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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA O TRABALHO DOS MOTORISTAS DE ÔNIBUS: PRECARIZAÇÃO, IDEOLOGIAS E LUTAS YURI FREIRE DE ALMEIDA NATAL 2022 Yuri Freire de Almeida O TRABALHO DOS MOTORISTAS DE ÔNIBUS: PRECARIZAÇÃO, IDEOLOGIAS E LUTAS Dissertação elaborada sob orientação do Prof. Dr. Fellipe Coelho-Lima e apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Psicologia. Natal 2022 Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Programa de Pós-Graduação em Psicologia A dissertação "O trabalho dos motoristas de ônibus: precarização, ideologias e lutas", elaborada por Yuri Freire de Almeida, foi considerada aprovada por todos os membros da Banca Examinadora e aceita pelo programa de Pós-Graduação em Psicologia, como requisito parcial à obtenção do título de MESTRE EM PSICOLOGIA. Natal, RN, ___ de __________ de 20____ BANCA EXAMINADORA Fellipe Coelho-Lima (presidente) _________________________________ Ana Patrícia Dias Sales _________________________________ Cássio Braz Aquino _________________________________ A Dona Flávia. E foi assim que o operário Do edifício em construção Que sempre dizia sim Começou a dizer não. Vinícius de Moraes Agradecimentos Esta dissertação é produto de muito mais do que dois anos de pesquisa acadêmica. Ela é produto de muitas pessoas, amigos, parentes, professores, amores, agências de fomento etc. Sem esses suportes, dos mais variados tipos, nenhuma pesquisa teria sido possível. Por isso, é preciso expressar a gratidão que tenho por aqueles que me ajudaram, às vezes sem nem saber, a percorrer o caminho da pós-graduação. Em primeiro lugar, e não poderia ser diferente, agradeço à minha mãe. Dona Flávia, ela mesmo uma ex-trabalhadora rodoviária, vivenciou ativamente e em carne e osso quase tudo aquilo que esta dissertação relata. Graças à mediação dela, tive interlocução fácil com os trabalhadores a serem entrevistados. Agradeço o seu amor incondicional, seu suporte incondicionado, sua confiança, seu carinho, seu riso frouxo e sua energia que me fortalece todo santo dia. Toda vitória e toda conquista são para você; toda derrota é um lamento por mim e por não poder compartilhar a alegria de vencer contigo. Esse título de mestre é para você. E melhor dizendo: mestre, de verdade, é a senhora! Não há como deixar de agradecer, também, à família Freire como um todo. De alegria caótica, aventureira e contagiante, é uma família que não trocaria por nada. Quero que saibam que não esqueço de onde viemos e que minhas vitórias são também para vocês. Aonde for, irei com vocês e carregando mais do que um sobrenome. Carregando o amor que me dão desde sempre. Agradeço aos meus camaradas Pedro, Jares, Gleyson, Matheus e Kevin, reunidos no PDS há 10 anos! De adolescentes a homens feitos, seguimos juntos, fazendo e contando histórias. Espero que muitas outras décadas nos aguardem pela frente. Me orgulho muito de vocês, das nossas conquistas e da nossa história. Amo vocês! Agradeço ainda a Gabi, que é a definição encarnada de “endurecer sem perder a ternura”, como disse Che. Atravessei esta dissertação sempre com você, embora nem eu, nem você, sejamos mais os mesmos desde o começo da jornada. Espero, agora que a mestranda é você, que eu possa te dar o mesmo suporte que você me deu. Obrigado por estar aqui! Também presto gratidão a meu amigo Gabriel, a quem, no ano de 2019, prometi que colocaria o nome nos agradecimentos da dissertação. O dia chegou e promessa cumprida! O nome de Gabriel consta aqui porque sem a mediação dele, eu nunca teria cogitado a pós- graduação em Psicologia. Também não conheceria meu orientador e não estaria bem preparado para o processo seletivo. Sem exagero, acredito que sem Gabriel, esta dissertação não poderia nem ter começado. Obrigado, camarada! Agradeço ainda a meu orientador, Fellipe, que sempre me motivou e se engajou verdadeiramente nesta pesquisa – inclusive nos meus momentos de desânimo. Agradeço também às comunidades GEPET e GPPOT, nas quais aprendi importantíssimas lições de teoria, método, epistemologia... além de terem me acolhido gentilmente durante esses anos. Agradeço também à CAPES, pela concessão da bolsa que garantiu que esta pesquisa fosse conduzida com dedicação exclusiva. Por último, mas não menos importante, agradeço a todos os trabalhadores que se dispuseram a contribuir com esta pesquisa. Esta pesquisa é mais com vocês do que sobre vocês. Obrigado! Sumário Resumo ........................................................................................................................................... 11 Abstract .......................................................................................................................................... 12 Introdução ...................................................................................................................................... 13 Capítulo I: trabalho, precarização e luta de classes ...................................................................... 17 1.1 O(s) conceito(s) de precarização do trabalho ................................................................... 17 1.2 A economia política da precarização do trabalho............................................................. 23 1.3 Uma breve história [...] de precarização do trabalho ........................................................ 37 1.4 A precarização do trabalho entre os trabalhadores rodoviários ......................................... 57 Capítulo II: sentido-significado e ideologia o trabalho ................................................................. 88 2.1 Psicologia Histórico-Cultural: os fundamentos sociais do indivíduo ................................ 88 2.2 Linguagem, pensamento e ideologia ............................................................................. 100 2.3 A ideologia do trabalho ............................................................................................... 115 Capítulo III: aspectos metodológicos da pesquisa........................................................................ 125 3.1 Objetivos e pressupostos ............................................................................................... 125 3.2 Interlocutores ................................................................................................................ 131 3.3 Coleta de dados ............................................................................................................. 133 3.4 Análise de dados ........................................................................................................... 139 3.5 Cuidados éticos ............................................................................................................. 141 Capítulo IV: sentidos e ideologias entre os motoristas do transporte público ............................ 143 4.1 Dados sociodemográficas e trajetória laboral ................................................................. 143 4.2 Sentido genérico do trabalho ......................................................................................... 148 4.3 Contexto de trabalho ..................................................................................................... 150 4.4 Políticas do trabalho e manifestações recentes ...............................................................156 4.5 Sentidos e ideologias do trabalho .................................................................................. 166 4.5.1 Ideologias do trabalho assalariado clássico ..................................................... 167 4.5.2 Ideologia da luta coletiva ............................................................................... 176 4.5.3 Ideologia salvacionista ................................................................................... 184 Considerações finais ...................................................................................................................... 189 Referências .................................................................................................................................... 192 Apêndice ........................................................................................................................................ 200 11 Resumo Esta pesquisa investiga o papel das ideologias nos processos de resistência contra a precarização do trabalho empreendidos pelos motoristas de ônibus do transporte público municipal de Natal/RN. A partir de um quadro teórico-referencial marxista e fundamentado na Psicologia histórico-cultural, esta pesquisa busca compreender mais do que a precarização do trabalho. Procura, mais especificamente, entender a maneira como os trabalhadores lutam e resistem a esse fenômeno. Os motoristas de ônibus passam por um processo paulatino de transformação das suas condições de trabalho desde o início dos anos 2000, quando se adota, no Brasil, o sistema de bilhetagem eletrônica. Tal sistema permite a automatização da atividade de cobrador de ônibus, o que redundou em demissão em massa desses profissionais e em acúmulo de tarefas por parte dos motoristas. Esse processo, que foi predominantemente paulatino, passou por uma grande radicalização durante a crise pandêmica relativa ao novo coronavírus, a partir do ano de 2020. Entretanto, os trabalhadores de todo o Brasil e, mais especificamente, de Natal, se mobilizaram para resistir. Dentro desse contexto, se valendo de entrevistas semiestruturadas, 11 motoristas de ônibus foram interlocutores desta pesquisa. A partir dos sentidos manifestados nessas entrevistas, foi possível identificar quais ideologias orientavam as ações dos sujeitos ante os conflitos relativos à precarização. As ideologias identificadas foram três: ideologia do trabalho assalariado clássico; ideologia da luta coletiva; e ideologia salvacionista. O que se pode concluir a partir dessas ideologias, é que os trabalhadores possuem uma visão crítica a respeito da precarização e percebem a necessidade de mudanças. Essas mudanças, porém, são vistas como de responsabilidade de terceiros, muito embora os trabalhadores também tomem, de maneira desmotivada e desconfiada, atitudes diretas. Palavras-chave: ideologia; luta de classes; marxismo; psicologia histórico-cultural; sentido. 