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LimitesDemocraciaLiberal-Barbosa-2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE 
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO (PPGD) 
CURSO DE MESTRADO EM DIREITO 
 
 
 
 
 
OS LIMITES DA DEMOCRACIA LIBERAL: O INFLUXO DO PODER 
ECONÔMICO NO EXERCÍCIO DAS LIBERDADES 
 
 
 
 
Gustavo Henrique Freire Barbosa 
Orientador: Professor Dr. Artur Cortez Bonifácio 
 
 
 
 
 
Natal/RN 
2017 
 
 
 
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE 
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO 
 
 
 
OS LIMITES DA DEMOCRACIA LIBERAL: O INFLUXO DO PODER 
ECONÔMICO NO EXERCÍCIO DAS LIBERDADES 
 
 
 
Gustavo Henrique Freire Barbosa 
Orientador: Professor Dr. Artur Cortez Bonifácio 
 
 
 
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação 
em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do 
Norte para obtenção do título de Mestre. 
 
 
 
 
Natal - RN 
2017 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Catalogação da publicação na fonte 
UFRN/ Biblioteca Setorial do CCSA 
 
 
Barbosa, Gustavo Henrique Freire. 
Os limites da democracia liberal: o influxo do poder econômico no exercício das 
liberdades / Gustavo Henrique Freire Barbosa. - Natal, 2017. 
120f. 
Orientador: Prof. Dr. Artur Cortez Bonifácio. 
Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 
Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Programa de Pós-graduação em Direito. 
1. Democracia - Dissertação. 2. Capitalismo - Dissertação. 3. Liberdades 
constitucionais - Dissertação. 4. Materialismo - Dissertação. 5. Globalização - 
Dissertação. 6. Pós-modernidade - Dissertação. I. Bonifácio, Artur Cortez. II. 
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. 
RN/BS/CCSA CDU 321.7 
 
 
Gustavo Henrique Freire Barbosa 
 
OS LIMITES DA DEMOCRACIA LIBERAL: O INFLUXO DO PODER 
ECONÔMICO NO EXERCÍCIO DAS LIBERDADES 
 
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação 
em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do 
Norte, como requisito parcial para a obtenção do título de 
Mestre em Direito. 
Orientador: Prof. Dr. Artur Cortez Bonifácio. 
 
 
 
_________________________________________________________________________ 
Artur Cortez Bonifácio (Orientador) – UFRN 
 
__________________________________________________________________________ 
Mariana de Siqueira – UFRN 
 
_________________________________________________________________________ 
Pablo Moreno de Paiva Capistrano – IFRN 
 
 
 
 
 
Natal, RN, 20 de março de 2017 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Em memória de Pedro Lopes Barbosa. 
 
 
Agradecimentos 
 
 Ao amigo e professor Artur Cortez Bonifácio, homem de convicções sólidas e grande 
nobreza de espírito, pela orientação, suporte e liberdade com que possibilitou o 
desenvolvimento desta pesquisa. 
 A Diego, Léo, Suzana, Alyane e demais amigas e amigos do PPGD-UFRN que, juntas 
e juntos, se entrincheiraram nos debates, nas aulas, nas suas pesquisas e nas suas atividades 
profissionais em favor de um mundo mais solidário, humano e fraterno. 
 Ao meu pai, minha mãe, minha irmã e meu irmão, por, com paciência e amor, aturarem 
meus arroubos de inconformismo e irresignação 
 À CAPES, pelo apoio financeiro que possibilitou o desenvolvimento desta pesquisa. 
 A Clarinha, companheira, confidente e compartilhadora dos meus surtos e epifanias de 
última hora, pelo amor, paciência e suporte. 
 A Ilana e Daniel Valença, pelas “cachacinhas de Gramsci” que muito contribuíram para 
florear esta pesquisa. 
 A Hélio Miguel, Natália Bonavides, Natália Sena, Daniel Pessoa, Lulinha e Marcos 
Dionísio, exemplos vivos de que a ação criadora e modificadora da realidade é implacável 
quando guiada por grandes sentimentos de amor. 
 Aos companheiros e companheiras anônimos(as) e desconhecidos(as) que dedicam 
suas vidas à concretização de um projeto alternativo de sociedade. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
RESUMO 
 
Trata a pesquisa dos limites da democracia liberal em suas dimensões tradicional e 
contemporânea, desenvolvendo como a sua concepção predominantemente formal do exercício 
das liberdades, direitos e garantias constitucionais ocasiona o desprestígio dos objetivos 
programáticos nascidos com o despontar de uma ordem constitucional na qual a democracia se 
expressa em institutos que se situam muito além do sufrágio, subutilizados em razão de não 
corresponderem com os objetivos consubstanciados nas condições materiais de produção em 
que se situam as relações envolvendo o Estado enquanto sujeito promotor de direitos e condutor 
de políticas públicas. Nessa esteira, o trabalho aborda também a carência de normatividade e 
eficácia social das disposições normativas nesse sentido, abordando os paradoxais efeitos de 
uma ordem constitucional situada sob os contornos do modo de produção capitalista, bem como 
as contradições existentes entre a previsão legal de direitos e a racionalidade de uma sociedade 
imersa na dinâmica de uma cada vez maior transnacionalização da economia, identificando as 
incompatibilidades materiais da realização de direitos já institucionalizados com a narrativa dos 
valores intrínsecos à economia de mercado em sua expressão pós-moderna. 
 
Palavras-chave: Democracia. Capitalismo. Liberdades constitucionais. Materialismo histórico 
e dialético. Globalização. Pós-modernidade. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
ABSTRACT 
 
The research deals with the limits of liberal democracy in its traditional and contemporary 
dimensions, developing how the predominantly formal conception of the exercise of 
constitutional freedoms, rights and guarantees affects the programmatic objectives born from 
the emergence of a constitutional order where democracy is expressed in institutes that are far 
beyond suffrage, underutilized for not matching the objectives embodied in the material 
conditions of production in which the relations involving the State are located as a promoter of 
rights and a driver of public policies. The work also addresses the lack of normativity and social 
effectiveness of normative provisions, showing the paradoxical effects of a constitutional order 
situated under the contours of the capitalist mode of production, as well as the contradictions 
which exists between the legal prediction of rights and the rationality of a society immersed in 
the dynamics of an ever greater transnationalization of the economy, identifying the material 
incompatibilities of the realization of rights already institutionalized with the values from the 
market economy in its postmodern expression. 
 
Keywords: Democracy. Capitalism. Constitutional freedoms. Historical and dialectical 
materialism. Globalization. Post 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
SUMÁRIO 
 
 
1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 10 
2. UMA DEMOCRACIA A BORDOADAS ...................................................................... 14 
2.1. Os grilhões invisíveis .............................................................................................................. 14 
2.2. A Constituição esquecida ...................................................................................................... 20 
2.3. A democracia levada a sério .................................................................................................. 25 
2.4. Democracia constitucional e o fetiche da cidadania ............................................................. 33 
2.5. Somos de fato livres? ............................................................................................................ 41 
3. ARDIS, VILEZAS E DISSIMULAÇÕES: A SUTILEZA DA IDEOLOGIA ............ 49 
3.1. A colonização dos espíritos ...................................................................................................49 
3.2. Ideologia, liberdade e emancipação ..................................................................................... 59 
3.3. O flagelo da indiferença ........................................................................................................ 61 
3.4. A cidadania na pós-modernidade ......................................................................................... 64 
3.5. O Caminho mais fácil ............................................................................................................. 68 
3.6. Invasão cultural e falsa generosidade ................................................................................... 71 
3.7. O bálsamo do autoritarismo: a expansão do Estado penal ................................................... 77 
4. A DEMOCRACIA USURPADA E O SEQUESTRO DA SOBERANIA .................... 86 
4.1. A dimensão política do positivismo ...................................................................................... 86 
4.2. A ideologia da nobreza togada .............................................................................................. 95 
4.3. O sequestro da democracia ................................................................................................... 98 
5. CONCLUSÕES ............................................................................................................. 104 
6. REFERÊNCIAS ............................................................................................................ 107 
 
 
 
 
10 
OS LIMITES DA DEMOCRACIA LIBERAL: O INFLUXO DO PODER 
ECONÔMICO NO EXERCÍCIO DAS LIBERDADES 
 
 
 La ley es como el cuchillo, 
 no ofende a quien lo maneja (José Hernandez). 
 
1. INTRODUÇÃO 
 
 Principal combustível das revoluções liberais dos séculos XVIII e XIX, a liberdade, com 
o surgimento das mais diversas cartas constitucionais oriundas dos processos de ruptura com as 
antigas ordens monárquicas, conseguiu, segundo a tradição ocidental, atingir uma dimensão 
política que acabou por alçá-la à condição de direito intrínseco à própria condição humana. 
Enquanto sustentáculo ideológico das forças revolucionárias que derrocaram sucessivos 
governos absolutistas, a noção de liberdade se confundia - e, em muitos casos, ainda se 
confunde – com a contenção irrefreável da voracidade do Estado em submeter toda a 
comunidade política ao seu impetuoso jugo. 
 As democracias liberais, inspiradas no ideário iluminista que surgiriam e se 
consolidariam a partir desse contexto histórico, se colocam, até os dias atuais, como 
consectárias de todo o acúmulo de conquistas civilizatórias que acarretaram no reconhecimento 
institucional da liberdade como um dos principais direitos humanos. Mas de que espécie de 
liberdade estamos tratando? Quais os parâmetros definidores desta liberdade? Seriam os 
referenciais liberais e ocidentais e suas expressões contemporâneas, principalmente no âmbito 
normativo, suficientes para contemplar um sentido de liberdade fora das molduras estabelecidas 
pelas democracias ditas liberais? 
 Mesmo entre os liberais não há consenso sobre qual a melhor definição de liberdade. 
Enquanto o libertarianismo adota uma percepção segundo a qual a autonomia de vontade ganha 
ares que se aproximam de um caráter absoluto, sendo a verdadeira e mais fundamental tônica 
do exercício das liberdades, ora relacionadas em escala inversamente proporcional ao grau de 
intervenção do Estado na vida social e econômica, vertentes do liberalismo igualitário veem no 
Estado um elemento crucial para a supressão dos obstáculos que impedem que as pessoas se 
comportem verdadeiramente conforme os seus próprios desígnios. 
 
