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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO (PPGD) CURSO DE MESTRADO EM DIREITO OS LIMITES DA DEMOCRACIA LIBERAL: O INFLUXO DO PODER ECONÔMICO NO EXERCÍCIO DAS LIBERDADES Gustavo Henrique Freire Barbosa Orientador: Professor Dr. Artur Cortez Bonifácio Natal/RN 2017 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO OS LIMITES DA DEMOCRACIA LIBERAL: O INFLUXO DO PODER ECONÔMICO NO EXERCÍCIO DAS LIBERDADES Gustavo Henrique Freire Barbosa Orientador: Professor Dr. Artur Cortez Bonifácio Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte para obtenção do título de Mestre. Natal - RN 2017 Catalogação da publicação na fonte UFRN/ Biblioteca Setorial do CCSA Barbosa, Gustavo Henrique Freire. Os limites da democracia liberal: o influxo do poder econômico no exercício das liberdades / Gustavo Henrique Freire Barbosa. - Natal, 2017. 120f. Orientador: Prof. Dr. Artur Cortez Bonifácio. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Programa de Pós-graduação em Direito. 1. Democracia - Dissertação. 2. Capitalismo - Dissertação. 3. Liberdades constitucionais - Dissertação. 4. Materialismo - Dissertação. 5. Globalização - Dissertação. 6. Pós-modernidade - Dissertação. I. Bonifácio, Artur Cortez. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/BS/CCSA CDU 321.7 Gustavo Henrique Freire Barbosa OS LIMITES DA DEMOCRACIA LIBERAL: O INFLUXO DO PODER ECONÔMICO NO EXERCÍCIO DAS LIBERDADES Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito. Orientador: Prof. Dr. Artur Cortez Bonifácio. _________________________________________________________________________ Artur Cortez Bonifácio (Orientador) – UFRN __________________________________________________________________________ Mariana de Siqueira – UFRN _________________________________________________________________________ Pablo Moreno de Paiva Capistrano – IFRN Natal, RN, 20 de março de 2017 Em memória de Pedro Lopes Barbosa. Agradecimentos Ao amigo e professor Artur Cortez Bonifácio, homem de convicções sólidas e grande nobreza de espírito, pela orientação, suporte e liberdade com que possibilitou o desenvolvimento desta pesquisa. A Diego, Léo, Suzana, Alyane e demais amigas e amigos do PPGD-UFRN que, juntas e juntos, se entrincheiraram nos debates, nas aulas, nas suas pesquisas e nas suas atividades profissionais em favor de um mundo mais solidário, humano e fraterno. Ao meu pai, minha mãe, minha irmã e meu irmão, por, com paciência e amor, aturarem meus arroubos de inconformismo e irresignação À CAPES, pelo apoio financeiro que possibilitou o desenvolvimento desta pesquisa. A Clarinha, companheira, confidente e compartilhadora dos meus surtos e epifanias de última hora, pelo amor, paciência e suporte. A Ilana e Daniel Valença, pelas “cachacinhas de Gramsci” que muito contribuíram para florear esta pesquisa. A Hélio Miguel, Natália Bonavides, Natália Sena, Daniel Pessoa, Lulinha e Marcos Dionísio, exemplos vivos de que a ação criadora e modificadora da realidade é implacável quando guiada por grandes sentimentos de amor. Aos companheiros e companheiras anônimos(as) e desconhecidos(as) que dedicam suas vidas à concretização de um projeto alternativo de sociedade. RESUMO Trata a pesquisa dos limites da democracia liberal em suas dimensões tradicional e contemporânea, desenvolvendo como a sua concepção predominantemente formal do exercício das liberdades, direitos e garantias constitucionais ocasiona o desprestígio dos objetivos programáticos nascidos com o despontar de uma ordem constitucional na qual a democracia se expressa em institutos que se situam muito além do sufrágio, subutilizados em razão de não corresponderem com os objetivos consubstanciados nas condições materiais de produção em que se situam as relações envolvendo o Estado enquanto sujeito promotor de direitos e condutor de políticas públicas. Nessa esteira, o trabalho aborda também a carência de normatividade e eficácia social das disposições normativas nesse sentido, abordando os paradoxais efeitos de uma ordem constitucional situada sob os contornos do modo de produção capitalista, bem como as contradições existentes entre a previsão legal de direitos e a racionalidade de uma sociedade imersa na dinâmica de uma cada vez maior transnacionalização da economia, identificando as incompatibilidades materiais da realização de direitos já institucionalizados com a narrativa dos valores intrínsecos à economia de mercado em sua expressão pós-moderna. Palavras-chave: Democracia. Capitalismo. Liberdades constitucionais. Materialismo histórico e dialético. Globalização. Pós-modernidade. ABSTRACT The research deals with the limits of liberal democracy in its traditional and contemporary dimensions, developing how the predominantly formal conception of the exercise of constitutional freedoms, rights and guarantees affects the programmatic objectives born from the emergence of a constitutional order where democracy is expressed in institutes that are far beyond suffrage, underutilized for not matching the objectives embodied in the material conditions of production in which the relations involving the State are located as a promoter of rights and a driver of public policies. The work also addresses the lack of normativity and social effectiveness of normative provisions, showing the paradoxical effects of a constitutional order situated under the contours of the capitalist mode of production, as well as the contradictions which exists between the legal prediction of rights and the rationality of a society immersed in the dynamics of an ever greater transnationalization of the economy, identifying the material incompatibilities of the realization of rights already institutionalized with the values from the market economy in its postmodern expression. Keywords: Democracy. Capitalism. Constitutional freedoms. Historical and dialectical materialism. Globalization. Post SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 10 2. UMA DEMOCRACIA A BORDOADAS ...................................................................... 14 2.1. Os grilhões invisíveis .............................................................................................................. 14 2.2. A Constituição esquecida ...................................................................................................... 20 2.3. A democracia levada a sério .................................................................................................. 25 2.4. Democracia constitucional e o fetiche da cidadania ............................................................. 33 2.5. Somos de fato livres? ............................................................................................................ 41 3. ARDIS, VILEZAS E DISSIMULAÇÕES: A SUTILEZA DA IDEOLOGIA ............ 49 3.1. A colonização dos espíritos ...................................................................................................49 3.2. Ideologia, liberdade e emancipação ..................................................................................... 59 3.3. O flagelo da indiferença ........................................................................................................ 61 3.4. A cidadania na pós-modernidade ......................................................................................... 64 3.5. O Caminho mais fácil ............................................................................................................. 68 3.6. Invasão cultural e falsa generosidade ................................................................................... 71 3.7. O bálsamo do autoritarismo: a expansão do Estado penal ................................................... 77 4. A DEMOCRACIA USURPADA E O SEQUESTRO DA SOBERANIA .................... 86 4.1. A dimensão política do positivismo ...................................................................................... 86 4.2. A ideologia da nobreza togada .............................................................................................. 95 4.3. O sequestro da democracia ................................................................................................... 98 5. CONCLUSÕES ............................................................................................................. 104 6. REFERÊNCIAS ............................................................................................................ 107 10 OS LIMITES DA DEMOCRACIA LIBERAL: O INFLUXO DO PODER ECONÔMICO NO EXERCÍCIO DAS LIBERDADES La ley es como el cuchillo, no ofende a quien lo maneja (José Hernandez). 1. INTRODUÇÃO Principal combustível das revoluções liberais dos séculos XVIII e XIX, a liberdade, com o surgimento das mais diversas cartas constitucionais oriundas dos processos de ruptura com as antigas ordens monárquicas, conseguiu, segundo a tradição ocidental, atingir uma dimensão política que acabou por alçá-la à condição de direito intrínseco à própria condição humana. Enquanto sustentáculo ideológico das forças revolucionárias que derrocaram sucessivos governos absolutistas, a noção de liberdade se confundia - e, em muitos casos, ainda se confunde – com a contenção irrefreável da voracidade do Estado em submeter toda a comunidade política ao seu impetuoso jugo. As democracias liberais, inspiradas no ideário iluminista que surgiriam e se consolidariam a partir desse contexto histórico, se colocam, até os dias atuais, como consectárias de todo o acúmulo de conquistas civilizatórias que acarretaram no reconhecimento institucional da liberdade como um dos principais direitos humanos. Mas de que espécie de liberdade estamos tratando? Quais os parâmetros definidores desta liberdade? Seriam os referenciais liberais e ocidentais e suas expressões contemporâneas, principalmente no âmbito normativo, suficientes para contemplar um sentido de liberdade fora das molduras estabelecidas pelas democracias ditas liberais? Mesmo entre os liberais não há consenso sobre qual a melhor definição de liberdade. Enquanto o libertarianismo adota uma percepção segundo a qual a autonomia de vontade ganha ares que se aproximam de um caráter absoluto, sendo a verdadeira e mais fundamental tônica do exercício das liberdades, ora relacionadas em escala inversamente proporcional ao grau de intervenção do Estado na vida social e econômica, vertentes do liberalismo igualitário veem no Estado um elemento crucial para a supressão dos obstáculos que impedem que as pessoas se comportem verdadeiramente conforme os seus próprios desígnios. 