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Francisco Maciel Silveira Exercícios de caligrafia literária: Saramago Quase “Abre teu olho. Só não enxergas por mantê-lo fechado às evidências.” (Livro do Desconcerto) São Paulo 2012 (2006) I. A Terra do Pecado (1947) Manuel Pelourinho (Doutor em Letras pela Sorbonne e diplomata. Autor de Punhos de renda, luvas de pelica.) “Se sabes ler, começa por soletrar as entrelinhas.” (Livro do Desconcerto) 1. Homem de bom aviso Abro a segunda edição de Terra do Pecado (Lisboa, Caminho, 1997), a reproduzir integralmente a primeira, saída pela Editorial Minerva em 1947. Logo à entrada um “Aviso”, no qual o autor, o Sr. José Saramago, dá notícia de como veio a lume o primeiro rebento de sua agora extensa prole literária. Nele, diz tratar-se à época de “um rapaz de 24 anos, calado, metido consigo”, “praticante de escrita nos serviços administrativos dos Hospitais Civis de Lisboa”, “tão cumpridor e pontual que à hora de começar o serviço já está sentado à pequena mesa em que trabalha”. Estava para nascer-lhe uma filha e “já havia plantado umas quantas árvores”. O “pouco mais que lhe resta para fazer na vida” completude exigida pela trindade existencial de todos conhecida , já “que queria ser escritor”, naturalmente seria escrever um livro, pôr sua prática de escrita a serviço de mais altos desígnios. “Não sabe dizer como lhe veio depois a ideia de escrever a história de uma viúva ribatejana, ele que de Ribatejo saberia alguma coisa, mas de viúvas nada, e menos ainda, se existe o menos que nada, de viúvas novas e proprietárias de bens ao luar.” À procura de editor, “com notável atrevimento”, despacha os originais, “sem padrinhos, sem empenhos, sem recomendações”, para a Parceria António Maria Pereira. A Viúva assim se intitulava a pretendente , por algum misterioso e inexplicável desvio, toma outra direção e vai ter à porta da Editorial Minerva. O editor, Sr. Manuel Rodrigues, deve ter-se engraçado com a narrativa, mas não com o título, que, “sem atractivo comercial, deveria ser substituído”. Não se cansasse o Autor à procura de outro, pois ali à mão, sacado da algibeira de seu faro editorial, tinha um: Terra do Pecado título “a que nunca se há-de acostumar”. A alegria de ver-se publicado não foi capaz de fazê-lo esquecer “a derrota de ver trocado o nome a esse outro filho.” Conclui o “Aviso” dizendo que o livro lhe abrira as portas da literatura portuguesa, embora não tivesse sido um sucesso: “Realmente, a julgar pela amostra, o futuro não terá muito para oferecer ao autor de A Viúva”. Sinalizador, aí fica o “Aviso” para quem vá navegar por essas águas passadas. Não se perca o marinheiro de primeira viagem nessa travessia, nem passe à deriva, despercebido de faroletes e boias. Quais? Facho luminoso a varrer os abrolhos mal entrevistos à superfície do texto, esse falar o Sr. José Saramago de si mesmo em terceira pessoa. Modéstia? Afogar em pia batismal o Eu, umbigo de todas as vaidades? Exorcisar o desvanecimento de ter triunfado sobre o augúrio de que o futuro pouco teria “para oferecer ao autor de A Viúva”? Afinal, o texto do “Aviso” é de 1997, escrito, passados cinquenta anos da “pouco lustrosa” estreia por autor já então galardoado com cinco prestigiosos prêmios (Prêmio Internacional Literário Mondello, Itália, 1992; Prêmio Brancanti, Itália, 1992; Prêmio Vida Literária, Portugal, 1993; Prêmio Consagração SPA, Portugal, 1995; Prêmio Camões, 1995) concedidos pelo conjunto de uma obra que, então forte candidata ao Nobel (1998), forceja por esquecer A Viúva, quer dizer, Terra do Pecado, “destinado a ter uma vida curta e praticamente sem memória” 1. Se descartada a razão acima, por psicologia de almanaque, avente-se outra, a explicar este ver-se o Sr. José Saramago a distância, falando de si próprio como outra e terceira pessoa, estranhando-se como fez H., em Manual de pintura e caligrafia (1977, p. 31), ao rever-se em antigo retrato: “Quem sou eu-aquele?” Ora, ora, meus jovens, cinquenta (cinquenta e um?) anos distanciam um ser do outro. Rios de heraclitiana tinta correram sob a ponte que separa esse experimentado e premiado escriba de 1997 daquele autor incipiente (valha-nos aqui a homofonia) de 1947. A esta altura, seja por qualquer título (poesia, crônica, conto, romance, teatro), esse senhor de setenta e cinco anos deita um olhar terno e comovido sobre aquele rapaz de vinte e quatro anos, nele reconhecendo traços biográficos e (ainda?) psicológicos que são os seus: calado, introvertido, míope, “diminuta fortaleza física”, pai. Por um momento, heteronímica 1. Reis, Carlos. “O escritor em construção”. In: Diálogos com José Saramago. Lisboa: Caminho, 1998, pp. e pessoanamente, esse senhor de setenta e cinco anos foi-o, outrora, agora. A ponto de, único instante no texto de “Aviso”, identificar-se e confundir-se com o outro que outrora foi: “Neste ano de 1947 em que estamos nascer-lhe-á uma filha, a quem medievalmente dará o nome de Violante, e publicará o romance que tem andado a escrever, esse a que chamou A Viúva mas que vai aparecer à luz do dia com o título a que nunca se há-de acostumar”. Foi-o, outrora, agora, mas não reconhece seja aquele autor inexperto, e às vésperas da paternidade, pai do romancista que nasceria trinta anos depois (Manual de pintura e caligrafia, 1977). 2 Daí o distanciar-se, ao revê-lo no espelho do “Aviso”. Contudo, o tratá-lo, cinquenta anos transcorridos, como o outro, o homem duplicado, que, não obstante todas as semelhanças, ele, distanciando-se, recusa ser, o tratá- lo assim nesse modo e termos não obscurece ou apaga o fato de, por todos os nomes e títulos, ter sido um “manga de alpaca”, “praticante de escrita”, tão cônscio da “escala hierárquica” que, “à hora de começar o serviço já está sentado à pequena mesa em que trabalha”. Da caverna do ser José Saramago viria a lume, mais tarde, sob a figura de um introvertido cinquentão amanuense do Registro Civil, aquele rapaz que fora. Embora não deseje a identificação, aquele inexperto jovem de 24 anos foi, quer queira ou não, o pai do romancista de Todos os nomes (1997) e O homem duplicado (2002). Machadianamente, o menino (aquele jovem autor inexperto de 24 anos) é, ao cabo, o pai do homem, esse Sr. José Saramago, que se revê da olímpica altura de seus consagrados setenta e cinco anos. Em verdade, o septuagenário, autor agora renomado, não reconhece ou não se identifica com ou se distancia daquele novel autor que um dia cometera o pecado de escrever A Viúva falto de vivência, saber ou experiência: “Não sabe dizer como lhe veio depois a ideia de escrever a história de uma viúva ribatejana, ele que de Ribatejo saberia alguma coisa, mas de viúvas nada, e menos ainda, se existe o menos que nada, de viúvas novas e proprietárias de bens ao luar.” 11-27. 2. “Que senhor é esse que escreveu esse livro? Eu sei lá quem é! Não sou eu...” Carlos Reis, Diálogos com José Saramago, Lisboa: Caminho, 1998, p. 41. Cf. página 35: “... aquele senhor escreveu aquele livro, mas não com a consciência de que se tinha preparado para ser escritor.” 2. Reminiscências de alheia caligrafia Aquele jovem “praticante de escrita” exercitara sua caligrafia literária decalcando, às portas da primeira metade do século XX, moldes oitocentistas.3 Seu caderno de caligrafia era o Realismo/Naturalismo. A letra que lhe servia de modelo e lhe conduzia o pulso era a grafia de Eça de Queiroz, mas reconhece-se também o floreado de Júlio Dinis, sobretudo no enfoque dado à Natureza e àquele laborioso, ingênuo e servilcampesinato. Da memória literária, e não de um saber de experiência feito, erguera o romance. Cujo enredo há de despertar reminiscências na caverna de nossa memória. Enviuvando no primeiro capítulo, Maria Leonor sofrerá, ao longo dos restantes vinte e quatro, além dos efeitos psicofisiológicos de sua condição de fêmea ainda jovem submetida ao aguilhão da abstinência sexual, a ingerência tirânica de uma empregada disposta a zelar pela virtude da patroa. Oscilando da abulia à excitação, ao sabor de uma histeria diagnosticada por uma de suas empregadas como “falta de homem”, a personagem peleja contra a “teoria da fatalidade” orgânica. Graças ao inoportuno aparecimento de sua zelosa serviçal, Benedita (benedicta?), a viúva escapa de, com o cunhado, ali no chão do escritório, proceder “como fêmea pré-histórica, que se embrenhava no mato, berrando, ciosa pelo macho, e que se espojava depois na terra fecunda e negra. Eu era joguete das forças naturais do sexo, as mais misteriosas forças da vida, que são o anseio íntimo para a imortalidade dos deuses. Foi pensando isto que me acalmei: desde que fora tudo consequência duma causa de que me não era possível defender, sentia-me irresponsável como um cavalo que alguém guia para um abismo. Não me cabia responsabilidade na queda, alguém me impelia, alguém me guiava...” (pp. 183-184) Com note-se Os primeiros princípios, de Herbert Spencer, fortemente apertado contra o seio (cf. p. 183), a longa explicação acima é dada pela própria Maria Leonor, sinal de que, não obstante toda a evolução da espécie, continuamos a abrigar na caverna dos instintos naturais a pré-história do ser. De nada vale a Maria Leonor ser essa mulier sapiens, ao cabo vencida e subjugada pela “fêmea pré-histórica”. No leito de sua viuvez, esquecida da herbert-spenceriana evolução que a guindara de fêmea a mulher entenda-se: “representante de uma espécie distinta e superior, em que a posse animal foi adornada, crismada, enfeitada de palavras lindas, que a tornaram apresentável, capaz de não ofender os ouvidos mais castos e os sentimentos mais puros”, p. 183 , ei-la a sucumbir à 3. “Aquele livro resulta do seguimento de leituras mal arrumadas e mal organizadas e saiu aquilo.”, urgência naturalística do apetite genésico com o cura de seu corpo, o Dr. Viegas, cinquentão e velho amigo da família. Desta feita, a inoportuna, vigilante e benedicta serviçal não chega a tempo para salvar a virtude da viúva carente. Tacão da moralidade e religião castradoras do Evolucionismo, insultada em sua condição de solteirona, invicta e beata, Benedita calcará “a serpente horrível do Mal e do Pecado” (p. 285), anatematizando, por vergonhoso, o ato, consumado, ora vejam se tem cabimento, fora dos sacrossantos laços matrimoniais e ainda por cima no tálamo conjugal: “ Pois a senhora atreveu-se? Aqui dentro, no mesmo quarto e na mesma cama onde morreu seu marido!?... Mas que espécie de mulher sem vergonha é a senhora? E Deus não a matou, não lhe caiu um raio em cima, que os despedaçasse, quando se espojavam aí como dois cães.”