas. No entanto, a taxa de distorção idade-série na zona rural se manifesta elevada desde as séries iniciais do ensino fundamental, com cerca de 41,4% dos alunos com idade superior à adequada. Essa distorção se reflete nas demais séries, fazendo com que esses alunos cheguem às séries finais do ensino fundamental com uma defasagem de 56%. Nas zonas urbanas, essas taxas são de 19,2% para as séries iniciais e de 34,8% para séries finais. No caso do Ensino Médio, entre os jovens de 15 a 17 anos, quando considerada a taxa de frequência líquida, o quadro é muito crítico na área rural: pouco mais de um quinto dos jovens nessa faixa etária (22,1%) estão frequentando esse nível de ensino contra 49,4% na zona urbana, como demonstra a tabela abaixo: A rede de ensino da educação básica na área rural, em 2005, possuía 96.557 estabelecimentos, correspondendo a cerca de 50% das escolas do país. Essa rede atendia a 5.799.387 alunos do ensino fundamental, sendo 4.146.638 matrículas nas séries iniciais e 1.652.749 alunos nas séries finais. O Ensino Médio na área rural, em que pese o aumento registrado de 2000 a 2005 pelo Censo Escolar, conta ainda com uma rede insuficiente. Neste há 206.905 matrículas em 1.377 estabelecimentos em todo o Brasil. Isso significa que 71,5% dos alunos das escolas rurais estão no primeiro segmento do ensino fundamental, 28,5% no segundo segmento e apenas 2,5% no ensino médio. Quanto aos recursos disponíveis, 28,5% dos estabelecimentos não possuem energia elétrica, apenas 5,2% dispõem de biblioteca e menos de 1% oferece laboratórios de ciências, informática e acesso à internet. Segundo o tipo de organização, temos 59% dos estabelecimentos do ensino fundamental rural formados exclusivamente por turmas multisseriadas ou unidocentes, as quais concentram 24% das matrículas. As escolas exclusivamente seriadas correspondem à cerca de 20% e concentram pouco mais de metade das matrículas (2.986.209 alunos). As mistas (multisseriadas e seriadas ) respondem por ¼ das matrículas (1.441.248 alunos). Como reflexo dos programas de transporte escolar ou de modelos de nucleação inadequados, observa-se que, em 2005, foram transportados para escolas localizadas em áreas urbanas 42,6% dos alunos das séries iniciais do ensino fundamental, residentes na zona rural e atendidos pelo transporte escolar público, o mesmo acontecendo com 62,4% dos matriculados nas séries finais. As escolas multisseriadas e unidocentes são um desafio às políticas públicas do campo, uma vez que apresentam historicamente um quadro da ausência do Estado e de gestão deficitária. Por essa razão, têm sido constantemente criticadas pela baixa eficiência e qualidade: [..] o problema das turmas multisseriadas está na ausência de uma capacitação específica dos professores envolvidos, na falta de material pedagógico adequado e, principalmente, a ausência de infraestrutura básica – material e de recursos humanos – que favoreça a atividade docente e garanta a efetividade do processo de ensino aprendizagem. Investindo nestes aspectos, as turmas multisseriadas poderiam se transformar numa boa alternativa para o meio rural, atendendo aos anseios da população em dispor de uma escola próxima do local de moradia dos alunos, sem prejuízo da qualidade do ensino ofertado, especificamente no caso das séries iniciais do ensino fundamental. (Inep, 2006:19) Os professores da área rural enfrentam as consequências da sobrecarga de trabalho, da alta rotatividade e das dificuldades de acesso e locomoção.Além disso, recebem salários inferiores aos da zona urbana e estão entre os que têm menor nível de escolaridade. A proporção de professores leigos, embora tenha declinado, de 2002 a 2005, de 8,3% para 3,4%, ainda é elevada, já que 6.913 funções docentes são exercidas por professores com até o ensino fundamental e apenas 21,6% dos docentes das séries iniciais do ensino fundamental cursaram nível superior. Nas séries finais do ensino fundamental, o percentual de docentes com apenas o ensino médio corresponde a 46,7% e, com formação superior, 53,1%. Já no ensino médio, 11,3% do professorado está atuando no mesmo nível de sua formação. Este percentual é significativo devido ao reduzido número de estabelecimentos de escolas deste nível de ensino na zona rural. Segundo o Inep/MEC: [...] é evidente a necessidade de uma política que valorize os profissionais da educação do campo. É oportuno destacar as necessidades de ações efetivas focadas na expansão do quadro, na formação profissional adequada e na formação continuada considerando projetos pedagógicos específicos e uma melhoria salarial que estimule a permanência de profissionais qualificados em sala de aula nas escolas rurais. (Op. Cit.:28). Os dados e informações constantes dos estudos e diagnósticos produzidos nos últimos anos pelo Ministério da Educação confirmam as análises produzidas pelos movimentos sociais e justificam suas demandas. Os desafios para uma oferta de educação de qualidade para as populações identificadas com o campo foram discutidos e sistematizados na I e na II Conferência Nacional por uma Educação do Campo, realizadas em 1997 e em 2004, respectivamente. O documento final da II Conferência apresentou as seguintes demandas4: 1. Universalização do acesso à Educação Básica de qualidade para a população brasileira que trabalha e vive no e do campo, por meio de uma política pública permanente que inclua como ações básicas: o fim do fechamento arbitrário de escolas no campo; a construção de escolas no campo que sejam do campo; a construção de alternativas pedagógicas que viabilizem, com qualidade, a existência de escolas de educação fundamental e de ensino médio no próprio campo; a oferta de Educação de Jovens e Adultos (EJA) adequada à realidade do campo; políticas para a elaboração de currículos e para escolha e distribuição de material didático-pedagógico, que levem em conta a identidade cultural dos povos do campo e o acesso às atividades de esporte, arte e lazer. 