11 A própria tradição social-democrata se coloca no sentido de que a liberdade não pode ser caracterizar enquanto tal se não existirem efetivas condições materiais para ser exercida. A partir disso, a Constituição de 1988 prevê o paradigma de um Estado que, malgrado adote como princípios da ordem econômica a livre concorrência e a proteção à propriedade privada, é caracterizado também por um forte viés prestacional e pela existência de uma série de mecanismos que contemplam uma rede sócio-assistencial que impõe várias limitações às concepções clássicas que enxergam a autonomia de vontade, substanciada no conceito negativo de liberdade, como caracteres inegociáveis e, muitas vezes, alheios ao contexto político e econômico no qual estão inseridos. Contudo, mesmo as previsões características de estados de bem-estar social e das tradições social-democratas têm seu sentido esvaziado quando a correlação de forças da vida material as coloca como obstáculos aos interesses de segmentos sociais que, lastreados pela concentração de poder político e econômico, conseguem, meio às contradições e disputas inerentes a sociedades divididas em classes sociais, fazer prevalecer seus interesses. Nestas situações, o confronto ideológico, inclusive no campo da linguagem, sobre os limites definidores da própria liberdade em si ganha especial relevo, tendo em vista, principalmente, a legitimação da narrativa dominante fundada na naturalização de privilégios de classe e da consequente desnaturação da própria liberdade, restringida a uma definição puramente formal, negativa e ausente de sentido substantivo. Em uma economia cada vez mais globalizada, a liberdade e a formação de soberanias nacionais ganham novos contornos segundo os conceitos que sobrevêm desta mesma ordem. Perde-se a noção de liberdade enquanto possibilidade de escolhas concretas e a percepção da soberania nacional como expressão maior da autodeterminação política e administrativa, colonizando-as conforme as tradições inerentes aos valores do mercado. Assim, ao invés de se relacionadas a uma racionalidade radicalmente comprometida com o livre florescimento dos potenciais humanos bem como com a efetiva possibilidade de escolhas concretas criadas a partir de referenciais constitucionais, passam a se resumir à liberdade de firmar negócios jurídicos, contratar, empreender e consumir de acordo com o pacote ideológico colocado como sinônimo de felicidade e bem-aventurança. Restringem-se, assim, os significados de liberdade e soberania ao adequá-los aos códigos mercantis e contratuais, redesenhando os objetivos programáticos de acordos civilizatórios como o de 1988 os quais, por meio da previsão de direitos trabalhistas, previdenciários, sociais e securitários, procurou-se criar o mínimo de condições materiais para que a liberdade seja exercida ante a razão do modo de produção capitalista. O objetivo deste trabalho consiste exatamente em analisar as contradições do exercício das liberdades constitucionais e do Estado Democrático de Direito segundo as fronteiras 12 materiais e ideológicas demarcadas pela narrativa prevalecente das forças do mercado, considerando o contexto de uma economia globalizada e da vigência de textos constitucionais baseados no princípio da dignidade humana e na consagração de uma série de direitos e garantias que não guardam correspondência prática com os objetivos primários oriundos das relações provenientes da economia de mercado. Trata-se de uma pesquisa de fundo teórico, metodológica e epistemologicamente vinculada à teoria crítica, relacionada ao diagnóstico multidisciplinar do tempo presente e que tem como referencial autores e autoras provindas de diferentes expressões do marxismo. O trabalho tem como finalidade analisar teorias próprias da filosofia e ciência política com a validade de paradigmas e postulados do direito, objetivando, assim, lançar luzes sobre a incompatibilidade dos valores democráticos institucionalizados pelas chamadas democracias liberais com as suas próprias premissas, demonstrando de que maneira a influência do poder econômico termina por afetar o próprio âmago das liberdades e de demais direitos fundamentais constitucionalmente previstos. Em sua estrutura, a pesquisa inicia com capítulo que sedebruça sobre as contradições ideológicas do liberalismo clássico que serviram de alicerce para as democracias ocidentais de modo geral. Traz, nesse sentido, situações históricas concretas a partir da coexistência de regimes escravocratas com cartas liberais cujos textos conferem, contraditoriamente, entusiástica importância à liberdade. Discorre também sobre as limitações do reconhecimento formal de direitos e do sufrágio enquanto característica de regimes democráticos. No mesmo capítulo, analisa-se a conveniência normativa de determinadas disposições legais quando, em determinados contextos, voltam-se contra os interesses das próprias classes e forças políticas que as institucionalizaram. Considera-se, assim, o fato de muitas destas disposições, embora desconsideradas pelas forças hegemônicas, dizerem respeito a aspectos fundantes e essenciais na caracterização de estados que se pretendem democráticos. As bases da legitimação ideológica da subjugação do ordenamento jurídico e da democracia são o objeto do capítulo subsequente, que busca demonstrar, nas atuais expressões do modo de produção capitalista e da produção e reprodução da vida social, o grau de comprometimento da sociedade com a defesa dos interesses pouco republicanos que subvertem a própria ideia constitucional do Estado enquanto agente ativo na construção de uma sociedade em consonância com os objetivos programáticos trazidos por diplomas como a Constituição Federal de 1988. No penúltimo capítulo, enfatiza-se de forma mais categórica a incongruência dos objetivos do mercado em sua dimensão financeira e global, com a realização de direitos constitucionais, focando nos direitos de natureza política referentes ao exercício do sufrágio e 13 à própria soberania nacional, afligida em sua capacidade de autodeterminação em se guiar de acordo com interesses eminentemente nacionais, de ordem pública e institucional. Nas conclusões, levanta-se a necessidade de repensar novos paradigmas de relações sociais que de fato se alinhem aos objetivos emancipatórios da era moderna, considerando, principalmente, os entraves e bloqueios originados da dinâmica do modo de produção capitalista quanto à consecução de uma ordem verdadeiramente solidária e fraterna na qual os laços comunitários prevaleçam diante dos influxos do poder econômico sob as quais se materializam interesses incongruentes com o bem-estar geral e com a realização de uma democracia verdadeiramente plena e agendada por interesses de ordem social e comunitária, essenciais para o florescimento individual de cada cidadão e cidadã. O presente trabalho, por fim, procurou traçar uma abordagem crítica, reflexiva e interdisciplinar sobre concepções envolvendo temas elementares do direito, da filosofia e da ciência política, fugindo da narrativa meramente tecnicista, unidisciplinar e descritiva, carente de problemáticas conceituais e estruturais as quais, nas projeções do autor, não se alinham aos propósitos de transformação social e emancipação humana dos quais as universidades, em especial as públicas, deveriam ser depositárias. 