(pp. 283-284). Escorraçada a fêmea pré-histórica sob os insultos e recriminações da serviçal, recompõe-se a mulher ataviada pela evolução da espécie. Viúva e mãe e educada à luz de princípios religiosos e morais, sobrevêm o arrependimento e o remorso: “A própria recordação do pecado, a lembrança de que se tinham pertencido quando ainda não tinham esse direito, ensombraria a vida de ambos: acabariam por odiar-se. E teria ela coragem de dizer aos filhos que ia casar-se com o médico? E o que diriam os criados, toda a gente da Quinta, toda a gente de Miranda”(p. 288). Casar-se com Dr. Viegas para curar-se de suas carências, sob o beneplácito e permissão da ciosa empregada 4, não seria solução, posto que não o amava. “E ali, se lhe apresentou a outra solução: o salto nas trevas, o suicídio, a morte.” (p. 289) De que foi salva nas últimas linhas do romance pela morte do Dr. Viegas: “ Vínhamos informar a senhora de que o senhor doutor morreu. Encontraram-no no fundo do dique, com a charrette espatifada e o cavalo morto também. Deve ter caído...” Reticente final, umberto-ecoando que a obra se abra à cogitação do leitor. Acidente? Suicídio? A opção interpretativa traz implicações. A morte do Dr. Viegas por acidente é providencial demais em todos os sentidos. Além de salvar a viúva do cogitado suicídio (tresloucado e condenado gesto aos olhos da santa madre Igreja), a morte acidental do doutor conota o castigo do Senhor, raio a fulminar o Mal e o Pecado de que ele fora agente, ao sucumbir, num momento de fraqueza, aos apelos da Natureza. Já o suicídio, compelido seja pelo remorso, arrependimento ou pruridos moralistas, representaria a derrota de quem, reconhece o Sr. José Saramago. Id. ibid., p. 35. 4. “ Não chore, minha senhora, não chore gemeu Benedita. Então, por amor de Deus, tudo se há-de como homem da ciência, se dizia defensor da natural simplicidade da vida. [Dr. Viegas, p. 248]: “Estava a pensar na minha teoria da simplicidade da vida e na inveja louca que tenho do apuro a que os homens das cavernas a tinham levado! Naquele tempo, era a grande Natureza a senhora de tudo. E não me parece que se tenha verificado a existência de Beneditas arreliadoras, de Leonores infelizes e, muito menos, de Viegas cirurgiões e conselheiros. Então, a machadinha de sílex resolvia quase todos os problemas e dificuldades... O pior foi que a evolução do teu Spencer deu cabo a tudo.” De fato, o evolucionismo de Spencer deu cabo da viúva e do Dr. Viegas, derrotados ambos pelas pressões e preconceitos da moralidade e religião castradoras, que, responsáveis pelo verniz civilizacional do homo sapiens, acabou transformando a aldeia global em que vivemos, e não só a Miranda do romance, na terra do pecado. Afinal, a evolução da espécie transformou o instinto sexual, uma das pulsões mais naturais de nossa pré-história, em anátema e pecado. Simplicidade 5 natural da pré-histórica espécie humana versus evolucionismo civilizacional e castrador da Cultura, Religião e consequente Moralidade constitui, pois, o conflito do livro. Adequado, portanto, o novo título dado pelo editor em substituição ao anterior, no mínimo anódino. Ao fim e ao cabo, segundo a óptica do romance, não assistimos todos numa Terra do Pecado, essa legada à nossa espécie pelo Evolucionismo? Se lhe considerarmos a pertinência, incompreensível não se tenha acostumado o Autor, ao longo de cinquenta anos, com o novo batismo. Ter-lhe-ia causado repugnância o sex appeal comercial de um título destinado a mexer com as zonas erógenas do reprimido inconsciente do potencial (e evoluído) leitor, voyeur ávido por frestar cenas de alcova? Lê-se na história de Maria Leonor a ilustração do mito de Eros e Psiché, cuja estatueta (aliás, simbolicamente, salva por Benedita de estilhaçar-se numa queda)6, convive, no quarto da viúva, com outra, uma “Virgem de porcelana, que afogava debaixo dos pés a serpente horrível do Mal e do Pecado” (p. 285). Óbvia a simbologia e adequada ao tema. Sabe-se que o mito de Eros e Psiché figura a submissão e cativeiro impostos à transcendência do espírito (Psiché = personificação da alma) pela sexualidade animal (Eros = expressão pervertida do amor) que anela apenas o prazer físico e não o sublimado gozo da esponsalícia união Carne/Espírito. A duras penas, impostas por Hera, deusa da pureza e do arranjar!... A senhora casa e tudo esquece...”(p.289) 5. Em seu sentido primeiro: aquilo que, não sendo duplo ou múltiplo, não abriga desdobramentos conflituosos decorrentes da complexidade imposta pela Civilização. lar, Psiché (a Alma) libertar-se-á da cegueira, sedução e cativeiro a que a submete a sexualidade pervertida e banalizada de Eros 7. Sem grandes esforços exegéticos reconhecemos, na abulia depressiva de Maria Leonor, nos seus remorsos e arrependimentos após os fogachos eróticos, o conflito Eros versus Psiché. Na opressiva vigilância e abanões da benedicta serviçal (outra Virgem a esmagar sob e a seus pés a serpente horrível do Mal e do Pecado), lobrigamos a intervenção de Hera, a zelar pela pureza da patroa e do lar. Pertinente essa mistura dos maravilhosos cristão e pagão no conflito entre a Natureza e a Moral cristã. Metaforismos alegóricos que, seminais neste romance de estreia, prometem seara futura. Onde se reconhecem as caligrafias de Eça de Queiroz e Júlio Dinis no exercício da efabulação? Ambientado, à Júlio Dinis, num campo pletórico, regido pelo ciclo indômito e vital da Natureza, o romance transcorre num habitat onde, rescendente de símplice e pastoral romantismo, se trabalha e produz ao abrigo de afetuosas relações entre patrão e empregados, distante, pois, do panfletário maniqueísmo neorrealista em moda naqueles anos Quarenta. Tão afetuosas considerações irmanam superior e subalternos a tal ponto, que o inferno terreno de Maria Leonor decorre do imenso amor que lhe devota a serviçal Benedita, cheia de boas intenções. O conflito Natureza versus Moral (da viúva) é assistido por dois curas, um do corpo, o médico (Dr. Viegas), outro da alma (o padre Cristiano, que não se perca ele pelo nome), a lembrar-nos As pupilas do Sr. Reitor. Só que neste romance do jovem Saramago as pupilas vigilantes serão de uma reitora, Benedita, benedicta, já se insinuou aqui. E é essa mesma Benedita que, cópia e simulacro de outra realidade, faz emergir da caverna da memória a reminiscência de outra infernal doméstica, a Juliana de O Primo Basílio (1878) do Eça de Queiroz. Não faltam, no conflito entre patroa e serviçal, cartas: três, que, contrariando a expectativa, não serão usadas para espezinhar ou martirizar a patroa. Enganosamente, o romance leva o leitor a esperar que Benedita calque seus tacões vingativos sobre Maria Leonor, que, não obstante loira, não será outra Luísa. Anjo da guarda da viúva, a empregada declara guerra não à sua estimada patroa, mas à fêmea que, 6. Ver página 40. 7. Ver, a propósito, Paul Diel - Le symbolisme dans la mythologie grecque, Paris: Petite Bibliothèque Payot, 1966, pp. 132-135. presa do cio, forceja por vir à superfície das cavernas pré-históricas de suas pulsões e necessidades sexuais. “Guardiã da moralidade da casa” (p. 212), essa Hera doméstica passa a vigiá-la e a controlá-la, para evitar que, sob o influxo do ciclo vital da Natureza 8, venha a espojar-se no terra a terra pecado da carne. Lobriga-se em Terra do Pecado outro indício de que esse jovem de vinte quatro anos, em 1947, será o pai daquele septuagenário romancista consagrado, em 1997. Refiro- me ao DNA recriativo das fontes e paradigmas que lhe regurgitam na memória. Surpreende- se no romance aquilo que Gerard Genette chama genericamente de transtextualidade, ou seja, “tout ce qui le [o texto] met en relation, manifeste ou secrète, avec d’autres textes.” Mais especificamente, já que se trata de um tipo de transtextualidade, vislumbra-se, em Terra do Pecado, manifestações da hipertextualidade entenda-se a especiosidade erudita: toda relação ou derivação resultante do enxerto ou união de um texto B (chamado hipertexto) a um texto A que lhe é anterior e serve de modelo (denominado hipotexto). Tal relação ou derivação pode ser tácita, “tel que B ne parle nullement de A, mais ne pourrait cependent existir tel quel sans A, dont il résulte au terme d’une opération que je qualifierai, provisoirement encore, de transformation, et qu’en conséquence il évoque plus ou moins manifestement, sans nécessairement parler de lui et le citer.”9 Esbanjada, em erudito idioma, a conveniente citação, manifestação transtextual da voz da autoridade requerida num metatexto que se preze, localize-se a hipertextualidade murmurante no romance. Sob a tirânica vigilância das pupilas de um reitor de saias, Maria Leonor padece sob os tacões de Benedita, que, bem visto o transvestir, não passa de uma Juliana (lembram-se dela, com sua obsessão por botinas, em O Primo Basílio?) às avessas. Essa intertextualidade (as mais das vezes, do canto-contra paródico 10), entrevista no diálogo travado com a personagem Juliana de O Primo Basílio, há de marcar as obras posteriores do Sr. José Saramago, a confabular com Fernando Pessoa/Ricardo Reis (O ano 8. Tempo cronológico o deste romance, em que Maria Leonor, o plantio e a colheita evolucionam segundo o relógio das estações: viúva no Inverno, desabrochar genesíaco na Primavera, calores do cio no Verão. 