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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO ANDRÉ DIAS DOS SANTOS CONSIDERAÇÕES SOBRE O CRIME DE ABORTO E O INÍCIO DA VIDA: DESAFIOS E CONCEITOS NATAL/RN 2021 ANDRÉ DIAS DOS SANTOS CONSIDERAÇÕES SOBRE O CRIME DE ABORTO E O INÍCIO DA VIDA: DESAFIOS E CONCEITOS Trabalho de conclusão de curso apresentado ao curso de graduação em Direito, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do Título de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Dr. Paulo Roberto Dantas de Souza Leão NATAL/RN 2021 ANDRÉ DIAS DOS SANTOS CONSIDERAÇÕES SOBRE O CRIME DE ABORTO E O INÍCIO DA VIDA: DESAFIOS E CONCEITOS Trabalho de conclusão de curso apresentado ao curso de graduação em Direito, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do Título de Bacharel em Direito. Aprovado em: 23/04/2021 - ATA Nº 6 / 2021 - DEPRO/CCSA (16.19) - Nº do Protocolo: 23077.040586/2021-90 BANCA EXAMINADORA ______________________________________ Prof. Dr. Paulo Roberto Dantas de Souza Leão Orientador UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ______________________________________ Profa. Dr(a) Lidianne Araújo Aleixo de Carvalho Membro interno UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ______________________________________ Prof. Dr. Morton Luiz Faria de Medeiros Membro interno UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE À minha esposa, pelo amor e incentivo de sempre. AGRADECIMENTOS Obrigado meu Deus por absolutamente tudo. Esse trabalho faz parte da conclusão de um curso que demanda anos de muita dedicação e disciplina. Por isso é que agradeço a minha esposa, mulher maravilhosa que sempre esteve ao meu lado, sempre me encorajou e ajudou a ver que o caminho, apesar de longo e cansativo, um dia termina e que nada de bom vem sem sacrifício. A minha família que, mesmo distante, sempre esteve torcendo por mim, independente da jornada que eu traçava. Aos colegas de turma do curso noturno que, de forma direta ou indireta, ajudaram a formar o tecido de respeito, fraternidade, determinação e alegria que é absolutamente necessários para se chegar até aqui, porque o cansaço pós-trabalho e pré-aula às vezes era muito grande. Ao professor Paulo Roberto Dantas de Souza Leão, que além de um professor marcante, sem pestanejar, aceitou participar comigo desse trabalho, prestando auxílio e sempre apresentando a cordialidade e disponibilidade que lhe caracterizam. A todos os professores do curso, cada um ao seu jeito e maneira, que me ajudaram a seguir até aqui. À Aparecida, servidora da CORDI, pela dedicação, auxílio e esmero de sempre, independente do dia e horário. Encerro meus agradecimentos com a seguinte mensagem: “a dificuldade e o sofrimento têm seu tempo; use-os a seu favor, transformando-os em coragem para seguir”. A alegria está na luta, na tentativa, no sofrimento envolvido e não na vitória propriamente dita. Mahatma Ghandi RESUMO O atual Código Penal trata do aborto nos artigos 124 ao 128. Por meio de abordagem descritiva e exploratória, com base em pesquisa bibliográfica, tratou-se do referido crime. A doutrina penalista diverge quanto ao início da proteção da vida, que pode ser desde a concepção ou desde a nidação. Noções gerais sobre o crime foram apresentadas para subsidiar debate de ideias decorrentes de conjecturas embriológicas. Por não haver consenso sobre o momento do início do parto, concluiu-se que, diante do bem jurídico tutelado - vida intrauterina -, para fins penais, enquanto o nascituro ainda estiver completamente dentro do útero, haverá o crime de aborto; apenas quando qualquer parte dele se projetar para fora do útero, estaria iniciado o parto na perspectiva penal e o crime seria, então, de homicídio ou infanticídio, conforme o caso. Identificou-se que o STF já se manifestou que não há o crime de aborto no caso da técnica de fertilização in vitro, da antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto anencefálico e da interrupção voluntária da gravidez até o primeiro trimestre de gestação, na ADI 3.510/DF, na ADPF 54/DF e no HC 124.306/RJ, respectivamente. Além disso, pela sobredita ADI, a concepção é o marco do início da vida para fins de proteção infraconstitucional, mas para o referido HC, ela só ocorre após o primeiro trimestre de gestação. Concluiu-se que o início da vida humana a ser tutelado juridicamente deveria considerar o mandamento da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos - Pacto de São José da Costa Rica (1969), que adota a concepção como regra, pois a Constituição e o Código Penal não tratam daquele momento e o STF já decidiu que a referida Convenção tem status infraconstitucional, mas supralegal. A embriologia permite outros olhares ao crime de aborto, notadamente ao objeto jurídico do crime, sujeito passivo, consumação e até mesmo sobre a existência ou não do crime, com cenários desafiadores. A expressão ‘vida humana, desde a concepção até o início do parto’ poderia ser a mais adequada ao bem jurídico a ser tutelado na perspectiva da teoria da concepção. Ponderou-se, ainda, que o uso de alguns contraceptivos poderia, em tese, ser considerado abortivo, mas verificou-se que seu uso estaria amparado pelo exercício regular do direito. Palavras-chave: Aborto. Início do parto. STF. Início da vida. Embriologia humana. ABSTRACT The current Penal Code deals with abortion in articles 124 to 128. Through a descriptive and exploratory approach, based on bibliographic research, this crime was analyzed. The penal doctrine dissent about the beginning of the protection of life, which could be from the conception or from nesting. General notions about the crime were presented to support debate of ideas resulting from embryological conjectures. As there is no consensus on the moment of the start of childbirth, it was suggested that, in view of the protected legal good - intrauterine life - for criminal purposes, as long as the unborn child is still completely inside the uterus, there will be the crime of abortion; only when any part of it protrudes out of the uterus, childbirth would be initiated from a penal perspective and the crime would be homicide or infanticide, depending on the case. It was identified that the STF has already declared that there is no crime of abortion in the case of the in vitro fertilization technique, the therapeutic anticipation of childbirth in cases of anencephalic fetus pregnancy and the voluntary termination of pregnancy until the first trimester of gestation, in ADI 3.510/DF, in ADPF 54/DF and in HC 124.306/RJ, respectively. In addition, according to the referred ADI, the conception is the beginning of life for the purposes of infra-constitutional protection, but for the aforecited HC, it only occurs after the first trimester of pregnancy. It was concluded that the beginning of human life to be legally protected should consider the commandment of the American Convention on Human Rights - Pact of San José of Costa Rica (1969) that adopts the conception as a rule, as the Constitution and the Penal Code does not deal with that moment and the STF has already decided that the referred Convention has infraconstitutional but supralegal status. Embryology allows other views of the crime of abortion, notably the legal object of the crime itself, victim, consummation and even about the existenceor not of the crime, with challenging scenarios. The expression 'human life, from conception to the beginning of childbirth' could be the most appropriate for the protected object from the perspective of the theory of conception. It was also considered that the use of some contraceptives could, in theory, be considered abortive, but it was found that their use would be supported by the regular exercise of the right. Keywords: Abortion. Beginning of childbirth. STF. Beginning of life. Human embryology. LISTA DE SIGLAS ADI - Ação Direta de Inconstitucionalidade ADPF - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental CC - Código Civil - Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 CF - Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 CP - Código Penal – Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 HC - Habeas Corpus STF - Supremo Tribunal Federal STJ - Superior Tribunal de Justiça SUS - Sistema Único de Saúde SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO................................................................................................. 12 2 DEFINIÇÃO DOUTRINÁRIA E O ABORTO CRIMINOSO...................... 15 2.1 Espécies de aborto.............................................................................................. 16 2.2 Aborto criminoso................................................................................................ 18 2.2.1 Bem jurídico tutelado no aborto criminoso.......................................................... 19 2.2.2 Sujeitos ativo e passivo........................................................................................ 19 2.2.3 Elemento subjetivo............................................................................................... 21 2.2.4 Meios de execução............................................................................................... 