14 2. UMA DEMOCRACIA A BORDOADAS 2.1. Os grilhões invisíveis Em meados de 2002, pesquisadores da Universidade de Nova York criaram um chip de computador capaz de transmitir sinais diretamente ao cérebro de camundongos, controlando seus movimentos por meio de um controle remoto. Não havia, até então, registros de avanços científicos no sentido de possibilitar o controle sobre a “vontade” de seres vivos via mecanismos externos (HARDER, 2002). A descoberta criou terreno para uma série de reflexões filosóficas, não necessariamente inéditas, acerca dos conceitos de autonomia e liberdade. Clássicos da literatura universal como 1984, de George Orwell, e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, além do próprio cerne da filosofia kantiana (SANDEL, 2015), já colocavam em discussão a questão da predeterminação de condutas por meio da interferência de forças externas de matiz social, política e até biológica. O desvelamento de mecanismos de dominação – algumas vezes sutis, outras nem tanto – na narrativa de regimes totalitários ou da própria dinâmica das relações intersubjetivas em sociedades democráticas representa uma das várias problemáticas capazes de gerar ricas discussões a partir desses referenciais. Herbert Marcuse (1967) já denunciava a racionalidade que molda e predetermina seres humanos conforme determinados valores concebidos na dinâmica das relações de produção próprias do capitalismo na sociedade industrial. Como bem observa Mascaro (2013), o Estado é produto, consectário das relações de produções em vigor, e não produtor desta dinâmica, assegurando, por meio da coerção, o regular funcionamento e reprodução desta narrativa. O Estado não é mais comunidade, mas o instrumento de identidade cultural- político que assegura os meios de preservação do mercado e de seu funcionamento “natural”, “espontâneo”. O homem, em seus apetites, desejos, irracionalidades vê-se plasmado sob a forma abstrata do “homem total”, orgânico, racionalizador dos interesses e das aspirações gerais da burguesia. (ALBUQUERQUE, 2014, p. 181). Entretanto, o caso dos ratos é caracterizado, sobretudo, pela não sutileza, primeiro em razão de, obviamente, em se tratando de um animal irracional, não ser necessário adornar ou encobrir os instrumentos que o manipulam; segundo, pelo fato da implantação do chip ter o manifesto objetivo de que os ratos realizem tarefas difíceis de serem levadas à frente por robôs, que necessitam ser programados mesmo para as missões mais simples. Controle de pestes, vigilância militar, busca e resgate de máquinas e o mapeamento de áreas subterrâneas são algumas dessas funções. Slavoj Zizek (2014) nota que a grande discussão filosófica nesse caso é como o rato “vivenciou” tais momentos deliberados a partir de fora: continuou a “vivenciá- 15 los” como espontâneos, permanecendo completamente inconsciente de que seus movimentos estavam sendo controlados, ou tinha alguma percepção de que havia algo errado? Ideias, convenções sociais, padrões de comportamento e valores morais predominantes têm como arcabouço as condições materiais específicas de sua época, a exemplo da predatória ideologia consumista que marca a pós-modernidade (BAUMAN, 2014), expressão maior, nos dizeres de Barros Filho e Dainezi (2014), das relações entre infraestrutura e superestrutura consubstanciadas sob a ótica do materialismo histórico sobre os tempos atuais. Como bem colocam Marx e Engels (2010) não é consciência que influencia a vida, aqui representada como o mundo e suas representações, mas a vida que influencia a consciência. As concepções dominantes do conceito de liberdade e demais categorias e definições comportamentais, assim, variam no espaço e no tempo conforme as condições históricas materiais e concretas dentro das quais tal liberdade e tais conceitos são exercidos. Na França pré-revolucionária, de onde se extrai o significado liberal-burguês de liberdade, esta correspondia à contenção do ímpeto do Estado absolutista em interferir na vida social. Para isso, uma série de direitos e garantias foram criados e institucionalizados em favor dos cidadãos e cidadãs, a exemplo da liberdade de expressão, liberdade de reunião, devido processo legal, anterioridade da lei penal e demais direitos liberais clássicos que o constitucionalismo ocidental costuma classificar como liberdades negativas ou direitos de primeira geração. Naquele momento histórico, o sentido da liberdade era substancialmente formal, correspondendo à noção de que, uma vez se abstendo o Estado, estaria plenamente contemplada. Hoje, tem-se que a noção de liberdade de acordo com seus referenciais clássicos é uma concepção que não corresponde aos tempos presentes. Ainda que, segundo Forst (2014), sua concepção formal, juntamente com a de igualdade, seja rechaçada inclusive por expressõesda doutrina liberal igualitária e pelo comunitarismo, a resistência a políticas afirmativas voltadas a segmentos da sociedade historicamente marginalizados, a exemplo das cotas raciais direcionadas à comunidade negra, ainda hoje costuma se amparar nas premissas clássicas (formais) tanto de liberdade como de igualdade: o Estado ao se colocar como promotor de políticas públicas estaria, segundo tal perspectiva, privilegiando determinadas categorias sociais, tratando-as, assim, de forma diversa dos demais setores da sociedade, ainda que estes não carreguem consigo os reflexos históricos da discriminação e da subcidadania. Se a liberdade envolve a noção de autopropriedade que, por sua vez, diz respeito a princípio elementar da doutrina liberal, isto não impediu que regimes escravocratas fossem ideologicamente legitimados pelos mesmos cânones ideológicos do liberalismo. Foi exatamente do ideário liberal que a escravidão extraiu a legitimação necessária para que se 16 mantivesse hegemônica durante mais de três séculos no Brasil ao demonstrar que era no direito à propriedade que se assentavam as bases do escravismo e da desumanização dos negros e negras africanas (MATTOS, 2010). Marco filosófico de constituições liberais, a aplicação literal do axioma “todos os homens nascem livres e iguais” comprometeria sobremaneira a dinâmica do capitalismo escravista e os interesses da elite escravocrata, ainda, segundo os apontamentos de Schwarcz e Starling (2015) que um naco significativo desta elite colonial e do império se aproximasse dos revolucionários ideais republicanos. Vê-se que em razão do modo de produção capitalista não reconhecer diferenças extraeconômicas entre os seres humanos, a exemplo das que dizem respeito a raça e etnia, foi necessário tornar as pessoas menos humanas para legitimar práticas colonialistas e escravocratas, fundamentais à economia de mercado naquele momento histórico (WOODS, 2013, p. 145). Se o rebaixamento dos seres humanos escravizados à condição de mera propriedade fez parte dessa estratégia, não surpreende o fato da escravidão ter sido tolerada por lideranças republicanas e liberais a exemplo de todos os principais líderes da Revolução Norte- Americana, de George Washington a Thomas Jefferson (MATTOS, 2010). É fácil observar como a narrativa das relações de produção dominantes são capazes de deformar até mesmo o âmago ideológico dos pressupostos fundamentais que a sustentam. Se o liberalismo vinha ganhando espaço e simpatia em amplos setores da sociedade ao passo que a autopropriedade, porém, um de seus mais inegociáveis elementos, ia de encontro aos interesses das elites escravistas da época, amolda-se o ideário liberal à conveniência das forças produtivas dominantes, equiparando negros e negras a meras propriedades integrantes do patrimônio de seus senhores para manter as engrenagens do sistema em regular funcionamento. É possível, nesse caso em particular, perceber os resultados do tradicional conflito entre a infraestrutura, caracterizada, segundo Marx (2014), pela produção de mercadorias (processo de trabalho) e as relações de produção nas quais se desenvolvem (propriedade privada dos meios de produção, acumulação e concentração do mais-valor gerado pelo processo de trabalho) e a superestrutura, ou a redoma moral do liberalismo segundo a qual todas e todos são proprietários de si próprio. Pela lógica materialista histórica, refletem Barros Filho e Dainezi (2014), a contradição entre a infraestrutura econômica fundada em relações escravocratas e o discurso moral de alicerces liberais que compõe a superestrutura ocasiona a desconsideração deste discurso moral, de modo que o processo de trabalho permaneça sendo executado sob a mão de obra escrava, institucionalizada e amparada pela interpretação das normas vigentes mais adequada à hegemonia do poder político e econômico, ainda que o sentido literal destas normas seja completamente diverso. 17 A institucionalização da política racial “separados, mas iguais” no final do século XIX nos Estados Unidos é uma das mais emblemáticas provas da independência das forças políticas em relação às formas jurídicas e legais, conforme as clássicas lições de Konrad Hesse (2009) sobre a força normativa da Constituição. Com efeito, veja-se o emblemático caso de Homer Plessy. Norte-americano e mestiço, Plessy foi detido em 1892 na Louisiana por violar a segregacionista lei dos vagões separados (Separate Car Act), que determinava vagões específicos para brancos e negros. Em sua defesa, foram evocadas a décima terceira e da décima quarta emendas da Constituição Norte-Americana, segundo os quais, respectivamente, abolia- se a escravidão e institucionalizava-se a garantia que nenhum Estado poderia elaborar ou executar leis restringindo os privilégios ou imunidades dos cidadãos e cidadãs dos Estados Unidos. A décima quarta emenda fixava ainda a impossibilidade de privar qualquer pessoa de sua vida, liberdade ou bens sem o devido processo legal, além de garantir igual proteção das leis a quem estivesse sob sua jurisdição, trazendo, assim, à Constituição norte-americana a cláusula da equal protection of the law (RISÉRIO, 2007). Seu conteúdo, embora objetivo, não impediu que a Suprema Corte dos Estados Unidos chancelasse a atmosfera discriminatória da época e decidisse pela constitucionalidade da lei segregacionista que separava os assentos de brancos e negros. Como se tratava de um costume que se tornara lei, seu desrespeito, segundo a interpretação realizada pela maioria dos membros da corte, traria prejuízos à paz social e à ordem pública (RODRIGUES, 2005), deixando claro o influxo da ideologia prevalecente na extração do sentido da norma. A partir de 1868, mesmo ano da entrada em vigor da décima quarta emenda, o parlamento criou uma série de leis e atos segregacionistas que ficaram conhecidos como Jim Crow Laws, nome inspirado no personagem racista encarnado por um comediante branco da época. A corte, entretanto, teve o voto dissidente do juiz John Marshall Harlan, que insurgiu-se contra o entendimento dos seus colegas ao ressaltar o fato da lei em análise ser hostil tanto ao espírito quanto à letra da Constituição dos Estados Unidos. Na ocasião, entendeu o magistrado que “a presente decisão não apenas estimulará a discriminação e a agressão contra os negros como também permitirá que, por meio de normas estatais, sejam neutralizadas as benéficas conquistas aprovadas com as recentes mudanças constitucionais” (BERTONCINI, CAMPOS FILHO, 2012, p.157). Os efeitos políticos da decisão ocorreram na linha das prospecções de Marshall, conferindo condições políticas à legitimação e ao surgimento de mais leis segregacionistas na linha das Jim Crow Laws. A política do “separado mas iguais”, como ficou conhecida, varou o século XX, sendo abolida, formalmente, tão somente em 1954. 