12 Abstract This research investigates the role of ideologies in the processes of resistance against the precariousness of work undertaken by bus drivers in Natal/RN. From a Marxist theoretical- referential framework and based on historical-cultural psychology, this research seeks to understand more than the precariousness of work, it seeks, more specifically, to understand the way in which workers fight and resist this phenomenon. Bus drivers have undergone a gradual process of transformation of their working conditions since the early 2000s, when the electronic ticketing system was adopted in Brazil. Such a system allows the automation of the bus collector activity, which resulted in mass dismissal of these professionals and in the accumulation of tasks by the drivers. This process, which was predominantly gradual, underwent a major radicalization during the pandemic crisis related to the new coronavirus, from the year 2020. However, workers from all over Brazil and, more specifically, from Natal, mobilized to resist. Within this context, using semi-structured interviews, 11 bus drivers were interlocutors in this research. Based on the meanings expressed in these interviews, it was possible to identify which ideologies guided the subjects' actions against precariousness. The ideologies identified were three: ideology of classical labor; ideology of collective struggle; and salvationist ideology. What can be concluded from these ideologies is that workers have a critical view of precariousness and perceive the need for changes. These changes, however, are seen as the responsibility of third parties, even though workers also take unmotivated and suspicious direct attitudes. Keywords: ideology; class struggle; marxism; cultural-historical psychology; sense. 13 Introdução O modo de produção capitalista, com seus ciclos de acumulação ora estáveis, ora instáveis; ora expansivos, ora recessivos, engendra relações sociais de trabalho que se modificam – às vezes radicalmente – ao longo da história. Nas últimas quatro décadas, a introdução de um novo regime de acumulação, disseminada desde o norte global, objetivada no Consenso de Washington, manufaturou uma conjuntura extremamente adversa para a classe trabalhadora. No fim das contas, o que se presenciou foi uma contrarrevolução mundial, guiada pelas classes dominantes das grandes potências imperialistas. Naquele contexto, esse grupo social verdadeiramente privilegiado deu o seu ultimato aos movimentos populares de massa que manifestavam grande força entre os anos 1960 e 1970. Muitas revoluções foram afrontadas militarmente; muitos partidos, difamados e sabotados por agências de inteligência; muitos sindicatos, esvaziados pelo desemprego e pela informalidade. Assim, o século XXI nasceu prematuramente, ainda nos anos 1990, quando se consolidava o neoliberalismo e se via a derrocada do socialismo real. As nações imperialistas (re)introduziram mundialmente uma tradição de liberalismo autoritário – vide Pinochet, Thatcher e Reagan – orientada à imposição unilateral de agendas econômicas que aprofundam as desigualdades, aumentam a pobreza e intensificam a concentração de renda e riqueza. O que esses agentes esperavam e torciam por, era que a história tivesse acabado ali, como defendia Fukuyama. Se esperava que as classes populares fossem mantidas à rédea curta, em uma obediência produzida pelos novos consensos ideológicos e, quando estes não funcionassem, pela força. Se esperava também, derrotada a União Soviética, e “dessocializada” 14 a Europa Oriental, inclusive com a desmobilização dos grandes partidos comunistas (como o francês e o italiano), que o que sobrou do socialismo real derrocasse em pouco tempo. Apesar disso, três décadas depois, as revoluções feitas em Cuba, Vietnã e China nunca foram derrotadas – e especialmente a última demonstra claros sinais de conquista da hegemonia global, com uma formação econômico-social híbrida, que questiona grandes dogmas do capitalismo ocidental. Muitas outras conquistas populares foram se constituindo no mundo ao longo do século XXI, provando que a história não tinha acabado e que as classes populares estavam plenamente dispostas a resistir à degradação constante das suas condições de vida. Isso se provou no primeiro ciclo de governos progressistas, ocorrido, na América do Sul, na primeira década dos anos 2000. Isso se prova, mais uma vez, em um segundo ciclo, que se inicia em meados de 2020. É nesse contexto de negação do “fim da história”, e como exibição de que não apenas as classes dominantes sabem fazer luta de classes, que os trabalhadores rodoviários vêm resistindo contra a precarização do trabalho – um elemento estrutural e tendencial dos processos de acumulação de capital, cuja intensificação é projeto das classes dominantes, com a intenção de se apropriar de partes cada vez maiores da massatotal de valor produzida pelos trabalhadores. Nesse cenário conflituoso, entre capital e trabalho, objetivado na categoria profissional dos trabalhadores rodoviários, é que se situa esta pesquisa. A partir da observação direta e empírica de que há conflitos se acentuando dentro da categoria em questão, esta pesquisa se dispõe a compreender as dinâmicas, movimentos e motivações das resistências políticas dos motoristas de ônibus de transporte público. 15 A cidade de Natal se torna locus de pesquisa, por ser uma capital destacada quanto ao processo de precarização de trabalho em relação aos motoristas de ônibus. Ademais, foram conduzidas entrevistas em formatação semiestruturada com 11 interlocutores, todos motoristas de ônibus da cidade de Natal. No que diz respeito ao intervalo temporal, o estudo foi conduzido entre os anos de 2020 e 2022, coincidindo com o período da pandemia do novo coronavírus. “Ideologia” (Lukács, 2013) foi o operador teórico que mais se adequou a descrever e permitir uma análise precisa sobre a maneira como os trabalhadores em questão agem [ou não] contra a precarização que os atinge. Assim, a pergunta de partida desta pesquisa é: qual é o papel das ideologias no processo de enfretamento da precarização do trabalho empreendido pelos motoristas de ônibus do transporte público municipal de Natal/RN? Esta dissertação é composta por quatro capítulos, além desta introdução e das considerações finais. O primeiro capítulo se destina a uma discussão teórica e bibliográfica sobre a discussão relativa à categoria “precarização do trabalho”. Além de contar com uma revisão bibliográfica, este capítulo também introduz alguns elementos da economia política marxista, com a intenção de contribuir, teoricamente, para a compreensão do fenômeno. O segundo capítulo também traz um debate teórico, mas, desta vez, orientado a disposições subjetivas e psicológicas, com a intenção de sofisticar a discussão sobre o operador teórico de “ideologia”. Assim, os dois primeiros capítulos apresentam os fundamentos teóricos da pesquisa, especialmente no que concerne aos dois principais operadores mobilizados para a produção deste estudo. O terceiro capítulo versa sobre os aspectos metodológicos fundamentais da pesquisa. Ali, são abordadas questões como instrumento de coleta, modelo de análise, fechamento de amostra, princípios éticos e cuidados relativos à pandemia de coronavírus – afinal, esta pesquisa foi conduzida no período pandêmico. 16 O capitulo quarto expõe os resultados e as discussões quanto aos dados coletados na pesquisa empírica. Ele tanto descreve categorias de análise que sintetizam sentidos coletados pelo instrumento de pesquisa, quanto expõe sínteses teórico-analíticas que permitem a identificação de um conjunto de ideologias que circulam entre os interlocutores. Assim, esse capítulo também descreve tais ideologias, bem como suas funções, direcionamentos e contradições. 