21 2.2.5 Consumação e tentativa........................................................................................ 22 2.2.6 Delimitações do crime de aborto.......................................................................... 22 2.3 Aborto Legal ou Permitido................................................................................ 25 3 DECISÕES DO STF: HIPÓTESES EM QUE NÃO HÁ O CRIME DE ABORTO............................................................................................................. 28 3.1 Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.510 – Distrito Federal................. 28 3.2 Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 – Distrito Federal................................................................................................................. 29 3.3 Habeas Corpus nº 124.306 – Rio de Janeiro.................................................... 31 4 DIREITO À VIDA, INÍCIO DA VIDA HUMANA E O CRIME DE ABORTO............................................................................................................. 35 4.1 Início da proteção à vida.................................................................................... 36 4.2 Teorias sobre o início da vida humana............................................................. 38 4.2.1 Posicionamento doutrinário.................................................................................. 40 4.2.2 Posicionamento do STF........................................................................................ 41 4.2.3 Perspectiva de resposta com base no Direito positivo brasileiro........................ 48 5 EMBRIOLOGIA COMO DISCIPLINA DE SUPORTE................................ 50 5.1 Fecundação, fertilização, concepção................................................................. 50 5.2 Gravidez.............................................................................................................. 52 5.3 Denominações utilizadas no desenvolvimento humano.................................. 54 5.4 Vida intrauterina................................................................................................ 55 5.5 Anticoncepcionais............................................................................................... 56 6 CONCLUSÃO.................................................................................................... 59 REFERÊNCIAS................................................................................................. 61 12 1 INTRODUÇÃO A palavra aborto tem origem em duas palavras: ab (privação) e orthus (nascimento), significando, portanto, privação de nascimento.1 Tecnicamente, o aborto não é uma conduta, mas o resultado dessa conduta, ou seja, quando se tratar da conduta, deve-se adotar a palavra abortamento e não a palavra aborto, esta última tida como o resultado daquela.2 Neste trabalho, ambas as palavras serão utilizadas como sinônimos, pois assim são comum e tradicionalmente utilizadas e tratadas – e a expectativa é de não se criar uma dificuldade a mais na leitura. É certo que a prática e a punição do aborto remontam tempos antigos. Por exemplo, as leis Bíblicas de Moisés têm como parâmetro o dano sofrido à gestante: se houvesse apenas o aborto sem outro dano, haveria multa, mas se a gestante também morresse, a sentença seria a pena de morte.3 No Brasil, o Código Criminal de 18304 e o Código Penal de 18905 já previam o crime de aborto. O atual Código Penal6 trata do aborto nos artigos 124 ao 128, estabelecendo que, em regra, provocar o aborto é tipificado como crime, com previsão de penas que podem ser a de detenção ou a de reclusão, conforme subsunção do fato à norma. Diz-se ‘em regra’, pois o Art. 128 do CP não pune o aborto praticado por médico quando não há outro meio de salvar a vida da gestante ou quando a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. O aborto é ainda tema muito atual, debatido nos tribunais e continuamente discutido na sociedade – especialmente quanto à sua descriminalização. Só em 2020, houve a polêmica em torno do caso da menina de 10 anos que, após estuprada pelo tio, engravidou e foi 1 ZUGAIB, M.; FRANCISCO, R. P. V. Zugaib Obstetrícia. 4. ed. São Paulo: Manole, 2020. p. 1321. 2 AZEVEDO, M. A.; SALIM, A. Direito Penal: Parte especial - Dos crimes contra a pessoa aos crimes contra a família. 9. ed. rev., atual. e amp. Salvador: Ed. Juspodivm, 2020. p. 88. 3 BÍBLIA ONLINE. Êxodo 21:22-23. Disponível em: https://www.bibliaonline.com.br/acf/ex/2. Acesso em: 02 jan. 2021. 4 BRASIL. Lei de 16 de dezembro de 1830. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim- 16-12-1830.htm. Acesso em: 02 jan. 2021. 5BRASIL. Decreto-Lei nº 847 de 11 de outubro de 1890. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/D847.htmimpressao.htm. Acesso em: 02 jan. 2021. 6 BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 18 maio 2019. 13 autorizada a realizar o abortamento7; a publicação e a revogação da Portaria nº 2.282 do Ministério da Saúde8 em menos de um mês – conforme Portaria nº 2.5619 que também tratava sobre o procedimento de justificação e autorização da interrupção da gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS–; além da recente aprovação na Argentina de projeto de lei que permite o abortamento até a 14ª semana de gestação.10 Muitos autores têm tratado do crime de aborto, mas é possível que o leitor de tais textos apresente dúvidas, especialmente porque são utilizados termos relacionados a outras áreas do conhecimento, notadamente a embriologia humana, o que pode ser um complicador – como aconteceao se definir o sujeito passivo do crime e ao se diferenciar os crimes de aborto, infanticídio e de homicídio, conforme será visto neste trabalho. Assim, verifica-se a necessidade de interconexão de disciplinas para que se possa, no mínimo, tentar aclarar questões que se mostram complexas. Com os avanços sociais e dada a relevância jurídica do tema, o STF já se manifestou algumas vezes nos últimos quinze anos sobre questões polêmicas que estariam associadas direta ou indiretamente ao cometimento do crime de aborto. Além disso, aparentemente, não há hoje uma definição objetiva no ordenamento jurídico brasileiro de quando se inicia a vida humana ou a mesmo a gravidez, questões intimamente ligadas ao cometimento do crime de aborto e que podem facilmente ser deslocadas para o âmbito da moralidade ou da religiosidade, assuntos que fogem ao escopo desse trabalho. O presente estudo busca discutir alguns elementos jurídicos relativos ao sobredito crime – como a distinção entre o crime de aborto, de infanticídio e homicídio; o objeto jurídico tutelado, o sujeito passivo, a consumação e a própria existência do crime; o início da vida para fins jurídicos – observando-se os entendimentos doutrinários e jurisprudenciais –, 7 BRUM, Mateus. Tio acusado de estuprar e engravidar menina de 10 anos é preso; entenda o caso. Estadão, São Paulo, 18 ago. 2020.Disponível em: https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,policia-prende-acusado-de- estuprar-e-engravidar-menina-de-10-anos,70003403409. Acesso em: 16 jan. 2021. 8 BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria nº 2.282, de 27 de agosto de 2020. Dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-2.282- de-27-de-agosto-de-2020-274644814. Acesso em: 16 jan. 2021. 9 BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria nº 2.561, de 23 de setembro de 2020. Dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS. Disponível em:https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-2.561- de-23-de-setembro-de-2020-279185796. Acesso em: 16 jan. 2021. 10 Argentina aprova legalização do aborto: em que países da América Latina o procedimento já é legal. BBC News Brasil. 30 dezembro 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-55476576. Acesso em: 16 jan. 2021. 14 ao mesmo tempo em que buscou agregar informações ligadas a outras ciências, que possam contribuir com a discussão do tema. A abordagem deste trabalho é descritiva – na medida em que se pretende constatar alguns fatos – e exploratória – pois são buscadas maiores informações sobre o assunto em análise, ou mesmo são propostos novos enfoques sobre ele –, com base em pesquisa bibliográfica. O trabalho está dividido em quatro capítulos que tem a expectativa de explorar o assunto nas seguintes temáticas: definição doutrinária e o crime de aborto; decisões do STF: hipóteses em que não há o crime de aborto; direito à vida, início da vida humana e o crime de aborto; embriologia como disciplina de suporte. O primeiro capítulo aborda a definição da doutrina penalista sobre o crime de aborto, deixando evidente algumas diferenças de posicionamento entre os autores e percebendo-se que há a utilização, no campo penal, de termos que podem ser avaliados sob a perspectiva de outras áreas da ciência. Além disso, trata das espécies de aborto, com foco no aborto criminoso, previsto no Código Penal brasileiro. A expectativa é trazer noções gerais desse crime para que seja possível, posteriormente, refletir e avaliar as conjecturas embriológicas correlatas. Discute-se também a questão do início do parto. O segundo capítulo aborda algumas decisões relevantes do STF que, em algum aspecto, tratam da temática do aborto, buscando-se, assim, verificar o posicionamento da suprema corte sobre a própria tipicidade em determinados casos concretos. O terceiro capítulo trata de tema muito difícil e caro que é o direito à vida e o estabelecimento de quando se inicia a vida humana, questões que impactam diretamente a discussão sobre o cometimento do aborto. Buscou-se apresentar visões doutrinárias e jurisprudenciais sobre o tema de forma a enriquecer o debate, apresentando-se uma proposta relativa ao início da vida para fins jurídicos. Por fim, o quarto capítulo procura trazer elementos da embriologia humana – seja na abordagem biológica ou médica – para promover reflexão mais ampla no campo do Direito a respeito do crime de aborto, incluindo-se aí o uso de contraceptivos. 