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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS CURSO DE DIREITO CIRO ALEXANDRE GOMES BESERRA GARANTIAS NA FASE PRÉ-PROCESSUAL: uma análise à luz do Estado Democrático de Direito NATAL 2022 CIRO ALEXANDRE GOMES BESERRA GARANTIAS NA FASE PRÉ-PROCESSUAL: uma análise à luz do Estado Democrático de Direito Monografia apresentada ao curso de graduação em Direito, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Dr. Walter Nunes da Silva NATAL 2022 CIRO ALEXANDRE GOMES BESERRA GARANTIAS NA FASE PRÉ-PROCESSUAL: uma análise à luz do Estado Democrático de Direito Monografia apresentada ao curso de graduação em Direito, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Direito. Aprovada em: _____/_____ /_______ Banca Examinadora: ___________________________________________ Prof. Dr. Walter Nunes da Silva Júnior (Orientador) Universidade Federal do Rio Grande do Norte ___________________________________________ Prof. Dr. Fabio Wellington Ataide Alves (Examinador) Universidade Federal do Rio Grande do Norte ___________________________________________ Prof. Dr. Paulo Roberto Dantas De Souza Leao (Examinador) Universidade Federal do Rio Grande do Norte Dedico este trabalho à memória de Herculano Gomes Beserra, meu querido irmão, que apesar de uma breve passagem neste mundo terreno foi capaz de deixar lições incríveis e muito valorosas. AGRADECIMENTOS O Trabalho de Conclusão do Curso é o último ato da graduação em direito, mas mais do que isso é o encerramento de um ciclo e a concretização de um sonho, que só foi possível pela contribuição de várias pessoas que sempre estiveram ao meu lado. A Deus, em primeiro lugar, externo meus agradecimentos, pois sem suas bênçãos constantes não teria trilhado todos os caminhos até aqui. Agradeço a minha mãe, Ana Maria, mulher forte e batalhadora, que sempre me apoiou e viveu meus sonhos, e de igual forma essa conquista também é dela. Nunca mediu esforços para contribuir com meu crescimento pessoal e acadêmico, mesmo diante todas dificuldades da vida. Seu amor incondicional e sua força elevada é fonte de inspiração para ultrapassar todas as dificuldades diárias, sem ela nada disso seria possível. Agradeço ao meu pai, Evandro, por sempre batalhar e possibilitar as condições necessárias para percorrer toda trajetória pessoal e acadêmica. Sua honradez e retidão é espelho que guia meus princípios e virtudes. Estendo meus agradecimentos aos meus irmãos, Herculano (in memoriam) e Pedro Victor, que sempre estiveram me apoiando e celebrando minhas conquistas. Sou abençoado por tê-los em minha vida. Agradeço ao meu amor, Gabriella, por seu companheirismo e infinito amor. A ela devo meus sinceros agradecimentos por total apoio em todas conquistas alcançadas. Sua sabedoria é local de conforto que recorro quando as dificuldades surgem e é quem faz os fardos serem mais leves. Minha gratidão e meu amor serão eternos, o que faz querer que esteja sempre ao meu lado. Agradeço a toda minha família e amigos por estarem sempre presentes e serem fonte de carinho e companheirismo. Em especial, meus profundos agradecimentos à minha avó Lourdes Bezerra (in memoriam), em nome de todos os tios, tias, primos e primas. Agradeço à instituição IFRN, em especial o campus Natal Zona Norte, que me proporcionou o acesso à educação de qualidade, sem a qual não teria conseguido ingressar na universidade pública. Agradeço a todos professores que lá ensinaram conteúdos didáticos, além de lições que levarei comigo para sempre. Agradeço à UFRN, universidade pública, gratuita e de qualidade (que assim sempre seja). Sou eternamente grato a todo corpo de docentes que compõem o quadro da graduação em Direito, os agradecimentos estendem-se aos demais profissionais que desempenham suas atividades na instituição. Agradeço a todas instituições que estagiei, as quais possibilitaram o aprimoramento da formação acadêmica. A Procuradoria Geral do Estado e a Defensoria Pública do Estado são órgãos que realizam atividades de excelência e que proporcionaram experiências valiosas. Por fim, e tão importante quanto, agradeço ao meu orientador, professor Walter Nunes, o qual tive a sorte de tê-lo como professor nas disciplinas de Direito Processual Penal I e II, de ter sido seu monitor e em seguida fui orientado na produção do TCC. Sua condução nas atividades de docência são ensinamentos que transmitem muito além do conteúdo didático da disciplina, as aulas são fontes de saber para a formação acadêmica, profissional e social. A UFRN e seus alunos são extremamente beneficiados por suas contribuições. RESUMO A jurisdicionalização da fase pré-processual é providência necessária ao desenvolvimento da persecução penal que se alinha ao modelo acusatório. É imprescindível a atuação do juiz na fase de investigação como controlador e garantidor dos direitos fundamentais que são flexibilizados nesta fase. Essa previsão, por outro lado, faz surgir o comprometimento da imparcialidade objetiva do juiz, que em seguida atuará na fase de conhecimento. O juiz das garantias surge como conveniente a essa problemática, o qual tem como competência a atuação na fase pré-processual e que deve analisar e controlar a legalidade da investigação criminal, bem como os direitos fundamentais dos investigados. Diante dessa realidade, a Lei nº 13.964, de 2019, prevê o instrumento do juiz das garantias, o qual já havia sido idealizado no Projeto de Lei do Senado nº 156/2009, que discute acerca do novo Código de Processo Penal. O juiz das garantias é instrumento que representa um salto qualitativo na condução da persecução penal, que permite sua conformidade ao modelo do processo penal constitucional e ao modelo acusatório. Palavras-chaves: Juiz das garantias. Lei 13.964. Direitos fundamentais. Fase pré- processual. ABSTRACT The jurisdictionalization of the pre-procedural phase is a necessary measure for the development of criminal prosecution that aligns with the accusatory model. The judge needs to act in the investigation phase as a controller and guarantor of fundamental rights that are relaxed at this stage. This prediction, on the other hand, gives rise to the impairment of the objective impartiality of the judge, who will then act in the knowledge phase. The judge of the guarantees appears as convenient to this problem, which has the competence to act in the pre-procedural phase and which must analyze and control the legality of the criminal investigation, as well as the fundamental rights of those investigated. Because of this reality, Law nº 13.964, of 2019, provides for the instrument of the guarantee judge, which had already been conceived in the Senate Bill nº 156/2009, which discusses the new Code of Criminal Procedure. The judge of guarantees is an instrument that represents a qualitative leap in the conduct of criminal prosecution, which allows its conformity to the model of constitutional criminal procedure and the accusatory model. Keywords: Guarantee judge. Law 13.964. Fundamental rights. Pre-procedural phase. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................ 9 2 PERSECUÇÃO PENALNO MODELO DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL DE 1941 ........................................................................................................ 12 2.1 Os sistemas processuais e a investigação criminal ....................................... 20 2.2 Fase pré-processual e o devido processo ..................................................... 26 3 A INVESTIGAÇÃO CRIMINAL À LUZ DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ........................................................................................................ 35 3.1 O juiz como garantidor da legalidade durante a investigação criminal ........... 37 3.2 Prejuízos à imparcialidade do juiz.................................................................. 53 4 A ATUAÇÃO DO JUIZ DAS GARANTIAS NA FASE PRÉ-PROCESSUAL . 58 4.1 O juiz das garantias conforme a Lei nº 13.964 de 2019 ................................. 61 4.2 A idealização do juiz das garantias no Processo Penal brasileiro .................. 64 4.3 Análise crítica acerca do juiz das garantias conforme o sistema acusatório .. 67 5 CONCLUSÃO ............................................................................................... 73 REFERÊNCIAS ............................................................................................ 76 9 1 INTRODUÇÃO A pesquisa científica desenvolvida surgiu a partir das instigações suscitadas pelos debates promovidos nas aulas de processo penal ministradas pelo professor que, em seguida, tive o privilégio de ter como orientador do Trabalho de Conclusão de Curso. O estudo do direito criminal e a leitura das obras pertinentes promovem reflexões que demonstram um sistema criminal que, por vezes, se põe distante dos padrões democráticos e garantistas que se espera na sociedade evoluída. Nesse sentido, algumas mudanças estruturais e profundas são necessárias a fim de proporcionar avanços que buscam solucionar ou amenizar os prejuízos aos direitos fundamentais, que são praticados no decorrer da persecução penal, mais especificamente na fase pré-processual, que é o campo de estudo deste trabalho. A doutrina e a prática forense demonstram que o ambiente pré-processual é tema de discussões e polêmicas e, que ainda se encontra resistência por parte de alguns atores jurídicos no que diz respeito aos padrões democráticos e garantistas decorrentes do Estado Democrático de Direito. Essa resistência reflete os traços inquisitivos e autoritários1 que ainda sobrevivem no sistema criminal, mesmo pós Constituição de 1988. Nessa toada, este trabalho tem como objetivo averiguar e entender a influência da mentalidade inquisitiva na fase pré-processual, além de analisar a utilização do juiz das garantias como meio hábil a superar as condutas contrárias ao modelo acusatório instituído no sistema criminal brasileiro. O Código de Processo Penal, constituído pelo Decreto-Lei n.