18 Ronald Dworkin (2002) deixa evidente como a leitura moral feita pela Suprema Corte acerca da décima quarta emenda, reproduzindo os ideais dominantes daquele momento histórico, acabou por gerar um efeito contrário ao seu conteúdo, cujo escopo era exatamente o de combater a discriminação racial institucionalizada. A leitura moral, segundo explica, incorpora a moralidade política ao coração do direito constitucional, ainda que a moral política se mostre incerta ou controversa. As redações da décima terceira e décima quarta emenda sugere princípios morais abstratos, incorporados como referência aos limites ao poder do governo que, todavia, não foram assimilados como avanços civilizatórios pela sociedade vigente. Há, entretanto, espaço para desacordo sobre a forma correta de estabelecimento desses princípios morais abstratos, ainda segundo Dworkin. Como visto, as circunstâncias históricas de intepretação de seu conteúdo moral, de acordo com os valores dominantes, podem levar ao paradoxo de uma disposição normativa ser utilizada para fins categoricamente diversos dasua própria essência. O que ocorreu de fato foi a chancela da segregação racial pela via institucional, conforme ocorreu e chegou a se estender, inclusive, para políticas educacionais, ocasião em que foi mantida a segregação escolar no distrito de Columbia. O fato da “igual proteção da lei” se tratar de um princípio geral, de interpretação flexível, contribuiu para que que sua concretização se desse conforme as condições materiais e históricas do século XIX nos Estados Unidos – racistas, discriminatórias e segregacionistas -, provando que a determinação de seus efeitos pode ocorrer inclusive de forma contrária ao seu próprio conteúdo a depender dos ventos da ideologia dominante. Não por menos, Dworkin (ibidem) conclui que a premissa majoritária, em sua concepção matemática e exata de democracia, não é uma concepção defensável acerca do que se trata a verdadeira definição democracia – um conceito político que pressupõe o respeito a normas constitucionais preestabelecidas e aos direitos de minorias sociais, e não um simples conceito aritmético de metade mais um1. Em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, Marx (2014) professa que os homens e mulheres são protagonistas da história, limitados, entretanto, às condições materiais de seu tempo. Somos arautos de nossas bandeiras, entusiastas de nossas causas, senhores e senhoras de nossos destinos, mas não temos, definitivamente, controle acerca da arena sob a qual os conflitos inerentes a sociedades marcadas por disparidades políticas e econômicas serão travados. Observe-se o paradigmático exemplo da Revolução Haitiana, em 1791, onde a 1 Esclareça-se que não se está desconsiderando a legítima expressão da democracia correspondente ao desejo expresso pela maioria. Mas, sendo mesmo a mais vulgar definição de democracia muito mais complexa, vê-se como um equívoco, dentro de uma ordem constitucional baseada em princípios como o da dignidade humana e em objetivos programáticos voltados à realização da justiça social e do combate à desigualdade, confundi-la ou limitá-la ao sufrágio tal qual estivesse a vontade da maioria apta a revogar ou tirar a eficácia de compromissos constitucionais representados em cláusulas pétreas. 19 rebelião de escravos liderada por Toussaint Louverture tornou o Haiti a primeira nação independente da América Latina. Ao chegar ao local para reprimir as forças rebeldes, depararam-se as tropas francesas com escravos que, entusiasmados com os ideais de liberdade da França revolucionária que há dois anos derrocara o Antigo Regime, neles se basearam para pôr fim ao jugo colonial francês. Ao levar ao extremo os ideais liberais revolucionários, puseram em xeque a coerência e a essência das premissas jacobinas: Quando os escravos negros do Haiti, fazendo eco à Revolução Francesa, revoltaram-se em nome dos mesmos princípios de liberdade, igualdade e fraternidade, foi o cadinho, a prova de fogo dos ideais do Iluminismo francês. E todo europeu que fazia parte do público leitor burguês sabia disso. “Os olhos do mundo estão agora em São Domingos”. No Haiti ocorreu o impensável (para o Iluminismo europeu): A Revolução Haitiana entrou para a história com o traço peculiar de ser impensável, mesmo enquanto acontecia. Os ex-escravos do Haiti entenderam os lemas revolucionários franceses de modo mais literal que os próprios franceses: ignoraram todas as restrições implícitas que afundavam na ideologia do Iluminismo (liberdade, mas só para os sujeitos racionais “maduros, não para os bárbaros selvagens e imaturos, que antes tinham de passar por um longo processo de educação para merecer liberdade e igualdade...). (ZIZEK, 2011 p. 98). Na esteira dos dizeres de Marx, a experiência haitiana diz respeito a uma das mais paradigmáticas lutas emancipatórias realizadas dentro das condições materiais e históricas de sua época. O ímpeto por libertação fluía de forma avassaladora nos rebeldes liderados por Toussaint Louverture, que o instrumentalizou voltando-se à ideia revolucionária liberal que granjeava cada vez mais espaço no fim do século XVIII e início do XIX; pela apropriação de elementos-chave da tradição emancipatória igualitária, branca e europeia, os escravos libertos redefiniram esta mesma tradição, transformando-a não tanto nos termos do que diz mas, principalmente, nos termos do que não diz, conforme observa Zizek (2011). Os franceses colonizaram o Haiti, mas foi a Revolução Francesa que forneceu as condições filosóficas, ideológicas e históricas que possibilitaram que o Haiti se tornasse independente do jugo colonial francês. A redefinição de ideologias dominantes no sentido de abarcar a busca de agendas contra- hegemônicas – a exemplo do que eram as lutas anti-escravistas nos idos coloniais – é, nas palavras de Zizek, o que as classes dominantes de fato temem: a demonstração das qualificações implícitas e pragmaticamente contraditórias de seu próprio ideário, direcionado de forma vulcânica contra suas próprias conveniências. O ativismo de Luís Gama, rábula, jornalista e escritor abolicionista, é talvez o mais categórico exemplo da exploração estratégica das fissuras da hegemonia ideológica liberal e burguesa, levando o liberalismo às suas radicais consequências ao libertar centenas escravos durante o século XIX com fundamento nas próprias premissas liberais que, com arcabouço no direito à propriedade, legitimavam a escravidão de 20 seres humanos (MATTOS, 2010). A exemplo dos rebeldes haitianos, “mais franceses que os próprios franceses” (ZIZEK, 2011, p.104), Luís Gama, conhecido como o Apóstolo da Abolição, era mais coerente com os fundamentos ideológicos liberais e burgueses que a própria autodenominada elite liberal e burguesa de sua época. Gama, tão somente, sublimou o seu ímpeto emancipatório às condições materiais de sua época, uma das únicas vias possíveis, naquele momento, para os seus propósitos abolicionistas. 2.2. A Constituição esquecida A exploração das contradições dos marcos legais para concretizar direitos de segmentos sociais subalternos inaugura uma forma de ver o direito fora das molduras positivistas imperantes na maneira com o que é, de modo geral, ensinado e reproduzido na sociedade, subvertendo até certo ponto a metodologia político-pedagógica calcada no paradigma epistemológico normativista-positivista, de pouca interdisciplinariedade e imperante nos nossos cursos jurídicos (MACHADO, 2009). Os reflexos da aplicação deste paradigma descambam no surgimento de uma massa de profissionais forjados no individualismo e na pouca familiaridade com os potenciais objetivos emancipatórios possíveis de serem extraídos do direito: A experiência docente nos cursos jurídicos tem mostrado um fenômeno assustador: o desvanecimento do vigor, do interesse, da curiosidade e da indignação dos alunos, na razão direta de seu avanço no curso. No início, seus olhos brilham, sua curiosidade é aguda, suas antenas estão ligadas para o que acontece no mundo, chegando a assumir posições políticas transformadoras. Aos poucos, na medida em que galgam outros patamares do curso, passam a se ensimesmar, a perder seu afã transformador, abandonando a informalidade criativa e adotando uma indumentária padronizada, uma linguagem estandardizada, marcada por uma retórica ultrapassada, sendo seus sonhos abandonados e substituídos por desejos curtos de passar em concursos ou pertencer a exitosas bancas de advogados para ganhar dinheiro e conquistar a tão decantada segurança burguesa. Seus olhos já não têm mais brilho, sua criatividade desapareceu como habilidade de urdir soluções novas, pressupostos diferentes e teorias transformadoras. Em suma, aquele jovem que entrou na universidade transformou-se, em poucos anos, em um velho precoce. (AGUIAR, 2004, p.186). Boaventura de Sousa Santos realça essa iniciativa como forma de superação da exclusão das classes populares dos marcos jurídicos dedemocracias liberais: Esta ideia, de que o direito é contraditório e pode ser utilizado pelas classes subalternas, vai de par com outra, a