11 
 A própria tradição social-democrata se coloca no sentido de que a liberdade não pode 
ser caracterizar enquanto tal se não existirem efetivas condições materiais para ser exercida. A 
partir disso, a Constituição de 1988 prevê o paradigma de um Estado que, malgrado adote como 
princípios da ordem econômica a livre concorrência e a proteção à propriedade privada, é 
caracterizado também por um forte viés prestacional e pela existência de uma série de 
mecanismos que contemplam uma rede sócio-assistencial que impõe várias limitações às 
concepções clássicas que enxergam a autonomia de vontade, substanciada no conceito negativo 
de liberdade, como caracteres inegociáveis e, muitas vezes, alheios ao contexto político e 
econômico no qual estão inseridos. 
 Contudo, mesmo as previsões características de estados de bem-estar social e das 
tradições social-democratas têm seu sentido esvaziado quando a correlação de forças da vida 
material as coloca como obstáculos aos interesses de segmentos sociais que, lastreados pela 
concentração de poder político e econômico, conseguem, meio às contradições e disputas 
inerentes a sociedades divididas em classes sociais, fazer prevalecer seus interesses. Nestas 
situações, o confronto ideológico, inclusive no campo da linguagem, sobre os limites 
definidores da própria liberdade em si ganha especial relevo, tendo em vista, principalmente, a 
legitimação da narrativa dominante fundada na naturalização de privilégios de classe e da 
consequente desnaturação da própria liberdade, restringida a uma definição puramente formal, 
negativa e ausente de sentido substantivo. 
 Em uma economia cada vez mais globalizada, a liberdade e a formação de soberanias 
nacionais ganham novos contornos segundo os conceitos que sobrevêm desta mesma ordem. 
Perde-se a noção de liberdade enquanto possibilidade de escolhas concretas e a percepção da 
soberania nacional como expressão maior da autodeterminação política e administrativa, 
colonizando-as conforme as tradições inerentes aos valores do mercado. Assim, ao invés de se 
relacionadas a uma racionalidade radicalmente comprometida com o livre florescimento dos 
potenciais humanos bem como com a efetiva possibilidade de escolhas concretas criadas a partir 
de referenciais constitucionais, passam a se resumir à liberdade de firmar negócios jurídicos, 
contratar, empreender e consumir de acordo com o pacote ideológico colocado como sinônimo 
de felicidade e bem-aventurança. Restringem-se, assim, os significados de liberdade e soberania 
ao adequá-los aos códigos mercantis e contratuais, redesenhando os objetivos programáticos de 
acordos civilizatórios como o de 1988 os quais, por meio da previsão de direitos trabalhistas, 
previdenciários, sociais e securitários, procurou-se criar o mínimo de condições materiais para 
que a liberdade seja exercida ante a razão do modo de produção capitalista. 
 O objetivo deste trabalho consiste exatamente em analisar as contradições do exercício 
das liberdades constitucionais e do Estado Democrático de Direito segundo as fronteiras 
 
12 
materiais e ideológicas demarcadas pela narrativa prevalecente das forças do mercado, 
considerando o contexto de uma economia globalizada e da vigência de textos constitucionais 
baseados no princípio da dignidade humana e na consagração de uma série de direitos e 
garantias que não guardam correspondência prática com os objetivos primários oriundos das 
relações provenientes da economia de mercado. 
 Trata-se de uma pesquisa de fundo teórico, metodológica e epistemologicamente 
vinculada à teoria crítica, relacionada ao diagnóstico multidisciplinar do tempo presente e que 
tem como referencial autores e autoras provindas de diferentes expressões do marxismo. O 
trabalho tem como finalidade analisar teorias próprias da filosofia e ciência política com a 
validade de paradigmas e postulados do direito, objetivando, assim, lançar luzes sobre a 
incompatibilidade dos valores democráticos institucionalizados pelas chamadas democracias 
liberais com as suas próprias premissas, demonstrando de que maneira a influência do poder 
econômico termina por afetar o próprio âmago das liberdades e de demais direitos fundamentais 
constitucionalmente previstos. 
 Em sua estrutura, a pesquisa inicia com capítulo que sedebruça sobre as contradições 
ideológicas do liberalismo clássico que serviram de alicerce para as democracias ocidentais de 
modo geral. Traz, nesse sentido, situações históricas concretas a partir da coexistência de 
regimes escravocratas com cartas liberais cujos textos conferem, contraditoriamente, 
entusiástica importância à liberdade. Discorre também sobre as limitações do reconhecimento 
formal de direitos e do sufrágio enquanto característica de regimes democráticos. 
 No mesmo capítulo, analisa-se a conveniência normativa de determinadas disposições 
legais quando, em determinados contextos, voltam-se contra os interesses das próprias classes 
e forças políticas que as institucionalizaram. Considera-se, assim, o fato de muitas destas 
disposições, embora desconsideradas pelas forças hegemônicas, dizerem respeito a aspectos 
fundantes e essenciais na caracterização de estados que se pretendem democráticos. 
 As bases da legitimação ideológica da subjugação do ordenamento jurídico e da 
democracia são o objeto do capítulo subsequente, que busca demonstrar, nas atuais expressões 
do modo de produção capitalista e da produção e reprodução da vida social, o grau de 
comprometimento da sociedade com a defesa dos interesses pouco republicanos que subvertem 
a própria ideia constitucional do Estado enquanto agente ativo na construção de uma sociedade 
em consonância com os objetivos programáticos trazidos por diplomas como a Constituição 
Federal de 1988. 
 No penúltimo capítulo, enfatiza-se de forma mais categórica a incongruência dos 
objetivos do mercado em sua dimensão financeira e global, com a realização de direitos 
constitucionais, focando nos direitos de natureza política referentes ao exercício do sufrágio e 
 
13 
à própria soberania nacional, afligida em sua capacidade de autodeterminação em se guiar de 
acordo com interesses eminentemente nacionais, de ordem pública e institucional. 
 Nas conclusões, levanta-se a necessidade de repensar novos paradigmas de relações 
sociais que de fato se alinhem aos objetivos emancipatórios da era moderna, considerando, 
principalmente, os entraves e bloqueios originados da dinâmica do modo de produção 
capitalista quanto à consecução de uma ordem verdadeiramente solidária e fraterna na qual os 
laços comunitários prevaleçam diante dos influxos do poder econômico sob as quais se 
materializam interesses incongruentes com o bem-estar geral e com a realização de uma 
democracia verdadeiramente plena e agendada por interesses de ordem social e comunitária, 
essenciais para o florescimento individual de cada cidadão e cidadã. 
 O presente trabalho, por fim, procurou traçar uma abordagem crítica, reflexiva e 
interdisciplinar sobre concepções envolvendo temas elementares do direito, da filosofia e da 
ciência política, fugindo da narrativa meramente tecnicista, unidisciplinar e descritiva, carente 
de problemáticas conceituais e estruturais as quais, nas projeções do autor, não se alinham aos 
propósitos de transformação social e emancipação humana dos quais as universidades, em 
especial as públicas, deveriam ser depositárias. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
14 
2. UMA DEMOCRACIA A BORDOADAS 
 
2.1. Os grilhões invisíveis 
 Em meados de 2002, pesquisadores da Universidade de Nova York criaram um chip de 
computador capaz de transmitir sinais diretamente ao cérebro de camundongos, controlando 
seus movimentos por meio de um controle remoto. Não havia, até então, registros de avanços 
científicos no sentido de possibilitar o controle sobre a “vontade” de seres vivos via mecanismos 
externos (HARDER, 2002). A descoberta criou terreno para uma série de reflexões filosóficas, 
não necessariamente inéditas, acerca dos conceitos de autonomia e liberdade. Clássicos da 
literatura universal como 1984, de George Orwell, e Admirável Mundo Novo, de Aldous 
Huxley, além do próprio cerne da filosofia kantiana (SANDEL, 2015), já colocavam em 
discussão a questão da predeterminação de condutas por meio da interferência de forças 
externas de matiz social, política e até biológica. 
O desvelamento de mecanismos de dominação – algumas vezes sutis, outras nem tanto 
– na narrativa de regimes totalitários ou da própria dinâmica das relações intersubjetivas em 
sociedades democráticas representa uma das várias problemáticas capazes de gerar ricas 
discussões a partir desses referenciais. Herbert Marcuse (1967) já denunciava a racionalidade 
que molda e predetermina seres humanos conforme determinados valores concebidos na 
dinâmica das relações de produção próprias do capitalismo na sociedade industrial. Como bem 
observa Mascaro (2013), o Estado é produto, consectário das relações de produções em vigor, 
e não produtor desta dinâmica, assegurando, por meio da coerção, o regular funcionamento e 
reprodução desta narrativa. 
O Estado não é mais comunidade, mas o instrumento de identidade cultural-
político que assegura os meios de preservação do mercado e de seu 
funcionamento “natural”, “espontâneo”. O homem, em seus apetites, desejos, 
irracionalidades vê-se plasmado sob a forma abstrata do “homem total”, 
orgânico, racionalizador dos interesses e das aspirações gerais da burguesia. 
(ALBUQUERQUE, 2014, p. 181). 
Entretanto, o caso dos ratos é caracterizado, sobretudo, pela não sutileza, primeiro em 
razão de, obviamente, em se tratando de um animal irracional, não ser necessário adornar ou 
encobrir os instrumentos que o manipulam; segundo, pelo fato da implantação do chip ter o 
manifesto objetivo de que os ratos realizem tarefas difíceis de serem levadas à frente por robôs, 
que necessitam ser programados mesmo para as missões mais simples. Controle de pestes, 
vigilância militar, busca e resgate de máquinas e o mapeamento de áreas subterrâneas são 
algumas dessas funções. Slavoj Zizek (2014) nota que a grande discussão filosófica nesse caso 
é como o rato “vivenciou” tais momentos deliberados a partir de fora: continuou a “vivenciá-
 