º 3.689, de 03 de outubro de 1941, apresenta uma natureza ditatorial e policialesca, tendo em vista que fora desenvolvido na vigência da constituição de 1937, em época do estado novo, e tantas outras ideias autoritárias que sopraram por terras brasileiras, tais como influências fascistas. Não obstante sua longevidade e as reformas que foram impostas, ainda se tem um processo penal com fortes características inquisitivas, principalmente no que se refere à fase pré-processual. Assim, é de se observar que o sistema criminal brasileiro é constituído de uma forte contradição, tendo em vista que o texto constitucional adota 1GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Processo Penal Pós-acusatório? Ressignificações do Autoritarismo no Processo Penal. R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, jan.- fev. 2015. 10 o sistema acusatório e observa diversas garantias que devem ser respeitadas e efetivadas durante toda a persecução penal, em conformidade com um processo penal constitucional. Por outro lado, tem-se o Código de Processo Penal, com fortes características inquisitivas, por toda sua essência, vigente. O entendimento atual do processo penal e a ideia de garantismo exige que os papeis dos atores da persecução penal devem ser delimitados, sobretudo, a atuação do juiz no decorrer da investigação criminal. O magistrado, na posição fundamental de garantidor dos direitos do investigado, deve, inclusive, na fase pré-processual, onde as garantias são facilmente ameaçadas, proteger os direitos fundamentais contra qualquer violação injusta e infundada que possa ocorrer de forma injustificada. A proteção faz-se necessária, sobretudo, através da jurisdicionalização de incidentes investigativos que demandem, com o fim de apurar fatos, a legítima mitigação de direitos constitucionalmente reconhecidos. Em meio a esse contexto se insere a criação do juiz das garantias, instituto que é previsto em outros ordenamentos jurídicos e, que fora idealizado no Código de Processo Penal Tipo para Ibero-América, e em seguida discutido no projeto que idealizou o novo código de processo penal, no PL de nº 156 de 2009, mas que só teve vida válida com a promulgação da Lei 13.964 (popularmente conhecida como Pacote Anticrime). Assim, o presente estudo tem o objetivo de analisar a conveniência e plausibilidade da adoção do juiz das garantias no processo penal pátrio. Logo, tem-se a fase pré-processual como ponto de partida da persecução penal, e que o considera como ambiente em que deve ser observada todas garantias previstas no texto constitucional, e em conformação com o Estado Democrático de Direito. Ademais, afirma-se que o trabalho tem como marco teórico a compreensão do direito criminal como meio apto a limitar o poder punitivo promovido pelo Estado, e tem o processo penal como forma de desenvolver procedimentos que buscam garantir direitos fundamentais tutelados. No tocante à metodologia utilizada, este trabalho será desenvolvido pela via descritiva. Quanto ao método de investigação baseado em revisão bibliográfica, legal e jurisprudencial será feita uma abordagem qualitativa das informações obtidas. Em face dos dados do direito, o método utilizado foi o jurídico-interpretativo, e quanto a 11 outros saberes que se alinham às ciências cognitivas, foi escolhido o hipotético- dedutivo. O desenvolvimento do trabalho será dividido em três partes, que num primeiro momento buscará analisar a investigação preliminar e compreender sua influência na persecução penal a partir do sistema processual que predominou em cada época, bem como explorar a fase pré-processual e suas garantias inerentes. Em seguida, será desenvolvida a análise da condução da investigação criminal conforme o estado democrático de direito, com enfoque na atuação do juiz das garantias como garantidor da legalidade. Por fim, será desenvolvida uma análise crítica do juiz das garantias no ordenamento jurídico brasileiro, que perpassará desde sua idealização, passará pela sua materialização em lei e, concluirá, com as críticas e os inconvenientes inerentes desse novo instrumento inserido na persecução penal. Não se busca explicar que a instituição do juiz das garantias é causa eficaz a afastar por completo todo e qualquer traço inquisitivo que ainda exista na fase investigativa, mas sim, que é medida salutar a contribuir com o desenvolvimento de uma persecução criminal alinhada aos princípios democráticos e garantistas, em conformidade com a ordem constitucional vigente. 12 2 PERSECUÇÃO PENAL NO MODELO DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL DE 1941 O ser humano necessita viver em contato com seus pares. Os mais remotos relatos históricos demonstram que o homem é um ser coexistêncial e que devido a sua natureza faz-se necessário o intercâmbio de colaboração entre os iguais. Sendo assim, devido a necessidade de interação dos homens, isto é, de conviver em sociedade, há a necessidade do estabelecimentode regras em prol do desenvolvimento da coletividade. Surge, então, as regras do direito com a finalidade de controlar os desejos irracionais que coexistem nos indivíduos, de forma a possibilitar o convívio social pacífico. O direito criminal nasce como meio hábil para proteger a convivência em coletividade, sendo importante instrumento de manutenção da paz social. Surge, então, a possibilidade da prisão como meio de garantir o cumprimento de suas regras, o que representa uma característica particular do direito penal. Assim, o direito penal aponta como o ramo do direito que é marcado pelos princípios da fragmentariedade, subsidiariedade e da ultima ratio. Isto é, o direito penal só será aplicado quando não houver outros meios menos gravosos para punir as condutas socialmente danosas. A razão de ser reside no fato da pena de prisão ser bastante prejudicial à pessoa do condenado, excluindo-o da sociedade, o que produz severo dano social. Dito isso, as penas que causem consequências menos gravosas devem ser preferidas. No entanto, a mera previsão legal não é meio apto a impedir condutas violadoras dos dispositivos penais, porém, a prática contrária à norma faz surgir para o Estado o dever-poder de punir, o jus puniendi. O Estado, ente político e jurídico, exerce o direito e tem o dever de proteger a coletividade, o que inclui o próprio acusado. Segundo ensinamentos de Aury Lopes Jr., o insucesso do direito penal, com a finalidade preventiva, resulta no injusto típico, que representa uma conduta voluntária, finalisticamente dirigida, que produz dano ou ameaça bens e valores protegidos, o que sucede um juízo de desvalor do resultado. Conforme o autor, o juízo de valor externa- se através da aplicação de uma sanção, o que traduz a função repressiva do direito 13 penal2. Dito isso, convém destacar que o direito penal não age automaticamente. Assim, para que a pena possa ser aplicada é necessário que exista um injusto típico, bem como que haja previamente o devido processo penal3. Ademais, o Estado tem o dever-poder de punir, contudo, não pode fazer de qualquer forma. Logo, o processo penal surge como o ramo do direito que exerce a função punitiva, justificando-se, conforme Luigi Ferrajoli, “precisamente em cuanto técnica de minimización de la reacción social frente al delito: de minimización de la violência, pero también del arbítrio que de outro modo se produciría com formas aun más salvajes y desenfrenadas”4. O Estado é detentor do monopólio da justiça, o que veda expressamente os particulares de agirem com suas próprias mãos, em busca de uma ilusória justiça. Não haveria tranquilidade social se fosse cabível, pelo uso da força, às próprias partes litigantes resolverem suas divergências no campo extraprocessual, principalmente no que tange à matéria penal, ou seja, na esfera repressiva. Assim fosse, excessos seriam praticados em face dos arbítrios que a parte titular do direito de punir, “cego e desenfreado”, passaria a cometer5. A partir dessa realidade, o Estado autolimitou o seu poder punitivo, com o uso do processo judicial, que por meio de um terceiro imparcial e sem interesse no conflito e que terá a resolução do litígio e o autor punido. Isso posto, “o processo, como instituição estatal, é a única estrutura que se reconhece como legitima para a imposição da pena”6. Conforme leciona Luigi Ferrajoli, o modelo garantista de direito penal não permite qualquer aplicação de pena sem que haja a comissão de um delito, sua previsão legal como delito, a exigência de sua proibição e respectiva punição, a necessidade de existência de efeitos lesivos a terceiros, o caráter externo ou material da ação delituosa, a culpabilidade e imputabilidade do autor e, mais, a prova produzida 2LOPES JR., Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. 