15 2 DEFINIÇÃO DOUTRINÁRIA E O ABORTO CRIMINOSO Desde o Código Criminal de 1830 – primeiro Código Penal Brasileiro –, passando pelo Código Penal de 1890, já havia a previsão do crime de aborto. Porém, em nenhum deles foi definido o que seria exatamente o aborto. O Código Penal de 1940 o posiciona dentro do capítulo dos crimes contra a vida, mas “[…] não o define, limitando-se a adotar a fórmula neutra e indeterminada ‘provocar aborto’[…].”11 Assim, essa missão ficou a cargo da doutrina do Direito. “Aborto é a interrupção da gravidez antes de atingir o limite fisiológico, isto é, durante o período compreendido entre a concepção e o início do parto, que é o marco final da vida intrauterina.”12 O Direito Penal protege a vida humana desde a sua formação embrionária – que resulta da junção dos elementos genéticos masculino e feminino, momento em que o novo ser é gerado13, formado um ovo, um embrião e um feto, sequencialmente – até o início do parto14. De forma muito similar, outros autores compartilham desse entendimento15,16, 17,18. Outra definição é a de que “o aborto é a cessação da gravidez, cujo início se dá com a nidação, antes do termo normal, causando a morte do feto ou do embrião.”19, até o início do parto20, definindo a nidação como sendo o momento em que o óvulo fecundado se fixa na parede do útero.21 Há quem sustente que “Aborto é a interrupção da gravidez com destruição do produto da concepção [...] o ovo, [...] embrião [...] ou feto [...].”22, embora entendam que a gravidez se inicia após a implantação – nidação23 – indo até o início do parto.24 11 BITENCOURT, C. R. Tratado de Direito Penal: Parte Especial. Crimes Contra a Pessoa. v. 2. 17. ed. rev., amp. e atual. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 186. (Grifo do autor). 12 Ibid., p. 186. 13 Ibid., p. 52. 14 Ibid., p. 186. 15 AZEVEDO, M. A.; SALIM, A. Direito Penal: Parte especial - Dos crimes contra a pessoa aos crimes contra a família. 9. ed. rev., atual. e amp. Salvador: Ed. Juspodivm, 2020. p. 32 e 87-88. 16 CAPEZ, F. Curso de Direito Penal: Parte Especial (arts. 121 ao 212). v. 2. 18. ed. atual. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 184. 17 GONÇALVEZ, V. E. R. Curso de Direito Penal: Parte Especial (arts. 121 ao 183). 3. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. p. 125 e 132. 18 MASSON, C. Direito Penal: Parte Especial (arts. 121 ao 212). v. 2. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2020. p. 11 e 74-75. 19 NUCCI, G. S. Curso de Direito Penal: Parte Especial: Arts. 121 ao 212 do Código Penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 92. 20 Ibid., p. 13. 21 Ibid., p. 95. 22 MIRABETE, J. F.; FABBRINI, R. N. Manual de Direito Penal: Parte Especial (arts. 121 ao 234-B do CP). 35. ed. São Paulo: Atlas, 2019. p. 62. 23 Ibid., p. 63-64. 24 Ibid., p. 26. 16 Outra definição é a de que o aborto é a interrupção violenta do processo fisiológico de maturação do feto e que, tecnicamente, embora seja possível identificar vida no ovo, no embrião e no feto, só há o crime se houver interrupção da gravidez e a morte do embrião e do feto, mas não do ovo25– desde a nidaçãoaté o início do parto.26 Nesse primeiro momento, pode-se extrair de todas as definições que o crime de aborto se dá com a interrupção da gravidez e a eliminação da vida intrauterina – aquela em desenvolvimento no útero da gestante – até o início do parto. Isso acaba por promover, para uns, a correlação imediata entre concepção, início da vida e gravidez. Para outros, a correlação será entre nidação, início da vida e gravidez. Já nesse momento, embora sejam tratados com mais detalhes adiante, expõe-se que a concepção é a formação de uma nova célula pela junção dos gametas masculino e feminino e a nidação corresponde à implantação do embrião na parede do útero. Assim, consequência natural do que foi exposto, é que a proteção penal associa-se a momentos distintos do desenvolvimento embrionário, de forma que para os que defendem a proteção a partir da nidação, o estágio entre a concepção e a implantação na parede do útero não está protegido penalmente. Além disso, a palavra vida intrauterina pode ter sido equivocadamente apresentada, a depender das premissas que sejam adotadas – pontos que serão melhor analisados em momento oportuno. 2.1 Espécies de aborto Apresentam-se abaixo as espécies de aborto existentes: a) natural: é a interrupção espontânea da gravidez. Exemplo: O organismo da mulher, por questões patológicas, elimina o feto. Não há crime. b) acidental: é a interrupção da gravidez provocada por traumatismos, tais como choques e quedas. Não caracteriza crime, por ausência de dolo. c) criminoso: é a interrupção dolosa da gravidez. Encontra previsão nos art. 124 a 127 do Código Penal. d) legal ou permitido: é a interrupção da gravidez de forma voluntária e aceita por lei. O art. 128 do Código Penal admite o aborto em duas hipóteses: quando não há outro meio para salvar a vida da gestante (aborto necessário ou terapêutico) e quando a gravidez resulta de estupro (aborto sentimental ou humanitário). Não há crime por expressa previsão legal. 25 ISHIDA, V. K. Curso de Direito Penal. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 299. 26 Ibid., p. 300. 17 e) eugênico ou eugenésico: é a interrupção da gravidez para evitar o nascimento da criança com graves deformidades genéticas. Discute-se se configura ou não crime de aborto. [...]. f) econômico ou social: mata-se o feto para não agravar a situação de miserabilidade enfrentada pela mãe ou por sua família. Trata-se de modalidade criminosa, pois não foi acolhida pelo direito penal brasileiro.27 Nesse contexto, e de forma didática, importante registrar que o CP trata apenas do aborto criminoso – artigos 124 a 127 – e do legal ou permitido – artigo 128 –, nos seguintes termos: Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: (Vide ADPF 54) Pena - detenção, de um a três anos. Aborto provocado por terceiro Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de três a dez anos. Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante: (Vide ADPF 54) Pena - reclusão, de um a quatro anos. Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência. Forma qualificada Art. 127 - As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em conseqüência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte. Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: (Vide ADPF 54) Aborto necessário I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.28 27 MASSON, C. Direito Penal: Parte Especial (arts. 121 ao 212). v. 2. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2020. p. 75-76. (Grifo do autor). 28 BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 18 maio 2019. 18 2.2 Aborto criminoso Depreende-se da leitura do Art. 124 – primeira parte –, que é a própria gestante que adota as manobras abortivas, de forma a provocar o aborto em si mesma, sendo, assim, a única autora do crime – autoaborto. A questão quanto à participação não é pacífica, mas, de maneira geral, os autores entendem pela sua possibilidade29,30,31 de forma que esse partícipe pode fornecer algum tipo de auxílio como, por exemplo, um auxílio financeiro para a prática do crime. Em relação ao Art. 124 – segunda parte – não é a gestante que realiza o procedimento abortivo, mas é ela, e somente ela, quem consente que terceiro o provoque. Interessante notar que, neste tipo penal, a gestante é a única autora do crime, porque o terceiro que pratica a conduta típica responderá como autor do crime do Art. 126, cuja pena é, inclusive, mais gravosa. Entende-se que aqui também pode haver concurso de pessoas na forma de participação. A nomenclatura para os crimes previstos nos artigos 125 e 126 é a de aborto provocado por terceiro – com o consentimento da gestante (Art. 126) ou sem ele (Art. 125). Importante registrar que o consentimento da gestante deve ser válido, inclusive para o tipo previsto no Art. 124. Isso significa que ela deve ser maior de quatorze anos, ou não ser alienada ou débil mental, ou o consentimento não ser obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência, nos termos do Art. 126, parágrafo único do CP. Verifica-se que a ação nuclear é a de provocar; é este o núcleo (verbo) dos tipos penais (artigos 124 a 126). Sobre o tema: O núcleo dos tipos, em suas três variações, é o verbo provocar, que significa causar, promover ou produzir o aborto. As elementares especializantes, como “em si mesma”, “sem o consentimento da gestante” e “com o consentimento da gestante”, determinarão a modalidade ou espécie de aborto, além da particular figura “consentir”, que complementa o crime próprio ao lado do autoaborto.32 29 BITENCOURT, C. R. Tratado de Direito Penal: Parte Especial. Crimes Contra a Pessoa. v. 2. 