2. Ampliação do acesso e permanência da população do campo à Educação Superior, por meio de políticas públicas estáveis. 3. Valorização e formação específica de educadoras e educadores do campo por meio de uma política pública permanente. 4. Respeito à especificidade da Educação do Campo e à diversidade de seus sujeitos. 2.2 A educação do campo na atualidade A partir deste diagnóstico acima descrito, muitas ações foram iniciadas pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade – SECAD/ MEC, com formulações de políticas públicas nacionais formuladas pela Coordenação-Geral de Educação do Campo e grupos de representatividade em suas lutas para o debate do que deveria ser proposto para esta população. A partir de 2003, vários seminários foram realizados em âmbito estaduais, para estabelecer as diretrizes da educação no campo. Os Seminários tiveram o papel de provocar a mobilização, estadual e municipal, deflagrando ações conjuntas entre o setor público, os movimentos sociais e organizações não governamentais em torno da elaboração co-participativa de políticas públicas de Educação do Campo. Serviram também como um canal privilegiado para a divulgação e disseminação 4 Declaração Final da II Conferência Nacional por uma Educação do Campo. 2004. das Diretrizes Operacionais da Educação Básica nas Escolas do Campo. (MEC. CADERNOS SECAD 2, 2007:24). De acordo com a SECAD, nos seminários foram criados os Comitês Estaduais de Educação do Campo, em cada estado da federação brasileira com o objetivo de “subsidiar a implementação da política de Educação do Campo nos estados e a atuar em parceria com o MEC para disseminá-la junto aos municípios”. De 2007 a 2009, a SECAD/MEC iniciou o trabalho de melhoria na infraestrutura das escolas; complementação de normas legais em relação a educação do campo, lançamento do Programa Saberes da Terra, voltado para a Educação de Jovens e Adultos, curso de licenciatura voltado diretamente para os professores que desejem atuar como profissional do campo, em parceira com as Universidades Federais, sendo realizado presencialmente e também cursos à distância. Os resultados já obtidos permitem-nos afirmar que: a) houve ampliação da consciência do direito por parte dos indivíduos que vivem no campo e, paralelamente, do cumprimento do dever público por parte de seus gestores; b) temos no país um processo de ampliação da democracia participativa através da organização da sociedade para o controle social; c) a política de gestão compartilhada entre governo e sociedade está sendo afirmada, nas três esferas públicas, para condução da Política Pública do Campo. (MEC. CADERNOS SECAD 2, 2007:26). Não podemos, apesar de todas estas conquistas, acreditar que já temos um modelo de educação do campo pronto e efetivo, pois muitas conquistas ainda precisam ser realizadas. UNIDADE III - Movimento Popular como Escola de Educação Nesta Unidade iremos aprofundar sobre movimento popular, também conhecido como movimento social. Movimento popular refere-se a uma ação coletiva de um grupo organizado, que tem como objetivo a luta para alcançar mudanças dentro de uma sociedade por meio do embate político. Os movimentos populares fazem parte dos movimentos sociais. De todos os movimentos sociais, os trabalhos de lutas coletivas mais conhecidos no Brasil são o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MSTS), O movimento em defesa das mulheres, índios, negros e LGBT e o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Aqui vamos dar enfoque ao MST – Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, que nos últimos anos vem lutando pelo direito a escola com qualidade e dentro de uma filosofia que respeite o saber do campo. De acordo com o professor Brandão (2014), há cinco movimentos populares como escola de educação no Brasil. O primeiro movimento “surgiu com a iniciativa de grupos de esquerda em fazer educação para o povo da cidade e do campo”. Este primeiro movimento abriu para outros, que ocorreu com a chegada de imigrantes europeus, com a promulgação da independência, que solicitavam do príncipe regente projetos de educação para os trabalhadores e operários, com pequenas escolas fixadas em fazendas. A partir de 1920, a luta para quebrar o monopólio das escolas com direção católica no Brasil, se configura em um terceiro momento deste movimento popular. A Educação Popular nasceu no Brasil desde a década de 20 com o Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova no qual os intelectuais brasileiros pregavam uma educação popular para todos. Todavia, somente na década de 60, devido ao processo de industrialização e urbanização, é que o Brasil começou a se preocupar com os altos índices de analfabetismo de jovens e adultos das classes populares em função da necessidade de mão de obra qualificada para o trabalho. Os movimentos migratórios das pessoas em