17 Capítulo I: trabalho, precarização e luta de classes 1.1 O(s) conceito(s) de precarização do trabalho Discutir trabalho em um mundo cujo sistema de metabolismo social é determinado por relações capitalistas (Mészáros, 2002), necessariamente significa debater exploração, alienação, dominação, paupérie, precariedade e precarização. Essa última categoria, geralmente, é utilizada para descrever processos de deterioração das condições de trabalho dos trabalhadores, especialmente após as imensas transformações ocorridas nas relações de produção a partir de meados da década de 70 do século XX. Esse processo, que marca o fim da hegemonia da administração científica taylorista/fordista e o advento da acumulação flexível (Harvey, 1992), baseada no toyotismo, ficou conhecido como reestruturação produtiva. No geral, quando pesquisadores se referem a “precarização”, se referem a características de trabalho típicas desse “novo” modelo de racionalidade econômica. É vasta a literatura na sociologia, na economia, no direito e na psicologia, bem como são muitos os autores que se debruçam sobre o fenômeno da precarização do trabalho. Podem ser citados, nesse rol, entre outros, Antunes (2013), Braga (2012), Pochmann (2001), Leite (1994), Alves (2000), Ramalho e Santana (2009), Véras (2011). Por sua vez, Graça Druck (2011) estabelece indicadores que facilitam a observação concreta do fenômeno social. Entretanto, antes de citar os indicadores propriamente ditos, algumas palavras da autora sobre a questão da “precarização social do trabalho”. Para a socióloga, tal processo diz respeito a uma “institucionalização da flexibilidade” (Druck, 2011, p. 41), responsável pela renovação e reconfiguração da “precarização histórica e estrutural do trabalho no Brasil”. Ademais, para ela, “o conteúdo dessa (nova) precarização está dado pela condição de instabilidade, de insegurança, de [...] fragmentação dos coletivos de trabalho e da 18 destituição do conteúdo social do trabalho” (Druck, 2011). É válido ainda ressaltar que quando a pesquisadora acrescenta “nova” ao se referir a “precarização”, ela pressupõe que também existiu uma “velha precarização”. Ou seja, reconhece algo de estrutural, trans-histórico e diacrônico no que diz respeito à precarização do trabalho. De modo, é possível inferir, a partir dessa leitura, que não estamos diante “da” precarização, mas de “uma” precarização específica. Esse tema será retomado e aprofundado na sequência. Retomando os indicadores de precarização propostos pela autora, eles são os seguintes: Fragilidade nas formas de inserção: são formas de contrato que burlam legislação trabalhista, que mascaram vínculos empregatícios, que, portanto, negam acesso dos trabalhadores à seguridade social “garantida” pelo Estado. Se manifesta concretamente, entre outros possíveis exemplos, no trabalho informal, no trabalho intermitente, no zero hour contract, em certos “empreendedorismos” etc. Outros indicadores de precarização são a terceirização e a intensificação do trabalho: polivalência, multifuncionalidade, metas inalcançáveis, extensão das jornadas de trabalho etc. No que diz respeito à terceirização, há contratos frágeis, alta rotatividade (ou seja, constante ameaça de desemprego), maior risco de acidentes de trabalho, baixos salários, problemas com representação sindical etc. Outro indicador é a insegurança e a saúde no trabalho: ausência ou insuficiência de treinamento, de informações ou de equipamentos costumam a transformar a produção capitalista em uma máquina de moer gente, na qual trabalhadores se acidentam e, por vezes, morrem, ao valorizar um capital por meio de seu trabalho1. 1 Segundo dados citados por Druck (2011, p. 49), em 2001 foram registrados 340.300 acidentes de trabalho no Brasil. Em 2009, foram 723.500. Já segundo dados da Fundação Jorge Duprat e Figueiredo, de 2012 a 2018, ocorreram 4,5 milhões de acidentes de trabalho no Brasil. Esse último dado pode ser encontrado no sítio eletrônico da fundação. Disponível em: <http://www.fundacentro.gov.br/noticias/detalhe-da-noticia/2019/4/acoes- regressivas-gestao-de-riscos-e-impacto-dos-acidentes-de-trabalho-foram-temas-de-debate> . Acesso em: 25 de abr. de 2020. 19 Também é citado pela autora, como indicador, a perda das identidades individual e coletiva, resultado da constante ameaça de desemprego. Assim, a concorrência desencadeada entre os trabalhadores contribuiria para a destruição da solidariedade de classe entre eles. A precarização também se apresenta em outra frente: a fragilização da organização dos trabalhadores. Nesse tema, se fala especialmente dos sindicatos e de seu processo inquestionável de enfraquecimento nas últimas décadas, devido às vitórias históricas do capital, bem-sucedido na implementação dos programas neoliberais e da acumulação flexível. Esse assunto é bastante complexo – especialmente no quediz respeito especificamente à história do Brasil – e merece um detalhamento que não será feito por ora. Por fim, mas não menos importante, está um outro importantíssimo indicador: a deslegitimação e enfraquecimento do direito do trabalho. Evidentemente, o capital tem como um dos seus grandes inimigos a defesa política que o Estado faz do trabalho, quando devidamente pressionado pelos trabalhadores. Assim, toda imposição política que tente impor freios à livre exploração do trabalho (e, portanto, que tente regular politicamente a acumulação capitalista) é um alvo a ser destruído pela classe capitalista. Na era do neoliberalismo, da financeirização da economia e da acumulação flexível, tal qual os sindicatos, o direito do trabalho sofre ataques por ousar dar, à classe trabalhadora, garantias de proteção que ela mesmo conquistou com suor e sangue2. Com esses indicadores pode-se ter um panorama geral do que se chama precarização do trabalho, em suas mais diversas manifestações. Entretanto, há de se questionar em que medida esse processo de corrosão do trabalho e de deterioração de suas condições é um fenômeno recente ou não, conjuntural ou não. Ou seja, quando se fala em precarização, se fala de um fenômeno surgido junto com a reestruturação produtiva e com o neoliberalismo? Dadas as 2 Um exemplo possível de deslegitimação e enfraquecimento do direito do trabalho é a chamada “Reforma Trabalhista” (Lei 13.467/2017), levada a cabo pelo governo Temer e por entidades empresariais, cujo mote central é a primazia do “negociado” sobre o legislado. 20 características do processo, é evidente que o mundo do trabalho passa por transformações dotadas de atributos nunca vistos antes na história. Mas essas mudanças, em termos de movimento histórico, são inéditas? Responder a essas perguntas é fundamental para uma compressão nítida das relações de trabalho e da natureza do capitalismo contemporâneo. Seguindo uma linha similar à de Druck, Adrián Sotelo Valencia, cientista social marxista, mexicano, faz um apontamento no sentido também de entender que há continuidades estruturais na questão da precarização do trabalho. Para Valencia (2016, p. 120), o que se vive, contemporaneamente, é “a atualização da precariedade do trabalho, por meio do processo de precarização”. Ao assumir que a “precarização”, na verdade, é uma atualização da “precariedade”, o autor sustenta que o fenômeno social é estrutural, tendo passado, nas últimas décadas por um processo de reconfiguração formal. Assim, se pode entender que, quando se fala em “precarização”, se fala de um velho fenômeno, com um novo rosto. Na citação acima ainda é possível extrair outra sutileza teórica (não aprofundada pelo autor no texto de origem): o termo “precariedade” para se referir à dimensão estrutural do fenômeno e o termo “precarização” para se referir à sua versão histórica. Desse modo, é possível chegar a uma díade de operadores teóricos que articulam dialeticamente o estrutural (universal) com o histórico (particular). 1 Para essas questões, é preciso raciocinar de maneira dialética. A versão histórico- particular do fenômeno não descarta e não se aparta do que é estrutural. Ao contrário, essa dimensão particular contém a dimensão estrutural dentro de si, bem como retroage sobre ela, a atualizando. Em outras palavras, quando um autor fala da precarização, ele também está falando da precariedade e vice-versa. Assim, se pode concluir que, na sociedade da propriedade privada capitalista, a precariedade do trabalho sempre está dada, ao menos enquanto tendência (como se verá) para a classe trabalhadora, portanto, cabendo aos cientistas compreenderem como essa tendencial 21 precariedade se apresenta fenomenicamente em uma determinada época histórica ou para uma fração da classe trabalhadora em específico. Também se pode argumentar que aqueles indicadores acima citados (Druck, 2011) dizem respeito à versão histórica contemporânea da precarização – aquela relativa à acumulação flexível e ao neoliberalismo. Assim, podería-se estabelecer, por exemplo, outros indicadores (embora alguns pudessem também ser mantidos) de precarização para o trabalho no século XX ou no século XIX. Essas posições podem ainda ser sofisticadas com teses do sociólogo Ricardo Antunes, que fala em “tendência estrutural à precarização do trabalho”. Com já alguma argumentação sobre por que essa tendência existe, Antunes (2020, p. 61) afirma que “a precarização não é algo estático, mas um modo de ser intrínseco ao capitalismo”. E segue: “[Se trata de] um processo que pode tanto se ampliar como se reduzir, dependendo diretamente da capacidade de resistência, organização e confrontação da classe trabalhadora” (Antunes, 2020, p. 62). Aqui, o sociólogo refina a discussão pondo no debate a correlação de forças entre as classes sociais, ou seja, evidenciando o papel da luta de classes. Onde houver uma classe trabalhadora politizada e bem organizada, com alta capacidade de confrontação em relação ao capital, a deterioração do trabalho tende a ser menor. Sotelo Valencia (2016) adiciona à luta de classes, outros fatores que determinam o grau e o modo como o trabalho se precariza: nível de desenvolvimento da composição orgânica do capital, grau de incorporação de tecnologias, nível de estabilidade ou de crise do sistema econômico etc. Os dois primeiros fatores estão diretamente associados. A composição orgânica do capital é definida pela proporção em que uma unidade produtiva divide seu processo de produção entre capital constante e capital variável – sendo o primeiro relativo ao capital na forma de meios de produção e o segundo, na forma de força de trabalho. Assim, uma unidade de produção de valor com alto índice de incorporação de tecnologias de ponta, faz com que haja 22 a proeminência do capital constante em detrimento do capital variável. Em síntese, há mais maquinaria, instrumentos e insumos do que força de trabalho viva. Isso abre margens para a exploração do mais-valor relativo, para intensificação da jornada, para demissões em massa, para a contenção de movimentos de resistência etc. Quanto