9. Gerard Genette - Palimpsestes: la littérature au second degré, Paris: Éditions du Seuil, 1982, p. 12. Acerca de transtextualidade e hipertextualidade, id. ibid., pp. 7-14. 10. “D’abord, l’étymologie: ôdè, c’est le chant; para: “le long de”, “à côté”; parôdein, d’où parôdia, ce serait (donc?) le fait de chanter à côté, donc le chanter faux, ou dans une autre voix, en contrechant en contrepoint , ou encore de chanter dans un autre ton: déformer, donc, ou transposer une mélodie.” Gerard Genette, op. cit. , p. 17. da morte de Ricardo Reis, 1984), Alexandre Herculano (O cerco de Lisboa, 1988), Jung, Heidegger (Todos os nomes, 1997), Platão (A caverna, 2000), Plauto (O homem duplicado, 2002), para ficarmos só com alguns que de pronto me vieram à memória. 3. Cassandra desmentida Diz velho ditado, suponho que de científica origem evolucionista: quem sai aos seus não degenera. Natural, portanto, que na caligrafia daquele jovem de vinte e quatro anos já se possa ver rascunhada a origem das letras futuras do romancista septuagenário. Para quem será futuro cultor de outra elocução, mais requintada no arabesco do barroquismo estilístico, soariam, cinquenta anos depois, (cabe a pergunta), soariam, cinquenta anos depois, imperdoáveis e irreconhecíveis seja a descrição (desbotada aquarela, florilégio de redação liceal), seja a adjetivação (já dessorada e flácida naqueles anos Quarenta), ─ uma e outra responsáveis pelos lugares-comuns que enxameiam em frases como “À flor da água surgiu a cabeça branca dum peixe, que lutava, desesperadamente, para se manter no seu elemento.” (p. 57); “... numa daquelas luminosas tardes com que o outono se despede do verão.” (p. 71); “Enquanto o foguete, lá em cima, vivia intensamente a sua vida fugaz, os olhos dos criados, das crianças, de todos seguiam-no extasiados.”(p. 88); “As noites tornaram-se claras e profundas, de uma limpidez transparente, rebrilhantes de estrelas sem conto, que só desapareciam horas altas, quando a Lua surgia do horizonte numa vermelhidão de sangue, que ia aclarando à medida que subia no céu, até se transformar num disco pálido, que vogava na frieza da noite, a caminho do outro lado da Terra.” (p. 92); “E as estrelas brilharam no céu, do lado do ocidente, como a mirar-se no espelho que surgia por detrás dos montes do outro ponto cardeal.”(p. 129); “E ficaram ambos, por segundos, com os olhos presos e as mãos unidas, num abraço de almas sólido e perfeito.”(p. 133); “Demorou-se uns instantes a ver duas andorinhas que traçavam no ar, com os seus corpinhos negros e alvadios, curvas de maravilhosa beleza, num enredar e desenredar constante, como embaraçadas numa teia invisível.”(p.137); “O perdigueiro... latindo para exprimir sua canina alegria.” (p. 267) Pinçadas ao correr dos olhos ou à vol d’oiseau (em homenagem às duas andorinhas saramaguianas com “seus corpinhos negros e alvadios”), todas as citações são resultado de rombudo lápis a calcar serôdios modelos de enunciação? Esquecido o Sr. José Saramago de que o mesmo Oitocentos lhe oferecia para decalque a grafia ironicamente elegante, parnasiano-flaubertiana, de um Eça-Fradique-Mendes-de-Queiroz à procura daquela prosa cuja ambição máxima seria captar e reproduzir o inefável? Por estes prismas, o da invenção e o da elocução “Realmente, a julgar pela amostra, o futuro não terá muito a oferecer ao autor de A Viuva”. Ocorre que, por algum oculto desígnio (acaso? fado? predestinação?, que nome dar- lhe?)11, o mesmo futuro se encarregou de desmentir o vaticínio. Que me lembre, o Sr. José Saramago (em O homem duplicado?) disse que não devemos jogar peras com o Destino. Sabido à protérvia, ele (o Destino, claro está) há de comer-lhe as boas e sumarentas peras, deixando-lhe as pecas. A roda da fortuna a mesma que pôs o Sr. José-só, de Todos os nomes, à frente de sua para sempre perdida anima; a mesma que pôs Tertuliano Máximo Afonso às mãos de seu sósia, Daniel Santa-Clara , pois não é que a roda da fortuna houve de, por algum oculto desígnio, contrariar-lhe a previsão, comendo-lhe o peco A Terra do Pecado e reservando-lhe as sementes para peras vindouras. Ainda bem para ele, o Sr. José Saramago. Que não falou pela oracular e fatídica voz-Cassandra de D. Carolina, a mãe de outro Homem duplicado este punido com a perda da identidade pretérita. (SP, 15/9/03 - 29/9/03) 11. “Quis, porém, o acaso, muito mais exacto teria sido dizer que foi inevitável, uma vez que conceitos tão sedutores como fado, fatalidade ou destino não teriam cabimento neste discurso...”, O homem duplicado, p. 97. II. O ano de 1993 (1975) Apolo Constantinos Jr. (Astrônomo e antropólogo, é autor de Vista do vermelho Marte, a Terra é um deserto humano.) “Toda Cassandra tem o Apolo e os incrédulos que merece.” (Provérbio sibilino) 1. Mala sem alça Quando soou o telefone, não estava em ledo e cego engano, qual Inês, posto em sossego. Primeiro, porque, conhecendo o nome que tenho, me chamo de Apolo Constatinos Jr.; segundo, porque, astrônomo e antropólogo, a contemplar de minha janela alfred- hitchcokiana indiscreta, com telescópios, lunetas e este binóculo, a conjunção dos astros e dos humanos, ora como pode alguém estar com seu quarto minguante posto em sossego. Imagine-se, pois, o mau humor com que fui atender aos apelos histéricos da sereia. Não vou transcrever a longa conversação telefônica. Toda ficção, por mais real ou científica que seja, tem que ter um fundo de verdade e eu não tinha um gravador ligado para apresentá-la a qualquer são juízo como prova. Fico, pois, no resumo. Tratava-se de um convite para escrever um ensaio acerca de O ano de 1993, do Sr. José Saramago. Ensaio que figuraria numa obra coletiva acerca de seu período dito formativo, aquele entre 1947 e 1980. Um seleto elenco de autores (palavras do Organizador) estava sendo convidado, cada um a cargo de um livro. Queria ele um volume bakhtinianamente polifônico, vozes diversas, contrastantes, conflitantes, em torno daquela fase pouco conhecida e menos ainda estudada (palavras dele). Meu nome viera à lembrança graças a Vista do vermelho Marte, a Terra é um deserto humano, uma obrinha que eu publicara à época em que, à procura de um bunker sobrevivente, andava interessado pela futurologia catastrófica de Asimov, Well e Orwells (explicação minha). Enfim, interessava? Claro que sim, não se fecha a janela a conjunções sejam astronômicas, antropológicas, sejam menos ainda astrológicas, e naquele momento, no céu, o Sol e Netuno estavam em conjunção, logo Mercúrio ingressará em Aquário e a Lua atingirá seu plenilúnio em Virgem. Tudo isso aí não disse, só pensei. O que disse foi “Pinta algum leitinho pras crianças?”, meio de ordenhar o uísque meu de cada dia, já que sou celibatário e de bastardos, se os há, não tenho conhecimento. Juro, minha Rainha e Santa D. Isabel. Pergunte lá a seu esposo, meu Rei-Trovador D. Dinis, de quem sou fiel servidor. Ofereceu- me ele (o Organizador, D. Isabel, não D. Dinis!) a ordenha de uma vaca sem medalha nem genealogia. Regatear por quê? Por econômico que seja o úbere, mais vale uma vaca no meu curral que uma boiada a engordar o pasto vizinho. Desligado o telefone, pus-me a arrumar minha bagagem de viajante rumo à h.g.welliana máquina do tempo. Estou no século XXI (precisamente, fins de janeiro de 2005), mas devo regressar ao século XX, a O ano de 1993, publicado pelo Sr. José Saramago, em 1975. Leitor do Sr. José Saramago levantado do chão a partir de 1980, pouco (para não confessar que nada) sabia de sua lavra anterior, aquela que o Organizador, balizando-a entre 1947 e 1980, chamara de “período formativo”. Qual, portanto, caro leitor, a primeira e urgente necessidade que se impunha a satisfazer? Claro, o amigo está coberto de razão, levantar a bibliografia do Sr. José Saramago, o que ele publicara ao longo daqueles trinta e três anos. E, para bem ou mal de meus pecados, lê-la, dos cascos ao chifres, expressão que, incoercível, saltou ao lombo destes teclados, sem dúvida inspirada por aquela vaca sem medalha nem genealogia que, bulímica, estou surrealisticamente a vê-la (juro) neste instante a ruminar as plantas e ervas que, árcade nostálgico, cultivo na varanda de meu apartamento, sobranceiro alcácer erguido bem na esquina da Avenida Ipiranga com o Boulevard São Luís. Alto lá, Sr. Ensaísta que atende pelo nome de Apolo, como aceita uma tarefa sem a menor bagagem intelectual para levá-la a cabo? Como há de cumpri-la? Indo à Biblioteca Municipal, sita à Praça D. José Gaspar. Se o amigo não sabe, de onde assisto à dita biblioteca é um pulo. Modo de dizer. O prozac que religiosamente tomo duas vezes ao dia me impede o salto suicida desta varanda. O leitor há de permitir aqui, pelo menos, um salto no tempo. (Valha-me o título de uma crônica inserida em Deste mundo e do outro, do Sr. José Saramago. Pago a César os direitos que, intertextualmente, lhe cabem). Há, pois, o leitor de me permitir um salto no tempo, como convém a todo