busca de melhores condições de vida eram constantes e este aspecto fez com que o Estado repensasse as políticas educacionais para as classes populares (PAULA, 2009, p. 613). Em 1960, com o movimento do educador Paulo Freire, temos o quarto movimento popular como escola educação. O educador conhecido por sua liderança política tinha como bandeira a alfabetização de jovens e adultos rurais, com valorização da cultura nacional, [...] contrapondo-se à cultura colonialista, representada,sobretudo pelos Estados Unidos, e sustentando que as diferenças de culturas existentes no país eram diferenças de saberes e não desigualdades. (Cadernos de Formação - SP, 2015, p.11). O quinto movimento popular foi o dos negros, crianças de rua e mulheres, entre outros, onde as práticas sociais de educação ocorriam no meio em que estavam. O Movimento de Cultura Popular (MCP) criado em Recife, em 1960, lembrando o francês peuple et culture (povo e cultura), nasceu da iniciativa de estudantes, intelectuais e artistas pernambucanos aliados à prefeitura daquela capital, na gestão de Miguel Arraes. Tinha como objetivo promover a alfabetização de adultos e propiciar cultura e seu acesso a todas as pessoas. Assim, a ideia era encontrar um jeito próprio, ou seja, desenvolver uma prática educativa com base na cultura e nos costumes locais. Suas atividades tinham intuito de conscientizar a população por meio da alfabetização e da educação de base, visando à formação da consciência política que preparasse os cidadãos e cidadãs para a participação social. (Cadernos de Formação - SP, 2015, p.11). A liderança de Paulo Freire nos movimentos de alfabetização tinha como aliado o Movimento de Educação de Base (MEB), proposto pela Igreja Católica, com respaldo do governo federal, que: [...] buscava contribuir para a alfabetização da população, principalmente a rural, preparando-a para intervir em discussões da época, sobretudo naquelas que lhes diziam respeito diretamente, como a reforma agrária. Usava-se como veículo, como metodologia, para desenvolver o trabalho, as escolas radiofônicas e as dinâmicas de animação, que promovem interação e descontração grupal. O MEB já passou por diferentes momentos de fluxos e refluxos, porém nunca deixou de existir. Hoje busca condições para retomar sua proposta original. (Cadernos de Formação - SP, 2015, p.11). Os movimentos populares mostram que a prática educativa, nos moldes que temos hoje, através das políticas públicas para uma educação do campo, não nasceram prontas, mas da conscientização de seus sujeitos sobre os direitos e pela luta pela alfabetização. Estes sujeitos não ficaram alheios ao processo de formação, mas buscaram através das lideranças de base e dos movimentos sociais sua dignidade e seus direitos a serem constituídos. Desde o final do século passado, este movimento tomou força popular no MST - Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. 3.1 Movimento do Sem Terra e a relação com a educação5 Quase ao mesmo tempo em que começaram a lutar pela terra, os sem- terra do MST também começaram a lutar por escolas e, sobretudo, para cultivar em si mesmos o valor do estudo e do próprio direito de lutar pelo seu acesso a ele. No começo não havia muita relação de uma luta com a outra mas aos poucos a luta pelo direito à escola passou a fazer parte da organização social de massas de luta pela Reforma Agrária, em que se transformou o Movimento dos sem terra. Olhando hoje para a história do MST é possível afirmar que em sua trajetória o Movimento acabou fazendo uma verdadeira ocupação da escola, e isto em pelo menos três sentidos: a) As famílias sem-terra mobilizaram-se (e mobilizam-se) pelo direito à escola e pela possibilidade de uma escola que fizesse diferença ou tivesse realmente sentido em sua vida presente e futura (preocupação com os filhos). As primeiras a se mobilizar, lá no início da década de 80, foram as mães e professoras, depois os pais e algumas lideranças do Movimento; aos poucos as crianças vão tomando também lugar, e algumas vezes à frente, nas ações necessárias para garantir sua própria escola, seja nos assentamentos já conquistados, seja ainda nos acampamentos. Assim nasceu o trabalho com educação escolar no MST. b) O MST, como organização social de massas, decidiu, pressionado pela mobilização das famílias e das professoras, tomar para si ou assumir a tarefa de organizar e articular por dentro de sua organicidade esta mobilização, produzir uma proposta pedagógica específica para as escolas conquistadas, e formar educadoras e educadores capazes de trabalhar nesta perspectiva. A criação de um Setor de Educação dentro do MST formaliza o momento em que esta tarefa 5 Texto de CALDART, Roseli Salete. A escola do campo em movimento. Caderno Por uma Educação Básica do Campo. Projeto popular e escolas do campo. Brasília, DF: Articulação Nacional Por uma Educação Básica do Campo, 2000. Coleção Por uma Educação Básica do campo, n° 3. foi intencionalmente assumida. Isto aconteceu em 1987. E a partir de sua atuação o próprio conceito de escola aos poucos vai sendo ampliado, tanto em abrangência como em significados. Começamos lutando pelas escolas de 1a a 4a série. Hoje a luta e a reflexão pedagógica do MST se estende da educação infantil à Universidade, passando pelo desafio fundamental de alfabetização dos jovens e adultos de acampamentos e assentamentos, e combinando processos de escolarização