17. ed. rev., amp. e atual. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 188. 30 CAPEZ, F. Curso de Direito Penal: Parte Especial (arts. 121 ao 212). v. 2. 18. ed. atual. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 193-194. 31 MASSON, C. Direito Penal: Parte Especial (arts. 121 ao 212). v. 2. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2020. p. 80. 32 BITENCOURT, C. R. op cit., p. 187. (Grifo do autor). 19 O artigo 127 trata de causas de aumento de pena, somente para as condutas descritas nos artigos 125 e 126, ou seja, os casos de aborto provocado por terceiro, com ou sem o consentimento da gestante, nas situações em que os procedimentos abortivos ou o próprio aborto resultam em lesão corporal de natureza grave à gestante – pena aumentada em um terço – ou em morte da mesma – pena duplicada. 2.2.1 Bem jurídico tutelado no aborto criminoso Interessante resultado se obtém com a depreensão da parte especial do Código Penal, ao se verificar que os Títulos e Capítulos foram lá posicionados em uma sequência na qual, claramente, o legislador considerou a relevância do bem jurídico tutelado. Verifica-se que o crime de aborto está inserido no Capítulo I (Crimes contra a vida) que, por sua vez, faz parte do Título I (Crimes contra a pessoa). Com base nisso, de pronto, já é possível perceber que o referido Capítulo busca proteger a vida humana– bem jurídico mais valioso do ser humano. No crime de aborto, pode-se dizer que a tutela se dá, invariavelmente, em relação à vida intrauterina. Dessa forma, qualquer tentativa de eliminar aquela vida que se desenvolve no útero poderá ser tipificada como aborto. Em sentido contrário, após iniciado o parto, em atenção ao artigo 123 do CP33, estar-se-á diante do crime de infanticídio ou de homicídio, conforme o caso concreto. Registre-se, como já exposto anteriormente, que a expressão vida intrauterina será objeto de análise e ponderação em momento posterior neste estudo, mas até lá, optar-se-á por utilizá-la. Entende-se que, no aborto provocado por terceiro sem o consentimento da gestante – Art. 125 do CP –, a proposta legal é a de se proteger, além da vida intrauterina, a integridade física e mental da gestante. 2.2.2 Sujeitos ativo e passivo Verificou-se que há convergência no entendimento de que a gestante é o sujeito ativo do crime previsto no Art. 124 do CP e que nos artigos 125 e 126 pode ser qualquer pessoa34,35,36,37,38,39,40,41,42. 33Infanticídio.Art. 123. Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após: Pena - detenção, de dois a seis anos. (Grifo nosso). 34 AZEVEDO, M. A.; SALIM, A. Direito Penal: Parte especial - Dos crimes contra a pessoa aos crimes contra a família. 9. ed. rev., atual. e amp. Salvador: Editora. Juspodivm, 2020. p. 87. 20 Quanto ao sujeito passivo, as nomenclaturas acabam sendo um pouco distintas, conforme o autor. Assim, em relação ao tipo penal previsto no artigo 124, para uns é o produto da concepção – óvulo, embrião ou feto43,44,45,46; para outros é o feto47,48,49; ou ainda o feto ou embrião50. Em relação ao tipo penal previsto no artigo 125, o sujeito passivo é a gestante e o feto51,52,53,54; ou o produto da concepção e a gestante55,56; ou ainda o feto ou o embrião e a gestante57. Não restam dúvidas que as diferentes nomenclaturas usadas pelos diferentes autores podem gerar certa confusão no leitor e a expectativa é que até o fim do trabalho isso possa estar aclarado. Por fim, em relação ao tipo penal previsto no artigo 126, os autores seguem basicamente a mesma abordagem já apresentada para o artigo 124. 35 BITENCOURT, C. R. Tratado de Direito Penal: Parte Especial. Crimes Contra a Pessoa. v. 2. 17.ed. rev., amp. e atual. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 185-186. 36 CAPEZ, F. Curso de Direito Penal: Parte Especial (arts. 121 ao 212). v. 2. 18. ed. atual. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 187. 37 CUNHA, R. S. Manual de Direito Penal: Parte Especial. (Arts. 121 ao 361). 12. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2020. p. 107 e 110-111. 38 DELMANTO, C. et al. Código Penal Comentado. 9. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2016. Edição e-book, Kindle. p. 1514. 39 ISHIDA, V. K. Curso de Direito Penal. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 300. 40 MASSON, C. Direito Penal: Parte Especial (arts. 121 ao 212). v. 2. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2020. p. 77. 41 MIRABETE, J. F.; FABBRINI, R. N. Manual de Direito Penal: Parte Especial (arts. 121 ao 234-B do CP). 35. ed. São Paulo: Atlas, 2019. p. 63. 42 RODRIGUES, C. Manual de Direito Penal. Indaiatuba: Editora Foco, 2019. p. 456. 43 AZEVEDO, M. A.; SALIM, A. Direito Penal: Parte especial - Dos crimes contra a pessoa aos crimes contra a família. 9. ed. rev., atual. e amp. Salvador: Editora Juspodivm, 2020. p. 87. 44 BITENCOURT, C. R. op. cit., p. 186. 45 CUNHA, R. S. op. cit., p. 108. 46 RODRIGUES, C. op. cit. p., 456. 47 CAPEZ, F. op. cit., p. 187. 48 DELMANTO, C. et al. op. cit., p. 1514. 49 MASSON, C. op. cit., p. 77. 50 NUCCI, G. S. Curso de Direito Penal: Parte Especial: Arts. 121 ao 212 do Código Penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 96. 51 BITENCOURT, C. R. op. cit., p. 186. 52 CAPEZ, F. op. cit., p. 188. 53 DELMANTO, C. et al. op. cit. p. 1514. 54 MASSON, C. op. cit., p. 77. 55 AZEVEDO, M. A.; SALIM, A. op. cit., p. 87. 56 CUNHA, R. S. op. cit. p. 110. 57 NUCCI, G. S. op. cit. p. 101. 21 2.2.3 Elemento subjetivo Por ausência de previsão legal, não há a hipótese de aborto culposo, de forma que o elemento subjetivo do crime será sempre o dolo. Além disso, se “[...] a própria gestante agir culposamente e ensejar o aborto, o fato será atípico, pois o princípio da alteridade veda a punição da autolesão.”58 Provado que a conduta do agressor foi dolosa quanto à ofensa à integridade corporal ou à saúde da gestante, mas culposa em relação ao resultado aborto, aplica-se a previsão de lesão corporal grave, conforme art. 129, § 2º, inciso V, do CP59. 2.2.4 Meios de execução Como já mencionado, o núcleo do tipo penal é o verbo provocar. Assim, quaisquer meios (comissivo ou omissivo) que sejam capazes de findar dolosamente a vida humana intrauterina serão considerados válidos pelo Direito. Sobre o tema, destacam-se as seguintes informações: Trata-se de crime de ação livre, podendo a provocação do aborto ser realizada de diversas formas, seja por ação, seja por omissão. A ação provocadora poderá dar-se através dos seguintes meios executivos: (i) meios químicos: são substâncias não propriamente abortivas, mas que atuam por via de intoxicação, como o arsênio, fósforo, mercúrio, quinina, estricnina, ópio etc.; (ii) meios psíquicos: são a provocação de susto, terror, sugestão etc.; (iii) meios físicos: são os mecânicos (p. ex., curetagem); térmicos (p. ex., aplicação de bolsas de água quente e fria no ventre); e elétricos (p. ex., emprego de corrente galvânica ou farádica). - Omissão: o delito também pode ser praticado por conduta omissiva nas hipóteses em que o sujeito ativo tem a posição de garantidor; por exemplo, o médico, a parteira, a enfermeira que, apercebendo-se do iminente aborto espontâneo ou acidental, não tomam as medidas disponíveis para evitá-lo, respondem pela prática omissiva do delito.60 58 MASSON, C. Direito Penal: Parte Especial (arts. 121 ao 212). v. 2. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2020. p. 78. 59 Lesão corporal de natureza grave [...] § 2° Se resulta: [...] V - aborto: Pena - reclusão, de dois a oito anos. 60 CAPEZ, F. Curso de Direito Penal: Parte Especial (arts. 121 ao 212). v. 2. 18. ed. atual. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 187. (Grifo do autor). 22 2.2.5 Consumação e tentativa A consumação e a tentativa estão previstas no Art. 14 do CP. Assim, quanto à consumação do crime de aborto, por ser um crime material, entende-se que ela ocorrerá se, diante da conduta dolosa, resultar na eliminação da vida humana intrauterina – até o início do parto –, independente de esse resultado ocorrer dentro ou fora do corpo da gestante e, consequentemente, cessar a gestação. Quanto à tentativa, ela é possível se, iniciada a conduta com a finalidade de dar fim à vida humana intrauterina – até o início do parto –, o objetivo não for alcançado por circunstâncias alheias à vontade do agente, ou seja, aquela vida ofendida deverá persistir – dentro ou fora do corpo da gestante –, mesmo após o emprego de meios idôneos àquele fim. Evidente que, sob o risco de se estar diante de um crime impossível nos termos do artigo 17 do CP, para fins de consumação ou de tentativa, necessário se faz comprovar pelos meios aceitos pelo Direito que, em qualquer dos casos, havia a vida humana intrauterina. Porém, antecipa-se que essas provas podem ser muito difíceis de serem colhidas, especialmente nas etapas iniciais do desenvolvimento embrionário, como será visto no tópico 5.2. 