à crise ou estabilidade da economia, é importante reiterar que o motor da produção capitalista de valor é a exploração do trabalho. Quando há uma crise, i.e., um processo de interrupção abrupta do movimento do valor, no qual o capital cessa sua valorização, é comum que os capitalistas busquem a retomada - ou a minoração dos danos - da acumulação a partir da redução salarial, da demissão em massa, da intensificação da exploração etc. Pode-se adicionar, também, embora não citado pelo autor, o modo como um determinado país se insere na divisão internacional do trabalho, afinal, como se verá adiante, a condição de dependência (Marini, 2011) geopolítica e econômica tem graves implicações para a exploração da força de trabalho. No que diz respeito à questão da compreensão do trabalho no Brasil, Antunes segue a mesma linha de Druck. Segundo o autor, o trabalho nos países periféricos3 “nasceu eivado da condição de precariedade” (Antunes, 2020, p. 64). Mais especificamente no Brasil (embora tal condição esteja longe de lhe ser exclusiva), isso se dá porque o trabalho “livre” e assalariado é herdeiro de relações escravistas, que marcaram e constituíram a maior parte da história deste país. De tal maneira, no que diz respeito ao trabalho no Brasil, a “precarização não é a exceção, mas um traço constante de sua particularidade desde a origem” (Antunes, 2020, p. 64). Não obstante, é imprescindível, para uma compreensão precisa a respeito dos fenômenos mencionados, uma discussão teórica no âmbito da economia política, que pode dar 3 Levando em consideração que países na periferia do capitalismo tendem a ser, além disso, dependentes, subdesenvolvidos e de origem colonial. 23 respostas relevantes às questõesconcernentes à precarização do trabalho. Essa discussão é o que orientará a próxima seção deste trabalho. 1.2 A economia política da precarização do trabalho Antes de partir para a discussão sobre a precarização em si, é preciso demarcar e reiterar alguns fundamentos da teoria do valor-trabalho. Como sustentado pela economia política marxiana (Marx, 1867/2017), a força de trabalho, vendida e comprada como uma mercadoria qualquer, na verdade, possui uma característica muito específica, chave da acumulação capitalista: é uma mercadoria cujo valor de uso é a produção de novo valor. A partir daí, entram em cena os mecanismos de extração desse valor pelo capitalista, utilizado para valorizar o seu capital. Nesse processo, o protagonista é o mais-valor, mecanismo que consiste em uma determinada quantidade de valor produzida pelo trabalhador, mas que não lhe é remunerada, ao contrário, é apropriada privadamente pelo capitalista, de modo a, como já dito, valorizar seu capital. Assim, tudo que é retirado do trabalhador despossuído é transferido para o capitalista. A esse processo de expropriação de valor dos trabalhadores pelos capitalistas se chamou exploração. Ademais, “capital”, enquanto conceito, pode ser definido de duas formas: primeiro, como valor que tem a capacidade de se valorizar; segundo, como valor em movimento (Marx, 1867/2017; Harvey, 2018). Essas duas definições apenas ressaltam aspectos distintos do mesmo processo, e, por isso, podem ser unificadas: capital é o valor que se movimenta a fim de se valorizar4. Ainda nesse tema, com intenção de aprofundar o entendimento do processo de exploração, é necessário entender que a força de trabalho, como dito, é uma mercadoria a ser 4 O movimento do valor é sintetizado na fórmula D-M-D’, que representa as metamorfoses do valor, ora objetivado na forma-dinheiro (D), ora na forma-mercadoria (M). Em termos gerais, o valor só pode se valorizar se cumprir o circuito de metamorfoses apontado pela fórmula (dinheiro se torna mercadoria, que, por sua vez, volta a ser dinheiro, porém, agora, valorizado). 24 vendida por um despossuído e a ser comprada por um proprietário. A compra/venda dessa força de trabalho é paga sob a forma de salário, que diz respeito ao valor socialmente reconhecido como necessário à reprodução da própria força de trabalho. O trabalho, sendo ele mesmo mercadoria, mede-se como tal pelo tempo de trabalho que é necessário para produzir o trabalho-mercadoria. E o que é necessário para produzir o trabalho-mercadoria? Exatamente o tempo de trabalho necessário para produzir os objetos indispensáveis à manutenção contínua do trabalho, isto é, para permitir a sobrevivência do trabalhador e as condições de propagação de sua espécie. (Marx, 1867/2017, p. 59). Assim, quanto mais caro for reconhecido socialmente o custo de reprodução da vida material de um trabalhador (e, por consequência, de sua força de trabalho), tanto maior tenderá a ser o seu salário. Esse salário, por sua vez, não é um prêmio ou uma doação: ele tem de ser produzido durante a jornada de trabalho. A parte da jornada de trabalho na qual o trabalhador produz uma quantidade de valor que lhe será remunerada na forma de salário é chamada na economia política marxiana de “trabalho necessário”. Dessa forma, o trabalho necessário produz o salário do trabalhador. Entretanto, a jornada de trabalho não se encerra aí. Após cumprir o tempo de trabalho necessário e assim produzir o valor de seu salário, o trabalhador é coagido a trabalhar uma outra parte da jornada, dessa vez de forma gratuita, não remunerada, destinada exclusivamente à produção de um valor “a mais” para o capitalista. Essa parte da jornada que consiste em trabalho não remunerado é chamada “mais-trabalho” (ou ainda “sobretrabalho” ou “trabalho excedente”). O mais-trabalho gera um mais-produto, que é portador de um mais-valor. De tal modo, esse valor excedente, o mais-valor, produzido gratuitamente, é fruto de trabalho não remunerado, ou seja, explorado e destinado à engorda do capital do proprietário. É trabalho que custa dispêndio de energia física e intelectual do trabalhador, mas que não lhe retorna valor algum. É válido ressaltar ainda que o salário possui, dessa forma, uma dimensão ilusória, porque, ao contrário do que possa parecer superficialmente, ele não remunera o trabalho como um todo, mas apenas uma parte dele, i.e., o trabalho necessário. Segundo Marx (1867/2017, p. 610), “a forma-salário extingue, portanto, 25 todo vestígio da divisão da jornada em trabalho necessário e mais-trabalho, em trabalho pago e trabalho não pago. Todo trabalho aparece como trabalho pago”. Ainda sobre o salário, é importante afirmar que toda vez que a classe trabalhadora demanda o aumento do seu salário, ela está, ao mesmo tempo, demandando o aumento da parcela do trabalho necessário dentro da jornada de trabalho. Em uma jornada de trabalho legalmente limitada, aumentar o trabalho necessário significa reduzir o mais-trabalho, ou seja, reduzir a produção de mais-valor – o que, evidentemente, deteriora a condição de valorização do capital. Do outro lado, os capitalistas lutam para reduzir os salários a um limite mínimo (dado a partir do valor compreendido como necessário à reprodução da força de trabalho), o que significa estender o mais-trabalho (e a consequente extração de mais-valor) ao máximo. Ademais, também é preciso compreender os mecanismos a partir dos quais os capitalistas aumentam o mais-trabalho. Se os proprietários simplesmente aumentam a jornada dos trabalhadores, mantendo o trabalho necessário fixado, esse aumento está dado na parcela excedente do trabalho, aumentando, portanto, o tempo de mais-trabalho. A esse processo se dá o nome de “mais-valor absoluto”. Entretanto, a partir de certo nível de desenvolvimento das forças produtivas, é possível, ao capitalista, reduzir o valor da força de trabalho, diminuindo, assim, o trabalho necessário e, consequentemente, aumentando a parcela do mais-trabalho dentro de uma jornada legalmente fixada. Esse processo se chama “mais-valor relativo” e se constitui a partir de muitas mediações: o capitalista, especialmente a partir da introdução de tecnologias na produção, aumenta a produtividade do trabalho; com o trabalho mais produtivo, a quantidade de trabalho humano necessário para a produção de mercadorias cai; com a queda da quantidade de trabalho objetivado na mercadorias, o valor dessas mercadorias também cai; como o trabalhador se reproduz materialmente a partir da compra – com seu salário – de mercadorias que ele mesmo produz, se o valor das mercadorias cai, o custo de reprodução de 26 força de trabalho também cai; se o custo de reprodução cai, o salário também cai, bem como o tempo relativo ao trabalho necessário; a consequência é o aumento do mais-trabalho e, portanto, da extração de mais-valor. Por fim, não raro as duas formas de extração de mais-valor aparecem de forma conjunta e combinada nos processos de produção de valor. Retomando a discussão sobre precarização do trabalho, afirmou-se que, entre os autores citados na seção anterior, Antunes desenvolvera uma argumentação sobre por que existe uma “tendência à precarização”. Baseando-se na teoria marxiana do valor-trabalho, o sociólogo aponta que uma vez que os capitais buscam com frequência aumentar o mais-valor (tanto o relativo quanto o absoluto), a incessante ampliação da troca desigual entre o valor que o proletariado produz e o que ele recebe é uma tendência presente na própria lógica do capitalismo. Para tanto, são usados vários mecanismos, como a intensificação do trabalho, o prolongamento da jornada, a restrição e a limitação de direitos, os novos métodos de organização sociotécnica do trabalho etc. (Antunes, 2020, p. 62). Seguindo uma linha argumentativa similar à do autor, baseando-se tambémna teoria marxiana do valor-trabalho, se tentará, nas próximas linhas, complexificar o argumento que tenta responder às razões pelas quais há uma “tendência estrutural à precarização do trabalho” – ou, em outros termos, porque há uma precariedade estrutural que tende a se reproduzir de forma atualizada. Em primeiro lugar, é preciso reiterar o argumento de Antunes a partir da introdução da categoria “acumulação” (Marx, 1867/2017). A acumulação capitalista é um processo cíclico, em escala progressiva e ampliada, de autovalorização do capital. Como o capital se valoriza a partir da exploração da força de trabalho, que se objetiva economicamente na extração do mais- valor, pode-se concluir que, quanto maior for a exploração do trabalhador (i.e., quanto maior for a extração de mais-valor), tanto mais o capital se valoriza. Se esse capital, agora valorizado pelo trabalho explorado, é reinserido na produção – como capital “adiantado” ou “aplicado” –, de modo a ele mesmo “financiar” a compra de nova força de trabalho, tem-se que o trabalho 27 anteriormente explorado “pagou” uma nova exploração do trabalho. Assim, no processo de acumulação, o capitalista utiliza o mais-valor extraído para extrair um outro mais-valor5 ou, se pode dizer ainda, que o capitalista expande seu capital por meio do reinvestimento da massa de mais-valor apropriada dos trabalhadores. Em outras palavras, ele explora para poder explorar mais. De tal maneira, como dito anteriormente, esse processo ocorre em escala sempre ampliada e progressiva, o que quer dizer que a cada “ciclo” de produção de mais-valor, o capital, valorizado por esse excedente, consegue meios para um novo “ciclo” de produção de uma massa ainda maior de mais-valor. Em outras palavras, na acumulação, o valor é prolífico: um excedente que gera novo excedente, que gera novo excedente e assim por diante. Destaque-se que esses excedentes vão tornando o capital cada vez maior e, portanto, com capacidade de extrair excedentes também cada vez maiores. Entretanto, essa autovalorização é uma tendência dada em uma economia estável e sem entraves ao movimento do valor. Em uma crise, por exemplo, a tendência ao crescimento exponencial se esvai. Retomando o debate sobre processo regular de acumulação, se pode afirmar que um capital grande – já muito valorizado – pode “financiar” novos meios para otimizar a exploração/valorização, como aquisição de novas tecnologias, técnicas, treinamentos, novas contratações, compra dos concorrentes etc. Isso quer dizer, precisamente, expansão/ampliação do capital aplicado, que, destaque-se, pode ocorrer, materialmente, de maneira apenas quantitativa (aquisição de mais máquinas, mais trabalhadores, novas plantas de fábrica etc.), apenas qualitativa (substituindo máquinas por outras mais sofisticadas, alterando a composição orgânica do capital) ou as duas coisas. Assim, como já dito, se pode afirmar: o capital explora para poder explorar ainda mais (seja em termos quantitativos ou qualitativos). Ou, nas palavras 5 Nas palavras do próprio Marx (1867/2017, p. 659): “a própria parte do capital trocada por força de trabalho não é mais do que uma parte do produto do trabalho alheio, apropriado sem equivalente”. Isso de modo que essa nova força de trabalho, paga com trabalho excedente, também tenha de gerar um novo excedente. 28 de Marx (1867/2017, p. 658): “Quanto mais o capitalista tiver acumulado, mais ele poderá acumular”. Quanto maior a massa de valor que um capitalista detiver, tanto mais ele poderá comprar meios para valorizar ainda mais o seu valor. Ademais, como já apontando no parágrafo anterior e conforme destaca Miglioli (1981), de nada adiante o capital se valorizar, se não houver condições materiais para que essa expansão se objetive como um reinvestimento ampliado. Ou seja, depois que o capital se valoriza, é preciso que haja meios de produção e força de trabalho disponíveis na sociedade para a compra pelo capitalista, para que, então, um novo – e maior – ciclo de produção de [mais-]valor se inicie. Se um desses fatores não estiver disponível, o reinvestimento não pode acontecer e o capitalista entesourará ou especulará com esse capital até que surjam as condições materiais para a efetiva expansão da produção6. Um outro fator, ainda a ser debatido, que limita o processo de acumulação, é o nível de demanda efetiva agregada da sociedade: quanto mais o capital cresce, mais produtivo se torna e mais necessita de mercados para realizar o valor dessas mercadorias. Assim, se os mercados (demanda) não crescem em velocidade equivalente à expansão da produção (oferta), a tendência é que os capitalistas invistam menos, o que significa a desaceleração do processo de acumulação7. Ainda nesse ponto, mas partindo para outras consequências, para que o valor produzido se realize, isto é, para que o ciclo que começa na produção se complete no consumo e, assim, o capitalista seja pago, é preciso, primeiro, que ele consiga vender suas mercadorias. Porém, como se sabe, para vender mercadorias, salvo circunstâncias razoavelmente excepcionais8, é preciso vencer a concorrência. Também é sabido que vence a concorrência quem oferta o menor 6 No caso de o capital não conseguir se aplicado em nenhum lugar, de nenhuma forma, ocorre uma crise de “superacumulação”. 7 Em termos concretos, quando isso acontece, a produção passa a atuar com “capacidade ociosa”. 8 Monopólios, oligopólios, trustes, cartéis etc. 29 preço, e quem oferta o menor preço, salvo também excepcionalidades9, é quem consegue produzir a mercadoria com o menor valor. Assim, a concorrência põe os capitalistas em uma batalha permanente pela redução do valor das mercadorias, dada a partir do aumento da produtividade do trabalho. Nas palavras de Marx (1867/2017, p. 702), “a luta concorrencial é travada por meio do barateamento das mercadorias. O preço baixo das mercadorias depende [...] da produtividade do trabalho [...]”. Esse processo de aumento da produtividade do trabalho, que culmina na redução do valor da mercadoria e dá melhores condições de concorrência ao dono de um capital, é feito especialmente a partir do aumento da composição orgânica do capital – sendo essa modificação impulsionada pela concorrência. Dessa forma, o trabalho vivo, representado pelo trabalho humano, vai perdendo espaço para o trabalho morto, representado pelas máquinas; bem como surge a possibilidade da apropriação do mais-valor relativo10. As consequências desse processo de transformação produtiva, guiado pela concorrência e pelo desenvolvimento da acumulação e com vistas à otimização/ampliação da própria acumulação, são nefastas para o trabalhador, conforme demonstrado por Marx (1867/2017): redução do preço e/ou do valor da força de trabalho, extensão da jornada, intensificação da jornada, desemprego, incremento da exploração etc11. A partir disso, i.e., da deterioração das condições de trabalho e das condições de venda da força de trabalho, já é possível ver como a tendência à precarização é uma constante nas dinâmicas de acumulação de capital – e ocorre justamente devido a ela. 9 Aqui, é exemplo o dumping: estratégia de mercado para baixar temporária e artificialmente os preços da mercadoria com o intuito de falir os concorrentes. 10 “A maquinaria é o meio mais poderoso de incrementar a produtividade do trabalho, isto é, de encurtar o tempo de trabalho necessário à produção de uma mercadoria, ela se converte, como portadora do capital nas indústrias de que imediatamente se apodera, no meio mais poderoso de prolongar a jornada de trabalho para além do limite natural” (Marx, 1867/2017, p. 475-6). 11 Também é válido ressaltar a importância do sistema de crédito, ou, mais precisamente, do endividamento do capital, no estímulo ao aumento da produção de valor ou mais-valor. Isso ocorre porque, com o valor a ser produzidono futuro já empenhado com uma instituição financeira, o capitalista precisa de ainda mais valor excedente para manter sua massa de mais-valor. 30 Entretanto, também se pode afirmar que, em certas circunstâncias, especialmente na periferia do capitalismo global, onde há entraves geopolíticos para o desenvolvimento e para a sofisticação técnica do aparato produtivo12, se pode vencer a batalha concorrencial – e promover um aumento da massa de valor excedente apropriada pelo capital – por meios que estão aquém do aumento da produtividade do trabalho. São exemplos disso o uso de força de trabalho superexplorada – como se verá adiante – e até mesmo em condições análogas à escravidão. Também nessa situação, como se observa, o movimento de expansão permanente da acumulação ocorre em detrimento do trabalhador. Ademais, é importante saber que esses processos concernentes ao movimento do valor são dinâmicas permanentes da sociedade baseada da propriedade privada capitalista. O que quer dizer que a acumulação e a concorrência, integradas, obrigam os capitais a revolucionarem permanentemente seus processos de produção13. Para Harvey (2018, p. 126), “Marx demonstra, em seu estudo, que o capital tem de ser tecnologicamente dinâmico a todo custo” e que “a transformação tecnológica e organizacional é endógena e inerente ao capital e não exógena e acidental”. Quando um capital específico aumenta a sua produtividade, todos os concorrentes têm de o seguir, sob pena de terem sua acumulação comprometida ou interrompida (o que quer dizer falência). Dessa maneira, a indústria moderna jamais trata como definitiva a forma existente de um processo de produção. Sua base técnica é, portanto, revolucionária, ao passo que a de todos os modos de produção anteriores era essencialmente conservadora. Por meio da maquinaria, de processos químicos e outros métodos, ela revoluciona continuamente, com a base técnica da produção, as funções dos trabalhadores e as combinações sociais dos processos de produção. Desse modo, ela revoluciona de modo igualmente constante a divisão do trabalho no interior da sociedade e não cessa de lançar massas de capital e massas de trabalhadores de um ramo de produção a outro. A natureza da grande indústria condiciona, assim, a variação do trabalho, a fluidez da função, a mobilidade pluridimensional do trabalhador (Marx, 1867/2017, p. 557). 