e de formação da militância e da base social Sem Terra6. c) Podemos afirmar hoje que o MST incorporou a escola em sua dinâmica, e isto em dois sentidos combinados: a escola passou a fazer parte do cotidiano e das preocupações das famílias Sem Terra, com maior ou menor intensidade, com significados diversos dependendo da própria trajetória de cada grupo mas, inegavelmente, já consolidada como sua marca cultural: acampamento e assentamento dos Sem Terra do MST têm que ter escola e, de preferência, que não seja uma escola qualquer, e a escola passou a ser vista como uma questão também política, quer dizer, como parte da estratégia de luta pela Reforma Agrária, vinculada às preocupações gerais do Movimento com a formação de seus sujeitos. No começo os sem-terra acreditavam que se organizar para lutar por escola era apenas mais uma de suas lutas por direitos sociais; direitos de que estavam sendo excluídos pela sua própria condição de trabalhador sem (a) terra. Logo foram percebendo que se tratava de algo mais complexo. Primeiro porque havia (como há até hoje) muitas outras famílias trabalhadoras do campo e da cidade que também não tinham acesso a este direito. Segundo, e igualmente grave, se deram conta de que somente teriam lugar na escola se buscassem transformá-la. Foram descobrindo, aos poucos, que as escolas tradicionais não têm lugar para sujeitos como os Sem - Terra, assim como não costumam ter lugar para outros sujeitos do campo, ou porque sua estrutura formal não permite o seu ingresso, ou porque sua pedagogia desrespeita ou desconhece sua realidade, seus saberes, sua forma de aprender e de ensinar. Um exemplo simples pode deixar esta situação bem clara. No Rio Grande do Sul temos aprovada desde novembro de 1996 a chamada Escola Itinerante dos Acampamentos, com um tipo de estrutura e proposta pedagógica criada 6 Sem Terra, com letras maiúsculas e sem hífen indica o nome próprio dos sem-terra do MST, que assim se denominaram quando criaram seu Movimento. especialmente para acolher as crianças e os adolescentes do povo Sem Terra em movimento7. Temos agora, mas foi preciso uma luta de 17 anos (isto mesmo!) para conseguir o que seria o mais 'normal', porque justo, e que até já se tornou um direito constitucional: é a escola que deve ajustar-se, em sua forma e conteúdo, aos sujeitos que dela necessitam; é a escola que deve ir ao encontro dos educandos, e não o contrário. Foi percebendo esta realidade que o MST começou a incluir em sua agenda a discussão de uma proposta diferente de escola; uma escola pela qual efetivamente vale à pena lutar, porque capaz de ajudar no processo maior de luta das famílias sem terra, e do conjunto dos trabalhadores e das trabalhadoras do campo. No início a pergunta central parecia ser a seguinte: que escola, ou que modelo pedagógico combina com o jeito dos sem terra e pode ajudar o MST a atingir seusobjetivos? O processo, as práticas e discussões vêm nos mostrando, no entanto, que esta não é a verdadeira questão. Fomos aos poucos descobrindo que não existe um modelo ou um tipo de escola que seja próprio para um grupo ou outro, ou que seja revolucionário em si mesmo. Trata-se é de alterar a postura dos educadores e o jeito de ser da escola como um todo; trata se de cultivar uma disposição e uma sensibilidade pedagógica de entrar em movimento, abrir se ao movimento social e ao movimento da história, porque é isto que permite a uma escola acolher sujeitos como os sem terra, crianças como as Sem Terrinha8. E, ao acolhê-los, eles aos poucos a vão transformando e ela a eles. Um mexe com o outro, num movimento pedagógico que mistura identidades, sonhos, pedagogias... E isto só pode fazer muito bem a todos, inclusive aos educadores e às educadoras que assumem esta postura. E 7 Uma descrição desta experiência de escola e de como foi conquistada pode ser encontrada em: Escola Itinerante em Acampamentos do MST. Coleção Fazendo Escola 1, São Paulo: MST, 1998. 8 Sem Terrinha é uma expressão que identifica as crianças vinculadas ao MST. O nome surgiu por iniciativa das crianças que participaram do Primeiro Encontro Estadual das Crianças Sem Terra de São Paulo cm 1997. Elas começaram a se chamar assim durante o Encontro e o nome acabou pegando, espalhando-se rápido pelo país inteiro. Esta informação está em Ramos, Márcia. Sem Terrinha, semente de esperança. Veranópolis: Escola Josué de Castro, 1999. Monografia de Conclusão do Curso Magistério. No anexo I deste nosso texto, uma carta escrita pelos Sem Terrinha do Rio Grande do Sul, explicando a identidade que compreendem assumir com este nome. também à escola, que ao se fechar e burocratizar em uma estrutura e em um jeito de ser costuma levar os educadores a esquecer, ou a ignorar, que seu trabalho é, afinal, com seres humanos, que merecem respeito, cuidado, todos eles. Nesta trajetória de tentar construir uma escola diferente, o que era (e continua sendo) um direito, passou a ser também um dever. Se quisermos novas relações de produção no campo, se queremos um país mais justo e com mais dignidade para todos, então também precisamos nos preocupar em transformar instituições históricas como a escola em lugares que ajudem a formar os sujeitos destas transformações. Foi assim que se começou a dizer no MST que se a Reforma Agrária é uma luta de todos, a luta pela educação de todos também é uma luta do MST... Todos estes movimentos demonstram que não é novo