3Ibid. 4FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Teoría del garantismo penal. 4. ed. Trad. Perfecto Andrés Ibáñez, Alfonso Ruiz Miguel, Juan Carlos Bayón Mohino, Juan Terradillos Basoco e Rocío Cantarero Bandrés. Madrid: Editorial Trotta, 2000, p. 604. 5TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. 6LOPES JR., Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 6-7. 14 por uma acusação diante um juiz distante das partes e imparcial, em um processo público, que permita o contraditório em face da defesa e por meio de procedimentos legalmente previstos7. Desta maneira, e em consonância com a dignidade humana e o direito à liberdade individual é que o Estado estabelece o seu poder repressivo não apenas em pressupostos jurídicos-penais materiais, mas também garante a aplicação da legislação penal ao caso concreto, seguindo as formalidades previstas nas leis, mediante a atuação dos órgãos jurisdicionais. O direito processual penal caracteriza-se como conjunto de regras em que se estabelece a instituição dos órgãos jurisdicionais e que orienta o desenvolvimento da apuração das condições que permitem a aplicação em concreto do direito penal. Não obstante, conforme ensinamentos de Silva Júnior, observa-se que a dimensão do neoconstitucionalismo ou do Estado democrático-constitucional desenvolveu-se de modo que o ordenamento jurídico criminal tem sua história confundida com a dos direitos fundamentais8. Assim, o processo penal é, acima de tudo, o garantidor dos direitos fundamentais delineados na Constituição de 1988. A estrutura requer um íntimo e indispensável vínculo entre delito, processo e pena. “Não existe delito sem pena, nem pena sem delito e processo, nem processo penal senão determinar o delito e impor uma pena”9. Conforme ensinamentos de Antonio Scarance Fernandes, há destaque para dois direitos fundamentais e que são caros ao processo criminal: o direito à liberdade e o direito à segurança, os dois estão contidos no caput do art. 5º da Constituição. Ademais, decorre de tais direitos fundamentais, a garantia que o Estado tem que atuar positivamente para estruturar seus órgãos e criar procedimentos que garantam segurança e assegure a liberdade. Segundo Luigi Ferrajoli, o que distingue o processo promovido pelo órgão público imparcial da justiça e aquele exercido com as próprias mãos ou qualquer outro meio de vindita sumária é devido ao fim preventivo dual do direito penal: a punição dos culpados, bem como a proteção dos inocentes. A execução de um ilícito gera o 7FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Teoría del garantismo penal. 4. ed. Trad. Perfecto Andrés Ibáñez, Alfonso Ruiz Miguel, Juan Carlos Bayón Mohino, Juan Terradillos Basoco e Rocío Cantarero Bandrés. Madrid: Editorial Trotta, 2000. p. 103-104. 8SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Curso de direito processual penal: teoria (constitucional) do processo penal. 3. ed. Revista, ampliada e atualizada. Natal: OWL, 2021. 9LOPES JR., Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 6. 15 dever do Estado encontrar o culpado, e não apenas um culpado. Desta maneira, é partindo do dever de proteção dos inocentes que se fundamenta as diversas garantias processuais que estão presentes no processo e que reflete de várias maneiras nas instâncias repressivas10. Assim, nota-se o contraste existente no processo penal, qual seja a efetividade da coerção penal de um lado e os direitos fundamentais de outro. Contudo, para se alcançar uma coerção mais eficaz faz-se necessária a limitação de direitos fundamentais. Nesse sentido, Silva Júnior explica, ainda, que o processo penal é desenvolvido pela tensão ou colisão entre direitos fundamentais, tanto na perspectiva objetiva quanto subjetiva, logo, o sistema criminal deve se pautar em buscar o equilíbrioentre esses interesses11. A colisão entre o poder punitivo e o exercício da defesa não se resolve com uma escolha rígida que uma prevalece sobre a outra, tendo em vista que o Estado tem tanto o dever de punir os culpados quanto absolver os inocentes. Demonstra-se assim a difícil tarefa que o Estado tem em realizar de forma eficiente a punição dos culpados e absolver os inocentes. Por outro lado, o reconhecimento dos mais diversos direitos fundamentais traz restrições à efetividade da coerção. Portanto, o que se deseja é uma eficiência na atividade coercitiva, que seja exercida com respeito às garantias. O processo penal na sua evolução histórica não atingiu um procedimento perfeito que permite um equilíbrio desejado entre a segurança e a liberdade, até porque o processo penal se apresenta sob diversas faces a depender do contexto social, político, histórico. No entanto, de forma geral, algumas diretrizes foram estabelecidas de maneira a fundamentar a formação de procedimentos12. Desse modo, o Estado organizou-se de maneira a estruturar e criar órgãos direcionados à eficiente condução do direito punitivo, seja por meio dos procedimentos, atos e fases dirigidos a garantir a ação de tais órgãos. 10FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Teoría del garantismo penal. 4. ed. Trad. Perfecto Andrés Ibáñez, Alfonso Ruiz Miguel, Juan Carlos Bayón Mohino, Juan Terradillos Basoco e Rocío Cantarero Bandrés. Madrid: Editorial Trotta, 2000, p. 224. 11SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Curso de direito processual penal: teoria (constitucional) do processo penal. 3. Edição. Revista, ampliada e atualizada. Natal: OWL, 2021. 12FERNANDES, Antonio Scarance. Teoria Geral do Procedimento e O Procedimento no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 41. 16 O Estado enquanto titular do direito de punir só pode aplicar determinada pena quando por meio de órgãos jurisdicional e através de regular processo, que tem início com a propositura da ação. É o que se entende por persecução penal. O direito à persecução penal consiste em investigar um fato contrário à norma e em seguida requerer o julgamento da pretensão punitiva. O Estado tem como obrigação alcançar os fins que sustentam sua razão de ser: segurança e restauração da ordem jurídica13. A prerrogativa de persecução penal é cabível ao Estado, que por meio da busca em realizar o jus puniendi, quando há crime e que daí decorra a necessidade de infligir ao acusado a correspondente sanção penal. Apesar de não apresentar uma regra rígida, a persecução penal se mostra, em regra, em duas fases: a investigação preliminar e o processo judicial, sendo este formado, normalmente, por três etapas: postulatória, instrutória e decisória14. Essa divisão da persecução penal subsiste para quando seja necessária, antes das fases processuais, um momento necessário à investigação, que não integra, portanto, o processo15. É válido observar que a cisão da persecução em duas fases se trata de regra que não é absoluta porque a investigação preliminar não representa fase necessária e indispensável à conclusão da culpa. Tal observação compreende característica da investigação, que pode ser representada pelo inquérito, na qual é dispensável, tendo em vista que as informações necessárias já são de conhecimento e a ação já pode ser requerida. O processo penal, em si mesmo, representa uma sanção negativa, resultando em efeitos permanentes, mesmo que ao final do processo o réu seja considerado inocente16. Desde o início da persecução penal, seja quando houver a investigação preliminar ou não, o processo penal já é uma pena17. Desde o início gera-se uma onda de incertezas, medos e angústias. Ainda, há de se deparar com órgãos judiciários que 13TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. 14FERNANDES, Antonio Scarance. Teoria Geral do Procedimento e O Procedimento no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. 15“É o que sucede nos processos criminais e nos processos relativos às ações civis públicas, nos quais deve ser instaurado, previamente, um inquérito. O inquérito, por isso, não faz parte da unidade procedimental”. FERNANDES, Antonio Scarance. Teoria..., p. 35. 16SAAD, Marta. O direito de defesa no inquérito policial. São Paulo: RT, 2004. 17O processo criminal é uma pena. O início da persecução penal já é o cumprimento da pena. A aflição que toma conta do indivíduo não permite mais que o mesmo tenha a vida que levava. 