12 Esse problema é o problema da “dependência” (Marini, 2011), como se verá. 13 “A burguesia não pode existir sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção, e com isso, todas as relações sociais.” (Marx & Engels, 1848/2010, p. 43). 31 O que vale reiterar da citação acima é o que já foi dito: a base produtiva do capital está submetida a transformações constantes, que, via de regra, como exposto nas últimas três linhas do trecho supracitado de Marx, transformam também as relações de trabalho. Dado o próprio caráter antagônico da acumulação capitalista (Marx, 1867/2017, p. 732), que se funda na exploração da força de trabalho – e que se otimiza tanto mais eficazmente essa força de trabalho é explorada –, essas transformações aparecem para benefício do capitalista, nunca para benefício do trabalhador. Especialmente porque tudo aquilo que valoriza o capital é retirado do assalariado. Assim, a tendência à acumulação de capital tem como contrapartida a tendência à piora, absoluta ou relativa (Netto & Braz, 2012), das condições de reprodução da vida dos trabalhadores. Ruy Braga (2012) destaca esses pontos quando lança mão da categoria “precariado”, ou seja, a fração precarizada da classe trabalhadora. Conforme é modificada a composição orgânica do capital e este ganha saltos de produtividade, grandes massas de trabalhadores são lançadas para fora dos setores produtivos mais dinâmicos, engrossando as fileiras da superpopulação relativa/exército industrial de reserva. Essa massa, que Marx reconheceu como um elemento estrutural e condição de reprodução do capital, é um quantum de trabalhadores supranumerários que encontram (sub)ocupações precárias, mal remuneradas e, muitas vezes, somente esporadicamente. A partir do reconhecimento desse caráter antagônico da reprodução ampliada do capital, Marx formula a Lei geral da acumulação capitalista. Nas palavras do autor, essa operação que a lei descreve ocasiona uma acumulação de miséria correspondente à acumulação de capital. Portanto, a acumulação de riqueza num polo é, ao mesmo tempo, a acumulação de miséria, o suplício do trabalho, a escravidão, a ignorância, a brutalização e a degradação moral no polo oposto (Marx, 1867/2017, p. 721). 32 Dessa maneira, está constituído um nexo dialético entre a opulência burguesa e o pauperismo proletário. Tudo isso, tendo a exploração da força de trabalho como elemento que media as duas situações de classe. Evidentemente, houve e há situações e contextos históricos, como se verá na próxima seção, nos quais a classe trabalhadora possuiu uma melhora sensível no que diz respeito às suas condições de vida e trabalho – aparentemente contradizendo Marx. Entretanto, o que ocorreu nesses contextos foi que a tendência à degradação do trabalho ou foi mitigada pela luta social (em nível nacional e internacional), como também se discutirá adiante, ou pelo deslocamento dessas “más condições” para as periferias globais14. Também existem as circunstâncias em que a expansão do capital se dá por vias meramente “quantitativas” (acumulação extensiva), ampliando a escala da produção sem alterar sua composição orgânica. Esse processo atrai força de trabalho, reduzindo a superpopulação relativa e melhorando a correlação de forças da luta de classes em favor do proletariado. Isso tende a melhorar a situação conjuntural da classe trabalhadora (Singer, 1978; Fine & Saad Filho, 2021; Barreto, 2018). Ademais, todos esses processos podem se apresentar de maneira combinada. Apesar disso, mesmo nas situações em que a classe trabalhadora deixa de ser pauperizada em termos absolutos, ainda assim, é possível que essa classe esteja relativamente mais pobre que outrora – pois essa classe, mesmo tendo rendimentos maiores em termos absolutos, pode estar recebendo, como rendimento, uma parte cada vez menor da massa total de valor produzida por uma sociedade (Netto & Braz, 2012). Nesses contextos, a pobreza diminui, mas a desigualdade se aprofunda cada vez mais. É válido ainda, sobre isso, mencionar uma outra passagem do pensador alemão, que afirma: “[...] porque a produção total se eleva e, 14 Esse fenômeno também é explicado pela dependência: uma certa nação desenvolvida pode aceitar a diminuição da massa de valor explorada em seu próprio solo, desde que haja mecanismos políticos e econômicos que a permita compensar essas perdas a partir da drenagem do valor produzido nos países subdesenvolvidos e dependentes. Assim, essa nação hipotética atenua seus conflitos de classe, enquanto transfere tais contradições para um país historicamente condenado. 33 na mesma medida em que isso acontece, aumentam também as necessidades, apetites e exigências, a pobreza relativa pode, portanto, aumentar, enquanto a absoluta reduzir-se” (Marx, 1932/2004, p. 31). Isso quer dizer que, conforme avançam as forças produtivas, também avançam as necessidades básicas, de modo que trabalhadores que, aparentemente, hoje, têm mais acesso a bens que os trabalhadores do passado, ainda assim, são pobres, porque as suas necessidades básicas são maiores – e igualmente negadas pela estrutura de reprodução sociedade capitalista. Dito isso, o que pode ser concluído é que devido à natureza da acumulação capitalista e, no âmbito da realização do valor, à natureza da concorrência, sustentadas pela exploração da força de trabalho e pelo mais-valor, existe uma dimensão sempre tendencialà deterioração das condições de trabalho e de reprodução da vida da classe trabalhadora. Em outras palavras, remetendo à Lei geral da acumulação capitalista, do mesmo jeito que a acumulação é uma tendência progressiva, tendente a sempre explorar mais e/ou melhor, conforme o capital aumenta/ se valoriza, por outro lado, surge a tendência regressiva no que concerne ao trabalho, que, explorado, motor da acumulação, é sempre tendente à precarização. Nos dizeres de Marx (1867/2017, p. 720): [...] todos os métodos de produção de mais-valor são, ao mesmo tempo, métodos de acumulação, e toda expansão da acumulação se torna, em contrapartida, um meio para desenvolvimento desses métodos. Segue-se, portanto, que à medida que o capital é acumulado, a situação do trabalhador, seja sua remuneração alta ou baixa, tem de piorar. Embora Marx não use a expressão precarização, ele reconhece, e sua teoria do valor- trabalho sustenta, que a acumulação capitalista, conforme se aprimora, tende a piorar a situação da classe trabalhadora – de forma absoluta ou relativa, a depender da situação histórico- concreta. Assim, pode-se argumentar que, de fato, a precarização é uma constante do trabalho, quando submetido ao modo de produção capitalista – constante essa que pode permitir o uso da categoria “precariedade”. Ao mesmo tempo, reconhecendo que essa precariedade está 34 submetida a “devires” que são próprios da dinâmica da acumulação, ou seja, que varia em grau, intensidade e forma, conforme o capital se reproduz em uma determinada época histórica. Assim, também parece ser válida a utilização da categoria “precarização”, para se referir a essas manifestações particulares, que se apresentam de modos distintos ao longo da história da acumulação. Essa permanente tendência concernente à deterioração das condições de vida e trabalho da classe trabalhadora, bem como ao aprofundamento das desigualdades socioeconômicas, cria uma instabilidade no próprio processo de reprodução “saudável” do capital. Conforme destaca Harvey (2020), com um capital cada vez mais produtivo e, portanto, com uma necessidade constante de expansão de mercados consumidores e, ao mesmo tempo, com uma classe trabalhadora que experimenta graves vulnerabilidades materiais e, portanto, com dificuldades e limitações de consumo, como o capital pode realizar o valor que produz? O que ocorre é uma contradição ensejada pelo próprio processo de acumulação, com graves potenciais de estagnação econômica, financeirização e crise – já que as boas condições de oferta implicam em uma demanda precária15. Ademais, são válidas mais algumas palavras a respeito da tendência à precarização do trabalho. Como já esboçado anteriormente, é importante ressaltar que essa tendência se constitui enquanto tal – i.e., apenas como uma “tendência” e não como um destino inescapável – devido à luta de classes. Segundo Marx (1867/2017, p. 373-4), Para se proteger [...], os trabalhadores têm de se unir e, como classe, forçar a aprovação de uma lei, uma barreira social intransponível que os impeça a si mesmos de, por meio de um contrato voluntário com o capital, vender a si e as suas famílias à morte e à escravidão. 15 “A razão última de todas as crises reais é sempre a pobreza e a restrição ao consumo das massas em contraste com o ímpeto da produção capitalista a desenvolver as forças produtivas como se estas tivessem seu limite apenas na capacidade absoluta de consumo da sociedade” (Marx, 2017ª, p. 463). 