o pensar na educação do campo como disputa política e legítima, “ideal da luta pela alfabetização, elas não ficaram alheias do processo formativo, da proposta de formação do sujeito para uma luta maior por seus direitos”. Os movimentos populares são pressupostos para uma educação que possa realmente sair do papel e cumprir sua função social a todos brasileiros, principalmente com os mais vulneráveis. “São perspectivas razoáveis, sérias, fundamentadas, cotejadas constantemente com a dureza das condições concretas em que vive a maioria da população. Todas elas refletem a recusa de uma educação domesticadora ou que, simplesmente, não se coloca a questão de que educação precisamos para o país que queremos”. (Cadernos de Formação - SP, 2015, p.11). Os movimentos sociais são acima de tudo, luta pela democracia e pelo estado de direito. Nesta unidade tivemos aprofundamentos sobre o movimento social do MST. Mas não é somente este movimento que tem lutado por uma escola de educação. A educação de qualidade no Brasil e com acesso a todos, sem preconceito e discriminação há muitos anos vem sendo preconizada por movimentos populares, exigindo a inclusão e o respeito por todos os seres humanos, com garantia de direitos. UNIDADE IV - Educação Popular: Ideologia ou Emancipação Social Natural é interpretar a realidade. Extraordinário é formular Métodos para transformá-la. Natural é ter consciência social. Extraordinário é desenvolver a consciência política. Natural é cooperar em todos os sentidos. Extraordinário é forjar e desenvolver novos seres humanos. Natural é fazer pressão. Extraordinário é criar referências permanentes no tempo e no espaço. Natural é a convivência social. Extraordinário é desenvolver valores. Natural é alfabetizar. Extraordinário é educar transformando. Natural é tomar decisões. Extraordinário é implementar princípios que dão sustentação às decisões. Natural é criar instâncias e fazer parte delas. Extraordinário é exercer direção coletiva. Natural é formular normas para manter a ordem. Extraordinário é a disciplina consciente. Natural é apegar-se a ídolos. Extraordinário é constituir símbolos e desenvolver a mística (PALUDO, 2006 apud BOGO, 1999). Ao fazer referência ao texto acima, pensamos em quanto à educação popular, necessita ainda do extraordinário em nosso país. Mesmo tendo uma legislação com a garantia de uma educação para todos, quando falamos no termo “popular”, o que vem à mente é que é “conhecido de todos” pelo senso comum. Porém, popular no texto significa de acordo com o dicionário Aurélio é “o que é relativo ao povo, pertencente a sua população”. Desta forma, “popular” é extraordinário no sentido da participação política e dos direitos de todos a alimentação, educação, moradia, transporte e saúde, conforme Constituição Federal de 1988. Mas esta luta não iniciou nestas últimas décadas com a promulgação da constituição Federal de 1988. Ao contrário, a Constituição Federal é que é fruto das lutas e movimentos sociais para emancipação do povo através da Educação Popular. Para entender este processo, precisamos voltar no tempo, na história. Antes dos europeus chegarem ao Continente da América Latina, tínhamos povos que aqui estavam estabelecidos, com uma riquíssima produção cultural e saberes pedagógicos. Com a chegada dos europeus, a colonização impôs um processo educativo, uma ideologia contraria ao modus viventes deste povo. A partir de então fomos subjulgados e considerados atrasados, pertencentes ao terceiro mundo. Tendo um modo de oprimir os nativos de sua cultura, usaram a educação europeia, baseada nos moldes jesuítas para “civilizar” o povo que aqui se encontrava. Esta dominação, utilizando a educação, não tinha nada de ingênuo. Na verdade todo propósito era saquear nossas riquezas e deixar-nos cada vez mais pobres, acreditando que, somente o modo vivente do europeu seria o melhor para civilizar-nos. O discurso do Presidente da Bolívia, Evo Morales, disponível na página da CUT – Central Única dos Trabalhadores demonstra bem o que os colonizadores fizeram e ainda fazem com todos os países da América Latina. Aqui eu, descendente dos que povoaram a América há quarenta mil anos, vim encontrar os que a encontraram há somente quinhentos anos. Aqui pois, nos encontramos todos. Sabemos o que somos, e é o bastante. Nunca pretendemos outra coisa. O irmão aduaneiro europeu me pede papel escrito com visto para poder descobrir aos que me descobriram. O irmão usurário europeu me pede o pagamento de uma dívida contraída por Judas, a quem nunca autorizei a vender-me. O irmão rábula europeu me explica que toda dívida se paga com bens ainda que seja vendendo seres humanos e países inteiros sem pedir-lhes consentimento. Eu os vou descobrindo. Também posso reclamar pagamentos e também posso reclamar juros. Consta no Archivo de Indias, papel sobre papel, recibo sobre recibo e assinatura sobre assinatura, que somente entre os anos 1503 e 1660 chegaram a San Lucas de Barrameda 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata provenientes da América. Saque? Não acredito! Porque seria pensar que os irmãos cristãos pecaram em seu Sétimo Mandamento. Expoliação? Guarde-me Tanatzin de que os europeus, como Caim, matam e negam o sangue de seu irmão! Genocídio? Issoseria dar crédito aos caluniadores, como Bartolomé de las Casas, que qualificam o encontro como de destruição das Índias, ou a radicais como Arturo