15 
los” como espontâneos, permanecendo completamente inconsciente de que seus movimentos 
estavam sendo controlados, ou tinha alguma percepção de que havia algo errado? 
Ideias, convenções sociais, padrões de comportamento e valores morais predominantes 
têm como arcabouço as condições materiais específicas de sua época, a exemplo da predatória 
ideologia consumista que marca a pós-modernidade (BAUMAN, 2014), expressão maior, nos 
dizeres de Barros Filho e Dainezi (2014), das relações entre infraestrutura e superestrutura 
consubstanciadas sob a ótica do materialismo histórico sobre os tempos atuais. Como bem 
colocam Marx e Engels (2010) não é consciência que influencia a vida, aqui representada como 
o mundo e suas representações, mas a vida que influencia a consciência. As concepções 
dominantes do conceito de liberdade e demais categorias e definições comportamentais, assim, 
variam no espaço e no tempo conforme as condições históricas materiais e concretas dentro das 
quais tal liberdade e tais conceitos são exercidos. 
Na França pré-revolucionária, de onde se extrai o significado liberal-burguês de 
liberdade, esta correspondia à contenção do ímpeto do Estado absolutista em interferir na vida 
social. Para isso, uma série de direitos e garantias foram criados e institucionalizados em favor 
dos cidadãos e cidadãs, a exemplo da liberdade de expressão, liberdade de reunião, devido 
processo legal, anterioridade da lei penal e demais direitos liberais clássicos que o 
constitucionalismo ocidental costuma classificar como liberdades negativas ou direitos de 
primeira geração. Naquele momento histórico, o sentido da liberdade era substancialmente 
formal, correspondendo à noção de que, uma vez se abstendo o Estado, estaria plenamente 
contemplada. 
Hoje, tem-se que a noção de liberdade de acordo com seus referenciais clássicos é uma 
concepção que não corresponde aos tempos presentes. Ainda que, segundo Forst (2014), sua 
concepção formal, juntamente com a de igualdade, seja rechaçada inclusive por expressõesda 
doutrina liberal igualitária e pelo comunitarismo, a resistência a políticas afirmativas voltadas 
a segmentos da sociedade historicamente marginalizados, a exemplo das cotas raciais 
direcionadas à comunidade negra, ainda hoje costuma se amparar nas premissas clássicas 
(formais) tanto de liberdade como de igualdade: o Estado ao se colocar como promotor de 
políticas públicas estaria, segundo tal perspectiva, privilegiando determinadas categorias 
sociais, tratando-as, assim, de forma diversa dos demais setores da sociedade, ainda que estes 
não carreguem consigo os reflexos históricos da discriminação e da subcidadania. 
 Se a liberdade envolve a noção de autopropriedade que, por sua vez, diz respeito a 
princípio elementar da doutrina liberal, isto não impediu que regimes escravocratas fossem 
ideologicamente legitimados pelos mesmos cânones ideológicos do liberalismo. Foi 
exatamente do ideário liberal que a escravidão extraiu a legitimação necessária para que se 
 
16 
mantivesse hegemônica durante mais de três séculos no Brasil ao demonstrar que era no direito 
à propriedade que se assentavam as bases do escravismo e da desumanização dos negros e 
negras africanas (MATTOS, 2010). Marco filosófico de constituições liberais, a aplicação literal 
do axioma “todos os homens nascem livres e iguais” comprometeria sobremaneira a dinâmica 
do capitalismo escravista e os interesses da elite escravocrata, ainda, segundo os apontamentos 
de Schwarcz e Starling (2015) que um naco significativo desta elite colonial e do império se 
aproximasse dos revolucionários ideais republicanos. 
Vê-se que em razão do modo de produção capitalista não reconhecer diferenças 
extraeconômicas entre os seres humanos, a exemplo das que dizem respeito a raça e etnia, foi 
necessário tornar as pessoas menos humanas para legitimar práticas colonialistas e 
escravocratas, fundamentais à economia de mercado naquele momento histórico (WOODS, 
2013, p. 145). Se o rebaixamento dos seres humanos escravizados à condição de mera 
propriedade fez parte dessa estratégia, não surpreende o fato da escravidão ter sido tolerada por 
lideranças republicanas e liberais a exemplo de todos os principais líderes da Revolução Norte-
Americana, de George Washington a Thomas Jefferson (MATTOS, 2010). 
 É fácil observar como a narrativa das relações de produção dominantes são capazes de 
deformar até mesmo o âmago ideológico dos pressupostos fundamentais que a sustentam. Se o 
liberalismo vinha ganhando espaço e simpatia em amplos setores da sociedade ao passo que a 
autopropriedade, porém, um de seus mais inegociáveis elementos, ia de encontro aos interesses 
das elites escravistas da época, amolda-se o ideário liberal à conveniência das forças produtivas 
dominantes, equiparando negros e negras a meras propriedades integrantes do patrimônio de 
seus senhores para manter as engrenagens do sistema em regular funcionamento. É possível, 
nesse caso em particular, perceber os resultados do tradicional conflito entre a infraestrutura, 
caracterizada, segundo Marx (2014), pela produção de mercadorias (processo de trabalho) e as 
relações de produção nas quais se desenvolvem (propriedade privada dos meios de produção, 
acumulação e concentração do mais-valor gerado pelo processo de trabalho) e a superestrutura, 
ou a redoma moral do liberalismo segundo a qual todas e todos são proprietários de si próprio. 
Pela lógica materialista histórica, refletem Barros Filho e Dainezi (2014), a contradição entre a 
infraestrutura econômica fundada em relações escravocratas e o discurso moral de alicerces 
liberais que compõe a superestrutura ocasiona a desconsideração deste discurso moral, de modo 
que o processo de trabalho permaneça sendo executado sob a mão de obra escrava, 
institucionalizada e amparada pela interpretação das normas vigentes mais adequada à 
hegemonia do poder político e econômico, ainda que o sentido literal destas normas seja 
completamente diverso. 
 
17 
 A institucionalização da política racial “separados, mas iguais” no final do século XIX 
nos Estados Unidos é uma das mais emblemáticas provas da independência das forças políticas 
em relação às formas jurídicas e legais, conforme as clássicas lições de Konrad Hesse (2009) 
sobre a força normativa da Constituição. Com efeito, veja-se o emblemático caso de Homer 
Plessy. Norte-americano e mestiço, Plessy foi detido em 1892 na Louisiana por violar a 
segregacionista lei dos vagões separados (Separate Car Act), que determinava vagões 
específicos para brancos e negros. Em sua defesa, foram evocadas a décima terceira e da décima 
quarta emendas da Constituição Norte-Americana, segundo os quais, respectivamente, abolia-
se a escravidão e institucionalizava-se a garantia que nenhum Estado poderia elaborar ou 
executar leis restringindo os privilégios ou imunidades dos cidadãos e cidadãs dos Estados 
Unidos. A décima quarta emenda fixava ainda a impossibilidade de privar qualquer pessoa de 
sua vida, liberdade ou bens sem o devido processo legal, além de garantir igual proteção das 
leis a quem estivesse sob sua jurisdição, trazendo, assim, à Constituição norte-americana a 
cláusula da equal protection of the law (RISÉRIO, 2007). 
Seu conteúdo, embora objetivo, não impediu que a Suprema Corte dos Estados Unidos 
chancelasse a atmosfera discriminatória da época e decidisse pela constitucionalidade da lei 
segregacionista que separava os assentos de brancos e negros. Como se tratava de um costume 
que se tornara lei, seu desrespeito, segundo a interpretação realizada pela maioria dos membros 
da corte, traria prejuízos à paz social e à ordem pública (RODRIGUES, 2005), deixando claro 
o influxo da ideologia prevalecente na extração do sentido da norma. 
A partir de 1868, mesmo ano da entrada em vigor da décima quarta emenda, o 
parlamento criou uma série de leis e atos segregacionistas que ficaram conhecidos como Jim 
Crow Laws, nome inspirado no personagem racista encarnado por um comediante branco da 
época. A corte, entretanto, teve o voto dissidente do juiz John Marshall Harlan, que insurgiu-se 
contra o entendimento dos seus colegas ao ressaltar o fato da lei em análise ser hostil tanto ao 
espírito quanto à letra da Constituição dos Estados Unidos. Na ocasião, entendeu o magistrado 
que “a presente decisão não apenas estimulará a discriminação e a agressão contra os negros 
como também permitirá que, por meio de normas estatais, sejam neutralizadas as benéficas 
conquistas aprovadas com as recentes mudanças constitucionais” (BERTONCINI, CAMPOS 
FILHO, 2012, p.157). 
Os efeitos políticos da decisão ocorreram na linha das prospecções de Marshall, 
conferindo condições políticas à legitimação e ao surgimento de mais leis segregacionistas na 
linha das Jim Crow Laws. A política do “separado mas iguais”, como ficou conhecida, varou o 
século XX, sendo abolida, formalmente, tão somente em 1954. 
 