ensaio-narrativo que (vade-retro, Tentação!) não presume ser uma lenga-lenga acadêmica. Salto ou acrobacia estilística possibilitando-me dizer-lhes que anoitecia quando, outro Jonas, embora por todos os nomes me chamem de Apolo Constantinos Jr., vi-me, a regurgitar de saber, expelido da Biblioteca Municipal. (Não sei por que me vi como Jonas quando saí daquele bibliográfico útero granítico. Registro a sensação esquizofrênica para uma séria conversa com minha analista. Que, além de portuguesa e peregrina leitora de Fernão Mendes Pinto, ainda me confessou uma tarde, trocadas as posições no sofá catártico, que o pai era um salazarista de quatro costados e cinco quinas. Conhecedor dos seis volumes que o Sr. Franco Nogueira dedicara ao maiúsculo Estadista (adjetivo lá dela), o pai quase os reproduzia de cor nos serões de sua aldeia, genuflexa, ora pois se calhar e calhou, ao sopé de Santa Comba do Dão.) Regurgitado da Biblioteca Municipal, trazia eu, portanto, ou por tão pouco, uma carga por saber, assentada num papelinho ufano de minha garatuja: Terra do Pecado (romance,1947); Os poemas possíveis (1966); Provavelmente alegria (poesia, 1970); Deste mundo e do outro (crônica, 1971); A bagagem do viajante (crônica, 1973); As opiniões que o DL teve (crônica, 1974); O ano de 1993 (sei eu lá o que seja, pelo menos por ora, mas é o que me cabe, 1975); Os apontamentos (crônica, 1976); Manual de caligrafia e pintura (romance, 1977); Objectoquase (contos, 1978); A noite (teatro, 1979); Que farei com este livro? (teatro, 1980); Levantado do chão (romance, 1980). O leitor perspicaz desconfia o quanto e o como lá vinha eu ajoujado sob a insustentável leveza do papelinho com a bibliografia do Sr. Saramago, aquela que, por desafogo do talento ou dever do ofício, lhe compunha o dito período formativo. Sem dúvida, convenhamos aqui entre nós, uma pena prolífica. Nem direi, parafraseando personagem de Guerras do alecrim e mangerona, que em abrindo a boca lhe choviam, àquela época, poemas, crônicas, romances, peças teatrais e conceitos aos borbotões. Treze títulos, Senhor, à tua ceia, muitas vezes edificam uma obra, mas, benza-o Deus, a do Sr. Saramago ainda estava, pasmem, a engatinhar sua formação. “Exercícios de caligrafia literária: Saramago quase, meu caro. Tanto que o título do volume em que você vai colaborar será exatamente esse Exercícios de caligrafia literária: Saramago quase. E aí, interessa?” Quem não perceberia que, num flash-back, recuperei trecho, lá em cima mal transcrito, de minha conversa telefônica com o Organizador. Deguste-lhe a retórica e concorde comigo que ele já me sabia preso pelos chifres, os da vaca, claro fique, a que, sem medalha nem genealogia, haveria de me oferecer. Quando não nos vem a talho uma boiada, faça-se praça (a D. José Gaspar, lembram?) a cavaleiro do que nos cabe no lombo, frase assim a modos de apotegma rococó, tão ao gosto das douradas talhas ad altarem linguae do Sr. Saramago (como virei a ficar sabendo na viagem de minhas leituras) e que, por desfastio do estilo, vem a pelo neste exato momento. Ajoujado sob a insustentável leveza do papelinho com a bibliografia do Sr. Saramago, pernas para que vos quero, se não para calcorrear universitárias bibliotecas, em demanda daquilo que se resguarda para os raros apenas: De tão lido que é, coitado, foi para a encadernação. E quando voltará ao acervo? Só Deus sabe. Amigos, para que vos quero senão para me emprestar as raridades estilísticas daquele período formativo. Das letras que melhor companhia haveria senão a detentora dos autorais direitos do Sr. Saramago aqui no Brasil? E de caminho por que não recorrer a Portugal? Mãos à obra, portanto. 2. Em busca de que tempo perdido? Quem tem boa memória há de lembrar-se que comecei a retouçar estas linhas em fins de janeiro de 2005. Estamos hoje, precisamente, numa segunda-feira, 25 de abril de 2005. Ponhamos lá três meses de beneditino recolhimento a pascer os olhos no que o Sr. Saramago cultivara de 1947 a 1980, ciente do arame farpado que delimitava meu pascigo: Terra do Pecado (romance, 1947); Os poemas possíveis (1966); Provavelmente alegria (poesia, 1970); Deste mundo e do outro (crônica, 1971); A bagagem do viajante (crônica, 1973); As opiniões que o DL teve (crônica, 1974); O ano de 1993, 1975); Os apontamentos (crônica, 1976). Nada de estender a gula dos olhos ao pasto dos outros. Segundo o Organizador, à exceção de O ano de 1993, os demais títulos outros hão de gramar. Portanto, Apolo Constantinos Jr., fica em teus limites, nada de fincar padrão em seara alheia. Assim sendo, nesses meses de claustral e beneditino recolhimento, corri olhos pela poesia e crônica do Sr. José Saramago, espécie e fôrma muito afins, considerando que prosa de cronista frequentemente lança um olhar poético sobre o quotidiano. Não se constituía exceção à regra a lavra saramaguiana. A registrar que o cronista Saramago, sob piscadelas poética e surreal, apresentava já uma óptica político-social que iria desenvolver- se no ofício de editorialista: As opiniões que o DL teve (1974); Os apontamentos (1976). As opiniões que o Sr. Saramago teve (única cabeça pensante na redação?) pelo Diário de Lisboa correm pela “abertura” dos anos marcello-caetanistas de 1972-73. Já os apontamentos do Diário de Notícias são editoriais quase diários, de abril a 25 de novembro do ano de 1975, registrando como se foram fanando os cravos da Revolução de 25 de abril de 1974. Diria o senso comum, aqui trazido a (e de) propósito, já que do homem duplicado enquanto poeta e cronista tratamos: Se, em 1980, fosses um sem-terra do Alentejo com foice à mão, haverias de saber que a seara de O ano de 1993 deitou semente tanto no veio ideológico dessas crônicas políticas como no veio poético das inscritas em Deste mundo e do outro (1971). Isso sem contar o discurso e imagens surrealizantes de alguns poemas inseridos em Provavelmente Alegria (1970), nomeadamente, “Passa no pensamento”, “A mesa é o primeiro objecto”, “É um livro de boa-fé”, “Protopoema”. Sei, ó senso comum, (afinal, já o disse a crítica especializada), que O ano de 1993 trilha berma entre a poesia e a crônica em demanda da ficção aquela prosa perdida n’a terra do pecado que foi, segundo reconhece Sr. José Saramago, o seu primeiro romance. E, de fato, o título O ano de 1993 já nos segreda alguma coisa, não é mesmo? Vindo a lume em 1975, O ano de 1993 promete futurologia que nos remete para o bojo da science fiction. Ainda mais se considerarmos que o título faz ressoar em nossa memória o 1984, de George Orwell volume, aliás, que ainda inspirou os fragmentos 11 e 17 (respectivamente pp. 30-31 e 41 da primeira edição, a de 1975, que tenho sob os óculos). E aí, senso comum, achas que estou equivocado? (Como o senso comum embatucou sem resposta, prossigo.) Quem já leu o romance de Orwell há de reconhecer no fragmento 11 de O ano de 1993 uma nova versão para o Big Brother: “Só essas pessoas assistiram ao primeiro aparecimento do grande olho que iria passar a vigiar a cidade Só esses o viram no seu primeiro tamanho Mas o sol verdadeiro subiu um pouco no horizonte a esfera de mercúrio dividiu-se em duas em quatro em oito em dezasseis, em trinta e duas em centenas de esferas que se espalharam por toda a parte Deslocavam-se no ar silenciosamente e continuavam a dividir-se até que houve tantas esferas quantos os habitantes da cidade Fora instituído o olho de vigilância individual, o olho que não dorme nunca Já o fragmento 17, a tratar da “guerra chamada do desprezo”, traz-nos à lembrança uma variante e releitura paródica do “programa do ódio” vociferado em 1984. (Chamo de variante e releitura paródica pois se trata de uma inversão do modelo. Enquanto no romance de George Orwell as manifestações de ódio e protesto se dirigem ao ordenador, visando a suscitar a reação de apoio dos ordenados, em O ano de 1993, comandado também por um ordenador, “o programa do ódio e das humilhações” visa a suscitar, além do terror, nossa simpatia e piedade pelos humanos ofendidos): Todos os animais do jardim foram paralisados por acção de misturas químicas nunca antes vistas E ainda vivos abertos sobre grandes mesas de dissecção esvaziados de entranhas e do sangue que jorrou por fundos canais para o interior da terra donde apenas saía para certos banhos das prostitutas principais Desta maneira tornados pele massa muscular e esqueleto foram os animais providos de poderosos mecanismos internos ligados aos ossos de circuitos electrónicos que não podiam errar E estando tudo isto no comprimento de onda do ordenador central foi nele introduzido o programa do ódio e a memória das humilhações Então abriram-se as portas da cidade e os animais saíram a destruir os homens Desperta memória do senso comum, um aficcionado de George Orwell, tendo lido O ano de 1993, poderia, aqui e a propósito, lembrar-me que o fragmento 12 (p. 32) propõe uma outra revolução dos bichos, à qual não falta uma blitz de pássaros à Hitchckok: Um dos resultados da catástrofe foi que de uma hora para outra os animais domésticos deixaram de o ser A primeira vítima de que houve notícia foi a mulher do governador escolhido pelo ocupante Quando o macaco amestrado que a divertia nas horas de aborrecimento a crucificou noportão do jardim enquanto as galinhas saíram da capoeira para vir arrancar-lhe à bicada as unhas dos pés Muitas velhinhas inocentes foram arranhadas por gatos castrados de estimação em memória do atentado sofrido E numerosas crianças ficaram infelizmente cegas pelo bicos agudos das aves que se atiravam dos ramos e das alturas como pedras Privadas dos animais domésticos as pessoas dedicaram-se activamente ao cultivo de flores Destas não há que esperar mal se não for dada excessiva importância ao recente caso de uma rosa carnívora Agradeço-lhe a pertinente lembrança, caro leitor. Mas não posso deixar de aduzir que aqui se trata também de inspiração e diálogo intratextual, uma vez que a ideia dessa tal revolução dos bichos, profetizada para 2968, seminalmente estava inscrita na crônica “Os animais doidos de cólera”, inserta em Deste mundo e do outro (1971). 