17 não apresentam uma resposta rápida ao cometimento do delito, o que deveria se dar o quanto antes, porquanto só o fato de deixar no réu, a incerteza e obscuridade que uma persecução criminal causa, isso já seria estender sua pena de modo prejudicial, conforme afirmou Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria18. A prática jurídica demonstra que uma prévia apuração dos fatos, anteriormente a apresentação da ação penal, revelou ser necessária. Sendo assim, quem acusa necessita obter provas por meio de uma apuração preliminar à ação penal, condenatória, que apresente, suficientemente, a materialidade do fato ilícito e típico, bem como indícios de autoria, coautoria ou participação, quando possível, assim como indícios sobre a provável culpabilidade do indiciado19. Segundo os ensinamentos de Aury Lopes Jr., “o processo penal sem investigação preliminar é um processo irracional, uma figura inconcebível segundo a razão e os postulados da instrumentalidade garantista”20. A razão de ser é devida o processo penal ser composto por um conjunto de penas processuais que direcionam para que o agente seja acusado ou não. Nesse sentido o primeiro ato é investigar e reunir elementos que permitam o processo ou não21. Assim, é imperioso que haja um mínimo suporte probatório, que anteceda a ação penal de natureza condenatória. Essa etapa preliminar representa uma garantia, isso porque dificulta que o indivíduo seja acusado de ter praticado algum ilícito, sem que esteja apresentado indícios mínimos. Dessa forma, a fase prévia de investigação consiste na forma como o direito processual penal desenvolveu para que haja uma acusação justa e que não faça imputações apressadas22. A investigação preliminar é definida por Aury Lopes Jr. Como o conjunto de atividades realizadas em sequência por órgãos do Estado, com início numa notitia criminis, que tem caráter prévio e natureza preparatória em face da fase judicial, cuja finalidade é a apuração da autoria e materialidade, de modo a fundamentar o processo 18BECCARIA, Cesar Bonesana, Marchesi di, 1738-1793. Dos Delitos e das Penas; tradução J. Cretella Jr. E Agnes Cretella I. 2. ed. Ver., 2. Tir – São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. 19SAAD, Marta. O direito de defesa no inquérito policial. São Paulo: RT, 2004. 20LOPES JR., Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p.1. 21Ibid. 22FERNANDES, Antonio Scarance. Teoria Geral do Procedimento e O Procedimento no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. 18 ou o não-processo23. Há duas funções que compõe a persecução preliminar, a preservadora e a preparatória. A preservadora consiste na proteção contra acusações infundadas, precipitadas ou caluniosas, o que evita prejuízos de acusações formais incabíveis diante o juízo criminal; a preparatória propõe-se a acautelar prováveis meios de prova, que, eventualmente, podem ser prejudicados com o tempo24. Ademais, também está presente na função preservadora, o que se entende por juízo de acusação, ou seja, um julgamento prévio dos elementos acusatórios, a fim de proteger a inocência dos indivíduos contra ações imprudentes, assim como garantir que a administração pública produza gastosinúteis e incabíveis de tempo e de trabalho. No mesmo sentido, Francesco Carnelutti descreve que a investigação preliminar não visa comprovar o ilícito, mas sim, afastar acusações aventuradas25. Ainda há de perceber que a investigação preliminar exerce função cautelar, podendo haver diferentes contornos a depender da necessidade da tutela, assim poderá existir medidas de caráter pessoal, patrimonial ou probatória26. Há de se destacar a discussão acerca da atuação do juiz e seus limites na fase preliminar de investigação e a eventual influência que venha existir tendo em vista o contato com os autos do inquérito policial. Essa relação compromete a imparcialidade do juiz27 para realizar o julgamento. Observa-se que a primeira etapa da persecução penal, que antecede a instauração do processo, não compreende o esquema procedimental. No entanto, é inegável que os atos realizados provocam efeitos no desenvolvimento da relação jurídica processual. Nesse sentido, cabe destacar que o papel do magistrado pode se apresentar sob diferentes condutas, a depender do sistema vigorante à época, seja o acusatório, o inquisitório ou o misto. 23LOPES JR., Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. 24SAAD, Marta. O direito de defesa no inquérito policial. São Paulo: RT, 2004. 25CARNELUTTI, Francesco. Principi del Processo Penale. Napoli: Morano Editore, 1960. 26LOPES JR., Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. 27Leite, Luiz Claudio da Silva. Juiz das Garantias: uma crítica à Mentalidade Inquisitorial conduzida pela Teoria da Dissonância Cognitiva. Orientador: Walter Nunes. 2020. 155 f. TCC (graduação) – Curso de direito, Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2020. Disponível em: https://antigo.monografias.ufrn.br/jspui/handle/123456789/11264. Acesso em: 04 de janeiro de 2022. 19 Outra fase da persecução criminal, denominada de judicial, em que o processo penal tem seu início com a proposição da ação penal, isto é, o pedido de julgamento da pretensão punitiva e que dá partida à fase jurídica da persecução criminal. A denominação “processo penal” consiste na sequência cronologicamente ordenada e fundamental de atos que têm como ponto de partida a ação penal, ou seja, o pedido, direcionado ao juiz, de decidir sobre a imputação. Esse conjunto de atos corresponde à uma fração da persecução penal. O período inicial do processo representa o exercício da ação penal, por outro lado, o momento final está representado quando do momento que se tem a sentença imutável. Dessa feita, ao existir uma infração penal surge para o Estado, enquanto titular do dever-poder de punir, o compromisso de ingressar em juízo por meio do Ministério Público, a fim de apresentar sua pretensão acusatória. Uma vez instaurado o processo penal, haverá o julgamento da pretensão punitiva. Em seguida, considerando-se a pretensão punitiva válida, o processo caminhará até o fim, o qual se refletirá com a aplicação coercitiva da sanção penal. Portanto, o teor do processo penal consiste na averiguação judicial das condições determinantes ou que possam afastar a viabilidade da pretensão punitiva do Estado. De mais a mais, importante compreender que a acusação, por meio de um processo, se desenvolve com a sequência de atos, sempre com respeito às formalidade e regras que devem ser cumpridas. A instrução criminal terá início com o recebimento da acusação, pelo juiz, para que assim possam ser apresentadas as provas pelas partes, bem como para que o réu seja ouvido28. Conforme afirma Antonio Scarance Fernandes, a verificação do ilícito e sua autoria não se restringe à apenas uma fase do processo, tendo em vista que as diligências realizadas desde os primeiros atos investigatórios podem evidenciar a realização do delito e demonstrar seu autor. Ademais, afirma que a fase de instrução consiste na etapa que pretende produzir provas relevantes ao julgamento. Nesse sentido, não se pode concluir que as provas constituídas na fase preliminar não possam ser consideras na decisão final, isso porque a depender da urgência ou 28FERNANDES, Antonio Scarance. Teoria Geral do Procedimento e O Procedimento no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. 20 impossibilidade de repetição de eventuais provas é impossível que haja uma regra rígida que não admita aquelas provas que sejam produzidas fora da fase judicial. Dito isto, é importante destacar que apesar da imprescindibilidade da fase judicial, a instrução preliminar consiste em uma etapa dispensável, tendo em vista que o Estado, por meio do Ministério Público, pode exercer a pretensão punitiva, indicando fato aparentemente criminoso e seu autor, sem que para isso haja uma investigação prévia, isto é, essa possibilidade é prevista quando o órgão acusador já detém as informações necessárias à ação penal. 2.1 Os sistemas processuais e a investigação criminal É notório que o direito criminal pode tornar-se mais evidente e exposto que os demais ramos do direito, a depender da ideologia imposta ou vigente pelo poder exercido à época, contudo essa percepção é ainda mais notável no direito processual penal, de modo que é neste ramo do direito que há a concretização das limitações de garantias fundamentais, isto é, aqui há a real aplicação de prejuízos ao indivíduo. O que não ocorre no direito penal, pois este não tem materialidade fora do processo penal, tendo em vista que são as regras do processo penal que concretizam diretamente o poder penal do Estado. Nessa toada, Maier explica que é no processo penal que as ações do poder político são frequentes e destacadas, até pela finalidade da tensão existente – punir x liberdade29. A partir do modelo adotado pode haver o endurecimento que se manifesta no utilitarismo judicial, em que os atos são dotados de segredo, predomina a forma escrita, enxerga-se como medida eficaz o aumento das penas processuais, inversão da atividade probatória e, inclusive, os juízes são detentores da função investigatória. Nessa linha, Aury Lopes Jr. explica que o sistema acusatório predomina nos países que respeitam mais as liberdades individuais e que se fundamentem nos princípios democráticos. De outro modo, o sistema inquisitivo tem sua base nos países que desenvolvem seus preceitos sancionatórios por meio da repressão, caracterizados pelo totalitarismo e autoritarismo, assim, o estado tem sua hegemonia em detrimento dos direitos individuais30. 29MAIER, Julio B. J. Derecho procesal penal. 2. ed. Buenos Aires: Editorial Del Puerto, 2002. 30LOPES JR, Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 3. ed. – São Paulo: Saraiva, 2017. 