Uslar Pietri, que afirma que o avanço do capitalismo e da atual civilização europeia se deve à inundação de metais preciosos! Não! Esses 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata devem ser considerados como o primeiro de muitos outros empréstimos amigáveis da América, destinado ao desenvolvimento da Europa. O contrário seria presumir a existência de crimes de guerra, o que daria direito não só de exigir a devolução imediata, mas também a indenização pelas destruições e prejuízos. Não Eu, Evo Morales, prefiro pensar na menos ofensiva destas hipóteses. Tão fabulosa exportação de capitais não foram mais que o início de um plano ‘MARSHALLTESUMA’, para garantir a reconstrução da bárbara Europa, arruinada por suas deploráveis guerras contra os cultos muçulmanos, criadores da álgebra, da poligamia, do banho cotidiano e outras conquistas da civilização. Por isso, ao celebrar o Quinto Centenário do Empréstimo, poderemos perguntar-nos: Os irmãos europeus fizeram uso racional, responsável ou pelo menos produtivo dos fundos tão generosamente adiantados pelo Fundo Indoamericano Internacional? Lastimamos dizer que não. Estrategicamente, o dilapidaram nas batalhas de Lepanto, em armadas invencíveis, em terceiros reichs e outras formas de extermínio mútuo, sem outro destino que terminar ocupados http://www.guiaglobal.com.br/noticia-genial_discurso_de_evo_morales_sobre_a_verdadeira_divida_externa..._-6356 http://www.guiaglobal.com.br/noticia-genial_discurso_de_evo_morales_sobre_a_verdadeira_divida_externa..._-6356 http://www.guiaglobal.com.br/noticia-genial_discurso_de_evo_morales_sobre_a_verdadeira_divida_externa..._-6356 pelas tropas gringas da OTAN, como no Panamá, mas sem canal. Financeiramente, têm sido incapazes, depois de uma moratória de 500 anos, tanto de cancelar o capital e seus fundos, quanto de tornarem-se independentes das rendas líquidas, das matérias primas e da energia barata que lhes exporta e provê todo o Terceiro Mundo. Este deplorável quadro corrobora a afirmação de Milton Friedman segundo a qual uma economia subsidiada jamais pode funcionar e nos obriga a reclamar-lhes, para seu próprio bem, o pagamento do capital e os juros que, tão generosamente temos demorado todos estes séculos em cobrar. Ao dizer isto, esclarecemos que não nos rebaixaremos a cobrar de nossos irmãos europeus as vis e sanguinárias taxas de 20 e até 30 por cento de juros, que os irmãos europeus cobram dos povos do Terceiro Mundo. Nos limitaremos a exigir a devolução dos metais preciosos adiantados, mais o módico juros fixo de 10 por cento, acumulado somente durante os últimos 300 anos, com 200 anos de graça. Sobre esta base, e aplicando a fórmula europeia de juros compostos, informamos aos descobridores que nos devem, como primeiro pagamento de sua dívida, uma massa de 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata, ambos valores elevados à potência de 300. Isto é, um número para cuja expressão total, seriam necessários mais de 300 algarismos, e que supera amplamente o peso total do planeta Terra. Muito pesados são esses blocos de ouro e prata. Quanto pesariam, calculados em sangue? Alegar que a Europa, em meio milênio, não pode gerar riquezas suficientes para cancelar esse módico juro, seria tanto como admitir seu absoluto fracasso financeiro e/ou a demencial irracionalidade das bases do capitalismo. Tais questões metafísicas, desde logo, não inquietam os indoamericanos. Mas exigimos sim a assinatura de uma Carta de Intenção que discipline os povos devedores do Velho Continente, e que os obrigue a cumprir seus compromissos mediante uma privatização ou reconversão da Europa, que permita que a nos entregue inteira, como primeiro pagamento da dívida histórica. Buscar conhecer nossa história leva-nos a uma pedagogia que não exclui os conhecimentos dos outros povos e continentes, mas de entender que as contradições ao longo dos anos de colonização fortalecem a identidade de nosso povo por uma pedagogia voltada às nossas raízes e lutas pelos direitos humanos. A Educação Popular tem este processo, de mostrar a população o processo histórico de colonização, para entender o que sofremos com a desculturalização de nossos povos e lutar pelas melhorias e classes sociais menos favorecidas. A educação, ao longo da história, cumpre a função de desenvolver os seres humanos para uma determinada ordem social, promovendo a difusão de conhecimentos produzidos pela humanidade, considerados essenciais para sociedade na qual se insere. Assim, a estrutura social compõe uma das mais importantes determinações que incidem sobre a educação, e, dialeticamente, a educação cumpre a função de formar o ser humano, marcando sua possibilidade de intervenção no projeto de sociedade. No entanto, considerar a educação como um meio de se alterar questões relativas à sociedade ganha vigor junto ao pensamento moderno, a partir do século XVI, momento em que a própria estrutura social passa a ser questionada, não sendo mais esta uma ordem divina, e sim relativa à própria humanidade, podendo ser transformada por esta. Nesse contexto, a educação é alvo de uma grande expectativa: realizar transformações sociais, sendo as intencionalidades do tipo de ser humano que se deseja formar o norte do processo educativo. (LIMA, 2016, p.02) A educação baseada na visão eurocêntrica traz a ideia de capital humano9, ou seja, quanto mais estudo um ser humano tem, mais ele é