18 
 Ronald Dworkin (2002) deixa evidente como a leitura moral feita pela Suprema Corte 
acerca da décima quarta emenda, reproduzindo os ideais dominantes daquele momento 
histórico, acabou por gerar um efeito contrário ao seu conteúdo, cujo escopo era exatamente o 
de combater a discriminação racial institucionalizada. A leitura moral, segundo explica, 
incorpora a moralidade política ao coração do direito constitucional, ainda que a moral política 
se mostre incerta ou controversa. As redações da décima terceira e décima quarta emenda sugere 
princípios morais abstratos, incorporados como referência aos limites ao poder do governo que, 
todavia, não foram assimilados como avanços civilizatórios pela sociedade vigente. 
 Há, entretanto, espaço para desacordo sobre a forma correta de estabelecimento desses 
princípios morais abstratos, ainda segundo Dworkin. Como visto, as circunstâncias históricas 
de intepretação de seu conteúdo moral, de acordo com os valores dominantes, podem levar ao 
paradoxo de uma disposição normativa ser utilizada para fins categoricamente diversos dasua 
própria essência. O que ocorreu de fato foi a chancela da segregação racial pela via institucional, 
conforme ocorreu e chegou a se estender, inclusive, para políticas educacionais, ocasião em que 
foi mantida a segregação escolar no distrito de Columbia. O fato da “igual proteção da lei” se 
tratar de um princípio geral, de interpretação flexível, contribuiu para que que sua concretização 
se desse conforme as condições materiais e históricas do século XIX nos Estados Unidos – 
racistas, discriminatórias e segregacionistas -, provando que a determinação de seus efeitos 
pode ocorrer inclusive de forma contrária ao seu próprio conteúdo a depender dos ventos da 
ideologia dominante. Não por menos, Dworkin (ibidem) conclui que a premissa majoritária, em 
sua concepção matemática e exata de democracia, não é uma concepção defensável acerca do 
que se trata a verdadeira definição democracia – um conceito político que pressupõe o respeito 
a normas constitucionais preestabelecidas e aos direitos de minorias sociais, e não um simples 
conceito aritmético de metade mais um1. 
 Em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, Marx (2014) professa que os homens e 
mulheres são protagonistas da história, limitados, entretanto, às condições materiais de seu 
tempo. Somos arautos de nossas bandeiras, entusiastas de nossas causas, senhores e senhoras 
de nossos destinos, mas não temos, definitivamente, controle acerca da arena sob a qual os 
conflitos inerentes a sociedades marcadas por disparidades políticas e econômicas serão 
travados. Observe-se o paradigmático exemplo da Revolução Haitiana, em 1791, onde a 
 
1 Esclareça-se que não se está desconsiderando a legítima expressão da democracia correspondente ao desejo 
expresso pela maioria. Mas, sendo mesmo a mais vulgar definição de democracia muito mais complexa, vê-se 
como um equívoco, dentro de uma ordem constitucional baseada em princípios como o da dignidade humana e 
em objetivos programáticos voltados à realização da justiça social e do combate à desigualdade, confundi-la ou 
limitá-la ao sufrágio tal qual estivesse a vontade da maioria apta a revogar ou tirar a eficácia de compromissos 
constitucionais representados em cláusulas pétreas. 
 
19 
rebelião de escravos liderada por Toussaint Louverture tornou o Haiti a primeira nação 
independente da América Latina. Ao chegar ao local para reprimir as forças rebeldes, 
depararam-se as tropas francesas com escravos que, entusiasmados com os ideais de liberdade 
da França revolucionária que há dois anos derrocara o Antigo Regime, neles se basearam para 
pôr fim ao jugo colonial francês. Ao levar ao extremo os ideais liberais revolucionários, 
puseram em xeque a coerência e a essência das premissas jacobinas: 
Quando os escravos negros do Haiti, fazendo eco à Revolução Francesa, 
revoltaram-se em nome dos mesmos princípios de liberdade, igualdade e 
fraternidade, foi o cadinho, a prova de fogo dos ideais do Iluminismo francês. 
E todo europeu que fazia parte do público leitor burguês sabia disso. “Os olhos 
do mundo estão agora em São Domingos”. No Haiti ocorreu o impensável 
(para o Iluminismo europeu): A Revolução Haitiana entrou para a história com 
o traço peculiar de ser impensável, mesmo enquanto acontecia. Os ex-escravos 
do Haiti entenderam os lemas revolucionários franceses de modo mais literal 
que os próprios franceses: ignoraram todas as restrições implícitas que 
afundavam na ideologia do Iluminismo (liberdade, mas só para os sujeitos 
racionais “maduros, não para os bárbaros selvagens e imaturos, que antes 
tinham de passar por um longo processo de educação para merecer liberdade 
e igualdade...). (ZIZEK, 2011 p. 98). 
 Na esteira dos dizeres de Marx, a experiência haitiana diz respeito a uma das mais 
paradigmáticas lutas emancipatórias realizadas dentro das condições materiais e históricas de 
sua época. O ímpeto por libertação fluía de forma avassaladora nos rebeldes liderados por 
Toussaint Louverture, que o instrumentalizou voltando-se à ideia revolucionária liberal que 
granjeava cada vez mais espaço no fim do século XVIII e início do XIX; pela apropriação de 
elementos-chave da tradição emancipatória igualitária, branca e europeia, os escravos libertos 
redefiniram esta mesma tradição, transformando-a não tanto nos termos do que diz mas, 
principalmente, nos termos do que não diz, conforme observa Zizek (2011). Os franceses 
colonizaram o Haiti, mas foi a Revolução Francesa que forneceu as condições filosóficas, 
ideológicas e históricas que possibilitaram que o Haiti se tornasse independente do jugo colonial 
francês. 
 A redefinição de ideologias dominantes no sentido de abarcar a busca de agendas contra-
hegemônicas – a exemplo do que eram as lutas anti-escravistas nos idos coloniais – é, nas 
palavras de Zizek, o que as classes dominantes de fato temem: a demonstração das qualificações 
implícitas e pragmaticamente contraditórias de seu próprio ideário, direcionado de forma 
vulcânica contra suas próprias conveniências. O ativismo de Luís Gama, rábula, jornalista e 
escritor abolicionista, é talvez o mais categórico exemplo da exploração estratégica das fissuras 
da hegemonia ideológica liberal e burguesa, levando o liberalismo às suas radicais 
consequências ao libertar centenas escravos durante o século XIX com fundamento nas próprias 
premissas liberais que, com arcabouço no direito à propriedade, legitimavam a escravidão de 
 
20 
seres humanos (MATTOS, 2010). A exemplo dos rebeldes haitianos, “mais franceses que os 
próprios franceses” (ZIZEK, 2011, p.104), Luís Gama, conhecido como o Apóstolo da 
Abolição, era mais coerente com os fundamentos ideológicos liberais e burgueses que a própria 
autodenominada elite liberal e burguesa de sua época. Gama, tão somente, sublimou o seu 
ímpeto emancipatório às condições materiais de sua época, uma das únicas vias possíveis, 
naquele momento, para os seus propósitos abolicionistas. 
 
2.2. A Constituição esquecida 
 
 A exploração das contradições dos marcos legais para concretizar direitos de segmentos 
sociais subalternos inaugura uma forma de ver o direito fora das molduras positivistas 
imperantes na maneira com o que é, de modo geral, ensinado e reproduzido na sociedade, 
subvertendo até certo ponto a metodologia político-pedagógica calcada no paradigma 
epistemológico normativista-positivista, de pouca interdisciplinariedade e imperante nos 
nossos cursos jurídicos (MACHADO, 2009). Os reflexos da aplicação deste paradigma 
descambam no surgimento de uma massa de profissionais forjados no individualismo e na 
pouca familiaridade com os potenciais objetivos emancipatórios possíveis de serem extraídos 
do direito: 
A experiência docente nos cursos jurídicos tem mostrado um fenômeno 
assustador: o desvanecimento do vigor, do interesse, da curiosidade e da 
indignação dos alunos, na razão direta de seu avanço no curso. No início, seus 
olhos brilham, sua curiosidade é aguda, suas antenas estão ligadas para o que 
acontece no mundo, chegando a assumir posições políticas transformadoras. 
Aos poucos, na medida em que galgam outros patamares do curso, passam a 
se ensimesmar, a perder seu afã transformador, abandonando a informalidade 
criativa e adotando uma indumentária padronizada, uma linguagem 
estandardizada, marcada por uma retórica ultrapassada, sendo seus sonhos 
abandonados e substituídos por desejos curtos de passar em concursos ou 
pertencer a exitosas bancas de advogados para ganhar dinheiro e conquistar a 
tão decantada segurança burguesa. Seus olhos já não têm mais brilho, sua 
criatividade desapareceu como habilidade de urdir soluções novas, 
pressupostos diferentes e teorias transformadoras. Em suma, aquele jovem que 
entrou na universidade transformou-se, em poucos anos, em um velho 
precoce. (AGUIAR, 2004, p.186). 
Boaventura de Sousa Santos realça essa iniciativa como forma de superação da exclusão 
das classes populares dos marcos jurídicos dedemocracias liberais: 
Esta ideia, de que o direito é contraditório e pode ser utilizado pelas classes 
subalternas, vai de par com outra, a de que as possibilidades não jurídico-
judiciais de transformação social estão por agora bloqueadas. Não está na 
agenda política a revolução. Tão pouco parece estar na agenda política o 
socialismo. O reformismo, por sua vez, ao dirigir-se para a reforma do Estado, 
que sempre foi entendido como sujeito das reformas e não seu objeto, tenta 
 