de que as possibilidades não jurídico- judiciais de transformação social estão por agora bloqueadas. Não está na agenda política a revolução. Tão pouco parece estar na agenda política o socialismo. O reformismo, por sua vez, ao dirigir-se para a reforma do Estado, que sempre foi entendido como sujeito das reformas e não seu objeto, tenta 21 remediar a sua própria crise. Em face disto, parece que o que resta é levar o direito e os direitos a sério. E as classes populares que se tinham habituado a que a única maneira de fazer vingar os seus interesses era estar à margem do marco jurídico demoliberal, começaram a ver que, organizadamente, poderiam obter alguns resultados pela apropriação, tradução, ressignificação e utilização estratégica desta legalidade. (SANTOS, 2013, p. 23). Outra evidente contradição desses marcos jurídicos trata do fato de que, mesmo direitos que se encontram formalmente positivados dentro da ordem constitucional e que possuem como alvo preferencial os segmentos marginalizados da sociedade, têm sua aplicabilidade e eficácia comprometidas muitas vezes em decorrência do fato de contrariarem os interesses das classes que detêm o efetivo controle do poder político e econômico. O constante e anacrônico desrespeito aos ditames da função social da propriedade (artigo 5º, inciso XXIII da Constituição Federal), representado pela recente constatação do considerável aumento da concentração de terras segundo dados de 2015 do Sistema Nacional de Cadastro Rural (ANDRADE, NOVAES, 2015), da insuficiente concretização e eficácia dos direitos sociais previstos em nossa Carta Magna (CURADO, BERTOLIN, 2011) e mesmo dos chamados direitos e garantias fundamentais de primeira dimensão, consubstanciados nas garantias liberais clássicas a exemplo das liberdades de expressão e de reunião, quando exercidas fora - ou contra - a hegemonia do poder político e econômico, são exemplos cotidianos da seletividade e da conveniência com que ocorre a efetivação de nossa ordem constitucional. Veja-se a situação do Sistema Único de Saúde (SUS) como exemplo. Segundo dados arregimentados pelo site www.auditoriacidada.org.br o Orçamento Geral da União executado do ano de 2015 comprometeu 42,43% com o pagamento de juros e amortizações da dívida junto a credores internacionais, enquanto à saúde, direito de todos e dever do Estado (art. 196, Constituição Federal de 1988), reservaram-se apenas 4,14%. Em 2013, às quantias direcionadas ao pagamento da dívida corresponderam a 40,30%, o equivalente a R$ 718 bilhões de reais, ao passo que somente 4,20% do orçamento se direcionou à saúde. Segundo Maziero (2016), os benevolentes nacos orçamentários não vêm impedindo que a dívida cresça ano após ano, prática que possui uma ligação estreita com as operações destinadas a salvamento bancários por meio da injeção de recursos na dívida pública via a transferência direta de dinheiro público para bancos (ibidem, p. 12). Embora o artigo 26 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias tenha estabelecido que, no prazo de um ano da promulgação da Constituição, o Congresso deveria promover “exame analítico e pericial dos atos e fatos geradores do endividamento externo brasileiro”, até os dias atuais não foi tomada qualquer iniciativa efetiva nesse sentido, comprometendo a concretização dos objetivos programáticos e dos direitos fundamentais previstos em nosso texto constitucional em favor do sequestro do orçamento público por parte 22 dos credores internacionais. Recentemente, a experiência da auditoria da dívida externa do Equador gerou seu abatimento de 25% para 12,5% em relação ao PIB (SOUZA, 2012, p. 13), liberando o orçamento público do rentismo e garantindo maiores montantes para investimentos sociais. Enquanto quase metade do Orçamento Geral da União, formado, conforme informações do site do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, pelo Orçamento Fiscal, da Seguridade e pelo Orçamento de Investimento das empresas estatais federais, é gasto com o pagamento de juros e amortizações da dívida, em 20 anos, segundo levantamento do Ministério da Saúde (ROSSI, 2015), nenhum estado alcançou cobertura completa, conforme ordena a Constituição, de modo que apenas dois ultrapassaram os 90% de cobertura: Piauí e Paraíba. Na outra ponta, sete estados têm atendimento abaixo da metade: Amazonas, Rio de Janeiro, Paraná, Roraima, Rio Grande do Sul, São Paulo e Distrito Federal, com 20%. O comprometimento da prestação de serviços essenciais que materializam direitos sociais previstos na Constituição acaba resvalar mesmo nos direitos e liberdades civis, considerando que, ainda que se amparem na abstenção do Estado, precisam de condições materiais mínimas para serem exercidos: Esse controle rigoroso dos fluxos e refluxos do capital especulativo determina em grande medida o desenvolvimento nacional e consequentemente, os preços, os salários, os níveis de emprego e o bem-estar interno às nações atingidas porque a própria distribuição de renda fica condicionada às estruturas de dominação centro/periféricas financeirizadas. Expões às nações mais vulneráveis a ataques especulativas e a adoção de políticas de ajuste fiscal que penalizam o Estado de bem-estar, suprimindo direito fundamentais historicamente conquistados pela luta dos povos (saúde, educação, cultura, lazer, previdência social, pleno emprego, etc). Direitos sociais como o emprego, saúde, educação, previdência, dentre outros, suprimidos pelas políticas de arrocho fiscal, levam inevitavelmente à supressão ou sensível diminuição de direitos fundamentais civis, ou seja, supressão de liberdades e criação de obstáculos à realização da igualdade material. (CASTRO, 2014, p. 217). Da mesma forma, é indefensável a completa inércia do legislador em regulamentar capítulos inteiros da Lei Maior, tal qual ocorre com o Capítulo V, que trata da Comunicação Social e cujo esquecimento acaba por afetar de maneira direta o direito à liberdade de expressão. Seu artigo 220 prevê a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto na Constituição, ao passo que o 221 traz que a produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão a uma série de princípios2 que impedem que as concessões que se utilizam 2 Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios: I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; II - promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; 23 do espectro eletromagnético que contém o sinal público de rádio e TV utilizem este bem consoante as diretrizes e regras do mercado, considerando-se, tão somente, seus interesses empresariais. Ainda, a inobservância do artigo 220, §5º, cujo texto afirma que os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio, gera uma concentração nas mãos de poucos grupos familiares e empresariais que, ao deter a maioria das concessões do País, acarretam um cenário que não favorece a diversidade, a pluralidade e a possibilidade da livre circulação de ideias (BONAVIDES, 2015, p.10). Sobre o teor deste dispositivo, observa Martins que O art. 220 da CF estabelece, ainda, em seu § 5º, outro limite constitucional, qual seja, a vedação da formação de monopólios ou oligopólios dos meios de comunicação social. Trata-se também de uma reserva legal tácita, pois só a lei pode definir as hipóteses em que se configuram monopólio e oligopólio. Trata- se também de uma reserva legal qualificada, pois o propósito que o legislador poderá perseguirao intervir nas áreas de proteção de direitos de comunicação social já foi fixado pelo constituinte, qual seja, impedir a formação direta ou indireta, por meio de sociedades controladoras e de influência decorrente da titularidade de uma maioria de ações, de monopólios ou oligopólios da comunicação social. (MARTINS, 2012, p. 264). Consideremos também o fato de uma parcela destas concessões se concentrarem nas mãos de agentes políticos, parlamentares e chefes do executivo das três esferas. O Sistema de Acompanhamento de Controle Societário – Siacco - da Anatel, por exemplo, lista 40 senadores e deputados que possuem vínculo societário do emissoras concessionárias de rádio e TV (BARBOSA, 2015), pois mais que o artigo 54, I, “a” da Constituição Federal preveja que deputados e senadores, dentre outras coisas, não poderão, desde a expedição do diploma, firmar ou manter contrato com empresa concessionária de serviço público, prevendo o artigo 55 que o desrespeito a esta disposição acarreta na perda do mandato. A formação de monopólios e da concentração dos meios de comunicação nas mãos de pequenos grupos surgida no vácuo da desregulamentação traz consideráveis prejuízos à própria liberdade de expressão e comunicação salvaguardada pelo texto constitucional, na linha das conclusões de Martins: Não é preciso retomar aqui a eterna discussão dos graves riscos que a monopolização da formação da opinião pública pode acarretar para a ordem constitucional livre e democrática e parece assaz óbvio que o ônus social da existência de poucos grupos que dominam o mercado nessa área é muito maior do que, por exemplo, o ônus social provocado pela concentração do mercado financeiro. A questão é de escolha por método apto a obstruir a concentração “midiática e não de discussão da finalidade em si. III - regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; IV - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família. 