35 Isso quer dizer que os trabalhadores organizados politicamente, enquanto classe, possuem a capacidade de impor limites à exploração do capital. Evidentemente, essas limitações não ocorrem sem prejuízo para a acumulação. Assim, guardando coerência com a Lei geral da acumulação, para que os trabalhadores consigam frear ou reverter a tendência à deterioração de suas condições de reprodução, que se poderia chamar de precarização, é preciso deteriorar, em contrapartida, as condições da acumulação capitalista16. Em suma, na sociedade de classes, que tem na fratura social seu traço característico, uma classe só ganha aquilo que a outra perde. Além disso, é preciso enxergar a questão da luta de classes como uma dinâmica inerente e orgânica no que tange ao metabolismo social das sociedades capitalistas. Ou seja, a luta de classes não ocorre simplesmente como um “momento” de ataque ou de defesa de alguma classe. Ao contrário, as lutas entre as classes sociais no constante processo de reprodução do capitalismo são o elemento que faz com que a realidade histórica seja um produto contraditório e contingente. Nas palavras de Marx e Engels (1848/2010, p. 40), A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor feudal e servo, mestre de corporação e companheiro, em resumo, opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que terminou sempre por uma transformação revolucionária da sociedade inteira, ou pela destruição das duas classes em conflito. Em outras palavras, isso quer dizer que a história do capitalismo não é uma história na qual os capitalistas fazem o que querem, da forma que querem. O mesmo princípio vale para as classes dominadas. Na verdade, a dinâmica de reprodução material de uma sociedade – e todas as suas implicações – é produto do constante embate entre as classes, no qual as vontades individuais ou coletivas importam menos do que a correlação de forças entre os atores da luta. 16 “[...] o ritmo da acumulação está intimamente ligado ao nível corrente dos salários. À medida que aumenta o nível geral dos salários, tende a diminuir a velocidade da acumulação” (Barreto, 2018, p. 168). 36 Um ataque capitalista contra os trabalhadores de um determinado setor, por exemplo, pode se cumprir apenas em parte ou mesmo ser fracassado, se enfrentar uma classe trabalhadora com condições objetivas e subjetivas de confrontação e resistência. O mesmo vale para os trabalhadores organizados, que mesmo com potência política e unidade, podem ser derrotados, parcial ou completamente. É nesse sentido que o pesquisador de extração materialista, histórica e dialética precisa apreender a realidade em seu movimento concreto, contraditório e real. Tudo isso quer dizer, no fim das contas, que a precarização do trabalho não é um movimento determinista e unilateral, mas um produto contraditório das lutas sociais. Dado o grau como se estabelece contemporaneamente, como se verá na seção seguinte, é evidente que as classes dominantes, nas últimas décadas, têm tido mais força e vêm obtendo sucesso em muitos dos seus ataques, contando com a desorganização – muitas vezes induzida – de setores das classes trabalhadoras. Ademais, e como síntese do que foi debatido até aqui, certamente é possível fazer aproximações entre a questão da precariedade estrutural do trabalho, especialmente na situação dos países periféricos, com a categoria “superexploração da força de trabalho” (Marini, 2011), oriunda da teoria marxista da dependência. Embora não seja necessário, por ora, um aprofundamento sobre tais questões, a superexploração é um mecanismo de compensação utilizado por capitais dependentes para “restituir” as transferências de [mais-]valor feitas para o centro do capitalismo. Assim, para a acumulação não ser “prejudicada” pela transferência de valor, o capital eleva a exploração da força de trabalho para além de seus limites, de modo a assim compensar a já referida transferência. Entre outras características, como a extensão e a intensificação da jornada de trabalho, a força de trabalho superexplorada conta com um preço de compra/venda inferior ao seu valor real, o que quer dizer, em termos concretos, que o salário recebido não é o suficientepara a plena reprodução da vida do trabalhador – o levando ao 37 cansaço extremo, ao pauperismo e à morte prematura. Assim, jornadas extensas, intensas e com baixa remuneração, podem aparecer como índices de interseções possíveis entre as categorias superexploração e precariedade-precarização. Consequentemente, também é possível dizer que o que há de estrutural na precariedade do trabalho, especificamente no caso brasileiro (mas não só), está fortemente marcado pela dependência e pela superexploração. A partir disso, é possível destacar que essa degradação do trabalho, tanto entendida como superexploração, quanto como precarização, não se apresenta, nem se distribui, de maneira homogênea. Ao contrário, ela se manifesta de maneira mais intensa entre as mulheres, os negros, os jovens, os imigrantes etc.17. São esses os segmentos da classe trabalhadora que mais têm seus direitos negados e que veem suas condições de reprodução se deteriorarem com mais facilidade. Isso ocorre porque a acumulação capitalista tende a reproduzir as desigualdades raciais e de gênero, se aproveitando delas para ampliar a massa de mais-valor a ser extraída dos trabalhadores. Como o valor da força de trabalho, de acordo com Marx (1867/2017), possui determinações históricas e morais, é fácil compreender por que mulheres e negros, submetidos ao patriarcado e ao racismo, acabam ocupando os piores regimes de trabalho assalariado. Em outras palavras, o capital se vale do racismo e do patriarcado para legitimar a precariedade do trabalho de mulheres e negros, e, assim, otimizar sua acumulação. 1.3 Uma breve história dos processos contemporâneos de precarização do trabalho Como dito na primeira seção, a discussão contemporânea sobre a questão da precarização remonta a transformações na dinâmica de acumulação a partir, especialmente, da década de 1970, com fortes impactos sobre a organização do trabalho e da produção. Para 17 Por exemplo: segundo dados do IBGE de 2018, os trabalhadores negros são maioria absoluta na taxa de desocupação (64,2%) e de subutilização (66,1%). Além disso, 47,3% dos trabalhadores negros encontram-se na informalidade (contra 34,6% dos trabalhadores brancos). Recuperado de: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf>. 38 descrever tal processo, é preciso, portanto, traçar um histórico de tais transformações, tanto de seus pressupostos quanto de suas consequências mais recentes. A partir da década de 1930, como motor da recuperação da catastrófica crise de 1929, surge o chamado New Deal, levado a cabo nos EUA pelo presidente F. D. Roosevelt. O New Deal era um programa econômico baseado nas teses do economista J. M. Keynes18, defensor, em termos gerais, da utilização do Estado como dispositivo indutor e guia da economia. Assim, surgida uma crise, a medida econômica proposta é o aumento do gasto público (i.e., do déficit público), para garantir emprego, renda, consumo, produção, arrecadação e, de tal modo, permitir que a economia siga em funcionamento e recupere estabilidade. Tal modelo econômico viria a ser a base do chamado Estado de Bem-Estar Social, implementado de maneira mais consequente e abrangente na Europa do pós-guerra. Segundo Harvey (1992, p. 129), nesse modelo, o Estado se esforçava por controlar ciclos econômicos com uma combinação apropriada de políticas fiscais e monetárias [...]. Essas políticas eram dirigidas para as áreas de investimento público - em setores como o transporte, os equipamentos públicos etc. - vitais para o crescimento da produção e do consumo de massa e que também garantiam um emprego relativamente pleno. Os governos também buscavam fornecer um forte complemento ao salário social com gastos de seguridade social, assistência médica, educação, habitação etc. Além disso, o poder estatal era exercido direta ou indiretamente sobre os acordos salariais. Tendo sido embrionada nas primeiras décadas do século XX e se espalhado de maneira generalizada para a Europa nos anos seguintes a 1945, a época dessas sociedades do pleno emprego, da seguridade social, em suma, do Bem-Estar, ficara conhecida como Era de Ouro do capitalismo (Hobsbawm, 1995). Durante quase trinta anos, esse modelo de regulação econômica a partir do Estado reinou numa Europa “encurralada” pelo socialismo real, representado pelos Estados soviéticos que, inclusive, haviam se expandido após o fim da 2ª 18 John Maynard Keynes foi um economista britânico de grande relevância para a teoria e a política macroeconômicas. Suas ideias disruptivas inauguraram uma tradição de pensamento econômico influente até os dias atuais. Tem como Magnum Opus o livro Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. 39 Guerra Mundial, tendo chegado à Polônia, à Tchecoslováquia, à Hungria, aos Países Bálticos, à Alemanha Oriental etc. A questão do socialismo – e dos partidos socialistas/comunistas fortemente organizados dentro dos países capitalistas – é importante, porque demonstra como as classes dominantes dos países europeus capitalistas cederam às pressões da esquerda revolucionária da época. Ou seja, o Bem-Estar Social é, entre outras coisas, muito mais uma conquista dos trabalhadores organizados do que uma cessão feita pelos grandes proprietários europeus. De acordo com Losurdo (2020, p. 177), Mesmo autores burgueses são obrigados a reconhecer que a Revolução de Outubro tornou mais fácil o estabelecimento do Estado social na Europa ocidental. Posso citar, nesse contexto, Hayek, o grande mestre do neoliberalismo [...]