21 Historicamente, o sistema acusatório destacou-se até meados do século XII, e em seguida o modelo inquisitório o substituiu, de forma gradativa, tendo sua atuação prevalecendo até o final do século XVIII31. A doutrina nacional, em sua maioria, descreve que o sistema brasileiro tem como sistema prevalecente o misto, o qual se divide em inquisitivo na fase pré-processual e acusatório no processo judicial. De acordo com os ensinamentos de Aury Lopes Jr. o sistema misto não passa de um reducionismo ilusório, tendo em vista que não existe o sistema puro, todos são mistos32. Nesse sentido, o objetivo é identificar o princípio norteador de cada sistema, e a partir de então classificar como acusatório ou inquisitivo, pois como explica o autor, a classificação é a partir do núcleo definidor. O princípio acusatório tem estreita relação nos pensamentos filosófico-liberal produzidos por Cesare Beccaria33 na obra Dos delitos e das penas, o qual marca oinício da ciência criminal. As mudanças produzidas se deram pós período do Estado absoluto, em que a persecução penal fora reconhecida como mero ritual, isto é, seu desenvolvimento não reconhecia garantias, nem mesmo limites ou regras à busca da dita verdade. Nesse sentido, conforme explica Silva Junior34, as circunstâncias da condução da persecução penal permitiam arbitrariedades, e a defesa do acusado era deficiente, se dava por meio de julgamentos secretos, com o uso de tortura e penas cruéis e infamantes. Os ensinamentos de Beccaria almejava a processualização do direito punitivo, de modo que houvesse uma limitação à persecução criminal. Essa limitação proposta foi responsável por mudanças importantes na seara criminal, o que foi determinante na inserção da declaração de direitos fundamentais na Constituição Americana, de 1787, bem como ainda teve forte influência na declaração de direitos da Revolução Francesa, em 1789. Ainda, o sistema acusatório consiste no sistema processual penal baseado no princípio dialético, tendo em vista que a verdade é melhor apurada quando houver maior embate entre as partes. Ademais, destaca-se que o processo acusatório tem 31LOPES JR, Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 3. ed. – São Paulo: Saraiva, 2017. 32Ibid. 33BECCARIA. Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. 34SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Curso de direito processual penal: teoria (constitucional) do processo penal. 3. Edição. Revista, ampliada e atualizada. Natal: OWL, 2021. 22 como principais características a separação entre as funções de quem acusa, defende e julga, bem como a observância do princípio do contraditório na constituição da prova. As principais características que qualificam o sistema acusatório são, seguindo rol exposto por Lopes Jr.35: a) clara distinção entre as atividades de acusar e julgar; b) a iniciativa probatória deve ser das partes (decorrência lógica da distinção entre as atividades); c) mantém-se o juiz como um terceiro imparcial, alheio a labor de investigação e passivo no que se refere à coleta da prova, tanto de imputação como de descargo; d) tratamento igualitário das partes (igualdade de oportunidades no processo); e) procedimento é em regra oral (ou predominantemente); f) plena publicidade de todo o procedimento (ou de sua maior parte); g) contraditório e possibilidade de resistência (defesa); h) ausência de uma tarifa probatória, sustentando-se a sentença pelo livre convencimento motivado do órgão jurisdicional; i) instituição, atendendo a critérios de segurança jurídica (e social) da coisa julgada; j) possibilidade de impugnar as decisões e o duplo grau de jurisdição. A separação das funções no processo penal é estrutura basilar para o desenvolvimento do sistema acusatório, nesse sentido é a jurisprudência do STF36, em que veda a extrapolação das funções das partes processuais. Conforme Luigi Ferrajoli37, o sistema acusatório considera o juiz como sujeito equidistante das partes, assim o processo representa uma disputa entre acusação e defesa, sendo daquela o ônus da prova. Além disso, o procedimento é desenvolvido por meio do debate contraditório, oral e público. E, por fim, o magistrado decide segundo sua livre convicção. Essa divisão de funções é a característica fundamental do sistema processual acusatório. Logo, de um lado, tem-se o acusador que identifica e através do poder postulatório realiza as demandas cabíveis. Por outro lado, a defesa resiste à imputação. E distante das partes, o juiz detém o poder decisório. 35LOPES JR, Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 3. ed. – São Paulo: Saraiva, 2017, p. 162. 36Veja-se o RHC de nº 144615 de relatoria do Exmo. Min Edson Fachin, que consigna em ementa, com maestria: Penal e Processual Penal. Imparcialidade judicial e sistema acusatório. Postura ativa e abusiva do julgador no momento de interrogatório de réus colaboradores. Atuação em reforço da tese acusatória, e não limitada ao controle de homologação do acordo. As circunstâncias particulares do presente caso demonstram que o juiz se investiu na função persecutória ainda na fase pré-processual, violando o sistema acusatório. Imparcialidade judicial como base fundamental do processo. Sistema acusatório e separação das funções de investigar, acusar e julgar. Pressuposto para imparcialidade e contraditório efetivos. Precedente: ADI 4.414, Plenário, Rel. Min. Luiz Fux, j. 31.5.2012. Agravo regimental parcialmente provido para declarar a nulidade da sentença condenatória proferida por violação à imparcialidade do julgador. 37FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Teoría del garantismo penal. 4. ed. Trad. Perfecto Andrés Ibáñez, Alfonso Ruiz Miguel, Juan Carlos Bayón Mohino, Juan Terradillos Basoco e Rocío Cantarero Bandrés. Madrid: Editorial Trotta, 2000. 23 O sistema inquisitivo teve seus primeiros passos na Roma Imperial, sendo permitido que o juiz iniciasse o processo de ofício. Ainda, na Idade Média, por meio da igreja, o sistema se disseminou por toda Europa Continental. Desde já o processo inquisitivo serviu como instrumento de dominação a serviço dos soberanos38. A inquisição corresponde a um sistema processual que se desenvolve sob a ideia do poder central absoluto, ou seja, o poder está centralizado de forma que todos atributos correlatos à soberania estão concentrados nas mãos de uma única pessoa. Ao considerar a relevância da ordem social frente à individualidade da pessoa humana o procedimento penal reduz o acusado a um instrumento de investigação. Nesse sentido, prevalece a ideia de que qualquer meio pode ser utilizado para que se possa reprimir a perturbação social e quem a pratica, mesmo que se use de meios cruéis. É daí que se deriva as máximas do sistema inquisitivo: persecução penal pública, que tem objetivo final de descobrir a verdade, o que se dá com a utilização dos meios mais eficazes para se alcançar este fim39. Entende-se, assim, que há reunião de poderes processuais penais nas mãos de apenas um órgão. Desta feita, investigar, acusar e julgar são ações exercidas por um indivíduo. O modelo inquisitivo se destaca pela razão do acusado ser um objeto da persecução, e não um sujeito detentor de direitos fundamentais. Ainda, o procedimento se desenvolve por meio de uma investigação secreta, escrita, o que exclui a oralidade. Tem-se a confissão do acusado como prova cabal à acusação, isto é o que se chama de rainha das provas. De mais a mais, o contraditório é inexistente e a figura da defesa consiste em mera formalidade40. Segundo Antonio Scarance Fernandes, no sistema inquisitorial a competência para a investigação recaía sobre o juiz, que agia após prévia investigação da polícia. Quando finalizada a investigação pelo juiz, iniciava-se o processo, que tinha pouco espaço destinado à atividade da defesa. O fim do processo era induzir o réu a confessar e confirmar com os elementos de provas produzidos durante a investigação preliminar, sendo, inclusive, permitido o uso da tortura para que o réu confessasse. 38TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. 39MAIER, Julio B. J. Derecho procesal penal. 2. ed. Buenos Aires: Editorial Del Puerto, 2002. 40NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 14. ed. São Paulo: Editora Forense, 2017. 24 Essa permissividade existe em razão do ideal da busca da verdade material, presente no sistema inquisitivo. Conforme Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, o modelo inquisitório se destaca pela gestão da prova, que tem o magistrado como ponto chave. O autor aponta como vantagem o fato do juiz tero conhecimento da verdade dos fatos, isto é, aqueles que são penalmente relevantes, inclusive os que não estão relatados na acusação41. Nessa toada, Leite42 afirma que a manutenção de um sistema inquisitivo não é compatível com o Estado Democrático de Direito, em razão da inexistência de limites ao poder do órgão acusador. Afirma, ainda, que no sistema inquisitivo há uma constante inobservação dos limites que devem ser impostos ao poder punitivo. A atividade investigativa também é competência do juiz, o qual pode ter iniciativa na produção da prova, tendo como fundamento o alcance da pretensão punitiva. Nas palavras de Lopes Jr.43, o processo inquisitório estaria dividido em duas fases, que seriam a inquisição geral e a especial. Sendo aquela destinada à comprovação da autoria e materialidade, o que representava a investigação preliminar e preparatória para o seguimento da outra fase, a inquisição especial, que era responsável pelo processo condenatório e a aplicação da sanção. O sistema inquisitivo concentra a atividade de investigação preparatória e de instrução processual na figura do juiz. Contudo, a distinção entre essas fases não era tarefa fácil, tendo em vista que todos elementos produzidos eram tratados como provas, desde que hábeis para formar o convencimento do magistrado. Nesse período o actus trium personarum não se materializa, como afirma Jacinto Coutinho44, “ao 41COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal. Empório do direito, 2015. Disponível: https://emporiododireito.com.br/leitura/o-papel-do-novo-juiz-no-processo- penal#:~:text=Ademais%2C%20compondo%20a%20rela%C3%A7%C3%A3o%20processual,%C3%A 9%20de%20%C3%B3rg%C3%A3o%20super%20partes. Acesso em: 03 de maio de 2022. 