24 (...) O domínio direto ou indireto de órgãos de radiodifusão por parlamentares, conseguido a partir de concessão para exploração de serviços de radiodifusão, constitui-se em verdadeiro desserviço ao propósito ora discutido e deve ser vedado. As condições políticas são ainda pouco propícias para tanto, pois pressupões a autorrestrição de privilégios, mas isso há de ser conseguido pelas pressões da opinião pública, recorrentes da democracia. (MARTINS, 2012, p. 268-269). Ainda que a liberdade de expressão e comunicação seja um dos signos elementares da ideologia liberal-burguesa, na queda de braço entre os interesses monopolistas e empresariais das concessionárias e o livre fluxo de informações e expressões culturais, ideológicas, filosóficas protegidas constitucionalmente e que caracterizariam uma sociedade plural como a brasileira, prevalecem os sintomas de uma narrativa que, fundada na acumulação e na propriedade privada, mantém no cativeiro dos interesses particulares todo o potencial criador e tecnológico que possibilitaria a expansão de direitos dessa natureza para toda a coletividade. Chauí (2014, p. 134) nota que, além da forte concentração monopolista, é significativa a presença no setor das comunicações de empresas que não têm vínculo e tampouco tradição com a área, existindo, até recentemente, sete grandes corporações locais – Disney, Time, Warner, Sony, News Corporation, Vivendi-Universal e Berterlsmann – que possuíam como satélites 70 empresas de mídia com elas relacionadas, ocupando grande espaço em nichos de mercado nacionais ou regionais (COSTA, 2005, p.01). No Brasil, até os anos 1990, apenas dez grupos familiares controlavam a quase totalidades dos meios de comunicação (ibidem). Vivemos numa atmosfera que oscila entre o menoscabo e a indiferença no que se refere à inobservância de determinados direitos. Esta atmosfera age no sentido de legitimar, inclusive, o desrespeito às normas constitucionais que não se alinhem com a doxa das forças dirigentes, cujo pacote ideológico prevalece de forma indistinta entre as mais diversas classes sociais. Políticas afirmativas voltadas a setores sociais vulneráveis com o propósito de erradicar a pobreza, a marginalização e reduzir desigualdades sociais e regionais, instrumentalizando os objetivos fundamentais da República (artigo 3º da Constituição Federal) costumam sofrer imediatas e sucessivas retaliações por não se adequarem a projetos que, aos olhos dos apologistas do Estado “gerente” e “eficiente” subjugado à narrativa totalitária mercado global denunciada por Milton Santos (2015), seriam os melhores para a sociedade. O exemplo mostrado linhas atrás acerca da disputa entre a execução de promessas constitucionais e os interesses dos credores externos sobre o orçamento representa objetivamente esta contraposição de interesses. 25 2.3. A democracia levada a sério Segundo Chauí (2014, p.301), uma das imagens interiorizadas por parte da sociedade brasileira é a peculiar visão que se tem da luta de classes, aparecendo como um confronto direto provocado pelas camadas populares onde a imagem que se alimenta é a do povo raivoso, perigoso, ameaçador e desordeiro. Esta perspectiva ignora sua forma de vida cotidiana, ideologicamente interiorizada e imperceptível, por meio da qual se busca, por exemplo, que recursos oriundos do tesouro público sejam aplicados de acordo com os interesses da sociedade plasmados na norma constitucional ao invés de drenados pelo rentismo internacional. O próprio embate para que os meios de comunicação passem a atuar conforme as diretrizes constitucionais, em prestígio às liberdades de expressão e comunicação e em detrimento dos interesses empresariais das concessionárias que tolhem seu potencial emancipatório, é mais um exemplo da insolubilidade de interesses que perfazem a chamada luta de classes. Como bastante frequência é defendida a premissa de que estes objetivos podem ser buscados e atingidos por meio do laissez-faire – ou até de que seu atingimento é desnecessário, conforme observam Rose e Milton Friedman (1980), segundo os quais não haveria problema na desigualdade social e de oportunidades, frutos da ordem natural das coisas, mas sim no empreendimento por parte do Estado em erradicá-la ou mitigá-la, confrontando a noção que possuem acerca do conceito de liberdades individuais. A própria naturalização da iniquidade é um efeito dessa atmosfera institucional legitimadora de violências reais e simbólicas e de desigualdades socioeconômicas, quadro que caracteriza a noção marxista de superestrutura – ou a gaiola na qual se encontra o pássaro que, vendo-lhe a liberdade negada desde os primeiros dias de vida, vê naquelas grades os limites do mundo possível e ignora as oportunidades de fugir. Considerando que o que passa pela cabeça de cada um é o que só poderia passar em um determinado momento, resultado que é das relações materiais (BARROS FILHO e DAINEZI, 2014, p.27), uma vez aberta a portinhola, é razoável responsabilizá-lo individualmente por negar e, sobretudo, temer a liberdade, uma vez que a atmosfera na qual sempre viveu lhe sedimentou, nos limites da gaiola, a compreensão do que ser livre termina nas linhas de metal que se erguem ao seu redor? O medo da liberdade é tratado com propriedade por Paulo Freire em A Pedagogia do Oprimido (2011), segundo o qual a “aderência” ou “quase aderência” ao ideário opressor não possibilita que as camadas populares, bombardeadas pela atmosfera da ideologia dominante, vejam um mundo possível fora das condições históricas objetivas de seu tempo. Com a “hospedagem” do opressor dentro de si, sua ambiguidade as torna temerosas da liberdade fora dos significados preestabelecidos pela ideologia dominante – a ideologia de que detém o 26 controle dos meios de produção, segundo Marx e Engels (2010) -, evitando que que enxerguem de forma críticae reflexiva os antagonismos e contradições sociais do cotidiano. Apelam, assim, para explicações míticas para que os grilhões da opressão, invisíveis na maioria das vezes, permaneçam intocados. Sem crerem em si mesmas, destruídas, desesperançadas, estas massas dificilmente buscam a sua libertação, em cujo ato de rebeldia podem ver, inclusive, uma ruptura desobediente com a vontade de Deus – uma espécie de enfrentamento indevido com o destino. Daí a necessidade, que tanto enfatizamos, de problematiza-las em torno dos mitos de a opressão as nutre. (FREIRE, 2010, p. 222). Assim, qual a democracia possível dentro de uma economia de mercado marcada pela globalização e pelo aprofundamento constante dos laços de dependência pós-colonial, naturalizando e intensificando desigualdades socioeconômicas tanto nos limites dos estados- nação como entre estes? Quais os limites e condições que existem hoje para pavimentar a luta pela realização de direitos sociais consagrados na Carta de 1988? Há de fato liberdade e democracia dentro dos cânones do mercado e das suas concepções subjacentes de cidadania e concretização destes direitos? A livre atuação de grandes conglomerados e entidades financeiras transnacionais nos assuntos da alçada da soberania das nações corresponde, de fato, às promessas constitucionais de um regime que não se diz apenas democrático, mas também de direito? O colossal desprezo da classe dominante por pilares da ideologia liberal é um atestado de que, se um dia a democracia for possível em seu sentido mais próximo de ser verdadeiramente agendada pela vontade popular, nascerá dos movimentos sociais e populares, do contrapoder social e político que transforma a plebe em cidadã e os cidadãos e cidadãs em sujeitos que declaram suas diferenças e não fogem dos conflitos que entravam sua emancipação coletiva (CHAUÍ, 2014, p. 307). Não é casual que o bloqueio a essa transformação venha da “grande política”, na qual todos falam e nome do povo, sob a manifesta condição de que o povo não fale em seu próprio nome. Em Ensaio Sobre a Lucidez, José Saramago (2012) narra as consequências de uma epidemia eleitoral onde as pessoas, em um inesperado surto de epifania, decidem votar em branco. Instaura-se, assim, um estado de exceção cujo objetivo em última instância é o de criminalizar a própria cidadania. As autoridades constituídas, reagindo aos acontecimentos, resistem em cogitar a possibilidade de se tratar de um fenômeno espontâneo, reprimindo-o com seus órgãos de inteligência policial e suas forças repressivas. A atmosfera paranoica e conspiratória que se instala nos órgãos governamentais escancara a inconveniência na qual se transforma o regular exercício das faculdades democráticas liberais quando, uma vez levadas 27 às últimas consequências, põem à prova a coerência do sistema ao confrontar os interesses dos segmentos sociais que detêm a hegemonia do poder político e econômico. Em relação à definição de democracia, Chomsky (2013, p.09), na esteira das observações do tópico anterior sobre a questão dos meios de comunicação, contrapõe duas diferentes concepções: a primeira considera que uma sociedade democrática é aquela em que o povo dispõe de condições de participar de maneira significativa na condução de seus assuntos pessoais, incluindo tanto a perspectiva individual como a que trata de assuntos pertinentes à vida coletiva, bem como onde os meios de comunicação são livres e acessíveis; a outra, por sua vez, é aquela que considera que o povo deve ser impedido de conduzir assuntos desta natureza e onde os meios de comunicação são acessíveis apenas a um segmento minoritário da sociedade. “Esta pode parecer uma concepção estranha de democracia”, conclui Chomsky, “mas é importante entender que ela é a concepção predominante (ibidem, p.10). Para os liberais de maneira geral, liberdade é a capacidade de satisfazer os próprios interesses individuais nos limites do respeito aos interesses igualmente individuais dos outros, conforme a terminologia consagrada por Berlin (1981, p. 133) sobre a chamada “liberdade negativa”. Sobre o