2.2.6 Delimitações do crime de aborto A tipificação do crime de aborto buscatutelar, conforme já exposto, a vida humana intrauterina até o início do parto. Porém, há uma questão crucial: quando tem início o parto? A resposta nos parece absolutamente relevante para que não haja dúvidas quanto ao tipo penal a que se refere determinada conduta, de forma que se possa ter clareza quanto ao cometimento do crime de aborto, de infanticídio ou de homicídio. Sobre o tema: A eliminação da vida humana não acarreta na automática tipificação do crime de homicídio. De fato, se a vida humana for intrauterina estará caracterizado o delito de aborto. Além disso, se já iniciado o trabalho de parto, a morte do feto configura homicídio ou infanticídio, dependendo do caso concreto, mas não aborto.61 61 MASSON, C. Direito Penal: Parte Especial (arts. 121 ao 212). v. 2. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2020. p. 11. (Grifo nosso). 23 Em sentido similar: 3. Os fatos descritos na denúncia são claros e determinados, podendo caracterizar, em tese, o crime de homicídio culposo [...] consta dos autos que a mãe já havia entrado em trabalho de parto há mais de oito horas e os batimentos cardíacos foram monitorados por todo esse período até não mais serem escutados. 4. Iniciado o trabalho de parto, não há falar mais em aborto, mas em homicídio ou infanticídio, conforme o caso, pois não se mostra necessário que o nascituro tenha respirado para configurar o crime de homicídio, notadamente quando existem nos autos outros elementos para demonstrar a vida do ser nascente.62 Ora, a expressão durante o parto prevista no artigo 123 do CP pressupõe que se sabe com clareza quando o parto foi iniciado, mas ainda não terminado. A pergunta, agora fundamental, é: em que momento exato é iniciado o parto? Há entendimento no sentido de que “a vida [no contexto do crime de homicídio] começa com o início do parto, com o rompimento do saco amniótico; é suficiente a vida, sendo indiferente a capacidade de viver. Antes do início do parto, o crime será de aborto.”63 De forma similar, “[...] o parto, a que se refere o texto legal, é o que começa com o período de expulsão, ou, mais precisamente, com o rompimento da membrana amniótica. Antes desse período, [...], a ocisão do feto constitui aborto.”64 Há, ainda, outras visões sobre o tema: É preciso delimitar o exato instante em que se configurará o delito de aborto e o delito de homicídio. Para tanto, devemos lançar mão de diversos ensinamentos da doutrina a esse respeito: Alfredo Molinario entende que o nascimento é o completo e total desprendimento do feto das entranhas maternas. Para Soler, inicia-se desde as dores do parto [...]. Na jurisprudência há julgado no sentido de que, “provocada a morte do feto a caminho da luz, por ato omissivo ou comissivo de outrem que não a mãe, quando o ser nascente já fora encaixado com vida no espaço para tanto reservado na pelve feminina, o crime é de homicídio. Iniciado o trabalho de parto, vindo a ocorrer a morte do feto por culpa do Médico Assistente, não há como cogitar-se de aborto, ficando bem tipificado o crime de homicídio culposo” (RJDTACrim, 34/390). Todas essas noções servem para se ter uma 62 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5. Turma). Habeas Corpus 228.998/MG. Habeas Corpus impetrado em substituição ao recurso previsto no ordenamento jurídico. 1. Não Cabimento. [...] 3. Homicídio culposo por inobservância de regra técnica. 4. Iniciado o trabalho de parto não há falar mais em aborto. [...]. Relator: Min. Marco Aurélio Bellizze, 23 de outubro de 2012. (Grifo nosso). Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201103075485&dt_publicacao=30/10/20 12. Acesso em: 07 jan. 2021. 63 BITENCOURT, C. R. Tratado de Direito Penal: Parte Especial. Crimes Contra a Pessoa. v. 2. 17.ed. rev., amp. e atual. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 54. (Grifo nosso). 64 HUNGRIA; FRAGOSO, 1979, p. 264 apud CAPEZ, F. Curso de Direito Penal: Parte Especial (arts. 121 ao 212). v. 2. 18. ed. atual. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 178. (Grifo do autor). 24 compreensão de que, dependendo do que for considerado o início do nascimento, poder-se-á estar diante ou do delito de aborto, ou infanticídio, se presente o privilégio, ou homicídio, se ausente o privilégio.65 O parto tem início com a dilatação, instante em que se evidenciam as características das dores e da dilatação do colo do útero. Em seguida, passa- se à expulsão, na qual o nascente é impelido para fora do útero. Finalmente, há a expulsão da placenta, e o parto está terminado. A morte do ofendido, em qualquer dessas fases, tipifica o crime de infanticídio.66 De acordo com parte da doutrina médica, o parto passa por quatro fases: 1ª) período de dilatação: contrações do útero. Em alguns casos, inicia-se com a ruptura do saco amniótico. [...] Frise-se, porém, que parte da doutrina penal sustenta que o parto se inicia com a expulsão do feto.67 Há ainda entendimento no sentido de que o começo do nascimento é marcado pelo início das contrações expulsivas.68 Associado a esse cenário de controvérsias, está o fato de não haver norma penal não incriminadora de caráter explicativo sobre a questão do início do parto – além de não ter se identificada no ordenamento jurídico uma resposta definitiva para ela. Ora, evidente que nesse caso a preocupação com a clareza do tipo penal não é aquela relativa à dúvida de se estar ou não cometendo um crime: aqui, o ataque à vida humana, independente de ter ocorrido antes, durante ou depois do parto, implicará em um crime contra a vida. A questão nebulosa paira apenas sobre uma circunstância temporal prevista no tipo penal. Na perspectiva clínica e na embriológica, depreende-se que o início do parto se dá com a associação de dilatação do colo do útero com as contrações.69,70,71,72 Curioso que a utilização de algumas das possibilidades previstas nos parágrafos acima permite dizer que o início do parto ocorre enquanto aquele que vai nascer ainda se encontra completamente dentro do útero da gestante, ou seja, já seria possível, mesmo com o 65 CAPEZ, F. Curso de Direito Penal: Parte Especial (arts. 121 ao 212). v. 2. 18. ed. atual. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 69-70. (Grifo nosso). 66 MASSON, C. Direito Penal: Parte Especial (arts. 121 ao 212). v. 2. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2020. p. 71. (Grifo do autor). 67 AZEVEDO, M. A.; SALIM, A. Direito Penal: Parte especial - Dos crimes contra a pessoa aos crimes contra a família. 9. ed. rev., atual. e amp. Salvador: Editora Juspodivm, 2020. p. 33. (Grifo do autor). 68 PRADO, 2013, p. 62 apud CUNHA, R. S. Manual de Direito Penal: Parte Especial. (Arts. 121 ao 361). 12. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2020. p. 47. 69 MOORE, K. L., PERSAUD, T. V. N., TORCHIA, M. G. Embriologia Básica. 9. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2016. p. 79. 70 GARCIA, S. M. L.; FERNÁNDEZ, C. G. Embriologia. 3.ed. Porto Alegre: Artmed Editora, 2012. p. 449-450. 71 MOORE, K. L., PERSAUD, T. V. N. Embriologia Clínica. 7. ed. Rio de Janeiro: Editora Elsevier, 2004. p. 146. 72 ZUGAIB, M.; FRANCISCO, R. P. V. Zugaib Obstetrícia. 4. ed. São Paulo: Manole, 2020. p. 323. 25 nascente ainda totalmente intrauterino, o cometimento de infanticídio ou homicídio, conforme o caso. Como não há consenso quanto à escolha de um indicativo específico que deixe claro quando se inicia o parto, diante de tudo o que já foi exposto e buscando conciliação com o bem jurídico tutelado no aborto – a vida intrauterina –, propõe-se que, enquanto aquele que está prestes a nascer ainda estiver completamente dentro do útero, o crime seja de aborto. Assim, para fins penais, entende-se que estaria iniciado o parto a partir do momento em que qualquer parte do nascentese projete para fora do útero, e os crimes cabíveis seriam, então, o homicídio e o infanticídio, conforme o caso. Até agora, abordou-se o tema sob a perspectiva do parto conhecido por parto normal ou natural – momento do nascimento do bebê de forma natural, começando e terminado espontaneamente, com baixo risco, com ele de cabeça para baixo, ocorrendo normalmente entre as 37 e as 42 semanas de gestação73. A questão se tornaria muito mais tormentosa quando, por exemplo, a gestante ou o feto venham a apresentar alguma condição que implique a necessidade de realização de parto tipo cesariana em período distante do fim da gestação – no qual não há dilatação do útero, contrações, rompimento do saco amniótico ou qualquer um daqueles momentos candidatos ao posto de marcarem o início ao parto. Mencionam-se ainda casos raros em que o nascimento ocorre sem que haja rompimento da membrana amniótica74, dificultando ainda mais a temática. 2.3 Aborto Legal ou Permitido Por decisão legislativa, o Art. 128 do CP prevê que não se pune o aborto quando praticado por médico: (a) se não há outro meio de salvar a vida da gestante (aborto necessário); (b) se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal (aborto no caso de gravidez resultante de estupro). Importante registrar já de início que, em uma leitura rápida do caput do supracitado artigo, em que consta a expressão ‘não se pune’, poderia haver o entendimento de que o fato é 73 PEREIRA, E. Parto Normal. Saúde bem estar. Seção Clínica, Ginecologia e obstetrícia. Saudebemestar.pt. Disponível em: https://www.saudebemestar.pt/pt/clinica/ginecologia/parto-normal/. Acesso em: 23 dez. 2020. 