21 
remediar a sua própria crise. Em face disto, parece que o que resta é levar o 
direito e os direitos a sério. E as classes populares que se tinham habituado a 
que a única maneira de fazer vingar os seus interesses era estar à margem do 
marco jurídico demoliberal, começaram a ver que, organizadamente, 
poderiam obter alguns resultados pela apropriação, tradução, ressignificação 
e utilização estratégica desta legalidade. (SANTOS, 2013, p. 23). 
 Outra evidente contradição desses marcos jurídicos trata do fato de que, mesmo direitos 
que se encontram formalmente positivados dentro da ordem constitucional e que possuem como 
alvo preferencial os segmentos marginalizados da sociedade, têm sua aplicabilidade e eficácia 
comprometidas muitas vezes em decorrência do fato de contrariarem os interesses das classes 
que detêm o efetivo controle do poder político e econômico. O constante e anacrônico 
desrespeito aos ditames da função social da propriedade (artigo 5º, inciso XXIII da Constituição 
Federal), representado pela recente constatação do considerável aumento da concentração de 
terras segundo dados de 2015 do Sistema Nacional de Cadastro Rural (ANDRADE, NOVAES, 
2015), da insuficiente concretização e eficácia dos direitos sociais previstos em nossa Carta 
Magna (CURADO, BERTOLIN, 2011) e mesmo dos chamados direitos e garantias 
fundamentais de primeira dimensão, consubstanciados nas garantias liberais clássicas a 
exemplo das liberdades de expressão e de reunião, quando exercidas fora - ou contra - a 
hegemonia do poder político e econômico, são exemplos cotidianos da seletividade e da 
conveniência com que ocorre a efetivação de nossa ordem constitucional. 
 Veja-se a situação do Sistema Único de Saúde (SUS) como exemplo. Segundo dados 
arregimentados pelo site www.auditoriacidada.org.br o Orçamento Geral da União executado 
do ano de 2015 comprometeu 42,43% com o pagamento de juros e amortizações da dívida junto 
a credores internacionais, enquanto à saúde, direito de todos e dever do Estado (art. 196, 
Constituição Federal de 1988), reservaram-se apenas 4,14%. Em 2013, às quantias direcionadas 
ao pagamento da dívida corresponderam a 40,30%, o equivalente a R$ 718 bilhões de reais, ao 
passo que somente 4,20% do orçamento se direcionou à saúde. Segundo Maziero (2016), os 
benevolentes nacos orçamentários não vêm impedindo que a dívida cresça ano após ano, prática 
que possui uma ligação estreita com as operações destinadas a salvamento bancários por meio 
da injeção de recursos na dívida pública via a transferência direta de dinheiro público para 
bancos (ibidem, p. 12). 
 Embora o artigo 26 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias tenha 
estabelecido que, no prazo de um ano da promulgação da Constituição, o Congresso deveria 
promover “exame analítico e pericial dos atos e fatos geradores do endividamento externo 
brasileiro”, até os dias atuais não foi tomada qualquer iniciativa efetiva nesse sentido, 
comprometendo a concretização dos objetivos programáticos e dos direitos fundamentais 
previstos em nosso texto constitucional em favor do sequestro do orçamento público por parte 
 
22 
dos credores internacionais. Recentemente, a experiência da auditoria da dívida externa do 
Equador gerou seu abatimento de 25% para 12,5% em relação ao PIB (SOUZA, 2012, p. 13), 
liberando o orçamento público do rentismo e garantindo maiores montantes para investimentos 
sociais. 
Enquanto quase metade do Orçamento Geral da União, formado, conforme informações 
do site do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, pelo Orçamento Fiscal, da 
Seguridade e pelo Orçamento de Investimento das empresas estatais federais, é gasto com o 
pagamento de juros e amortizações da dívida, em 20 anos, segundo levantamento do Ministério 
da Saúde (ROSSI, 2015), nenhum estado alcançou cobertura completa, conforme ordena a 
Constituição, de modo que apenas dois ultrapassaram os 90% de cobertura: Piauí e Paraíba. Na 
outra ponta, sete estados têm atendimento abaixo da metade: Amazonas, Rio de Janeiro, Paraná, 
Roraima, Rio Grande do Sul, São Paulo e Distrito Federal, com 20%. O comprometimento da 
prestação de serviços essenciais que materializam direitos sociais previstos na Constituição 
acaba resvalar mesmo nos direitos e liberdades civis, considerando que, ainda que se amparem 
na abstenção do Estado, precisam de condições materiais mínimas para serem exercidos: 
Esse controle rigoroso dos fluxos e refluxos do capital especulativo determina 
em grande medida o desenvolvimento nacional e consequentemente, os 
preços, os salários, os níveis de emprego e o bem-estar interno às nações 
atingidas porque a própria distribuição de renda fica condicionada às 
estruturas de dominação centro/periféricas financeirizadas. Expões às nações 
mais vulneráveis a ataques especulativas e a adoção de políticas de ajuste 
fiscal que penalizam o Estado de bem-estar, suprimindo direito fundamentais 
historicamente conquistados pela luta dos povos (saúde, educação, cultura, 
lazer, previdência social, pleno emprego, etc). 
Direitos sociais como o emprego, saúde, educação, previdência, dentre outros, 
suprimidos pelas políticas de arrocho fiscal, levam inevitavelmente à 
supressão ou sensível diminuição de direitos fundamentais civis, ou seja, 
supressão de liberdades e criação de obstáculos à realização da igualdade 
material. (CASTRO, 2014, p. 217). 
Da mesma forma, é indefensável a completa inércia do legislador em regulamentar 
capítulos inteiros da Lei Maior, tal qual ocorre com o Capítulo V, que trata da Comunicação 
Social e cujo esquecimento acaba por afetar de maneira direta o direito à liberdade de expressão. 
Seu artigo 220 prevê a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob 
qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto na 
Constituição, ao passo que o 221 traz que a produção e a programação das emissoras de rádio 
e televisão atenderão a uma série de princípios2 que impedem que as concessões que se utilizam 
 
2 Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios: 
I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; 
II - promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; 
 
23 
do espectro eletromagnético que contém o sinal público de rádio e TV utilizem este bem 
consoante as diretrizes e regras do mercado, considerando-se, tão somente, seus interesses 
empresariais. 
 Ainda, a inobservância do artigo 220, §5º, cujo texto afirma que os meios de 
comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio, 
gera uma concentração nas mãos de poucos grupos familiares e empresariais que, ao deter a 
maioria das concessões do País, acarretam um cenário que não favorece a diversidade, a 
pluralidade e a possibilidade da livre circulação de ideias (BONAVIDES, 2015, p.10). Sobre o 
teor deste dispositivo, observa Martins que 
O art. 220 da CF estabelece, ainda, em seu § 5º, outro limite constitucional, 
qual seja, a vedação da formação de monopólios ou oligopólios dos meios de 
comunicação social. Trata-se também de uma reserva legal tácita, pois só a lei 
pode definir as hipóteses em que se configuram monopólio e oligopólio. Trata-
se também de uma reserva legal qualificada, pois o propósito que o legislador 
poderá perseguirao intervir nas áreas de proteção de direitos de comunicação 
social já foi fixado pelo constituinte, qual seja, impedir a formação direta ou 
indireta, por meio de sociedades controladoras e de influência decorrente da 
titularidade de uma maioria de ações, de monopólios ou oligopólios da 
comunicação social. (MARTINS, 2012, p. 264). 
Consideremos também o fato de uma parcela destas concessões se concentrarem nas 
mãos de agentes políticos, parlamentares e chefes do executivo das três esferas. O Sistema de 
Acompanhamento de Controle Societário – Siacco - da Anatel, por exemplo, lista 40 senadores 
e deputados que possuem vínculo societário do emissoras concessionárias de rádio e TV 
(BARBOSA, 2015), pois mais que o artigo 54, I, “a” da Constituição Federal preveja que 
deputados e senadores, dentre outras coisas, não poderão, desde a expedição do diploma, firmar 
ou manter contrato com empresa concessionária de serviço público, prevendo o artigo 55 que 
o desrespeito a esta disposição acarreta na perda do mandato. 
 A formação de monopólios e da concentração dos meios de comunicação nas mãos de 
pequenos grupos surgida no vácuo da desregulamentação traz consideráveis prejuízos à própria 
liberdade de expressão e comunicação salvaguardada pelo texto constitucional, na linha das 
conclusões de Martins: 
Não é preciso retomar aqui a eterna discussão dos graves riscos que a 
monopolização da formação da opinião pública pode acarretar para a ordem 
constitucional livre e democrática e parece assaz óbvio que o ônus social da 
existência de poucos grupos que dominam o mercado nessa área é muito maior 
do que, por exemplo, o ônus social provocado pela concentração do mercado 
financeiro. A questão é de escolha por método apto a obstruir a concentração 
“midiática e não de discussão da finalidade em si. 
 
III - regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; 
IV - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família. 
 