considerado uma “mercadoria cara”. Os processos de Educação Popular são contra este pensamento do Capital Humano, mas a valorização de cada pessoa dentro de sua ocupação no mercado de trabalho. A ideia hegemônica moderna de emancipação se vinculou à liberdade econômica, jurídica, à igualdade de oportunidades, à cidadania, à meritocracia, podendo cada indivíduo construir sua emancipação dentro de um mundo em que, politicamente todos seriam iguais. Nessa perspectiva, a educação poderia propiciar a emancipação, pois com o conhecimento, com sua razão, o ser humano constrói livremente sua vida, que será boa ou ruim dependendo de suas capacidades e esforços individuais. Todavia, como explica Ambrosini (2012, p. 379), para Marx essa liberdade era “nada mais do que garantias para o individualismo e jamais para a emancipação humana”. A proposta de libertação burguesa [...] não é a revolução radical, a emancipação humana universal, mas a revolução parcial, meramente política, a revolução que deixa de pé os pilares do edifício. Em que se baseia uma revolução parcial, meramente política? No fato de que uma parte da sociedade civil se emancipa e alcança o domínio universal; que uma determinada classe, a partir da sua situação particular, realiza a emancipação universal da sociedade. Tal classe liberta a sociedade inteira, mas apenas sob o pressuposto de que toda a sociedade se encontre na situação de sua classe, portanto, por exemplo, de que ela possua ou possa facilmente adquirir dinheiro e cultura (LIMA, 2016, P. 346 apud MARX, 2010, p. 154). 9 Capital Humano é entendido como o investimento que o ser humano faz para adquirir competências, habilidades para desempenhar suas atividades laborais. Este entendimento faz com que os seres humanos possuam valor de mercado, sendo comparado a uma mercadoria. (BROOKE, Nigel, 2012, p. 63) A partir dos ideários marxistas, os movimentos da educação popular em busca da emancipação social ocorridas no Brasil e em outros países da América Latina, em meados de 1960 foram uma resposta ao governo militar e a classe dominante em relação aos menos favorecidos. Estes movimentos sofreram influências da igreja católica, da teologia da libertação, revolução cubana e de outros países da América Latina, que também iniciaram protestos e manifestaçõesa favor de melhorias em todos os setores: saúde, moradia, salários dignos para os trabalhadores, fundação de sindicatos, e principalmente educação de qualidade para todos. A luta foi intensa e sangrenta. Muitos perderam a vida. Outros exilados. Mas não perderam a voz e a vontade de continuar a lutar por um país e/ou um mundo melhor. Com dignidade e direitos conquistados. Uma multidão de pessoas exploradas, dominadas, não valorizadas, sem teto, sem terra, sem alimentação adequada, sem trabalho ou com trabalho precarizado, sem acesso aos bens culturais, desvalidos (idosos e crianças abandonadas), mas, também, lutadores e lutadoras individuais para poder sobreviver que, quando se articulam, se organizam e se põem em movimento contra a violência segregadora, porque sabem ser segregados, tornam-se, como diz um dos textos , o “povo político”, conformam o que se chama de classe popular – de potencial para real, porque em movimento e em luta – e possuem, como diz Freire (1987), potencial de (re)fundação social.(PALUDO, 2006, P.49). Em 1980 no Brasil, inicia-se o movimento pelas “diretas já”, onde o povo proclama a eleição direta para presidente, com voto do povo. A partir de então, a nova constituinte é refeita no Brasil, chamada de “Constituição Cidadã”, por ter em seu texto o marco dos direitos dos cidadãos brasileiros, que possam garantir a liberdade do povo (civis) e as obrigações e deveres do Estado (governo) para com todos os brasileiros. A partir de 1990, se inicia o nosso contraponto. As lutas por uma educação popular, com qualidade e suas peculiaridades em relação a cada realidade brasileira, educação do campo, quilombola, indígena e outros, agora garantidas em lei, ainda são precárias e, apesar da garantia constitucional, a letra ainda é morta. Muitas ações foram implementadas para que possam ter legitimidade esses direitos, mas na prática, o Estado ainda deixa a desejar, mantendo a educação de qualidade para os mais favorecidos. As transformações mundiais e as crises decorrentes no modelo do neoliberalismo, traz em seu bojo, um disfarce para manter a hegemonia e o fosso que existe entre os que possuem muito e aqueles que não têm nada. As crises provocadas pela especulação financeira atingem países da periferia, como a Coréia, a Rússia e países latino- americanos; o poder de acumulação da riqueza está concentrado em 500 grandes empresas transnacionais (80% delas norte-americanas) levando à concentração em diversos ramos: aumenta a pobreza e as diferenças sociais em todo o mundo (estima-se que 800 milhões passam fome); a socialdemocracia fracassa e, com ela, a mediação realizada pelo Estado nas relações entre o capital e o trabalho; surge um bloco de países fora da hegemonia norte-americana: China, Índia, Irã e países do Oriente Médio, o que, segundo analistas, ajuda a explicar a intervenção militar dos Estados Unidos no Oriente a vontade de impor a Alca (Área de Livre Comércio das Américas) na América. (PALUDO, 2006, p.44 apud Consulta Popular/Brasil, de março de 2002). Todo este processo faz das lutas da educação popular não mais uma luta de classe, uma vez que