74 O surpreendente caso do bebê que nasceu em bolsa amniótica intacta. BBC News Brasil, 25 fevereiro 2015. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/02/150225_bebe_bolsa_amniotica_pai#:~:text=A%20bolsa%20 %C3%A9%20composta%20de,%2C%20segundo%20o%20Cedars%2DSinai. Acesso em: 24 ago. 2020. 26 típico, ilícito e culpável – na perspectiva tripartite –, mas não punível, ou seja, nesse caso específico haveria o crime de aborto, mas não haveria a punição ao médico que o houvesse praticado. Contudo, a natureza dessa previsão legal é de uma excludente de ilicitude75,76,77, pois se entende que o fato será típico, mas em razão de expressa previsão legal, aquela conduta não é tida por ilícita. No caso do aborto necessário, há duas vidas em questão – da própria gestante e a intrauterina, ambas, em princípio, invioláveis constitucionalmente nos termos do caput do artigo 5º da CF –, mas uma delas está em risco, a da gestante. Diante desse terrível conflito – em que seria irrazoável a aceitação da perda das duas vidas, quando uma delas pode ser salva, desde que não haja outro meio de se proceder –, a opção legislativa foi pela vida da gestante. Já o aborto no caso de gravidez resultante de estupro, o entendimento legislativo foi de que é aceitável que a mulher que sofra um estupro, não tenha condições psicológicas ou mesmo não queira chegar ao ponto de dar a luz a uma criança oriunda de um crime sexual tão brutal e hediondo. Assim, é comum o uso de adjetivos para esse tipo de aborto, como humanitário, ético, sentimental ou piedoso. Não há dúvidas de que deve haver consentimento da gestante. Sobre a prova do cometimento do crime: A prova do crime de estupro pode ser produzida por todos os meios em Direito admissíveis. É desnecessário autorização judicial, sentença condenatória ou mesmo processo criminal contra o autor do crime sexual. Essa restrição não consta do dispositivo, e, consequentemente, sua ausência não configura o crime de aborto. O médico deve procurar certificar-se da autenticidade da afirmação da paciente, quer mediante a existência de inquérito policial, ocorrência policial ou processo judicial, quer por quaisquer outros meios ou diligências pessoais que possa e deva realizar para certificar-se da veracidade da ocorrência de estupro. Acautelando-se sobre a veracidade da alegação, somente a gestante responderá criminalmente (art. 124, 2ª figura) se for comprovada a falsidade da afirmação. A boa-fé do médico caracteriza erro de tipo, excluindo o dolo, e, por consequência, afasta a tipicidade.78 Diante do cenário exposto e buscando garantir segurança jurídica efetiva aos profissionais de saúde envolvidos no procedimento de interrupção da gravidez nos casos de aborto humanitário ou piedoso, já que a lei penal não trata desses procedimentos, o Governo 75 BITENCOURT, C. R. Tratado de Direito Penal: Parte Especial. Crimes Contra a Pessoa. v. 2. 17. ed. rev., amp. e atual. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 194. 76 CUNHA, R. S. Manual de Direito Penal: Parte Especial. (Arts. 121 ao 361). 12. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2020. p. 114. 77 MASSON, C. Direito Penal: Parte Especial (arts. 121 ao 212). v. 2. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2020. p. 86. 78 BITENCOURT, C. R. op. cit. p. 195. 27 Federal publicou a Portaria nº 2.561/2020, que dispõe sobre todo o procedimento de justificação e autorização da interrupção legal da gravidez, no âmbito do SUS. Diferentemente do que ocorre no aborto necessário, em princípio, não há no aborto sentimental um conflito que busca salvar uma das vidas em detrimento da outra. Consideradas as circunstâncias excepcionais do fato, a lei prioriza a integridade física e psicológica da gestante, sua escolha, dignidade, liberdade e autonomia, independentemente de ela carregar uma vida humana em perfeitas condições de seguir seu desenvolvimento. Porém, a manutenção da gravidez decorrente de um estupro também pode ser vista sob a perspectiva de que essa gestação implicaria em uma vida tão indigna para a gestante que, no fundo, haveria sim a colisão entre duas vidas, pois a vida sem dignidade para a CF é o mesmo que inexistência de vida humana.79 79 MASSON, C. Direito Penal: Parte Especial (arts. 121 ao 212). v. 2. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2020. p. 87. 28 3 DECISÕES DO STF: HIPÓTESES EM QUE NÃO HÁ O CRIME DE ABORTO Apresentam-se as três principais decisões do STF relacionadas a hipóteses nas quais não restou configurado o crime de aborto. Os casos abordados apresentam uma vasta complexidade que vai além do escopo deste trabalho, de forma que os temas a serem abordados neste tópico se restringem à perspectiva da não ocorrência do crime de aborto e observarão uma estrutura sintética. 3.1 Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.510 – Distrito Federal80 Tratava essa ADI de pedido relativo à inconstitucionalidade do artigo 5º da Lei Federal nº 11.105 (“Lei da Biossegurança”), de 24 de março de 2005, que permite a utilização – para fins de pesquisa e terapia – de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as condições legais. Alegava o requerente, o então Procurador-Geral da República, que o citado artigo ofendia a inviolabilidade do direito à vida, já que entendia ser o embrião humano uma vida humana e tal violação iria contra o fundamento maior do Estado democrático de direito – a dignidade da pessoa humana. Sustentou, principalmente, que a vida humana aconteceria na, e a partir da, fecundação, desenvolvendo-se continuamente de forma que a célula formada da união dos gametas masculino e feminino – o zigoto – já seria um ser humano e que nesse momento da fecundação se daria a gravidez da mulher. Acordaram os Ministros do STF, por maioria e nos termos do voto do Ministro Ayres Britto, relator, em julgar improcedente a ADI, afirmando que a pesquisa com células-troncoembrionárias para fins terapêuticos não viola o direito à vida e não caracteriza crime de aborto. Em apertada síntese, apresentam-se os principais fundamentos trazidos pelo STF na ação, no que aqui importa registrar: Inexistência de ofensas ao direito à vida e da dignidade da pessoa humana [...] O Magno Texto Federal não dispõe sobre o início da vida humana ou o preciso instante em que ela começa. [...] O embrião pré-implantado é um 80 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Pleno). Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.510/DF. Constitucional. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei de Biossegurança. [...] Constitucionalidade do uso de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas para fins terapêuticos. Descaracterização do aborto. [...] Improcedência total da ação. Relator: Min. Ayres Britto, 29 de maio de 2008. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=611723. Acesso em: 10 jun. 2020. 29 bem a ser protegido, mas não uma pessoa no sentido biográfico a que se refere a Constituição. [...] nem todo embrião humano desencadeia uma gestação igualmente humana, em se tratando de experimento "in vitro". Situação em que deixam de coincidir concepção e nascituro, pelo menos enquanto o ovócito (óvulo já fecundado) não for introduzido no colo do útero feminino. O modo de irromper em laboratório e permanecer confinado "in vitro" é, para o embrião, insuscetível de progressão reprodutiva. Isto sem prejuízo do reconhecimento de que o zigoto assim extra-corporalmente produzido e também extra-corporalmente cultivado e armazenado é entidade embrionária do ser humano. [...] A Lei de Biossegurança não veicula autorização para extirpar do corpo feminino esse ou aquele embrião. Eliminar ou desentranhar esse ou aquele zigoto a caminho do endométrio, ou nele já fixado. Não se cuida de interromper gravidez humana, pois dela aqui não se pode cogitar. A "controvérsia constitucional em exame não guarda qualquer vinculação com o problema do aborto.” [...] Para que ao embrião "in vitro" fosse reconhecido o pleno direito à vida, necessário seria reconhecer a ele o direito a um útero. Proposição não autorizada pela Constituição. [...] Ação direta de inconstitucionalidade julgada totalmente improcedente.81 Natural que o STF entendesse que não há crime de aborto associado à Lei de Biossegurança, já que o objeto jurídico tutelado nesse crime é a vida humana intrauterina até o início do parto e a técnica de fertilização in vitro, como o próprio nome já sugere, promove a fertilização e manutenção do embrião extra-corporalmente, em um recipiente no laboratório, inviabilizando a tipificação do crime. Registre-se que as questões relativas ao status e ao tratamento jurídico afeitos ao produto da técnica de fertilização in vitro fogem do escopo desse estudo. A questão sobre eventual perspectiva de estabelecimento de marco para o início da vida relativa a esse julgado será discutida em outro tópico deste trabalho. 3.2 Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 – Distrito Federal82 Tratava essa ADPF, principalmente, de pedir a declaração de inconstitucionalidade da interpretação – dada aos artigos 124, 126 e 128 incisos I e II, do CP – que impede a 81BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Pleno). Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.510/DF. Constitucional. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei de Biossegurança. [...] Constitucionalidade do uso de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas para fins terapêuticos. Descaracterização do aborto. [...] Improcedência total da ação. Relator: Min. Ayres Britto, 29 de maio de 2008. (Grifo nosso). Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=611723. Acesso em: 10 jun. 2020. 82BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Pleno). Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54/DF. Estado – Laicidade. O Brasil é uma república laica, surgindo absolutamente neutro quanto às religiões. Considerações. Feto anencéfalo – Interrupção da gravidez – Mulher – Liberdade sexual e reprodutiva – Saúde – Dignidade – Autodeterminação – Direitos fundamentais – Crime – Inexistência. Mostra-se inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal. Relator: Min. Marco Aurélio, 12 de maio de 2012. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=3707334. Acesso em: 16 jun. 2020. 30 antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto anencefálico, se diagnosticado por médico habilitado. Como consequência natural, deveria ser reconhecido o direito de a gestante, exclusivamente nesses casos, se submeter à referida antecipação do parto sem que se incorresse em crime de aborto e sem a necessidade de autorização prévia do Estado. De maneira geral, a principal discussão constante nos votos dos Ministros da Corte Suprema foi sobre a ausência ou não, em algum aspecto, de vida no feto anencéfalo e a ponderação entre os possíveis conflitos de direitos fundamentais. Por fim, acordaram os Ministros do STF, por maioria, em julgar procedente a ADPF, nos termos do voto do Ministro Marco Aurélio, relator. Em apertada síntese, apresentam-se os principais fundamentos trazidos pelo referido Ministro, no que aqui importa registrar: [...] No caso, não há colisão real entre direitos fundamentais, apenas conflito aparente. [...] na verdade, a questão posta sob julgamento é única: saber se a tipificação penal da interrupção da gravidez de feto anencéfalo coaduna-se com a Constituição, notadamente com os preceitos que garantem o Estado laico, a dignidade da pessoa humana, o direito à vida e a proteção da autonomia, da liberdade, da privacidade e da saúde. [...] a resposta é desenganadamente negativa. [...] O anencéfalo, tal qual o morto cerebral, não tem atividade cortical. [...] “O anencéfalo é um morto cerebral, que tem batimento cardíaco e respiração”. [...] “O feto anencéfalo, sem cérebro, não tem potencialidade de vida. Hoje, é consensual, no Brasil e no mundo, que a morte se diagnostica pela morte cerebral. Quem não tem cérebro, não tem vida” [...] o Conselho Federal de Medicina, mediante a Resolução nº 1.752/2004, consignou serem os anencéfalos natimortos cerebrais. [...] não se cuida de vida em potencial, mas de morte segura. O fato de respirar e ter batimento cardíaco não altera essa conclusão [...] não é dado invocar o direito à vida dos anencéfalos. Anencefalia e vida são termos antitéticos. [...] Por ser absolutamente inviável, o anencéfalo não tem a expectativa nem é ou será titular do direito à vida, motivo pelo qual aludi, [...] a um conflito apenas aparente entre direitos fundamentais. Em rigor, no outro lado da balança, em contraposição aos direitos da mulher, não se encontra o direito à vida ou à dignidade humana de quem está por vir, justamente porque não há ninguém por vir, não há viabilidade de vida [...]. Aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida em potencial. No caso do anencéfalo, repito, não existe vida possível.[...] o feto anencéfalo, mesmo que biologicamente vivo, porque feito de células e tecidos vivos, é juridicamente morto, não gozando de proteção jurídica e, acrescento, principalmente de proteção jurídico-penal. Nesse contexto, a interrupção da gestação de feto anencefálico não configura crime contra a vida – revela-se conduta atípica.[...] cumpre tomar de empréstimo o conceito jurídico de morte cerebral previsto na Lei nº 9.434/97[72], para concluir ser de todo impróprio falar em direito à vida intrauterina ou extrauterina do anencéfalo, o qual é um natimorto cerebral.[...] Não se coaduna com o princípio da proporcionalidade proteger apenas um dos seres da relação, privilegiar aquele que, no caso da anencefalia, não temsequer expectativa de vida extrauterina, aniquilando, em contrapartida, os direitos da mulher, impingindo-lhe sacrifício desarrazoado. A imposição estatal da manutenção de gravidez cujo resultado 31 final será irremediavelmente a morte do feto vai de encontro aos princípios basilares do sistema constitucional [...].83 A decisão da corte com base na perspectiva de que a anencefalia equivaleria à morte cerebral nos termos legais – uma antítese à vida –, permite a imediata conclusão de que o cometimento do crime de aborto se mostra impossível nesses casos, já que não há vida em questão a ser tutelada. A Lei 9.434/1997, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante, foi comumente citada no julgado como uma fonte de fundamentação, pois, em seu artigo 3º, ela traz o diagnóstico de morte sob o aspecto jurídico, ao prever que a retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deve ser precedida de diagnóstico de morte encefálica. Interessante perceber que a decisão do STF também considerou informações técnicas obtidas pelos Ministros nas audiências públicas, relativas ao tema em julgamento, realizadas com entidades religiosas, sociológicas e especialistas das áreas Medicina e Biologia. Nesse julgamento, ficou bastante claro que o Direito, em muitos casos, pode se valer dos saberes de outras áreas do conhecimento para promover entendimentos que levem, em última análise, à pacificação social. A questão sobre eventual perspectiva de estabelecimento de marco para o início da vida relativa a esse julgado será discutida em outro tópico deste trabalho. 3.3 Habeas Corpus nº 124.306 – Rio de Janeiro84 Tratava esse HC de requerimento de revogação da prisão preventiva para garantir que os pacientes pudessem responder em liberdade à ação penal. No caso, duas pessoas haviam sido presas por suposto cometimento dos seguintes crimes previstos no Código Penal: Associação Criminosa – artigo 288 – e aborto provocado com o consentimento da gestante – artigo 126 –, em concurso material. 83 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Pleno). Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54/DF. Estado – Laicidade. O Brasil é uma república laica, surgindo absolutamente neutro quanto às religiões. Considerações. Feto anencéfalo – Interrupção da gravidez – Mulher – Liberdade sexual e reprodutiva – Saúde – Dignidade – Autodeterminação – Direitos fundamentais – Crime – Inexistência. Mostra-se inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal. Relator: Min. Marco Aurélio, 12 de maio de 2012. (Grifo nosso). Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=3707334. Acesso em: 16 jun. 2020. 84 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (1. Turma). Habeas Corpus 124.306/RJ. Direito Processual Penal. Habeas Corpus. Prisão Preventiva. Ausência dos requisitos para sua decretação. Inconstitucionalidade da incidência do tipo penal do aborto no caso de interrupção voluntária da gestação no primeiro trimestre. Ordem concedida de ofício [...]. Relator: Min. Marco Aurélio, 29 de novembro de 2016. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=12580345. Acesso em: 16 jun. 2020. 32 Acordaram os ministros da primeira turma, nos termos do voto-vista do ministro Luís Roberto Barroso, que os fundamentos da concessão da ordem eram: (1) ausência de requisitos para legitimar a prisão cautelar e (2) necessidade de se realizar interpretação conforme a Constituição dos artigos 124 a 126 do Código Penal – crime de aborto, nos seguintes termos que aqui importam registrar: 3. [...] é preciso conferir interpretação conforme a Constituição aos próprios art. 124 a 126 do Código Penal – que tipificam o crime de aborto – para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre. A criminalização, nessa hipótese, viola diversos direitos fundamentais da mulher, bem como o princípio da proporcionalidade. [...] 4. A criminalização é incompatível com os seguintes direitos fundamentais: os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria. […] 6. A tipificação penal viola, também, o princípio da proporcionalidade por motivos que se cumulam: (i) ela constitui medida de duvidosa adequação para proteger o bem jurídico que pretende tutelar (vida do nascituro), [...]; (ii) é possível que o Estado evite a ocorrência de abortos por meios mais eficazes e menos lesivos do que a criminalização, [...]; (iii) a medida é desproporcional em sentido estrito [...]85 Percebe-se, num primeiro momento, que o entendimento da primeira Turma do STF estabelece um novo marco temporal, em julgado da Corte, para o início da proteção à vida intrauterina, de forma que apenas após o primeiro trimestre de gestação poder-se-ia falar em aborto. Ao se observar o voto-vista do Ministro Luís Roberto Barroso, que serviu de base para o acórdão, é possível verificar com mais detalhes a justificativa para o estabelecimento do limite temporal do primeiro trimestre de gravidez, conforme abaixo: 12. [...] O bem jurídico protegido – vida potencial do feto – é evidentemente relevante. Porém, a criminalização do aborto antes de concluído o primeiro trimestre de gestação viola diversos direitos fundamentais da mulher [...] 