liberalismo, Bielschowsky (2013, p.32) assinala que, em linhas gerais, se trata do complexo de ideias político-ideológicas que busca estabelecer tanto as raízes da liberdade, a exemplo da justificativa da propriedade privada, como a origem da moral, da legitimidade do poder e das instituições, desde o desempenho de indivíduos, a priori livres e iguais em seu direito de autoconservação. Quanto às concepções de democracia, ensina que existem duas grandes linhas epistemológicas a respeito do que é a democracia na contemporaneidade: uma delas se caracteriza pelo embasamento formal arvorado na observância de certos procedimentos formais de aferição da vontade da maioria, à qual se refere como democracia formal-majoritária ou procedimental; a outra, chamada de democracia substantiva, se baseia em argumentos de cunho teleológico para os quais os procedimentos formais, embora considerados essenciais, possuem apenas natureza instrumental, prestigiando, assim, o seu sentido material (ibidem, p.55). Ainda sobre a visão liberal, Bielschowsky a relaciona com a primeira concepção: Isso por que, sob a visão liberal, aquilo que é tido por justo, é aquilo contido nas regras a que os indivíduos submetem-se como que por “contrato” que aderem espontânea e racionalmente. Para tanto, para uma regra ser legitimamente justa, basta ter sido ela estabelecida de acordo com as regras do jogo convencionadas. Assim, nessa perspectiva, o justo na verdade pode representar um interesse que se impõe de forma procedimentalmente legítima, enquanto aquilo que é tido por bem moral é secundário. O liberalismo pretende assim estabelecer o justo através de uma estrutura formal que alegadamente permita formas de via variáveis às quais os indivíduos possam dedicar-se. Portanto, a justiça política funciona apenas como limites a essas formas de bem. (2013, p.44). 28 De acordo com Cunningham (2009, p.36), é possível imaginar um espectro se alongando para além de uma definição de democracia liberal (formalmente processual e exclusivamente orientada para a realização de direitos individuais), em direção a uma concepção mais ampla garantidora de uma provisão política de recursos para o efetivo exercício de direitos, admitindo direitos coletivos e sociais. Visto que a concepção de democracia ampla é mais condutiva avorganizações políticas radicais do que sua variedade estrita, a questão da compatibilidade entre democracia e capitalismo se transforma, em parte, se seria esta uma forma genuína de democracia liberal. No entanto, como se desenvolverá no decorrer do trabalho, não é possível que ocorra a socialização da política em democracias situadas sob os contornos do modo de produção capitalista. Com o amparo de garantias constitucionais liberais tais quais os direitos de reunião, associação e liberdade de expressão, não há, a princípio, maiores obstáculos para a mobilização via instituições de direito privado como partidos políticos, sindicatos e associações. Contudo, o que é improvável no contexto de democracias liberais não é a socialização da política no sentido da organização coletiva ou individual para participar das decisões que dizem respeito a interesses comunitários, mas sim a socialização do poder político, este sim fora do alcance da sociedade de modo geral. Muito embora as constituições contemporâneas constituam documentos jurídicos de compromisso entre o liberalismo capitalista e o intervencionismo, firmando a restrição dos fins estatais e consagrando direitos e liberdades individuais de status negativo, o Estado liberal permaneceu indiferente ao uso que seria feito das liberdades e dos resultados que daí se seguissem, menosprezando o fato de que o Estado não é único que oprime o desenvolvimento da personalidade, e que mesmo as liberdades liberais estão condicionais, em sua realização, a situaçõese poderes extra-estatais, a exemplo dos poderes econômicos cujas pressões interessa libertar-se (SILVA, 2007, p.135). Vejam-se as paradigmáticas experiências históricas da Segunda Revolução Francesa, ocorrida em 1848 e analisada por Marx em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, e a vitória do Syriza nas eleições gregas de 2015 sob a plataforma da anti- austeridade, contrária aos interesses de organismos financeiros internacionais3. O próprio José Saramago (2016), no Fórum Social Mundial realizado em 2005 em Porto Alegre, ponderou que vivemos em uma democracia sequestrada e amputada, visto que a compreensão comum de cidadania se resume a tirar um governo o qual não se aprova para pôr outro que talvez nos 3Embora o êxito eleitoral e a chancela posterior da população grega em um plebiscito, o Syriza, partido de esquerda encabeçado pelo seu primeiro-ministro, Alexis Tsipras, se viu impotente diante do rolo compressor do mercado financeiro, que teve força suficiente para impossibilitar as reformas estruturais programáticas apresentadas pela agremiação durante sua campanha em 2015. 29 satisfaça, enquanto as decisões que de fato têm o condão de delinear os caminhos da macropolítica se constroem nas grandes organizações financeiras transnacionais, antidemocráticas por sua natureza, considerando que não precisam se submeter a eleições para impor políticas econômicas domésticas consentâneas com os interesses particulares do mercado financeiro. Nessa toada, malgrado tenhamos um vasto catálogo de direitos fundamentais, a democracia liberal não vem se mostrando suficiente para concretizá-los na plenitude que se espera. A criminalização da cidadania trazida em Ensaio Sob a Lucidez lança luzes sob o fato de que a tolerância de valores democráticos dura até que sejam exercidos contra os interesses superiores que se contentam com uma democracia em sua acepção meramente formal. Sua radicalização costuma representar, portanto, uma profunda ameaça à própria ordem burguesa que lhe é fiadora, principalmente nos momentos em que se intenta a concretização de marcos normativos instituídos por esta mesma ordem. A constante criminalização de movimentos sociais que se agendam com base na legítima pressão pelo cumprimento de promessas constitucionais esquecidas, a exemplo das reformas agrária e urbana, são exemplos disso. Se a noção de Estado Democrático de Direito passa pelo compromisso de respeitar, concretizar e ampliar o catálogo de direitos e garantias constitucionais (BIELCHOWSKY, 2014), o desrespeito, a inobservância e a resistência em conferir força normativa a uma série de marcos existentes em nossa Lei Maior denuncia: não é possível falar em uma democracia plena em um contexto no qual há uma série de obstáculos à efetivação de direitos constitucionalmente consagrados. Em uma de suas peças de defesa dos perseguidos políticos pelo Estado Novo de Vargas, o advogado Heráclito Fontoura Sobral Pinto (1979, p. 125) cita a obra Um Programme de Restauration Sociale do sociólogo francês Jean Rivain, segundo a qual a liberdade sem garantias do trabalho e da propriedade, prestigiando o livre jogo da especulação, consagra o direito dos mais fortes de modo que a previsão formal das mais diversas liberdades sem os meios e condições materiais mínimas para que possam de fato ser exercidas não passa de mera retórica. Mas por qual razão, mesmo com toda a miríade de fragilidades que põem em xeque a viabilidade das democracias liberais, há a insistência, mesmo entre vertentes de matiz socialista, em trabalhar em cima de suas contradições e limitações, defendendo a manutenção, até certo ponto, de seus fundamentos iluministas? Nesse sentido, Slavoj Zizek (2011) traz uma emblemática anedota que envolve o renomado físico Niels Bohr: surpreso ao notar uma ferradura pendurada na porta de sua casa, um colega cientista o interpela afirmando que não acredita em superstições, no caso, a de que ferraduras penduradas em portas afastariam maus espíritos. “Também não acredito”, teria respondido Bohr, “deixo aí porque me disseram que 30 funciona mesmo não acreditando”. De maneira semelhante, é comum que não sejam levadas a sério as instituições democráticas existentes, cientes de sua natureza retórica, corrupta, frágil e incapaz de atender às expectativas da sociedade, mas ainda assim não se abre mão de disputá- las, de votar e de participar dos espaços disponíveis para que sejam implementadas, deliberadas e executadas políticas públicas, pois supõe-se que funcionem mesmo que se acredite nisso. Ainda, tal perspectiva é um sintoma de que, mesmo ante todas as críticas, a atual moldura democrática, posta como consectária do estágio último de civilização pelos apologistas do Fim da História na linha de Francis Fukuyama (1992), é um ponto essencial para a construção de um regime democrático e popular cujas bases se firmam inicial e transitoriamente nos alicerces da própria democracia burguesa. O programa da social-democracia russa, fixado em 1903, partiu desta premissa ao afirmar que o trajeto rumo ao socialismo na Rússia tzarista teria como fase inicial o despontar de uma “revolução burguesa e democrática que, após derrubar o regime autocrático, estabeleceria as bases políticas, econômicas e jurídicas a partir das quais seria lícito cogitar a luta por uma revolução socialista” (REIS FILHO, 1997, p. 57). O próprio Engels (2014) já asseverava que a república democrática é a única forma de Estado sob a qual podem ser travadas as lutas de classes, hoje definida sob diversas formas, seja através de um sistema tributário que ignora a previsão constitucional que institui a taxação de grandes fortunas, lucros e dividendos, insistindo em concentrar a tributação no consumo e consequentemente nas pessoas de menor renda, até iniciativas voltadas à gradual eliminação do Sistema Único de Saúde em prestígio de entes empresariais da área4. É nessa arena que ganha relevo a tática de radicalização dos cânones democráticos por meio da revelação das contradições sistêmicas existentes nas democracias liberais dentro dos termos estabelecidos por elas próprias. A exposição dos significados subjacentes de institutos da democracia burguesa, evidenciados pelo que Boaventura de Sousa Santos (2013) qualifica de uso não burguês do direito burguês, passa pela fragilização do próprio sistema de acordo com suas características endógenas: a liberdade, pináculo da revolução francesa, alinha-se nesse contexto com a semântica da liberdade de contratar e não com o seu sentido mais autêntico enquanto ausência de obstáculos para que as pessoas possam desenvolver de forma plena suas potencialidades. A narrativa da escravidão, por exemplo, institucionalizou-se por longos anos em ordenamentos jurídicos de influência filosófica e política liberal-burguesa. Logo no artigo 1º da 4Tramita hoje no Congresso Nacional uma série de projetos de lei e emendas constitucionais com o manifesto propósito de retirar recursos do SUS e viabilizar o financiamento de planos de saúde privado, a exemplo da Proposta de Emenda Constitucional nº 451, cujo objetivo é o de incluir, “como garantia fundamental, plano de assistência à saúde, oferecido pelo empregador em decorrência de vínculo empregatício, na utilização dos serviços de assistência médica”. 