 
24 
(...) 
O domínio direto ou indireto de órgãos de radiodifusão por parlamentares, 
conseguido a partir de concessão para exploração de serviços de radiodifusão, 
constitui-se em verdadeiro desserviço ao propósito ora discutido e deve ser 
vedado. As condições políticas são ainda pouco propícias para tanto, pois 
pressupões a autorrestrição de privilégios, mas isso há de ser conseguido pelas 
pressões da opinião pública, recorrentes da democracia. (MARTINS, 2012, p. 
268-269). 
Ainda que a liberdade de expressão e comunicação seja um dos signos elementares da 
ideologia liberal-burguesa, na queda de braço entre os interesses monopolistas e empresariais 
das concessionárias e o livre fluxo de informações e expressões culturais, ideológicas, 
filosóficas protegidas constitucionalmente e que caracterizariam uma sociedade plural como a 
brasileira, prevalecem os sintomas de uma narrativa que, fundada na acumulação e na 
propriedade privada, mantém no cativeiro dos interesses particulares todo o potencial criador e 
tecnológico que possibilitaria a expansão de direitos dessa natureza para toda a coletividade. 
Chauí (2014, p. 134) nota que, além da forte concentração monopolista, é significativa a 
presença no setor das comunicações de empresas que não têm vínculo e tampouco tradição com 
a área, existindo, até recentemente, sete grandes corporações locais – Disney, Time, Warner, 
Sony, News Corporation, Vivendi-Universal e Berterlsmann – que possuíam como satélites 70 
empresas de mídia com elas relacionadas, ocupando grande espaço em nichos de mercado 
nacionais ou regionais (COSTA, 2005, p.01). No Brasil, até os anos 1990, apenas dez grupos 
familiares controlavam a quase totalidades dos meios de comunicação (ibidem). 
 Vivemos numa atmosfera que oscila entre o menoscabo e a indiferença no que se refere 
à inobservância de determinados direitos. Esta atmosfera age no sentido de legitimar, inclusive, 
o desrespeito às normas constitucionais que não se alinhem com a doxa das forças dirigentes, 
cujo pacote ideológico prevalece de forma indistinta entre as mais diversas classes sociais. 
Políticas afirmativas voltadas a setores sociais vulneráveis com o propósito de erradicar a 
pobreza, a marginalização e reduzir desigualdades sociais e regionais, instrumentalizando os 
objetivos fundamentais da República (artigo 3º da Constituição Federal) costumam sofrer 
imediatas e sucessivas retaliações por não se adequarem a projetos que, aos olhos dos 
apologistas do Estado “gerente” e “eficiente” subjugado à narrativa totalitária mercado global 
denunciada por Milton Santos (2015), seriam os melhores para a sociedade. O exemplo 
mostrado linhas atrás acerca da disputa entre a execução de promessas constitucionais e os 
interesses dos credores externos sobre o orçamento representa objetivamente esta contraposição 
de interesses. 
 
 
 
25 
2.3. A democracia levada a sério 
 
 Segundo Chauí (2014, p.301), uma das imagens interiorizadas por parte da sociedade 
brasileira é a peculiar visão que se tem da luta de classes, aparecendo como um confronto direto 
provocado pelas camadas populares onde a imagem que se alimenta é a do povo raivoso, 
perigoso, ameaçador e desordeiro. Esta perspectiva ignora sua forma de vida cotidiana, 
ideologicamente interiorizada e imperceptível, por meio da qual se busca, por exemplo, que 
recursos oriundos do tesouro público sejam aplicados de acordo com os interesses da sociedade 
plasmados na norma constitucional ao invés de drenados pelo rentismo internacional. O próprio 
embate para que os meios de comunicação passem a atuar conforme as diretrizes 
constitucionais, em prestígio às liberdades de expressão e comunicação e em detrimento dos 
interesses empresariais das concessionárias que tolhem seu potencial emancipatório, é mais um 
exemplo da insolubilidade de interesses que perfazem a chamada luta de classes. 
 Como bastante frequência é defendida a premissa de que estes objetivos podem ser 
buscados e atingidos por meio do laissez-faire – ou até de que seu atingimento é desnecessário, 
conforme observam Rose e Milton Friedman (1980), segundo os quais não haveria problema 
na desigualdade social e de oportunidades, frutos da ordem natural das coisas, mas sim no 
empreendimento por parte do Estado em erradicá-la ou mitigá-la, confrontando a noção que 
possuem acerca do conceito de liberdades individuais. A própria naturalização da iniquidade é 
um efeito dessa atmosfera institucional legitimadora de violências reais e simbólicas e de 
desigualdades socioeconômicas, quadro que caracteriza a noção marxista de superestrutura – 
ou a gaiola na qual se encontra o pássaro que, vendo-lhe a liberdade negada desde os primeiros 
dias de vida, vê naquelas grades os limites do mundo possível e ignora as oportunidades de 
fugir. Considerando que o que passa pela cabeça de cada um é o que só poderia passar em um 
determinado momento, resultado que é das relações materiais (BARROS FILHO e DAINEZI, 
2014, p.27), uma vez aberta a portinhola, é razoável responsabilizá-lo individualmente por 
negar e, sobretudo, temer a liberdade, uma vez que a atmosfera na qual sempre viveu lhe 
sedimentou, nos limites da gaiola, a compreensão do que ser livre termina nas linhas de metal 
que se erguem ao seu redor? 
 O medo da liberdade é tratado com propriedade por Paulo Freire em A Pedagogia do 
Oprimido (2011), segundo o qual a “aderência” ou “quase aderência” ao ideário opressor não 
possibilita que as camadas populares, bombardeadas pela atmosfera da ideologia dominante, 
vejam um mundo possível fora das condições históricas objetivas de seu tempo. Com a 
“hospedagem” do opressor dentro de si, sua ambiguidade as torna temerosas da liberdade fora 
dos significados preestabelecidos pela ideologia dominante – a ideologia de que detém o 
 
26 
controle dos meios de produção, segundo Marx e Engels (2010) -, evitando que que enxerguem 
de forma críticae reflexiva os antagonismos e contradições sociais do cotidiano. Apelam, assim, 
para explicações míticas para que os grilhões da opressão, invisíveis na maioria das vezes, 
permaneçam intocados. 
Sem crerem em si mesmas, destruídas, desesperançadas, estas massas 
dificilmente buscam a sua libertação, em cujo ato de rebeldia podem ver, 
inclusive, uma ruptura desobediente com a vontade de Deus – uma espécie de 
enfrentamento indevido com o destino. Daí a necessidade, que tanto 
enfatizamos, de problematiza-las em torno dos mitos de a opressão as nutre. 
(FREIRE, 2010, p. 222). 
Assim, qual a democracia possível dentro de uma economia de mercado marcada pela 
globalização e pelo aprofundamento constante dos laços de dependência pós-colonial, 
naturalizando e intensificando desigualdades socioeconômicas tanto nos limites dos estados-
nação como entre estes? Quais os limites e condições que existem hoje para pavimentar a luta 
pela realização de direitos sociais consagrados na Carta de 1988? Há de fato liberdade e 
democracia dentro dos cânones do mercado e das suas concepções subjacentes de cidadania e 
concretização destes direitos? A livre atuação de grandes conglomerados e entidades financeiras 
transnacionais nos assuntos da alçada da soberania das nações corresponde, de fato, às 
promessas constitucionais de um regime que não se diz apenas democrático, mas também de 
direito? 
 O colossal desprezo da classe dominante por pilares da ideologia liberal é um atestado 
de que, se um dia a democracia for possível em seu sentido mais próximo de ser 
verdadeiramente agendada pela vontade popular, nascerá dos movimentos sociais e populares, 
do contrapoder social e político que transforma a plebe em cidadã e os cidadãos e cidadãs em 
sujeitos que declaram suas diferenças e não fogem dos conflitos que entravam sua emancipação 
coletiva (CHAUÍ, 2014, p. 307). Não é casual que o bloqueio a essa transformação venha da 
“grande política”, na qual todos falam e nome do povo, sob a manifesta condição de que o povo 
não fale em seu próprio nome. 
 Em Ensaio Sobre a Lucidez, José Saramago (2012) narra as consequências de uma 
epidemia eleitoral onde as pessoas, em um inesperado surto de epifania, decidem votar em 
branco. Instaura-se, assim, um estado de exceção cujo objetivo em última instância é o de 
criminalizar a própria cidadania. As autoridades constituídas, reagindo aos acontecimentos, 
resistem em cogitar a possibilidade de se tratar de um fenômeno espontâneo, reprimindo-o com 
seus órgãos de inteligência policial e suas forças repressivas. A atmosfera paranoica e 
conspiratória que se instala nos órgãos governamentais escancara a inconveniência na qual se 
transforma o regular exercício das faculdades democráticas liberais quando, uma vez levadas 
 