3. O ano de 1993: uma história de que futuro? A perspectiva futurante de O ano de 1993 não esconde, no título, o teor cronístico de uma história do futuro, sugerido, aliás, na epígrafe colhida em Fernão Lopes: “... porque screpvendo homem do que nom he certo, ou contara mais curto do que foi, ou fallara mais largo do que deve; mas mentira em este volume, he muito afastada da nossa voomtade.” Se bem entendo a senha, da perspectiva do presente em que está a viver e a escrever seu O ano de 1993, o Sr. José Saramago, tal qual redivivo Fernão Lopes, intentava poer em caronyca a história futura de nossa humanidade, perspetivando-a do contexto sócio-político português. Compreensível, tendo em conta que todo cronista é um historiador do dia a dia, a lembrar-nos que o presente, muitas vezes fruto peco do passado, não pode fazer-nos esquecer que o futuro pode ser amargo. A poesia ressoa e sabe também o livro. Diga-o a litania versicular, dando à mancha do texto um jeito de poema em prosa posto a serviço de um relato futurante, apocalíptico e distópico cujo argumento, não obstante fragmentário em sua recusa à linearidade, guarda um fio narrativo: a retomada e reconstrução de um país que, seja pela defecção, alienação ou colaboracionismo de seus habitantes, fora gradativamente ocupado pela repressão, violência e consequente desumanização. Portanto, lê-se em O ano de 1993 alegórica ficção científica, a que, como pede o gênero, não faltarão realismo e maravilhoso, vazados aqui ao jeito de poema em prosa. A que vem o experimentalismo da alegórica ficção científica inscrita em O ano de 1993? O que a motiva? Tendo trilhado a poesia e a crônica, talvez estivesse o Sr. Saramago conjugando-as naquele 1975 à procura de um estilo e dicção que, próprios, viessem a caracterizar-lhe a futura aventura ficcional. (Note-se que a forma versicular do texto dispensa os sinais de pontuação, delegando-os ao fôlego e compreensão do leitor, achado encontrável em futuros textos do Autor.) Para além dessa motivação experimental, é preciso considerar o contexto que lhe gestava a alegórica ficção científica que dava a lume. Afinal, toda alegoria futurante da science fiction se nutre da potencialidade apocalíptica do presente. Elucubremos um pouco, como requer todo ensaísmo que se preza. A primeira edição de O ano de 1993 data, já o sabemos, de 1975. Sai, portanto, à época em que, de princípios de abril a 25 de novembro de 1975, no Diário de Notícias, o Sr. Saramago acompanhava com seus apontamentos o estiolar dos cravos do 25 de abril de 1974. Estaria, pois, a registrar e a vaticinar, em sua alegoria futurante, o malogro da aventura que foi a Revolução dos Cravos? Não o creio. O sonho revolucionário do MFA, apoiado pelas intervenções de editorialista nas páginas do Diário de Notícias, morre exatamente em novembro de 1975, mês em que foi demitido do jornal e ano em que o livro foi publicado. Por mais automática que fosse a urgência daquela crônica vaticinante, surrealista seria pensar que a tenha composto ao longo de 1975. Mais plausível seria cogitar que a história do futuro inscrita em O ano de 1993 era a crônica da agonia do marcellismo (1970-1974). Sobretudo se lhe considerarmos a linguagem criptográfica (naturalmente imposta pela censura) e a alegoria futurante, ambas a registrarem a decomposição de uma terra “doente de peste”, ocupada e ditatorialmente oprimida. A ser correta a interpretação, poder-se-ia datar-lhe a redação entre os anos de 1972-74, ainda mais ponderando que nos anos de 1972-73 o Sr. Saramago diagnosticava nas páginas do Diário de Lisboa os estertores do Salazarismo. Alto lá, Sr. Apolo Constantinos Jr.! Então é possível que o senhor, posto aqui a rasurar O ano de 1993 do Sr. Saramago, de quem sou fã de carteirinha, desconheça texto de eminente crítica, a Sra. Dra. Luciana Stegagno Picchio, saído no número 3 da revista Veredas, onde se lê, com todas as letras que, segundo testemunho do próprio Autor, o livro de que o Sr. Apolo trata, a saber, O ano de 1993, cito com as aspas devidas, “tinha tido a sua origem em 16 de março de 1974, um mês antes da revolução de 25 de abril, sob a profunda frustração sobrevinda à tentativa falhada de um pequeno grupo de militares de derrubar o governo e mudar o regime. Naquele próprio dia tinha sido escrito o primeiro dos trinta poemas que compõem o volume.” Sinceramente agradeço a aparição intempestiva da Sra. Dra. Cassandra de Troia (assim ela se me apresentou, “Muito prazer”, “Sempre à suas ordens”). Devo esclarecer, sob minha condição de Apolo, que se trata de uma “aparição intempestiva”, porque a secção Cartas à Redação: foro e desaforo dos leitores (ágora baktiniana deste Exercícios de caligrafia literária: Saramago quase) está ainda para ser criada. Para que não pareça totalmente ignorante, devo, outrossim, esclarecer que o 16 de março de 1974, dia em que o Sr. Saramago escreveu (conforme reza a Dra. Luciana Stegagno Picchio) “o primeiro dos trinta poemas que compõem o volume”, “sob a profunda frustração sobrevinda à tentativa falhada de um pequeno grupo de militares de derrubar o governo e mudar o regime”, aquele 16 de março de 1974, conhecido como o “Golpe das Caldas”, data, segundo me instruo em António Reis (“A Revolução do 25 de abril de 1974”, in História de Portugal, dirigida por José Hermano Saraiva, Publicações Alfa, volume 6, página 361), “uma precipitada tentativa de golpe por parte de um grupo de oficias próximos do general Spínola, que arranca das Caldas da Rainha com uma coluna sobre Lisboa a 16 de março. Rapidamente controlados, são presos ou transferidos algumas dezenas de oficiais”. De toda essa arenga acadêmico-bibliográfica fica-me a certeza de que em abril de 1974 o livro ainda estava sendo redigido. Certeza confirmada ante qualquer título de protesto pelo fragmento 28. À página 65 da primeira edição que compulso (Editorial Futura), lê-se: “Uma após outra as cidades foram reconquistadas e de todos os lugares afluíam as hordas que outro nome começavam a merecer ......................................................................................................... E quando chegavam à vista das cidades vinham os de dentro a recebê-los levando flores e pão porque de ambos tinham fome os que haviam vivido nas terras devastadas ............................................................................................................... Ó este povo que corre nas ruas e estas bandeiras e estes gritos e estes punhos fechados enquanto as cobras os ratos as aranhas da contagem somem no chão Ó estes olhos luminosos que apagam um a um os frios olhos de mercúrio que flutuavam sobre as cabeças da gente da cidade E agora é necessário ir ao deserto destruir a pirâmide que os faraós fizeram construir sobre o dorso dos escravos e com o suor dos escravos E arrancar pedra a pedra porque faltam explosivos mas sobretudo porque este trabalho deve ser feito com as nuas mãos de cada um Paraque verdadeiramente seja um trabalho nosso e comecem a ser possíveis todas as coisas que ninguém prometeu aos homens mas que não poderão existir sem eles” Claramente se percebe, na euforia do relato e na intervenção do versiculista, o registro da incontida alegria de testemunhar e vazar, poeticamente, no preciso instante daquele 25 de abril de 1974, a derrota de uma ditadura que durara quase cinquenta anos. E de cujos escombros brotava, rubro cravo, a esperança de reconstrução de uma sociedade erguida sob o pedestal do Socialismo. Desse ângulo, é muito provável que a segunda epígrafe do livro, colhida em Diderot, tenha sido aposta aquando da publicação do livro, ou seja, entre, digamos lá, maio e qualquer outro mês ainda esperançoso (mas anterior ao fatídico novembro de 1975): “Mais il semble que ta voix est moins rauque et que tu parles plus librement.” Liberto do garrote da censura salazarista, natural que naquele período de 1975 parecesse ao Sr. Saramago que a voz lhe saísse menos rouca por falar mais livremente. Ocorre que a rouquidão cavernosa e apocalíptica e profética do texto que vinha gestando (o futurante ano de 1993) pareceu ter cura em 25 de abril de 1974. Registrada a cura no fragmento 28, como vimos acima, o que fazer? Cassandra da escrita alheia, por todos os nomes que tenho (Apolo Constantinos Jr.), ouso retroativamente futurar o que pensou o Sr. Saramago naquele crucial 25 de abril de 1974: Cá estou a escrever um livro futurante, a denunciar, criptográfica e surrealistamente, a realidade do Portugal salazarista, quando de repente, contra todas as expectativas, irrompem os cravos da Revolução. Que fazer com o rebento? Autor que se preze é pai de prole que não lançará à roda dos enjeitados. Tendo já escrito àquela altura 28 fragmentos, mais dois, prenhes de esperança na reconstrução futura, poriam ponto final à gestação. Foi o que fez nosso Autor. No fragmento 29, pletórico de imagens facilmente decodificáveis, inscreve-se a renovação da vida ao sopro de “um grande vento” que arrastava os despojos do passado “para longe para os países onde os pesadelos nascem e o terror”. Lavada por lustral chuva, “a terra ficou subitamente verde com um enorme arco-íris que não se desvaneceu nem quando o sol se pôs.” “O dia amanheceu numa terra livre”, onde “os animais pastavam erguendo os focinhos húmidos de orvalho e as árvores carregavam-se de frutos pesados e ácidos enquanto no interior delas se preparavam as doces combinações químicas do outono”. “Entretanto o arco-íris tem voltado todas as noites e isso é um bom sinal”. No último fragmento, o trigésimo, presidido pela anáfora “uma vez mais” a martelar sete dos dez segmentos, sugere-se o eterno retorno da vida, com sua maré montante e jusante de conquistas e fracassos, vitórias e derrotas, ação e fadiga. Apoteótico, não poderia faltar a esperançosa metáfora de uma criança, em cujas mãos (proclamam os esquecidos de Freud e da filogenia) está o futuro sem a sombra de passado tenebroso: “E uma criança objectiva se aproxima e estende as mãos para a sombra que fragilmente retém o cotorno ainda mas não já o cheiro do corpo sumido Uma vez mais enfim o mundo o mundo algumas coisas feitas contadas tantas não e sabê-lo Uma vez mais o impossível ficar ou a simples memória de ter sido Consoante se conclui de nada haver debaixo da sombra que a criança levanta como uma pele esfolada”. Convenhamos que um sibilino epílogo. Pros raros apenas. 