42Leite, Luiz Claudio da Silva. Juiz das Garantias: uma crítica à Mentalidade Inquisitorial conduzida pela Teoria da Dissonância Cognitiva. Orientador: Walter Nunes. 2020. 155 f. TCC (graduação) – Curso de direito, Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2020. Disponível em: https://antigo.monografias.ufrn.br/jspui/handle/123456789/11264. Acesso em: 04 de janeiro de 2022. 43LOPES JR, Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. 44COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal. Empório do direito, 2015. Disponível: https://emporiododireito.com.br/leitura/o-papel-do-novo-juiz-no-processo- penal#:~:text=Ademais%2C%20compondo%20a%20rela%C3%A7%C3%A3o%20processual,%C3%A 9%20de%20%C3%B3rg%C3%A3o%20super%20partes. Acesso em: 03 de maio de 2022. 25 inquisidor cabe o mister de acusar e julgar, transformando-se o imputado em mero objeto de verificação, razão pela qual a noção de parte não tem nenhum sentido”. Ademais, a estrutura do processo inquisitório foi desenvolvida sob o fundamento da busca da “verdade real ou absoluta”. Lopes Jr.45 destaca, ainda, que a busca da verdade real permite que a prisão cautelar seja tratada como regra, tendo em vista que o inquisidor necessita do corpo do herege. Com ele sob seu domínio, a fim de buscar a verdade real, pode-se aplicar a tortura de modo a conduzir o suspeito à confissão. Com o alcance da confissão do acusado não era necessário mais nenhuma ação, tendo em vista que a confissão era considerada a rainha das provas (sistema de prova tarifada). Nesse ínterim faz mister relembrar os ensinamentos de Beccaria46, o qual explica a ineficiência do método da tortura, como fim de obtenção da confissão, pois entre dois homens, igualmente inocentes ou igualmente culpados, o mais robusto e corajoso será absorvido; o mais débil, contudo, será condenado. No sistema inquisitório, os indivíduos são tidos como objetos do poder soberano. Não obstante, não restam dúvidas que o modelo de estado de Direito influência fortemente de maneira direta e imediata o processo criminal. Dito isso, pode-se deduzir que o início do Estado de Direito é íntimo da organização do procedimento penal47. De forma absoluta, o sistema inquisitivo foi desacreditado, mormente por recair no erro psicológico de acreditar que um mesmo indivíduo possa ser capaz de exercer funções tão incompatíveis como investigar, acusar, defender e julgar. O modelo misto teve sua primeira aparição na França, pós reforma do sistema inquisitivo em razão da Revolução Francesa. A origem remete ao Code d’instruction criminelle de 1808 e se propagou rapidamente para os mais diversos códigos penais. Com o fracasso do sistema inquisitivo e a gradual mudança para o sistema acusatório, o poder estatal manteve a titularidade absoluta do poder punitivo, o que ao mesmo tempo não podia entregar ao particular a atividade de punir e função de conduzir a persecução. Sendo assim, fez-se necessário entregar a atividade de 45LOPES JR, Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 170. 46 BECCARIA. Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. 47LOPES JR, Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. 26 acusar e julgar a titulares distintos. Nesse momento nasce o Ministério Público, com fim de garantir a imparcialidade do juiz. A doutrina processual penal classifica como sistema misto quando há a divisão do processo penal em duas fases, que são a pré-processual e a processual propriamente dita, o que em regra ocorre com a forma inquisitória na primeira fase e acusatória na fase do processo. Contudo, defende-se que o critério hábil para definir o sistema é a separação das funções de acusar e julgar, que existe apenas no modelo acusatório. Noutra inteligência, Sendra48 afirma que o fato do processo estar dividido em duas fases (pré- processual e processual) e que em cada fase haja atuação de um juiz distinto é que seria suficiente para defender que o processo está sob o regime do modelo acusatório. Esse entendimento é visto com ressalvas por Lopes Jr.49, que identifica nessa classificação do sistema misto não há a identificação do núcleo fundante do sistema. Na sua construção didática, a mera separação da atividade de acusar e julgar não é núcleo fundante do sistema, logo, é insuficiente para sua qualificação. Faz-se necessário que a gestão das provas esteja afastada da atividade jurisdicional, isto é, cabem às partes a iniciativa probatória. Ainda, o autor retrata como um reducionismo a ideia que a mera separação da função de acusar e julgar seja necessário para se ter o processo acusatório. Faz-se necessário que a separação seja mantida, para isso a iniciativa probatória deve sempre estar com as partes. Assim, será possível a imparcialidade do julgador. 2.2 Fase pré-processual e o devido processo Transcorrida a análise da investigação preliminar nos sistemas processuais desenvolvidos até então, a partir deste tópico far-se-á o estudo da investigação criminal à luz do devido processo, além de observar as garantias que estão previstas ao investigado, tendo como fonte geradora a Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) de 1988. 48SENDRA, Vicente Gimeno; CATENA, Victor Moreno; DOMINGUEZ, Valentín Cortes. Derecho procesal penal. Madrid: Colex, 1996. 49LOPES JR, Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. 27 A CRFB produziu a expansão de dispositivos garantidores, bem como desenvolveu o que se conhece por processo penal constitucional50. Essas garantias que inicialmente foram reservadas ao processo jurisdicional, mas que passaram a ser observadas na investigação criminal. Nesse ínterim, no processo penal garantista deve observar o contraditório tambémna fase investigatória. O que não representa, contudo, que a permissibilidade de aplicação de medidas cautelares com o contraditório diferido nesta fase da persecução penal represente uma violação à garantia do contraditório. O que ocorre é que a Constituição não determina que o contraditório seja prévio ou de forma concomitante ao ato. As partes que compõe o processo são dotadas de funções responsáveis por atos privativos. Logo, conforme explica Greco Filho51, o ponto nevrálgico consiste na oportunização de contrapor atos por meio de manifestações dotadas de eficiência. Ademais, a segurança do contraditório na sua forma garantista-defensiva deve observar o direito do acusado em participar, manter uma contraposição em face à acusação, bem como estar informado de todos os atos desenvolvidos em seu desfavor no trâmite procedimental, assim desenvolve Lopes Jr52. O entendimento de Scarance Fernandes é no sentido de que a previsão de normas garantidoras de direitos fundamentais frente ao poder estatal decorre da relação indivíduo-Estado53. Normas de garantia individual constam nas Constituições brasileiras desde o período imperial, no entanto, a atual apresenta extenso rol que prevê expressamente direitos de ordem individual e coletivos. É com a carta de 1988 que os direitos humanos ganham destaque, o que se permite exalta-la como documento mais amplo e discriminado acerca dos direitos humanos no Brasil. Contudo, a constituição não apresenta um rol exaustivo de garantias. Assim, os que estão previstos expressamente não excluem outros que possam derivar de princípios adotados, ou que decorra tratados internacionais. 50O processo penal constitucional consiste no desenvolvimento de uma persecução penal que respeite as normas do garantismo, de modo que se preserve tudo que emana da Constituição Republicana. 51GRECO FILHO, Vicente. Tutela constitucional das liberdades. São Paulo: Saraiva, 1989. 52LOPES JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade garantista. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. 53FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. 