27 
às últimas consequências, põem à prova a coerência do sistema ao confrontar os interesses dos 
segmentos sociais que detêm a hegemonia do poder político e econômico. 
 Em relação à definição de democracia, Chomsky (2013, p.09), na esteira das 
observações do tópico anterior sobre a questão dos meios de comunicação, contrapõe duas 
diferentes concepções: a primeira considera que uma sociedade democrática é aquela em que o 
povo dispõe de condições de participar de maneira significativa na condução de seus assuntos 
pessoais, incluindo tanto a perspectiva individual como a que trata de assuntos pertinentes à 
vida coletiva, bem como onde os meios de comunicação são livres e acessíveis; a outra, por sua 
vez, é aquela que considera que o povo deve ser impedido de conduzir assuntos desta natureza 
e onde os meios de comunicação são acessíveis apenas a um segmento minoritário da sociedade. 
“Esta pode parecer uma concepção estranha de democracia”, conclui Chomsky, “mas é 
importante entender que ela é a concepção predominante (ibidem, p.10). 
 Para os liberais de maneira geral, liberdade é a capacidade de satisfazer os próprios 
interesses individuais nos limites do respeito aos interesses igualmente individuais dos outros, 
conforme a terminologia consagrada por Berlin (1981, p. 133) sobre a chamada “liberdade 
negativa”. Sobre o liberalismo, Bielschowsky (2013, p.32) assinala que, em linhas gerais, se 
trata do complexo de ideias político-ideológicas que busca estabelecer tanto as raízes da 
liberdade, a exemplo da justificativa da propriedade privada, como a origem da moral, da 
legitimidade do poder e das instituições, desde o desempenho de indivíduos, a priori livres e 
iguais em seu direito de autoconservação. Quanto às concepções de democracia, ensina que 
existem duas grandes linhas epistemológicas a respeito do que é a democracia na 
contemporaneidade: uma delas se caracteriza pelo embasamento formal arvorado na 
observância de certos procedimentos formais de aferição da vontade da maioria, à qual se refere 
como democracia formal-majoritária ou procedimental; a outra, chamada de democracia 
substantiva, se baseia em argumentos de cunho teleológico para os quais os procedimentos 
formais, embora considerados essenciais, possuem apenas natureza instrumental, prestigiando, 
assim, o seu sentido material (ibidem, p.55). Ainda sobre a visão liberal, Bielschowsky a 
relaciona com a primeira concepção: 
Isso por que, sob a visão liberal, aquilo que é tido por justo, é aquilo contido 
nas regras a que os indivíduos submetem-se como que por “contrato” que 
aderem espontânea e racionalmente. Para tanto, para uma regra ser 
legitimamente justa, basta ter sido ela estabelecida de acordo com as regras do 
jogo convencionadas. Assim, nessa perspectiva, o justo na verdade pode 
representar um interesse que se impõe de forma procedimentalmente legítima, 
enquanto aquilo que é tido por bem moral é secundário. O liberalismo 
pretende assim estabelecer o justo através de uma estrutura formal que 
alegadamente permita formas de via variáveis às quais os indivíduos possam 
dedicar-se. Portanto, a justiça política funciona apenas como limites a essas 
formas de bem. (2013, p.44). 
 
28 
 
 De acordo com Cunningham (2009, p.36), é possível imaginar um espectro se alongando 
para além de uma definição de democracia liberal (formalmente processual e exclusivamente 
orientada para a realização de direitos individuais), em direção a uma concepção mais ampla 
garantidora de uma provisão política de recursos para o efetivo exercício de direitos, admitindo 
direitos coletivos e sociais. Visto que a concepção de democracia ampla é mais condutiva 
avorganizações políticas radicais do que sua variedade estrita, a questão da compatibilidade 
entre democracia e capitalismo se transforma, em parte, se seria esta uma forma genuína de 
democracia liberal. 
No entanto, como se desenvolverá no decorrer do trabalho, não é possível que ocorra a 
socialização da política em democracias situadas sob os contornos do modo de produção 
capitalista. Com o amparo de garantias constitucionais liberais tais quais os direitos de reunião, 
associação e liberdade de expressão, não há, a princípio, maiores obstáculos para a mobilização 
via instituições de direito privado como partidos políticos, sindicatos e associações. Contudo, 
o que é improvável no contexto de democracias liberais não é a socialização da política no 
sentido da organização coletiva ou individual para participar das decisões que dizem respeito a 
interesses comunitários, mas sim a socialização do poder político, este sim fora do alcance da 
sociedade de modo geral. 
Muito embora as constituições contemporâneas constituam documentos jurídicos de 
compromisso entre o liberalismo capitalista e o intervencionismo, firmando a restrição dos fins 
estatais e consagrando direitos e liberdades individuais de status negativo, o Estado liberal 
permaneceu indiferente ao uso que seria feito das liberdades e dos resultados que daí se 
seguissem, menosprezando o fato de que o Estado não é único que oprime o desenvolvimento 
da personalidade, e que mesmo as liberdades liberais estão condicionais, em sua realização, a 
situaçõese poderes extra-estatais, a exemplo dos poderes econômicos cujas pressões interessa 
libertar-se (SILVA, 2007, p.135). Vejam-se as paradigmáticas experiências históricas da 
Segunda Revolução Francesa, ocorrida em 1848 e analisada por Marx em O 18 de Brumário de 
Luís Bonaparte, e a vitória do Syriza nas eleições gregas de 2015 sob a plataforma da anti-
austeridade, contrária aos interesses de organismos financeiros internacionais3. O próprio José 
Saramago (2016), no Fórum Social Mundial realizado em 2005 em Porto Alegre, ponderou que 
vivemos em uma democracia sequestrada e amputada, visto que a compreensão comum de 
cidadania se resume a tirar um governo o qual não se aprova para pôr outro que talvez nos 
 
3Embora o êxito eleitoral e a chancela posterior da população grega em um plebiscito, o Syriza, partido de esquerda 
encabeçado pelo seu primeiro-ministro, Alexis Tsipras, se viu impotente diante do rolo compressor do mercado 
financeiro, que teve força suficiente para impossibilitar as reformas estruturais programáticas apresentadas pela 
agremiação durante sua campanha em 2015. 
 
29 
satisfaça, enquanto as decisões que de fato têm o condão de delinear os caminhos da 
macropolítica se constroem nas grandes organizações financeiras transnacionais, 
antidemocráticas por sua natureza, considerando que não precisam se submeter a eleições para 
impor políticas econômicas domésticas consentâneas com os interesses particulares do mercado 
financeiro. 
Nessa toada, malgrado tenhamos um vasto catálogo de direitos fundamentais, a 
democracia liberal não vem se mostrando suficiente para concretizá-los na plenitude que se 
espera. A criminalização da cidadania trazida em Ensaio Sob a Lucidez lança luzes sob o fato 
de que a tolerância de valores democráticos dura até que sejam exercidos contra os interesses 
superiores que se contentam com uma democracia em sua acepção meramente formal. Sua 
radicalização costuma representar, portanto, uma profunda ameaça à própria ordem burguesa 
que lhe é fiadora, principalmente nos momentos em que se intenta a concretização de marcos 
normativos instituídos por esta mesma ordem. 
 A constante criminalização de movimentos sociais que se agendam com base na legítima 
pressão pelo cumprimento de promessas constitucionais esquecidas, a exemplo das reformas 
agrária e urbana, são exemplos disso. Se a noção de Estado Democrático de Direito passa pelo 
compromisso de respeitar, concretizar e ampliar o catálogo de direitos e garantias 
constitucionais (BIELCHOWSKY, 2014), o desrespeito, a inobservância e a resistência em 
conferir força normativa a uma série de marcos existentes em nossa Lei Maior denuncia: não é 
possível falar em uma democracia plena em um contexto no qual há uma série de obstáculos à 
efetivação de direitos constitucionalmente consagrados. 
 Em uma de suas peças de defesa dos perseguidos políticos pelo Estado Novo de Vargas, 
o advogado Heráclito Fontoura Sobral Pinto (1979, p. 125) cita a obra Um Programme de 
Restauration Sociale do sociólogo francês Jean Rivain, segundo a qual a liberdade sem 
garantias do trabalho e da propriedade, prestigiando o livre jogo da especulação, consagra o 
direito dos mais fortes de modo que a previsão formal das mais diversas liberdades sem os 
meios e condições materiais mínimas para que possam de fato ser exercidas não passa de mera 
retórica. Mas por qual razão, mesmo com toda a miríade de fragilidades que põem em xeque a 
viabilidade das democracias liberais, há a insistência, mesmo entre vertentes de matiz socialista, 
em trabalhar em cima de suas contradições e limitações, defendendo a manutenção, até certo 
ponto, de seus fundamentos iluministas? Nesse sentido, Slavoj Zizek (2011) traz uma 
emblemática anedota que envolve o renomado físico Niels Bohr: surpreso ao notar uma 
ferradura pendurada na porta de sua casa, um colega cientista o interpela afirmando que não 
acredita em superstições, no caso, a de que ferraduras penduradas em portas afastariam maus 
espíritos. “Também não acredito”, teria respondido Bohr, “deixo aí porque me disseram que 
 
30 
funciona mesmo não acreditando”. De maneira semelhante, é comum que não sejam levadas a 
sério as instituições democráticas existentes, cientes de sua natureza retórica, corrupta, frágil e 
incapaz de atender às expectativas da sociedade, mas ainda assim não se abre mão de disputá-
las, de votar e de participar dos espaços disponíveis para que sejam implementadas, deliberadas 
e executadas políticas públicas, pois supõe-se que funcionem mesmo que se acredite nisso. 
Ainda, tal perspectiva é um sintoma de que, mesmo ante todas as críticas, a atual 
moldura democrática, posta como consectária do estágio último de civilização pelos apologistas 
do Fim da História na linha de Francis Fukuyama (1992), é um ponto essencial para a 
construção de um regime democrático e popular cujas bases se firmam inicial e transitoriamente 
nos alicerces da própria democracia burguesa. O programa da social-democracia russa, fixado 
em 1903, partiu desta premissa ao afirmar que o trajeto rumo ao socialismo na Rússia tzarista 
teria como fase inicial o despontar de uma “revolução burguesa e democrática que, após 
derrubar o regime autocrático, estabeleceria as bases políticas, econômicas e jurídicas a partir 
das quais seria lícito cogitar a luta por uma revolução socialista” (REIS FILHO, 1997, p. 57). 
O próprio Engels (2014) já asseverava que a república democrática é a única forma de Estado 
sob a qual podem ser travadas as lutas de classes, hoje definida sob diversas formas, seja através 
de um sistema tributário que ignora a previsão constitucional que institui a taxação de grandes 
fortunas, lucros e dividendos, insistindo em concentrar a tributação no consumo e 
consequentemente nas pessoas de menor renda, até iniciativas voltadas à gradual eliminação do 
Sistema Único de Saúde em prestígio de entes empresariais da área4. 
 É nessa arena que ganha relevo a tática de radicalização dos cânones democráticos por 
meio da revelação das contradições sistêmicas existentes nas democracias liberais dentro dos 
termos estabelecidos por elas próprias. A exposição dos significados subjacentes de institutos 
da democracia burguesa, evidenciados pelo que Boaventura de Sousa Santos (2013) qualifica 
de uso não burguês do direito burguês, passa pela fragilização do próprio sistema de acordo 
com suas características endógenas: a liberdade, pináculo da revolução francesa, alinha-se nesse 
contexto com a semântica da liberdade de contratar e não com o seu sentido mais autêntico 
enquanto ausência de obstáculos para que as pessoas possam desenvolver de forma plena suas 
potencialidades. 
A narrativa da escravidão, por exemplo, institucionalizou-se por longos anos em 
ordenamentos jurídicos de influência filosófica e política liberal-burguesa. Logo no artigo 1º da 
 
4Tramita hoje no Congresso Nacional uma série de projetos de lei e emendas constitucionais com o manifesto 
propósito de retirar recursos do SUS e viabilizar o financiamento de planos de saúde privado, a exemplo da 
Proposta de Emenda Constitucional nº 451, cujo objetivo é o de incluir, “como garantia fundamental, plano de 
assistência à saúde, oferecido pelo empregador em decorrência de vínculo empregatício, na utilização dos serviços 
de assistência médica”. 
 