4. Fazendo praça da República Já disse algures que, da açoteia onde moro e demoro, tenho privilegiada visão da Praça da República. De dia, claro está. À noite (quando, segundo pintam, todos os gatos e gatas são pardos), a dita praça é couto defeso. Caro turista, pater familia amigo, nem pense em passar por ali, a não ser que esteja o distinto à procura de emoções fortes, nefandas. Foi essa praça (quem desconhece?) batizada em homenagem à nossa República, proclamada (anotem aí, meninos e meninas) em 15 de novembro de 1889. Feitas as contas, nossa República veio à luz vinte anos e nove meses antes do parto da República portuguesa, ocorrida em 5 outubro de 1910. Efeméride lusitana que haveria de merecer homenagem, tanto que em Lisboa há uma Avenida 5 de Outubro... De atalaia na varanda, marulhava eu ao sabor on the rocks desses pensamentos, quando, aproveitando-se de minha happy hour, britanicamente iniciada às 17h00, lá me surde o bom senso a segredar, dando uma de Tirésias, desejoso de dissipar a cegueira deste ensaio: Apolo, a Av. 5 de Outubro, 317-1°, não é o endereço da Editorial Futura? Aquela que publicou as primeiras edições de A bagagem do viajante, em 1973, As opiniões que o DL teve, em 1974, e O ano de 1993, em 1975? Apesar das buzinas que lá embaixo congestionavam o trânsito, ouvi o segredado cicio do inconsciente, esse Tirésias travestido de bom senso, e corri a pegar a primeira edição de O ano de 1993. Virada a capa, na página seguinte se lia, abaixo do nome do autor e do titulo: EDITORIAL FUTURA CARLOS & REIS, LDA Av. 5 de Outubro, 317 - 1° Lisboa 1975 Também cifrada, por obra e desgraça dos longos anos de repressão e censura, a mensagem ali inscrita sob o codinome de uma Editora? Não me venham debitar aos vapores espirituosos de um legítimo scotch o insight da exegese que lhes anuncio como uma boa nova. Tenho a sustentar-me a inventiva do Sr. Saramago, capaz de abrir, galhofeiramente, a lavra ficcional posterior a 1980 com epígrafes colhidas em livros inexistentes. Como? Nessa pele levantada da inventiva do Sr. Saramago se conclui haver debaixo dela a sombra pretérita de Jorge Luís Borges, cujas ficções de sua translúcida cegueira ensaiam a aparente lucidez e brilho de ficcionistas futuros? Confesso que a insistência desse Tirésias aqui emboscado me embatucou. Mais do que a aparição daquela Sra. Dra. Cassandra de Troia aflita em conquistar um espaço que (sei-o porque Apolo me chamam) só lhe será concedido como foro para, inclusive, desaforos no futuro próximo de capítulos seguintes. Como todo bom político embatucado, é hora de tergiversar, mudar o foco, lançar holofotes de proscênio sobre o Sr. Saramago, de quem aqui se trata e não de seus inspiradores ou modelares precursores. Assim sendo, ao gosto do Autor aqui em pauta o Sr. José Saramago, lembre-se, e não Jorge Luís Borges , imaginemos que toda verdade histórica não passa de ficção. Imaginemos que, sita à Av. 5 de Outubro, a dita Editorial Futura, de Carlos & Reis Ltda., sob cuja égide se publicou a primeira edição de O ano de 1993, não obstante escriturada a verdade comercial ou fiscal de sua existência, imaginemo-la que, sendo Editorial Futura, esteja ela a serviço da mensagem inscrita na futurologia de O ano de 1993. Imagine-se, como propõe Georges Duby (e em sua esteira o Sr. José Saramago futuro), que, à falta de documentos, as lacunas e interstícios desse passado 1975, eu como dublê do Revisor de O cerco de Lisboa tenha de recriá-los ao sopro e ao fiat lux da subjetividade interpretativa e ficcional. Assim sendo, mero autor de um livrinho de ficção científica só lido pela família (relembre-se: Vista do vermelho Marte, a Terra é um deserto humano), ignorante da bibliografia crítica desse período formativo do Sr. Saramago, hei de preencher o passado 1975, ano em que veio a lume O ano de 1993, lendo a marca EDITORIAL FUTURA CARLOS & REIS, LDA Av. 5 de Outubro, 317 - 1° Lisboa 1975 sob óculos (devo confessar que sou míope) impressionistas. Brinquemos com a ideia de que é pertinente e significativo que uma obra de science fiction venha a lume sob a égide Futura de uma editora. Crônica poética engajada contra um tempo e regime ditatoriais (o Salazarismo em seus estertores marcello-caetanistas) cujo cesarismo temsuas raízes na monarquia, seja absolutista ou constitucional, naturalíssima, pois não?, a alusão à sociedade limitada (LDA.) de Carlos & Reis. Nesse ponto, o inconsciente, esse Tirésias travestido de bom senso, desconfiando de minha miopia, assentou no nariz aquilino meus óculos impressionistas e resolveu ser didático: a) sociedade limitada, aquela de natureza civil ou mercantil em que o Capital, com seu custo e benefício, se divide em partes por alíquotas, às quais se restringe a responsabilidade de participação dos sócios, ou seja, do status quo, leia-se, da sociedade nela inserida; b) Carlos & Reis sugere a genealogia monárquica de um cesarismo que se vinha arrastando e capengando desde a Restauração de 1640. Carlos I (1863-1908), trigésimo segundo e penúltimo rei dos Reis de Portugal, foi aclamado em 1889. Morreu assassinado, juntamente com o príncipe herdeiro, Luís Filipe, em 1908, num atentado republicano. Sucedeu-lhe o infante D. Manuel, o segundo. Perceba lá a ironia do Destino, meu caro Apolo Constantinos Jr.: segundo a História, essa sibila enigmática, é sob o cetro desse secundário Manuel que, em 5 de outubro de 1910, a pompa e a circunstância monárquicas de uma sociedade limitada naufragam no areal de outro Alcácer-Quibir. O que não sabiam nem desconfiavam os republicanos vencedores é que esse Alcácer-Quibir do 5 de outubro de 1910 não passava de outro deserto de ideias e reformas. c) Tão desértico de ideias e reformas básicas foi o Alcácer-Quibir de 5 de outubro de 1910, que a sociedade limitada do status quo propiciou o golpe do cesarismo militar em 1928, soleira do cesarismo civil de Salazar a partir de 1932. Dada a lição de História, retirou-se o bom senso, esse Tirésias travestido de inconsciente, deixando-me às voltas com o endereço (ou a direcção, com se diz em Portugal) da Editorial Futura: Av. 5 de Outubro, 317 - 1° Lisboa. O que fazer com essa direcção deixada por Tirésias, esse bom senso travestido de inconsciente? Brinquemos mais um pouco, leitor paciente, inspirados pela inventividade do Sr. Saramago. Percebo que o amigo, embevecido pelas alegorias e metáforas saramaguianas, é ávido de mistérios e arcanos. Atentemos, pois, no 317 - 1°. Se somarmos 3 + 1+ 7 e lermos aquele – 1 como sinal de diminuição, não é que chegaríamos a 10... Teríamos então uma Av. 5 de outubro de 10... Bebeu, pontificaria o bom senso (por todos os nomes Tirésias ou inconsciente?), se ainda aqui estivesse. Alto lá, nem tanto assim, ó Tirésias. Só algumas doses acima da humanidade, como receitaram Humphrey Bogart e Vinícius de Moraes. Ademais, se desejam um cânone etílico-interpretativo da realidade, brindemos a Baudelaire e Rimbaud que de simbolismos e simbologias entendiam, tanto que sugeriam o navegar no bateau ivre dos sentidos destrambelhados à busca de correspondências. Convenhamos que o 5 de outubro de 10 (1910, entenda-se, conforme lá em cima assentou cabalística aritimética) abriu larga via, uma maiúscula Avenida, para o cesarismo ditatorial do golpe militar de 1928 e do Estado Novo salazarista. Mas, larga e maiúscula Avenida, o 5 de outubro republicano abriga também a direcção do discurso criptográfico da science fiction de O ano de 1993, do Sr. Saramago. É calcorreando essa Av. 5 de outubro que nosso Autor busca onde se perdeu o ideário democrático do republicanismo. E é em defesa desse ideário democrárico da República que cerra fileira na resistência contra o regime ditatorial do Estado Novo. Não podendo à altura em que inicia o texto (16/3/74, ensinou-me a Dra. Cassandra de Troia) extravasar seu protesto mais livremente, embuça o braço e punho revolucionários. Para pintar o quadro de um país doente e devastado pela peste do cesarismo, serve-lhe, a contragosto, a paleta do Surrealismo, empunhada às linhas iniciais do livro numa alusão a Salvador Dali: As pessoas estão sentadas numa paisagem de Dali com as sombras muito recortadas por causa de um sol que diremos parado (...) Não importa que Dali tivesse sido tão mau pintor se pintou a imagem necessária para os dias de 1993 Por que tão mau pintor o Salvador Dali, embora tenha esboçado na memória da retina do Sr. Saramago “a imagem necessária para os dias” de O ano de 1993? Talvez porque, pondo a seu serviço o Capital, Salvador Dali se tenha distanciado do diletantismo marxista nutrido por alguns membros do movimento surrealista. Mas essa consideração marginal não importa. O que conta é que a coloração surrealista servia à alegoria apocalíptica da science fiction inscrita no livro. Ao contrário do epílogo de O ano de 1993, onde “se conclui de nada haver debaixo da sombra que a criança levanta como uma pele esfolada” , levantada a pele surrealista do quadro saramaguiano, lobrigaríamos, sim, uma sombra, a sombra engelhada do Neorrealismo. 