28 A CRFB de 1988 reconheceu como sistema processual o acusatório, o que o fez de forma implícita, mas que através da Lei 13.964, de 2019, houve mudança para tornar expresso no Código de Processo Penal a adoção no ordenamento brasileiro do sistema acusatório54. A evolução do processo penal brasileiro, considerando este numa visão processualística penal, remete a um contexto de direitos e garantias fundamentais, o que representa um filtro aos excessos do Estado em desfavor dos indivíduos. Tem-se, então, o que se entende por direito processual constitucional, com enfoque que viabiliza a análise do processo e suas relações com a Constituição. Assim, é firmado que o processo penal constitucional é responsável por realizar a interpretação processual penal conforme à Constituição55. Essa evolução em matéria de direito permitiu que as normas constitucionais do processo superassem a ideia de que os princípios possuíssem caráter meramente programático, assim, passou a assumir uma natureza de norma jurídica e, ainda, de orientação para edição de normas que direcionam o processo penal. O descumprimento desses preceitos resulta na ocorrência de inconstitucionalidade material. Sendo assim, o Estado Democrático de Direito não permite outro direcionamento que não seja a análise do processo penal à luz da Constituição da República Federativa do Brasil, e que seja conforme os princípios constitucionais e sob a perspectiva dos direitos fundamentais, isso representa direitos públicos subjetivos que limitam os excessos do Estado em face da liberdade individual56. Em decorrência dessa mudança, o indivíduo submetido ao inquérito policial deve ser identificado como titular de direitos e o sujeito do procedimento, não apenas sujeito ao procedimento. Portanto, o indivíduo deve sempre figurar na posição de sujeito e titular de direitos, independentemente da fase em que a persecução penal se encontre. Logo, o reconhecimento dos princípios constitucionais na persecução penal, como um todo, é meio hábil a garantir que o sistema processual seja condizente com 54Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação. 55FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. 56 DIMOULIS, Dimitri; MARTIS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2014. 29 os ideais acusatórios e, ainda, que os resquícios inquisitórios sejam suprimidos. Não obstante o reconhecimento do processo penal constitucional, tem-se o impasse encontrado no processo penal, que consiste no denominador entre os valores de segurança e liberdade. Portanto, a aplicação das garantias constitucionais na fase preliminar, no que for cabível com a natureza e finalidade, representa um avanço no desenvolvimento de um processo penal que tenha viés garantidor, isto é, uma forma básica de proteção do indivíduo frente ao arbítrio do Estado. A construção do devido processo legal remete à constituição norte-americana do due process of law, cuja origem tem como fonte as garantias suplantadas na Magna Carta, especialmente aquela prevista no artigo 3957. Conforme lições de José Joaquim Gomes Canotilho, o due process of law consiste: Processo devido em direito significa a obrigatoriedade da observância de um tipo de processo legalmente previsto antes de alguém ser privado da vida, da liberdade e da propriedade. Nestes termos, o processo devido é o processo previsto na lei para a aplicação de penas privativas da vida, da liberdade e da propriedade. Dito ainda por outras palavras: ‘due process’ equivale ao processo justo definido por lei para se dizer o direito no momento jurisdicional de aplicação de sanções criminais particularmente graves58. Ademais, essa interpretação do devido processo permitiu ir além, resultando na ideia de que também deve ser respeitado o devido processo legal na criação das normas jurídicas, sobretudo das normas privativas de liberdade. A Constituição de 1988 que trouxe, expressamente, a previsão do devido processo legal, em seu artigo 5º, LIV59. Ainda, seguindo a ideia da garantia ao devido processo, faz-se necessário observar que no cenário de garantias que regulamentam as relações entre o Estado e o indivíduo, especialmente no âmbito jurisdicional penal, há conveniência que exista o devido processo penal60. No campo do processo penal, no que tange ao instrumento de persecução penal, vê-se a necessidade da limitação da atividade estatal. Essa narrativa faz-se 57No freemen shall be taken or imprisoned or disseised, or outlawded, or exiled, or in any way destroyed, nor will we go upon him nor will we send upon him, except by the legal judgment of his peers or by the law of the land. 58CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2000, p. 481. 59LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; 60GOMES, Luiz Flávio; PIOVESAN, Flávia (Coord). O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e o direito brasileiro. São Paulo: RT, 2000. 30 necessária diante da dialética que está presente no campo jurisdicional penal, a segurança e o direito à liberdade. Assim, os direitos de personalidade e corolários se tornam fonte de um sistema de liberdades públicas. O processo deve proporcionar ao réu a verdadeira defesa de seus direitos. A defesa deve ser efetivamente plena, bem como o processo deveser na sua forma devida e com respeito às garantias legais que a caracterizam. O julgamento precisa ser realizado com todas garantias processuais: contraditório, ampla defesa, presença do juiz e promotor naturais, presunção de inocência, etc. O direito de defesa representa uma máxima que deve ser obedecida quando se há um conflito de interesses. Esse direito está presente, inclusive, naqueles conflitos não jurisdicionais, porque não há como se decidir uma contenda sem ter conhecimento sobre as demandas das partes que integram a ocasião. Essa máxima, que tem previsão expressa na CRFB, em seu artigo 5º, LV61, assegura às partes litigantes no processo o direito ao contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos legais. A garantia da ampla defesa consiste numa exigência que concretiza o devido processo legal. E sua existência na constituição atual não representa uma inovação, tendo em vista que as constituições anteriores já previam tal garantia. Prevista já na Constituição imperial até a atual: 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, e, com a Emenda de 1969 no art. 153, § 15, pôde-se observar a similitude com a nota de culpa, como ocorreu em 1824, 1891, 1937 e 1946, ou ligando-se à instrução criminal, como em 1937 e 1946. Há de se observar que a relação com a nota de culpa ou a instrução criminal transmitia a concepção que sua aplicação era apenas no âmbito do processo penal, contudo a redação da Constituição de 1988 ampliou, expressamente, a qualquer processo judicial ou administrativo, bem como a quem esteja sendo acusado em geral. A garantia da ampla defesa representa a oportunidade de o réu contraditar a acusação, com base em atos processuais previstos legalmente, de modo a possibilitar a eficiência da defesa, isto é, dá-se por meio de soluções técnicas no âmbito do processo que proporcionam maior efetividade ao direito de defesa. 61LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; 31 Sendo assim, a ampla defesa se desenvolve por meio: do claro conhecimento da imputação; da apresentação das alegações frente à acusação; da supervisão da produção da prova e a oportunidade de constituir a contraprova; da realização de defesa técnica por advogado; e oportunidade de acionar o direito ao duplo grau de jurisdição.62 Ademais, a ampla defesa tem como corolários as demais garantias mínimas: direito à informação pessoal do inteiro conteúdo da acusação; autodefesa; constituição de advogado; ao prazo razoável para elaboração da defesa e todos meios inerentes; vedação ao cerceamento da defesa; e por fim, a não autoincriminação63. O direito de defesa, na acertada explicação de Lopes Jr. e Gloeckner64, consiste em um direito-réplica, que surge com a agressão que representa para o sujeito passivo o início de uma imputação ou que será objeto de diligências policiais. Merece observar o grande erro disseminado pela doutrina brasileira que advoga pela inaplicabilidade do art. 5º, LV, da CRFB ao inquérito policial, tendo como argumento que nessa fase não há a figura do acusado, pois não foi oferecida a denúncia ou queixa. O que não merece prosperar, tendo em vista que a existência de uma notícia-crime que impute um fato delitivo ao indivíduo faz surgir no plano processual uma necessidade de resistência. Ainda, no que tange ao estudo mais aprofundado do direito à ampla defesa há de se observar que esse direito tem íntima relação com o binômio autodefesa–defesa técnica. Assim, o adequado procedimento requer que o direito à defesa técnica seja efetivo durante todo o processo, assim como o direito de autodefesa. Ambos coexistem com suas diferenças e de modo a se complementarem. A autodefesa tem previsão no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos65, bem como na Convenção Americana de Direitos Humanos66. Essa garantia é 62GRECO FILHO, Vicente. Tutela Constitucional das Liberdades. São Paulo: Saraiva, 1989. 63GOMES, Luiz Flávio; PIOVESAN, Flávia (Coord). O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e o direito brasileiro. São Paulo: RT, 2000. 64LOPES JR. A.; GLOECKNER, R. J. Investigação preliminar no processo penal. 6. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: saraiva, 2014. E-book Kindle. 65Artigo 14.3. “Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualmente, a, pelo menos, as seguintes garantias: (...) d) De estar presente no julgamento e de defender-se pessoalmente ou por intermédio de defensor de sua escolha; de ser informado, caso não tenha defensor, do direito que lhe assiste de tê-lo e, sempre que o interesse da justiça assim exija, de ter um defensor designado ex- offício gratuitamente, se não tiver meios para remunerá-lo (...)”. 66Artigo 8.2.d. “(...) Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: d) direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor; (...)”. 