31 
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão previu-se que “todos os homens nascem livres 
e iguais em direitos”. Tal previsão, contudo, serviu para dar vazão a um conceito de liberdade 
e autonomia profundamente entranhado nas relações e nos códigos sociais característicos da 
troca mercantil baseado na propriedade e nos direitos individuais (HARVEY, 2016, p. 189), não 
para trazer aos negros e negras escravizadas uma liberdade cujo mero reconhecimento formal, 
estágio derradeiro das lutas emancipatórias segundo o idéario liberal-burguês,está longe de 
garanti-la. Foi o que constatou Machado de Assis em crônica publicada no dia 19 de maio e 
1888, seis dias após a abolição da escravidão, por meio da qual descreveu a nova “liberdade” 
de Pancrácio, seu escravo particular, demonstrando o cinismo ideológico da emancipação 
puramente política, formal e institucional para a garantia dignidade humana segmentos sociais 
historicamente marginalizados. 
Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, 
por não me escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe 
que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil 
adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; 
eram dois estados naturais, quase divinos. Tudo compreendeu meu bom 
Pancrácio; daí para cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro 
puxão de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe não chamo filho do diabo; 
cousas todas que ele recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até 
alegre. (ASSIS, 2009, p.88). 
 Atente-se nesse contexto para a Constituição do Império do Brasil de 1824, que adotou 
uma ideologia liberal formal clássica com ênfase no liberalismo econômico, onde a matéria 
constitucional se limitaria à organização do aparelho de Estado e a declaração dos direitos e 
garantias individuais, abstendo-se de definir a ordem econômica e reproduzindo e consolidando 
o conteúdo das relações sociais escravistas (CASTRO e MEZZAROBA, 2015, p. 33). 
Onde está a contradição? Não há contradição. O liberalismo econômico 
apregoado pela Inglaterra, que vinha constituindo mercados mundiais, havia se 
desenvolvido a partir do velho regime pré-capitalista colonial (centro-periferia) 
que tinha o condão de concentrar o desenvolvimento capitalista no centro do 
sistema, a Inglaterra, em detrimento da desacumulação na periferia, nos 
territórios coloniais, especializados no fornecimento de matérias-primas para a 
produção inglesa. Assim mesmo é que o liberalismo, o mesmo liberalismo, 
consignado na Constituição do Império do Brasil, de 1824, era capaz de 
reproduzir, internamente, uma ordem escravocrata (POLANYI, 2000, p. 181), 
fundada num modo escravista de produção e, externamente, uma ordem 
fundada na divisão internacional do trabalho, em que o Brasil se posicionava 
como fornecedor de produtos primários para a industrialização inglesa. 
(CASTRO e MEZZAROBA, 2015, p.25). 
 A estratégia de expor contradições dessa natureza ganha maior relevo na atual fase do 
capitalismo financeiro e global, onde o desenho de grandes acordos civilizatórios como o de 
1988 envolvendo direitos constitucionais sociais e coletivos é ameaçado pela lógica da 
globalização e da transnacionalização do capital. Não por menos, ressurgiram na década de 90 
os velhos argumentos antissocialistas de endeusamento do mercado, glorificação da 
 
32 
competitividade e justificação da precarização do emprego, imperando a contestação ao projeto 
igualitário a partir de hipóteses antropológicas que apresentam a desigualdade como um dado 
inevitável, a propriedade como uma instituição invulnerável e o mercado como um pilar 
intocável de qualquer sociedade humana (KATZ, 2016, p. 287). 
É nessa conjuntura que a radicalização da democracia e a organização da sociedade civil 
via sindicatos, movimentos sociais e formas de organização congêneres possui um papel 
imprescindível para a superação de uma ordem que, além de ainda predominantemente formal, 
onde direitos são positivados mas não concretizados, corre o risco de regredir e rifar direitos 
muitos dos quais sequer chegaram a surtir alguma eficácia social. Levantamento recente feito 
pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) aponta, por exemplo, que 
atualmente tramitam no Congresso Nacional 55 projetos de lei e propostas de emenda 
constitucional voltadas à supressão de direitos sociais e trabalhistas, reduzindo o papel do 
Estado e aprofundando mecanismos de controle fiscal. 
Foi em semelhante conjuntura de supressão e ameaças de direitos que Antonio Gramsci 
(2004) fez o seguinte questionamento: até onde vão os limites da legalidade? Na sociedade 
capitalista, prossegue, a legalidade é representada pelos interesses da classe burguesa, de modo 
que “quando uma ação busca atingir algum modo a propriedade privada e os lucros que dela 
derivam, tal ação se torna imediatamente ilegal” (ibidem, p. 83). Uma das mais sintomáticas 
características da perspectiva burguesa de legalidade é o fato desta ser confundida com o 
exercício do voto, havendo, assim, uma confusão entre substância e norma. A conquista do 
sufrágio pelas massas populares apareceu aos olhos dos ingênuos ideólogos da democracia 
liberal como a derradeira conquista para o progresso social da humanidade, patamar último para 
as lutas emancipatórias, desconsiderando o fato da legalidade ter uma dupla face: uma interna, 
a substancial, e outra externa, a formal, importando-se a legalidade burguesa tão somente com 
esta última (ibidem, p. 84). 
Slavoj Zizek (2011) nota que o que hoje identificamos como direitos intrínsecos à 
liberdade e à democracia liberal (sindicatos, voto universal, educação gratuita e universal, 
liberdade de imprensa, etc) é fruto da árdua e prolongada batalha das classes inferiores nos 
séculos XIX e XX. Mesmo o voto feminino veio somente na esteira do acúmulo de lutas 
emancipatórias das mulheres neste período. No mesmo artigo trazido no parágrafo anterior, 
Gramsci afirma que os ideólogos da democracia liberal enganaram por alguns anos as grandes 
massas populares ao levá-las a acreditar que o sufrágio as libertaria de todos os seus grilhões. 
A emancipação dos mais diversos segmentos sociais oprimidos poderia, segundo colocavam, 
se realizar por meio do exercício soberano do direito ao voto. Contudo, referindo-se à Itália do 
início do século XX, quando o sufrágio e o direito de organização se tornaram meios de uma 
 
33 
ofensiva contra a classe patronal, esta última renunciou a qualquer legalidade formal, passando 
a obedecer apenas à sua verdadeira lei, ou seja, à lei do seu interesse e conservação, arrancando 
uma a uma as prefeituras que estavam nas mãos da classe operária. 
Existe um momento na história em que a burguesia é obrigada a repudiar o que ela 
mesma criou (GRAMSCI, 2004, p. 85). Ainda nos dias atuais, em resposta à legítima pressão 
da sociedade realizada com fundamento nas liberdades constitucionais de reunião e expressão 
bem como no republicanismo que se alicerça, teoricamente, na abertura de canais de 
participação da sociedade na definição dos rumos da coisa pública, vem a criminalização das 
mobilizações voltadas à concretização dos marcos normativos fixados pela própria ordem 
burguesa. Em consonância com o diagnóstico de Gramsci, atribui-se a Washington Luís, 
presidente da República de 1926 a 1930, a frase “a questão social é um caso de polícia”, bastante 
coerente com a forte repressão levada à frente contra greves, manifestações populares e 
entidades sindicais que, assim como setores da imprensa, foram perseguidas, invadidas e 
fechadas durante a República Velha (1889-1930), sempre sob o amparo da liberal Constituição 
de 1891 (MUNAKATA, 1984, p.9). 
 
2.4. Democracia constitucional e o fetiche da cidadania 
 
 Certo adágio de autoria incerta coloca que, assim como as salsichas, o melhor é que os 
cidadãos e cidadãs não saibam a forma com que a lei e as relações políticas são feitas. Em O 
Capital, Marx (2014) traz o conceito de fetiche da mercadoria, entendido como a maneira com 
que o sistema-mercado e a forma-dinheiro disfarçam – ou fetichizam – as relações reais entre 
as pessoas por meio da troca de coisas. O resultado, segundo David Harvey, é a dissimulação 
da nossa relação social com as atividades laborais de quem produz as mercadorias, mascarada 
em relações entre coisas. 
No supermercado, por exemplo, você não tem como saber se a alface foi 
produzida por trabalhadores satisfeitos, miseráveis, escravos,

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