5. O punho revolucionário do Surrealismo Convenhamos que extemporâneo (demodée, disse minha analista, quando lhe apresentei o problema estético que me tirava o sono apesar dos soporíferos receitados), sim, demodée o engajamento neorrealista naquele 1975. A não ser que o ataviá-lo sob a fantasia surrealista tivesse o intuito de inocular-lhe ares de modernidade vanguardista. Ao cabo, reciclagem de lições pretéritas, fazendo-as parecer expressão da mais pura novidade decretei, ortodoxo, à minha analista. Uma vez mais trocadas as posições do sofá catártico, escapuliu-se ela de sob o peso de minha consideração, rumo ao banheiro (à casa de banho, disse ela lusitanamente), deixando-me às voltas com aquela história de reciclagem das lições pretéritas de Neorrelaismo e Surrealismo tornadas pelo Sr. José Saramago expressão da mais pura novidade. Uma vez mais só, abandonado por minha analista, entrincheirada na casa de banho, (como já o fizera aquele Tirésias, bom senso travestido de inconsciente?, ambos a carregar o botão do autoclismo, traduza-se, ambos a puxar a descarga da privada, querendo ver-se livre de quê?), uma vez mais só, vejo-me eu a tratar do braço revolucionário do Surrealismo a serviço de criptônico Neorrealismo em O ano de 1993. Ninguém desconhece que o Surrealismo engajou-se numa dupla revolução, ao lutar pela libertação do homem tanto no plano individual como no social. Para libertar o inconsciente e a imaginação humanos dos recalques interiores, receitava o divã de Freud. Para alforriar o homem da opressão e escravidão externas exercidas pela luta de classes, a doutrina marxista oferecia-se como solução, postulava André Breton. Afinal, como realizar o sonho acalentado da “grande transformação do mundo”, da “profunda revolução social”, se o homem não deixasse de ser escravo de si mesmo e dos outros homens? Por esse ângulo, é natural que o engajamento neorrealista do Sr. Saramago possa embuçar-se de Surrealismo. Ainda mais considerando que, no contexto português anterior ao 25 de abril, a militância política de cunho marxista propiciava certa irmandade entre Surrealismo e Neorrealismo ao exprimirem um e outro o engajamento contra a ordem social, política e ideológica então entronizada pelo Estado Novo. Servia-lhe, pois, a contento o punho revolucionário do Surrealismo, punho de rendas filigranadas com o maravilhoso da science fiction, com a mistura do real e do irreal, do cotidiano e do fantástico. A estratégia consistiu em desvelar sua contemporaneidade (o contexto português estado-novista) à luz de um discurso em que a litania versicular, à São João, soava, na science fiction de O ano de 1993, como as trombetas de bíblico apocalipse. Como toda ficção futurante (ou será como todo apocalipse bíblico?) que se preze, transpôs para o por vir o fruto presente de um passado peco. Ambientou a ação (e sua dialética reação) num país em momento nenhum nomeado... Aqui entre nós, segredo de polichinelo. Quem, a não ser mais cego que o Tirésias de meu inconsciente, nãoreconheceria que se trata do Portugal salazarista? Basta ler, com olhos de ver, os fragmentos 4 (a tortura da “estátua”), 5 (a tratar do “lobos”, metáfora inscrita no engajamento neorrealista de Aquilino Ribeiro, em Quando os lobos uivam, e de Manuel da Fonseca, em Seara de vento, antes intitulada Tempo de lobos), 19 (as simpatias nazi-fascistas do Salazarismo, legíveis quando “Determinou o ordenador que todos fossem numerados na testa como no braço se fizera cinquenta anos antes em Auschwitz e outros lugares”). E já que a “ordenador” nos referimos, quem o Ordenador seria se não o Sr. Oliveira Salazar a proclamar em seus discursos “Ordem, ordem!” 6. Divã catártico Sem ter trocado a posição no divã catártico, pedi à minha analista que lesse essas páginas, que me orientasse nessa exegese de O ano de 1993. Você já leu O ano de 1993? Na última sessão eu lhe emprestei o livro e pedi que lesse. Você leu? Li. E daí? Entendeu. Mais ou menos. Gostou do livro? Gostei. Por quê? Sei lá. Tem assim umas coisas que tocam fundo... A alegoria de um povo oprimido que se liberta... que se organiza para pôr fim a qualquer ditadura... Leu o ensaio que eu estou a escrever? Li. Entendeu? Assim assim. Você está dando uma no cravo e outra na ferradura. Na ferradura de quem? Espera aí. Agora quem não entendeu fui eu. Percebo que você não tem dormido. Tirésias, o cego a representar o bom senso de meu inconsciente, tem-me ditado esse ensaio. Os soníferos não têm funcionado? Dormir pra quê? É durante o sono que o inconsciente se mantém em vigília, a trabalhar. Só não a convido para dormir comigo porque seria uma ofensa. Ofensa a quê? Imagine que, convidada a dormir comigo, você não conseguisse me manter acordado a noite toda... Vamos ao que interessa. Trouxe-lhe uma preciosidade que vai servir para sua arenga com O ano de 1993. Trata-se de uma crítica do Sr. José Saramago ao romance Os mastins, de Álvaro Guerra. Crítica saída no número 1462, agosto de 1967, na revista Seara Nova. O ano de 1967? Socorro, Mnemósine! Ó memorioso Funes, por que não te ergues da paralisia imposta pelas ficções jorge-luis-borgianas em meu auxílio? Já não lhe disse que o melodrama faz mal à sua saúde? É açúcar demais para sua diabetes... O ano de 1967?... Vou lembrar, vou lembrar... 1967... Um ano depois de ter publicado Os poemas possíveis, que são de 1966... Vinte anos depois de A terra do pecado... Quer dizer, com só dois livros publicados, bem no comecinho do tal período de formação... E daí? Que têm Os mastins do Álvaro Guerra com minha insônia? Já li Os mastins. Mas seus latidos nada têm a ver e a soar com o arreganhar de caninos e a baba hidrófoba da besta ladradora de meu inconsciente. Para você o que interessa nesse momento não é a crítica do romance, mas o que o Sr. José Saramago diz acerca do uso da alegoria. Você não anda às voltas e revoltas com a alegoria de O ano de 1993? Pois faça bom proveito da fotocópia que lhe trouxe. Onde você arrumou isso? Tenho minhas fontes bibliográficas. Ao contrário de você que não passa de um inconsciente, cego e surdo ao que já foi dito ou escrito. Você veio aqui só para me ofender? Não. Tanto que lhe trouxe essa fotocópia. Se queres a paz, prepara-te para a guerra. Não é assim que se traduz aquele ditado latino de Júlio César? Foi em De bello galico? Ah, sei lá... Vamos lá, deixa esse xerox de fidedignas fontes bibliográficas aí e façamos as pazes na cama. Quero ver se, apesar dos soníferos receitados, você me deixa acordado para os sentidos destrambelhados a noite inteira. Quer saber de uma coisa, Sr. Apolo Constantinos Jr., vá solenemente à merda com suas cantadas e seu umbilical marialvismo! Dito isso, com passos marciais de generala, retirou-se de minha sobranceira cobertura (sita, como já sabem, na esquina da Praça da República com o Boulevard São Luís) a psicóloga e psicoterapeuta Maria de Jesus Caetano Freire. Não tenho culpa de o pai dela, um salazarista de quatro costados (lembram-se?), ter-lhe dado o nome da governanta de cama, mesa e banho dos intestinos de Portugal no Palácio de São Bento. 7. O xerox da alegoria Fico a indagar-me que recepção teria tido O ano de 1993 aos olhos da censura e do público, apesar de sua criptografia surrealista. Como o livro saiu em 1975, a censura salazar-marcello-caetanista estava já devidamente encarcerada a coçar o saco e a matar o tempo, segundo testemunho teatral do Sr. Cardoso Pires em Corpo delito – na sala de espelhos. Assim sendo, resta o público leitor. Qual? O Sr. Saramago ainda não tinha recebido o Óscar. Portanto, ninguém se veria obrigado a lê-lo para não incorrer na suposição de parvo ou iletrado. “Poetas por poetas sejam lidos”, como o exigia, em seu “Arrazoado”, Filinto Elísio, por todos os nomes chamado Francisco Manuel do Nascimento no setecentismo neoclássico? Engajados por engajados sejam lidos? Curto circuito a promover o fogo-fátuo de incêndios revolucionários? Ao relatar, nos trinta fragmentos de seu poema em prosa, a história de um povo a lutar contra a opressão; ao pincelar, numa tela surrealista, a angústia, o medo e a esperança de um povo oprimido que pouco a pouco vence a resignação e organiza a resistência até à batalha decisiva que levará ao regresso da vida e da liberdade convenhamos que a ideação de O ano de 1993, (imagem de quantos povos sofreram, e ainda sofrem, a tirania de regimes discricionários), ora, como negar que esse quadro nutre a pretensão de assumir ares universalizantes ao sopro da alegoria. Vislumbra-se aqui o travejamento que fará a fama e fortuna dos romances saramaguianos posteriores a 1980. Data a partir da qual sua ficção (tendo por charneira Jangada de Pedra, de 1986) assumirá, gradativamente, a feição de Jano, cabeça com duas faces, uma voltada para o Passado, outra para o Futuro. À face voltada para o Passado corresponderão suas revisões da História: Memorial do Convento, 1982; O ano da morte de Ricardo Reis, 1984; A história do