32 composta por direitos mínimos, como podem ser citados: o direito à audiência, inclusive no interrogatório; o direito de presença durante os ritos processuais; o direito de participação em audiência; o direito de comunicar-se em sigilo com o advogado; assim como, o direito de postular pessoalmente67. Observa-se, ainda, que a autodefesa se desenvolve na sua forma ativa, quando o indivíduo apresenta sua versão dos fatos, ou passiva, por meio da não autoincriminação. A não autoincriminação se apresenta de duas formas, por meio do direito de não fazer alegações contra si, e o direito de não constituir confissão68. Tanto o Pacto internacional dos Direitos Civis e Políticos69, bem como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos70 consagram esse direito. No mesmo sentido, a CRFB, em seu artigo 5º, LXIII71, assegura ao preso, e qualquer acusado de forma geral, o direito ao silêncio. Conforme leciona Aury Lopes Jr., o direito ao silencio expressa uma garantia mais ampla, presente no princípio nemo tenetur se detegere, tendo em vista que o indivíduo não deve ter sobre si prejuízos decorrentes da não colaboração com o desenvolvimento da atividade probatória da acusação, ou ainda, por optar pelo exercício do direito ao silêncio72. Ainda ensina o autor, que a opção por exercer o direito ao silêncio não pode se transformar numa presunção de culpabilidade, ou acarretar prejuízos jurídicos ao indivíduo73. Acerca da garantia da defesa técnica há de se observar sua previsão nos ordenamentos legais internacionais, tais como a Declaração Universal dos Direitos 67GOMES, Luiz Flávio; PIOVESAN, Flávia (Coord). O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e o direito brasileiro. São Paulo: RT, 2000. 68Ibid. 69ARTIGO 14. 3. Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualdade, a, pelo menos, as seguintes garantias: g) de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada. 70Artigo 8. 2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: g) direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar- se culpada (...). 71LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado; 72LOPES JR, Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. 73 O autor explica ainda, que apesar de não acarretar presunção de culpabilidade em decorrência do estado de silêncio, mas o acusado perde sua chance de se defender,logo assume a chance de ter contra si uma sentença desfavorável. 33 Humanos74, Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos75 e Convenção Americana sobre Direitos Humanos76. No mesmo sentido há previsão no ordenamento jurídico pátrio. A CFRB assegura o direito de defesa durante toda persecução penal77, ainda mesmo que o indivíduo não obtenha recursos financeiros para constituir defensor, logo fará jus à defesa gratuita78. No âmbito infraconstitucional há previsão no mesmo sentido79. Apesar de parecer óbvio, mas essa garantia visa promover o equilíbrio funcional entres as partes acusação e defesa, que em regra não detém conhecimento necessário a confrontar a acusação estatal, isto é, de forma a ser feita em condições técnicas paritárias com o órgão acusador80. O binômio defesa técnica e autodefesa apresenta substancial diferença, tendo em vista o caráter indisponível daquele direito, que além de ostentar o status de garantia do sujeito passivo há um interesse coletivo na efetiva apuração do fato81. O Código de Processo Penal prevê, em seu artigo 261, a necessidade da constituição de defensor: “Nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor”. Por outro lado, a autodefesa que pode se manifestar de diferentes formas, seja por meio do direito de audiência, direito de presença, além do direito a postular 74Artigo XI. 1. Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa. 75Artigo 14.3. “Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualmente, a, pelo menos, as seguintes garantias: (...) d) De estar presente no julgamento e de defender-se pessoalmente ou por intermédio de defensor de sua escolha; de ser informado, caso não tenha defensor, do direito que lhe assiste de tê-lo e, sempre que o interesse da justiça assim exija, de ter um defensor designado ex- offício gratuitamente, se não tiver meios para remunerá-lo (...)”. 76Artigo 8.2.d. “(...) Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: d) direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor; (...)” Artigo 8.2.e. direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio, nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei; 77Artigo 5º, LXIII: “o preso será informado de seus direitos (...) sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”. 78Artigo 5º, LXXIV: “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”. 79CPP, artigo 263: “Se o acusado não o tiver, ser-lhe-á nomeado defensor pelo juiz, ressalvado o seu direito de, a todo tempo, nomear outro de sua confiança, ou a si mesmo defender-se, caso tenha habilitação”. 80LOPES JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade garantista. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. 81Ibid. 34 pessoalmente, consiste numa garantia que pode ser renunciável, não sendo imposta ao réu. A ampla defesa, e tudo a ela inerente, representa a garantia mais importante para o andamento e a formação do processo penal. Em conformidade com o que já foi exposto, o exercício do direito de defesa consiste na garantia que abrange os acusados em geral, ainda que em processos administrativos. A CFRB optou pela nomenclatura acusados, contudo não há óbice a extensão dessa garantia à fase de investigação preliminar, apenas por não estar mencionado indiciados82. Isso pois a opção legislativa não fora por apenas “acusados”, e sim “acusados em geral”, o que abrange o indiciamento, que consiste na imputação em sentido amplo83. Consoante Marta Saad, a denominação “acusados em geral” compreende diversos níveis de incriminação, e o que determina sua existência é a ocorrência da acusação, a figura do acusado e a atribuição de prática de fato ilícito a uma pessoa, ainda que por meio informal84. Ademais, há de compreender a expressão “processo administrativo” como equiparado a “procedimento administrativo”, que abarca o inquérito policial, o qual representa o meio por onde se desenvolve a investigação preliminar, conforme modelo adotado no Brasil. De mais a mais, o direito de defesa precisa ser analisado à luz do novo paradigma constitucional, de valorização dos direitos fundamentais e difusão da força normativa constitucional85. A Constituição de 1988 trouxe a ideia da supremacia da dignidade da pessoa humana, em sintonia com ordenamentos internacionais que adotam como principal pilar esse direito fundamental. Nesse sentido, o modelo garantista de processo penal ascende e se desenvolve para conter os abusos e arbitrariedades presentes no modelo inquisitório. O comentário de Aury Lopes Jr. é lúcido ao apontar que a postura do 82LOPES JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade garantista. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. 83Ibid. 84SAAD, Marta. O direito de defesa no inquérito policial. São Paulo: RT, 2004. 85BATALHA, Sergio Fedato. Principiologia Para um Devido Processo Penal Constitucional: A Ampla defesa e o contraditório. Disponível em: www.conteudojuridico.com.br. Consulta realizada em 05.02.2022. 35 constituinte no artigo 5º, LV86, tem viés totalmente garantista, e o que há é uma imprecisa escolha terminológica (falar em processo administrativo ao invés de procedimento), logo, essa construção não pode servir como obstáculo para aplicação no inquérito policial87. Outrossim, faz-se necessário interpretar o Código de Processo Penal lado a lado com a máxima eficácia do artigo 5º, LV, da CFRB, com isso, torna-se inevitável a incidência do direito de defesa na investigação preliminar88. Não obstante o inquérito policial ser um processo administrativo, faz-se necessário que os direitos fundamentais do indiciado sejam observados, sobretudo os que são inerentes ao direito de defesa. Os direitos fundamentais garantidos na CRFB constituem um sistema de proteção que visa, em sua maioria, assegurar violações em face de ilegalidades no que tange à matéria processual penal. Portanto, observa-se que o devido processo penal possui diversas garantias reunidas que buscam produzir um processo que se afaste de ilegalidades e injustiças. 3 A INVESTIGAÇÃO CRIMINAL À LUZ DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Tem-se a investigação criminal como conjunto de atividades produzidas de forma sistemática pelo Estado, através dos seus órgãos. O ponto de partida é com o conhecimento da notitia criminis, o qual é dotado de caráter prévio e de natureza preparatória à fase de conhecimento. Sua pretensão reside na averiguação da autoria e análise das circunstâncias de um fato aparentemente ilícito, de modo a justificar ou não o processo. A investigação criminal tem como fundamento três pilares básicos: o primeiro representa a necessidade de esclarecimento de um fato que está oculto. O segundo fundamento consiste numa função simbólica, em que a instauração da investigação pode representar uma ruptura na ação delituosa e impedir a consumação da ação, ou até mesmo amenizar os efeitos decorrentes. Assim, há uma promoção da paz social, inclusive a sensação de paz, que também consiste num aspecto importante da função 86LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios
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