31 Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão previu-se que “todos os homens nascem livres e iguais em direitos”. Tal previsão, contudo, serviu para dar vazão a um conceito de liberdade e autonomia profundamente entranhado nas relações e nos códigos sociais característicos da troca mercantil baseado na propriedade e nos direitos individuais (HARVEY, 2016, p. 189), não para trazer aos negros e negras escravizadas uma liberdade cujo mero reconhecimento formal, estágio derradeiro das lutas emancipatórias segundo o idéario liberal-burguês,está longe de garanti-la. Foi o que constatou Machado de Assis em crônica publicada no dia 19 de maio e 1888, seis dias após a abolição da escravidão, por meio da qual descreveu a nova “liberdade” de Pancrácio, seu escravo particular, demonstrando o cinismo ideológico da emancipação puramente política, formal e institucional para a garantia dignidade humana segmentos sociais historicamente marginalizados. Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por não me escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos. Tudo compreendeu meu bom Pancrácio; daí para cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe não chamo filho do diabo; cousas todas que ele recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre. (ASSIS, 2009, p.88). Atente-se nesse contexto para a Constituição do Império do Brasil de 1824, que adotou uma ideologia liberal formal clássica com ênfase no liberalismo econômico, onde a matéria constitucional se limitaria à organização do aparelho de Estado e a declaração dos direitos e garantias individuais, abstendo-se de definir a ordem econômica e reproduzindo e consolidando o conteúdo das relações sociais escravistas (CASTRO e MEZZAROBA, 2015, p. 33). Onde está a contradição? Não há contradição. O liberalismo econômico apregoado pela Inglaterra, que vinha constituindo mercados mundiais, havia se desenvolvido a partir do velho regime pré-capitalista colonial (centro-periferia) que tinha o condão de concentrar o desenvolvimento capitalista no centro do sistema, a Inglaterra, em detrimento da desacumulação na periferia, nos territórios coloniais, especializados no fornecimento de matérias-primas para a produção inglesa. Assim mesmo é que o liberalismo, o mesmo liberalismo, consignado na Constituição do Império do Brasil, de 1824, era capaz de reproduzir, internamente, uma ordem escravocrata (POLANYI, 2000, p. 181), fundada num modo escravista de produção e, externamente, uma ordem fundada na divisão internacional do trabalho, em que o Brasil se posicionava como fornecedor de produtos primários para a industrialização inglesa. (CASTRO e MEZZAROBA, 2015, p.25). A estratégia de expor contradições dessa natureza ganha maior relevo na atual fase do capitalismo financeiro e global, onde o desenho de grandes acordos civilizatórios como o de 1988 envolvendo direitos constitucionais sociais e coletivos é ameaçado pela lógica da globalização e da transnacionalização do capital. Não por menos, ressurgiram na década de 90 os velhos argumentos antissocialistas de endeusamento do mercado, glorificação da 32 competitividade e justificação da precarização do emprego, imperando a contestação ao projeto igualitário a partir de hipóteses antropológicas que apresentam a desigualdade como um dado inevitável, a propriedade como uma instituição invulnerável e o mercado como um pilar intocável de qualquer sociedade humana (KATZ, 2016, p. 287). É nessa conjuntura que a radicalização da democracia e a organização da sociedade civil via sindicatos, movimentos sociais e formas de organização congêneres possui um papel imprescindível para a superação de uma ordem que, além de ainda predominantemente formal, onde direitos são positivados mas não concretizados, corre o risco de regredir e rifar direitos muitos dos quais sequer chegaram a surtir alguma eficácia social. Levantamento recente feito pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) aponta, por exemplo, que atualmente tramitam no Congresso Nacional 55 projetos de lei e propostas de emenda constitucional voltadas à supressão de direitos sociais e trabalhistas, reduzindo o papel do Estado e aprofundando mecanismos de controle fiscal. Foi em semelhante conjuntura de supressão e ameaças de direitos que Antonio Gramsci (2004) fez o seguinte questionamento: até onde vão os limites da legalidade? Na sociedade capitalista, prossegue, a legalidade é representada pelos interesses da classe burguesa, de modo que “quando uma ação busca atingir algum modo a propriedade privada e os lucros que dela derivam, tal ação se torna imediatamente ilegal” (ibidem, p. 83). Uma das mais sintomáticas características da perspectiva burguesa de legalidade é o fato desta ser confundida com o exercício do voto, havendo, assim, uma confusão entre substância e norma. A conquista do sufrágio pelas massas populares apareceu aos olhos dos ingênuos ideólogos da democracia liberal como a derradeira conquista para o progresso social da humanidade, patamar último para as lutas emancipatórias, desconsiderando o fato da legalidade ter uma dupla face: uma interna, a substancial, e outra externa, a formal, importando-se a legalidade burguesa tão somente com esta última (ibidem, p. 84). Slavoj Zizek (2011) nota que o que hoje identificamos como direitos intrínsecos à liberdade e à democracia liberal (sindicatos, voto universal, educação gratuita e universal, liberdade de imprensa, etc) é fruto da árdua e prolongada batalha das classes inferiores nos séculos XIX e XX. Mesmo o voto feminino veio somente na esteira do acúmulo de lutas emancipatórias das mulheres neste período. No mesmo artigo trazido no parágrafo anterior, Gramsci afirma que os ideólogos da democracia liberal enganaram por alguns anos as grandes massas populares ao levá-las a acreditar que o sufrágio as libertaria de todos os seus grilhões. A emancipação dos mais diversos segmentos sociais oprimidos poderia, segundo colocavam, se realizar por meio do exercício soberano do direito ao voto. Contudo, referindo-se à Itália do início do século XX, quando o sufrágio e o direito de organização se tornaram meios de uma 33 ofensiva contra a classe patronal, esta última renunciou a qualquer legalidade formal, passando a obedecer apenas à sua verdadeira lei, ou seja, à lei do seu interesse e conservação, arrancando uma a uma as prefeituras que estavam nas mãos da classe operária. Existe um momento na história em que a burguesia é obrigada a repudiar o que ela mesma criou (GRAMSCI, 2004, p. 85). Ainda nos dias atuais, em resposta à legítima pressão da sociedade realizada com fundamento nas liberdades constitucionais de reunião e expressão bem como no republicanismo que se alicerça, teoricamente, na abertura de canais de participação da sociedade na definição dos rumos da coisa pública, vem a criminalização das mobilizações voltadas à concretização dos marcos normativos fixados pela própria ordem burguesa. Em consonância com o diagnóstico de Gramsci, atribui-se a Washington Luís, presidente da República de 1926 a 1930, a frase “a questão social é um caso de polícia”, bastante coerente com a forte repressão levada à frente contra greves, manifestações populares e entidades sindicais que, assim como setores da imprensa, foram perseguidas, invadidas e fechadas durante a República Velha (1889-1930), sempre sob o amparo da liberal Constituição de 1891 (MUNAKATA, 1984, p.9). 2.4. Democracia constitucional e o fetiche da cidadania Certo adágio de autoria incerta coloca que, assim como as salsichas, o melhor é que os cidadãos e cidadãs não saibam a forma com que a lei e as relações políticas são feitas. Em O Capital, Marx (2014) traz o conceito de fetiche da mercadoria, entendido como a maneira com que o sistema-mercado e a forma-dinheiro disfarçam – ou fetichizam – as relações reais entre as pessoas por meio da troca de coisas. O resultado, segundo David Harvey, é a dissimulação da nossa relação social com as atividades laborais de quem produz as mercadorias, mascarada em relações entre coisas. No supermercado, por exemplo, você não tem como saber se a alface foi produzida por trabalhadores satisfeitos, miseráveis, escravos,
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