cerco de Lisboa, 1988; O Evangelho, segundo Jesus Cristo, 1991). Na face voltada para o Futuro, a óptica da alegoria: Ensaio sobre a cegueira, 1995; Todos os nomes, 1997; A caverna, 2000; O homem duplicado, 2002; Ensaio sobre a lucidez, 2004. Saído nesse 2005, a reincidência teatral do Sr. Saramago, nomeada Don Giovanni ou o dissoluto absolvido, confirma que a dupla face ostentada por sua obra, dita pós- moderna, condensa o viés intertextual de sua perspectiva, a dialogar seja com autoral Estória seja com autoritária História. Insiste o Sr. Saramago em encarnar o papel do Revisor de O cerco de Lisboa, desautorando o Passado, para que nele (o Passado ou Sr. Saramago?) releiamos a vida pregressa de modo a não cometermos, no Futuro, os mesmos erros. Aqui a lição que nos ensina a História, essa lembrança do esquecimento humano. Aliás, em termos de memória ou de criptomnésia, há de revelar-se espantoso seu autodidatismo. Vem-me à lembrança Funes, o memorioso, das Ficções de Jorge Luís Borges. Alusão ou analogia que logo corrijo, ao lembrar-me que, na elaboração de O ano de 1993, o Sr. Saramago esqueceu-se do que um dia escreveu acerca da alegoria. No xerox deixado por minha psicoterapeuta, por todos os nomes Maria de Jesus Caetano Freire, lê-se (número 1462, agosto de 1967, da Seara Nova) o que então ele pensava acerca do recurso à alegoria: “Proposta para os historiadores da nossa cultura: como, quando e porquê [...] recorreu o artista ou o escritor português aos caminhos traversos da alegoria para exprimir a sua posição perante a sociedade em que viveu. [...] Claramente se vê que o uso de tal processo de expressão pressupõe ao dirigir-se ao leitor ou espectador, o conhecimento exterior do código empregado. Doutro modo, a mensagem era indecifrável, sem efeitos práticos imediatamente reduzida, portanto, a mero exercíciode estilo cujas intenções só na mente do autor se definem. Este parece-nos ser o mais grave defeito da alegoria, a sua fraqueza orgânica. Daí que as obras que segundo as suas regras se estruturam sejam quase sempre circunstanciais, ressalvados aqueles raros casos em que a constância das circunstâncias as incorporou no acervo ideológico de gerações.” Transformaria o Sr. Saramago essa crítica à alegoria numa autocrítica a O ano de 1993? Não teria ele, como escritor português, também recorrido “aos caminhos traversos da alegoria para exprimir a sua posição perante a sociedade em que viveu”? O “uso de tal processo de expressão” [a alegoria] em O ano de 1993 não pressuporia, “ao dirigir-se ao leitor ou espectador, o conhecimento exterior do código empregado”? Poetas por poetas sejam lidos ou engajados por engajados sejam lidos, nova versão do odi profanus vulgus? Desconhecendo o leitor o sentido criptográfico da alegoria, não seria a mensagem indecifrável, “sem efeitos práticos imediatamente reduzida, portanto, a mero exercício de estilo cujas intenções só na mente do autor se definem” ? (Que se tratava de “mero exercício de estilo”, não tenho dúvida. Apetecia-me perguntar, em nome da exegese acadêmica, que intenções se definiam então na mente do Autor.) Obra estruturada segundo as regras da alegoria, não seria O ano de 1993 também circunstancial, natimorta à nascença, considerando que, nascida em 16 de março de 1974, já não teria mais razão de ser quarenta e quatro dias depois? Toda Cassandra tem o Apolo [Constatinos Jr.] e os incrédulos que merece. Assim sendo, aventuro-me a vaticinar que no vindouro foro (e desaforo) dos leitores, Cartas à Redação há de chamar-se , alguma leitora, a cavalo do incêndio de Troia, há de contestar- me. Pura e simplesmente dizendo que O ano de 1993 está ressalvado de todos os defeitos da alegoria por ser (e vai recitar a crítica saramaguiana) um daqueles “raros casos em que a constância das circunstâncias as incorporou no acervo ideológico de gerações.” Serei eu (cito agora o desaforo vindouro da minha leitora trojan horse ), serei eu “tão ignorante que não percebo que ainda hoje, em pleno século XXI, está inscrita n’ O ano de 1993 a imagem de quantos povos sofreram e sofrem, aqui e alhures, a tirania do neoliberalismo, esse punho rendado do selvagem Capitalismo?!” Praza aos céus que escapei do cajado e estaca ?! dos sinais de sua indignação. Ó deuses, onde o sonífero receitado por minha psicoterapeuta, a generala Maria de Jesus Caetano Freire? Ah, na gaveta da piniqueira, meu criado mudo, ao contrário dela. Ei- lo aqui, revestido em sua brancura de antisséptico silêncio. Quem sabe, misturado com três doses de uísque acima da Humanidade, esse Morfeu encapsulado há de livrar-me do pesadelo apocalíptico de O ano de 1993. [SP, jan.-set./2005] Cartas à Redação: foro e desaforo do leitor “Quem dá com a língua nos dentes, às vezes está à procura do siso.” (Incunábulo dos Apólogos) Têm chegado a esta redação cartas de leitores. Como esta redação quer-se um fórum democrático e polifônico, interessado, pois, em diversos e contrastantes pontos-de-vista, tornemo-la uma ágora passada, fazendo praça de que o espaço aqui aberto serve para manifestações e debate públicos, sempre saudáveis à liberdade de credos, sejam políticos, religiosos ou literários. Asim, com o intuito de acolher a opinião dos leitores, o diretor desta redação houve por bem chamar uma plenária com as bases operário-tipográficas, a fim de estabelecer critérios para, recebidas as missivas, divulgá-las. Depois de prolongada e rebarbativa discussão, tendo abandonado o plenário quase todo mundo, vá lá saber-lhes a razão, quase ninguém, ou seja, meia dúzia de gatos pingados, soberana vontade da classe e cidadão ausentes, votou e decidiu que: a) as cartas devem ser encaminhadas com assinatura e identificação. (Entenda-se por identificação: árvore genealógica, mapa astral, endereço com xerox comprovante de residência, e-mail e telefone do remetente. Correspondência sem identificação completa será desconsiderada. Garante-se sigilo absoluto. Nenhum risco, pois, de vazamento seja para repórteres investigativos seja para malas-diretas.); b) esta redação se reserva o direito de selecioná-las, além de resumi-las e copidescá- las, para publicação. Tudo isso posto e disposto, democraticamente, com o único fito de zelar pela fiel observância dos princípios da ética. Ensaio também sobre a cegueira e sobre a lucidez, interessa a esta redação o que miopias impressionistas, hipermetropias acadêmicas, cataratas e olhos de lince podem enxergar no que leem. “Se sabes ler, começa por soletrar as entrelinhas.” é a divisa desta redação, grafada em letra gótica, a subscrever, em caprichoso formato de lua-nova, seu emblema: uma luneta, a de Galileu lembrança de que a hipertrofia da visão, diziam já os Barrocos, pode ajudar-nos a enxergar além das aparências assentes e aceitas por qualquer dogma dito indiscutível, seja religioso, político ou literário. “Pues ese cielo azul que todos vemos/ ni es cielo ni es azul. Lastima grande/ que no sea verdad tanta belleza.” São versos de um poeta espanhol, Lupércio Leonardo de Argensola (1559-1613), a falar da maquilagem ostentada pela “realidade” com o intuito de embair-nos os sentidos. Considera, pois, leitor(a), que a evidência de qualquer miopia, hipermetropia ou cegueira será sempre um ensaio sobre a lucidez. A Redação. Entulho do autoritarismo Quero registrar meu veemente protesto contra as normas que regulam a participação do leitor no fórum de debates instituído por essa Redação. As exigências feitas para a identificação do missivista são simplesmente absurdas. Não passam de piada sem a menor graça. Elas mais parecem aquelas requeridas por cadastros bancários para a abertura de simples e reles conta-corrente. Ademais, reservar-se a Redação o direito de selecionar, resumir e copidescar as cartas é a mais clara manifestação do entulho, para não dizer lixo, autoritário que ainda nos soterra. Deusdédit Protestante da Silva, Monte Santo de Minas (MG). Coisa de doido Ora, façam-me o favor. Só mesmo saída da cabeça de um maluco que mistura uísque com antidepressivo aquela interpretação dada para a Editorial Futura, Carlos & Reis Ltda., sita à Av. 5 de Outubro, 317 - 1°, que publicou O ano de 1993. Norberto Rosas, Franco da Rocha (SP). Maluco beleza Discordo do leitor Norberto Rosas (Coisa de doido). Pode ser coisa de maluco toda aquela interpretação sobre a Editorial Futura, mas foi uma beleza. Acaso o citado leitor desconhece ensinamento do poeta francês Rimbaud, o de que só navegando no bateau ivre dos sentidos destrambelhados temos as verdadeiras iluminações? Ah, caso o Sr. Norberto Rosas não saiba, bateau ivre (barco bêbado) é um poema do Rimbaud, autor também de uns poemas em prosa intitulados Illuminations. Sereno Ribas, Atibaia (SP). Confissões Eu sou aluna de um curso de Letras. Eu sou fã incondicional de Fernando Pessoa e José Saramago. Eu adoro o Álvaro de Campos que meu Professor diz ser Fernando Pessoa. Eu confesso que não entendo muito bem essa coisa de Álvaro de Campos ser Fernando Pessoa. Mas o que eu quero dizer mesmo é que fiquei fã incondicional do José Saramago porque o meu Professor defendeu uma de tese de mestrado falando sobre O Memorial do Convento. Quando ele dá aula sobre a literatura em Portugal [,] ele pede que a gente leia O memorial do convento. Eu li e adorei. Verdade que não tinha entendido quase nada. Além de ser escrito de um modo muito complicado, fazendo com que a gente tenha de prestar muita atenção para entender o que está sendo dito, o livro falava de uns tempos passados. A construção do Convento de Mafra no século XVIII, disse o meu Professor.
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