. Polemizando ferozmente contra os direitos econômicos e sociais reconhecidos pela ONU, ele afirmava claramente que tais direitos seriam uma invenção ruinosa da ‘revolução marxista russa’. Durante esse período de Bem-Estar, os europeus gozavam, entre outras coisas, de pleno emprego, forte representação sindical e amplos direitos sociais e trabalhistas. Assim, naquele momento, dada a correlações de forças entre as classes sociais, tanto em nível nacional quanto internacional, a acumulação capitalista enfrentou sensíveis limites impostos pela classe trabalhadora e pelo Estado. Talvez se possa dizer que, naquele contexto, a tendência à precarização foi freada (ao menos em certos setores da classe trabalhadora), já que havia amplos direitos, trabalho regulamentado etc. – o que não quer dizer, de forma nenhuma, que o trabalho deixou de ser explorado. Não menos importante é ressaltar qual tipo de organização do trabalho era implementada hegemonicamente naquelas sociedades de capitalismo fabril. O taylorismo e o fordismo são modelos de racionalização organizacional do trabalho que, a partir do início do século XX, serviram como princípios orientadores do incremento da produtividade de trabalho. Suas características centrais, como já amplamente debatido por diversos autores, são a atomização das funções do trabalho, com a hiperespecialização de tarefas simples, o que eximia 40 os trabalhadores de possuírem conhecimentos e habilidades além do mínimo19; a execução disciplinar, repetitiva e padronizada das operações e dos ritmos de trabalho; a produção em massa de mercadorias padronizadas; e a linha de produção em série20 - na qual os operários, em postos fixados, fazem simples intervenções no produto que circula através de um mecanismo automático semovente (Pinto, 2013). Todos esses métodos buscavam reduzir a “porosidade” da jornada, i.e., fazer com que os trabalhadores estivessem o máximo de tempo possível produzindo valor, sem pequenos intervalos considerados desnecessários. Isso, evidentemente, intensifica o trabalho, já que, como visto, há uma racionalização dos ritmos da atividade – que, no caso, do fordismo, é dada a partir da velocidade do mecanismo automático da linha de série. Dessa forma, se nota que o trabalho nessas modalidades é repetitivo, nada criativo,extremamente simplificado, hierarquizado e disciplinado. A questão do fordismo e das contingências históricas de sua implementação não são secundárias e merecem um aprofundamento. Assim sendo, o momento de “surgimento” do fordismo é o ano de 1914, quando Henry Ford implementa, para os trabalhadores da linha de montagem de uma unidade produtiva no Michigan, a jornada de trabalho de oito horas e um salário de cinco dólares por essa diária. Entretanto, entre seu surgimento e sua implementação como modelo social generalizado de acumulação de capital, há um hiato de algumas décadas. A grande inovação do fordismo, que o distinguia de modelos organizativos e produtivos anteriores, como já visto, era sua concepção de produção em massa. Segundo Pinto (2013), o fundamento disso estava na ideia de que, padronizando mercadorias e as produzindo em vasta 19 Isso possui uma dupla funcionalidade, do ponto de vista do capital. Primeiro, reduz o tempo e, portanto, os custos de treinamento dos trabalhadores, já que as atividades a serem executadas são demasiado simples; segundo, permite que o capital não fique dependente de trabalhadores com muito conhecimento técnico, o que poderia torná- los “insubstituíveis” e, como consequência, conferir poder de barganha e negociação a esses trabalhadores (Pinto, 2013). 20 Os dois últimos pontos sendo introduzidos pelo fordismo. 41 escala, os custos de produção cairiam e seriam contrabalanceados pelo incremento no consumo. Esse tipo de produção, sabia Ford, demandava – além de uma hiperespecialização técnica no que tange à divisão do trabalho, como legado pelo taylorismo – uma sociedade e um indivíduo adequados a tal padrão de circulação de valor. Como produção em massa significava também consumo de massa, se tornava evidente que era preciso produzir novos desejos, bem como criar um novo padrão de reprodução da força de trabalho. De tal maneira, o fordismo do pós-guerra tem de ser visto menos como um mero sistema de produção em massa do que como um modo de vida total. Produção em massa significava padronização do produto e consumo de massa, o que implicava toda uma nova estética e mercadificação da cultura [...] (Harvey, 1992, p. 131). Assim, a jornada de oito horas e o salário de cinco dólares não são fortuitos, mas uma projeção racional para a condução do metabolismo social. Sobre o propósito da jornada e do salário fixados, entende-se que era necessário, naquela circunstância, conferir aos trabalhadores condições objetivas de consumo das mercadorias produzidas em massa. Isso só era possível se os trabalhadores tivessem acesso a uma renda e a um tempo de lazer adequados para tal. Não obstante, é preciso atentar sobre como o caminho para que o fordismo deixasse de ser um modelo localizado e passasse a ser um modelo hegemônico foi tortuoso, repleto de medidas institucionais, corporativas, estatais, individuais etc. Muitas dessas medidas feitas de maneira improvisada, como forma de recuperar a estabilidade do capitalismo afetado pela crise de 1929 e como medida de planejamento econômico durante a guerra. Houve ainda grande resistência por parte das classes trabalhadoras do mundo capitalista desenvolvido no que diz respeito à aceitação do trabalho nada criativo e rotinizado imposto pelo fordismo. Para dar um exemplo, a linha de montagem, já relativamente popular nos EUA, não teve grande adesão na Europa até a segunda metade da década de 1930. O fordismo chega à Europa e ao Japão a partir de meados da década de 1940, se consolidando no pós-guerra – entre outros meios, também através do Plano Marshall. 42 Quanto ao papel do Estado demandado pelo fordismo, foi preciso o choque de 1929, para que os governos compreendessem a necessidade de utilizar a máquina estatal para a criação de demanda efetiva, assim estimulando o consumo de massa e recuperando a economia (i.e., a reprodução saudável do capital). Dessa forma, As decisões das corporações se tornaram hegemônicas na definição dos caminhos do crescimento do consumo de massa, presumindo-se, com efeito, que os outros dois parceiros da grande coalizão [Estado e trabalho] fizessem tudo o que fosse necessário para manter a demanda efetiva em níveis capazes de absorver o crescimento sustentado do produto capitalista (Harvey, 1992, p. 129). A “naturalização” desse novo papel do Estado só ocorreu após 1945. A partir de então, o fordismo, amalgamado com o keynesianismo, passa a ser o padrão de regulação do movimento de valorização nas sociedades capitalistas desenvolvidas – dotadas das características de Bem-Estar já mencionadas. Dessa forma, como se vê na citação acima, Estado, capital e trabalho assumem novos papéis na sustentação dessa nova dinâmica, resultante de uma espécie de equilíbrio pactuado de poder. É interessante notar que muito da relativa aceitação da classe trabalhadora ao trabalho fordista foi conseguida a partir de contrapartidas oferecidas pelo Estado e pelo capital, no que diz respeito a uma elevação do padrão de vida da classe trabalhadora (especialmente por meio de direitos trabalhistas e sociais). Evidentemente, essa espécie de consenso entre as forças políticas variou de país para país e de região para região, tanto em termos qualitativos quanto em quantitativos – devido à luta de classes em cada região, à posição do país na divisão internacional do trabalho e à taxa cambial em relação ao dólar estadunidense, pois é importante ressaltar que o arranjo fordista foi hegemonizado pelos Estados Unidos21. Assim, também foram diversas as manifestações de resistência da classe trabalhadora em relação ao fordismo, 21 Em relação a isso, o Acordo de Bretton Woods (1944) é muito importante, já que é um marco histórico na política monetária global, dando um importante passo na consolidação do que posteriormente viria a ser o padrão- dólar. Isso faz com que o desenvolvimento econômico global esteja fortemente vinculado à política monetária e fiscal dos Estados Unidos. 43 especialmente daquelas frações que se viram excluídas do pacto de Bem-Estar, i.e., que ocupavam postos de trabalho marginais (ou estavam desempregados) e com restrições de direitos, garantias sociais, além de estarem fora do circuito de consumo de massa. No fim das contas, via de regra, quem estava protegido socialmente por esse arranjo político-econômico era a classe trabalhadora – do norte global – masculina e branca, organizada em torno dos sindicatos. Esse padrão de reprodução do capital, de suposto Bem-Estar social, que combinava keynesianismo com fordismo, e que gerou durante as décadas de 1950 e 1960, o crescimento mais rápido da história até então (Anderson, 1995), começou a ver seu ocaso na década de 1970. A partir de limitações intrínsecas do modelo vigente e da crise do petróleo, em 1973, o centro do capitalismo entrou em desequilíbrio: recessão, baixas taxas de crescimento e inflação. Segundo Perry Anderson (1995), para os fundadores do neoliberalismo (Hayek, Friedman, Mises e a chamada “Sociedade de Mont Pèlerin”22), as fontes da crise estavam no poder “pernicioso” dos sindicatos e dos movimentos trabalhistas, que atrapalhavam a acumulação capitalista, através das reivindicações por direitos trabalhistas e sociais. Assim, o neoliberalismo teve a oportunidade de nascer, especialmente a partir da década de 1980, como programa econômico hegemônico de (des)regulação da reprodução do capital23. Boa parte desse programa foi objetivado no Consenso de Washington, agenda com 10 pontos para promover reajustes macroeconômicos neoliberalizantes. 22 Hayek, Friedman e Mises foram três economistas e ideólogos fundadores da agenda neoliberal. O primeiro e o último são austríacos e o restante, estadunidense. Por sua vez, a Sociedade de Mont Pelèrin foi uma organização fundada por Hayek orientada à disseminação daquele liberalismo que
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