todas as garantias estão na Constituição Federal, mas sim, uma luta política, para que os direitos prevaleçam. O Estado “tira” a força destes movimentos, e “fortalece” a política de direitos através de normatizações, mas não atende de forma correta, colocando estes movimentos em “cheque”, apresentando o que já foi realizado para a população. Como já observei, no bojo das consequências atuais decorrentes das transformações mundiais em curso, da queda do muro, do desfecho das experiências latino-americanas, da perda de referenciais do Campo Popular latino-americano e mundial, entre outros, há uma complexificação da leitura da realidade. Os documentos e textos demonstram o trânsito de uma leitura cuja primazia era da classe social, da esfera da economia e da política no sentido restrito, para uma leitura na qual, além da dimensão do econômico, na qual incidem as necessidades e direitos básicos como teto, terra, trabalho, saúde e educação, ganham primazia a leitura política em seu sentido ampliado, a cultural, a ambiental, a religiosa, a geracional, a sexual, a ética e a estética. (PALUDO, 2006, p.47) Como nos diz Paludo (2006), os textos legais demonstram que os movimentos por uma educação popular são fortes, porém na prática, estas lutas ainda estão longe de ser uma conquista. Na década de 1960, Paulo Freire luta contra a massificação da educação estabelecida nos moldes norte americano, através dos acordos produzidos entre o Ministério da Educação Brasileira – MEC, com a Agencia Internacional de desenvolvimento dos E.U.A. Nestes acordos MEC-USAID10, os documentos, que na época eram “sigilosos!, trouxeram para o Brasil um modelo de educação marcado pelo tecnicismo educacional, baseado na teoria do capital humano. Modelo este de educação, que nos Estados Unidos da América já tinha sido testado e não contribuiu para a melhoria da educação neste país. Com o Neoliberalismo, o Brasil agora tem importado modelos de escolas em parceria com entidades privadas, conhecidas como “Escola Charter”11. Este modelo também já testado nos E.U.A. e agora importado para o nosso país, vem escamotear a obrigatoriedade do Estado em oferecer uma educação de qualidade a todos. Os textos afirmam o compromisso com a transformação social. Há uma explanação bastante grande e crítica da crise da esquerda (Campo Popular). Afirma-se a utopia, apesar das diferentes nomeações, e o socialismo se mantém no horizonte. Entretanto, após o encerramento do ciclo revolucionário na América Latina (1959- 1989) e com a nova hegemonia do projeto neoliberal, há dificuldades de visualização mais próxima do horizonte utópico. (PALUDO, 2006. p.50). Com este novo cenário, a transformação social e os movimentos populares por uma educação de qualidade, conforme nos afirma Paludo (2006) fica realmente muito longe da realidade vislumbrada pelo Professor Paulo Freire, que sempre lutou pela transformação social e uma educação libertadora, fazendo de sua bandeira a educação como uma prática emancipadora da sociedade. Que toda a luta dos que nos antecederam não seja utópica, mas que continuemos nesta batalha para a conquista da classe menos favorecida a uma educação para a verdadeira cidadania. Terminamos esta unidade com suas sábias palavras: É reacionária a afirmação segundo a qual o que interessa aos operários é alcançar o máximo de sua eficácia técnica e não perder tempo com debates “ideológicos” que a nada levem. O 10 Para entender o acordo, a obra de José de Oliveira Arapiraca, intitulado “AUSAID e a educação brasileira: um estudo a partir de uma abordagem crítica da teoria do capital humano”, 1940. disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/9356. Acesso em 20/08/2020. 11 Em inglês, charter significa, literalmente, um contrato ou decreto. No contexto educacional significa um contrato especificando as condições e objetivos para a gestão privada de uma escola pública. (BROOKE, Ngel,2012, p. 223.) https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/9356 operário precisa inventar, a partir do próprio trabalho, a sua cidadania que não se constrói apenas com sua eficácia técnica mas também com sua luta política em favor da recriação da sociedade injusta, a ceder seu lugar a outra menos injusta e mais humana. (FREIRE. 2002, p. 114). “E é por isso também que é possível, em qualquer sociedade, fazer algo institucional e que contradiz a ideologia dominante. Isso é que eu chamo de uso dos espaços de que a gente dispõe.” (FREIRE, 2004, p. 38). BIBLIOGRAFIA UTILIZADA ARROYO, Miguel Gonzalez. Políticas de formação de educadores(as) do campo. Cad. Cedes, Campinas, vol. 27, n. 72, p. 157-176, maio/ago. 2007.p. 157 Disponível em http:// www.cedes.unicamp.br. Acesso em 06/08/2020. BRANDÃO, C. R. “Educação Popular no Brasil”. In: Gadotti, M. (org.). Alfabetizar e conscientizar: Paulo Freire, 50 anos de Angicos. São Paulo: Editora Instituto Paulo Freire, 2014. BRASIL. Decreto Nº 7.566, de 23 de setembro de 1909. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1900-1909/decreto-7566-23- setembro-1909-525411-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em 19/08/2020. BRASIL. Ministério da Educação. MEC/SEMTEC. Educação média e tecnológica: fundamentos, diretrizes e linhas de ação. Brasília, 1994. BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1961. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br. 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