22. [...] Porém, exista ou não vida a ser protegida, o que é fora de dúvida é que não há qualquer possibilidade de o embrião subsistir fora do útero materno 85 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (1. Turma). Habeas Corpus 124.306/RJ. Direito Processual Penal. Habeas Corpus. Prisão Preventiva. Ausência dos requisitos para sua decretação. Inconstitucionalidade da incidência do tipo penal do aborto no caso de interrupção voluntária da gestação no primeiro trimestre. Ordem concedida de ofício [...]. Relator: Min. Marco Aurélio, 29 de novembro de 2016. (Grifo nosso). Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=12580345. Acesso em: 16 jun. 2020. 33 nesta fase de sua formação. Ou seja: ele dependerá integralmente do corpo da mulher. [...] 23. [...] 1.1. Violação à autonomia da mulher [...] 1.2. Violação do direito à integridade física e psíquica [...] 1.3. Violação aos direitos sexuais e reprodutivos da mulher [...] 1.4. Violação à igualdade de gênero [...]1.5. Discriminação social e impacto desproporcional sobre mulheres pobres [...] 31. Em suma: [...], a criminalização da interrupção da gestação no primeiro trimestre vulnera o núcleo essencial de um conjunto de direitos fundamentais da mulher. Trata-se, portanto, de restrição que ultrapassa os limites constitucionalmente aceitáveis. [...] a questão do aborto até o terceiro mês de gravidez precisa ser revista à luz dos novos valores constitucionais trazidos pela Constituição de 1988, das transformações dos costumes e de uma perspectiva mais cosmopolita. [...] 45. [...] o peso concreto do direito à vida do nascituro varia de acordo com o estágio de seu desenvolvimento na gestação.O grau de proteção constitucional ao feto é, assim, ampliado na medida em que a gestação avança e que o feto adquire viabilidade extrauterina, adquirindo progressivamente maior peso concreto. [...] 47. [...] para que não se confira uma proteçãoinsuficiente nem aos direitos das mulheres, nem à vida do nascituro, é possível reconhecer a constitucionalidade da tipificação penal da cessação da gravidez que ocorre quando o feto já esteja mais desenvolvido. [...] De acordo com o regime adotado em diversos países, a interrupção voluntária da gestação não deve ser criminalizada, pelo menos, durante o primeiro trimestre da gestação. Durante esse período, o córtex cerebral – que permite que o feto desenvolva sentimentos e racionalidade – ainda não foi formado, nem há qualquer potencialidade de vida fora do útero materno. Por tudo isso é preciso conferir interpretação conforme a Constituição aos artigos 124 e 126 do Código Penal [...]86 Ficou claro que, ainda que haja vida até o terceiro mês de gestação, há outros valores constitucionais fundamentais que prevaleceriam sobre ela nesse conflito, permitindo, assim, à gestante interromper a gestação nesse ínterim sem que isso implicasse no cometimento do crime de aborto. Além disso, pesou o fundamento da proteção conforme haja progressão da viabilidade extrauterina do feto e da ausência de formação do córtex cerebral. Este último talvez tenha amparo na Lei 9.434/97, numa interpretação a contrário senso da morte encefálica. Relevante, nesse ponto, a reflexão sobre o uso de compensações proporcionais como instrumento para solução de situações concretas relativas a conflitos de direitos fundamentais: 86 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (1. Turma). Habeas Corpus 124.306/RJ. Direito Processual Penal. Habeas Corpus. Prisão Preventiva. Ausência dos requisitos para sua decretação. Inconstitucionalidade da incidência do tipo penal do aborto no caso de interrupção voluntária da gestação no primeiro trimestre. Ordem concedida de ofício [...]. Relator: Min. Marco Aurélio, 29 de novembro de 2016. (Grifo nosso). Trecho do voto do Ministro Luís Roberto Barroso. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=12580345. Acesso em: 16 jun. 2020. 34 Bens juridicamente relevantes podem contrapor-se à continuidade da gravidez. A solução cabível haverá de ser, contudo, a inexorável preservação da vida humana, ante a sua posição no ápice dos valores protegidos pela ordem constitucional. Veja-se que a ponderação do direito à vida com valores outros não pode jamais alcançar um equilíbrio entre eles, mediante compensações proporcionais. Isso porque, na compensação de valores contrapostos, se o fiel da balança apontar para o interesse que pretende superar a vida intrauterina, o resultado é a morte do ser contra quem se efetua a ponderação. Perde-se tudo de um lado da equação. Um equilíbrio entre interesses é impossível de ser obtido.87 De qualquer forma, a decisão refletiu-se em novidade no âmbito do STF, seja quanto ao fundamento para justificar a inexistência do crime, seja pelo novo marco temporal estabelecido para que a vida intrauterina seja protegida. Porém, importante registrar que o efeito dessa decisão ficou restrito às partes do processo, porque se tratou do tema em sede de habeas corpus em julgado da primeira turma do STF. A questão sobre eventual perspectiva de estabelecimento de marco para o início da vida relativa a esse julgado será discutida em outro tópico deste trabalho. 87 MENDES, G. F; BRANCO, P. G. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 266. (Grifo nosso). 35 4 DIREITO À VIDA, INÍCIO DA VIDA HUMANA E O CRIME DE ABORTO A inviolabilidade do direito à vida é direito fundamental previsto no caput do artigo 5º da CF88 e reforçado no caput de seus artigos 22789 e 23090. Dada a patente relevância desse direito e a sua proteção em âmbito penal, devem as autoridades agir ex oficio, pois ataca-se o bem jurídico mais importante do ser humano, que é a vida.91 O avanço da sociedade em várias áreas do saber humano e as modificações sociais e culturais que nela ocorrem naturalmente com o tempo acabam impactando necessariamente o Direito, seja na elaboração, modificação ou interpretação das leis - lato sensu. Partindo do fato de a CF concentrar os mais importantes valores da sociedade brasileira, os bens tutelados no campo do Direito Penal devem, então, estar em perfeita harmonia com os preceitos constitucionais. Sabe-se que compete ao Estado o dever de produzir e de fazer cumprir suas normas, mas também o de derrogar preceitos penais ou mesmo o de restringir o alcance das figuras delitivas, atividade que cabe preponderantemente ao STF, por meio da declaração de inconstitucionalidade de normas penais.92 Isso se mostrou muito evidente nas recentes decisões do STF em relação à tipificação do crime em estudo, conforme já analisado. É certo que o direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, base para a existência de todos os demais direitos. Sobre o tema: O direito à vida é a premissa dos direitos proclamados pelo constituinte; não faria sentido declarar qualquer outro se antes, não fosse assegurado o próprio direito de estar vivo para usufruir-lo. O seu peso abstrato, inerente a sua capital relevância, é superior a todo outro interesse. [...] Proclamar o direito à vida responde a uma exigência que é prévia ao ordenamento jurídico, inspirando-o e justificando-o. Trata-se de um valor supremo na ordem constitucional, que oriente, informa e dá sentido último a todos os demais direitos fundamentais. [...] Se todo o ser humano singulariza-se por uma dignidade intrínseca e indisponível, a todo ser humano deve ser reconhecida 88 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: 89 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade eopressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010) 90 Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida. 91 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial. Crimes Contra a Pessoa. v. 2. 17. ed. rev., amp. e atual. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 209. 92 CUNHA, R. S. Manual de Direito Penal: Parte Geral (Arts. 1° ao 120). 8. ed. rev., atual. e ampl. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 37-38. 36 a titularidade do direito mais elementar de expressão dessa dignidade única – o direito de existir. [...] Onde, pois, houver um ser humano, há aí o indivíduo com o direito de viver, mesmo que o ordenamento jurídico não se dê ao trabalho de proclamar explicitamente.93 Contudo, a própria CF, de forma expressa94, apresenta uma hipótese em que o Estado está autorizado a excepcionar esse direito, além de a legislação infraconstitucional também prever sua relativização, por exemplo, nas excludentes de ilicitude. Verifica-se também que é pacífico que os direitos fundamentais venham a sofrer limitações ao se confrontarem com outros valores de ordem constitucional, inclusive outros direitos fundamentais – a CF mostra que essas limitações podem até estar expressas no texto, como o direito à vida, que tem limitações explícitas.95 4.1 Início da proteção à vida Embora a CF faça expressa previsão do direito à vida como um direito fundamental, ela não informa
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