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SARAMAGO QUASE

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Prévia do material em texto

Francisco Maciel Silveira 
 
 
 
 
Exercícios de caligrafia literária: 
Saramago Quase 
 
 
 
“Abre teu olho. Só não enxergas por mantê-lo fechado às evidências.” 
(Livro do Desconcerto) 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
São Paulo 
2012 
(2006) 
I. A Terra do Pecado (1947) 
 
Manuel Pelourinho 
(Doutor em Letras pela Sorbonne e diplomata. Autor de Punhos de renda, luvas de pelica.) 
 
 
“Se sabes ler, começa por soletrar as entrelinhas.” 
(Livro do Desconcerto) 
 
 
1. Homem de bom aviso 
 Abro a segunda edição de Terra do Pecado (Lisboa, Caminho, 1997), a reproduzir 
integralmente a primeira, saída pela Editorial Minerva em 1947. Logo à entrada um 
“Aviso”, no qual o autor, o Sr. José Saramago, dá notícia de como veio a lume o primeiro 
rebento de sua agora extensa prole literária. 
Nele, diz tratar-se à época de “um rapaz de 24 anos, calado, metido consigo”, 
“praticante de escrita nos serviços administrativos dos Hospitais Civis de Lisboa”, “tão 
cumpridor e pontual que à hora de começar o serviço já está sentado à pequena mesa em 
que trabalha”. Estava para nascer-lhe uma filha e “já havia plantado umas quantas árvores”. 
O “pouco mais que lhe resta para fazer na vida”  completude exigida pela trindade 
existencial de todos conhecida , já “que queria ser escritor”, naturalmente seria escrever 
um livro, pôr sua prática de escrita a serviço de mais altos desígnios. 
“Não sabe dizer como lhe veio depois a ideia de escrever a história de uma viúva 
ribatejana, ele que de Ribatejo saberia alguma coisa, mas de viúvas nada, e menos ainda, se 
existe o menos que nada, de viúvas novas e proprietárias de bens ao luar.” À procura de 
editor, “com notável atrevimento”, despacha os originais, “sem padrinhos, sem empenhos, 
sem recomendações”, para a Parceria António Maria Pereira. A Viúva  assim se intitulava 
a pretendente , por algum misterioso e inexplicável desvio, toma outra direção e vai ter à 
porta da Editorial Minerva. O editor, Sr. Manuel Rodrigues, deve ter-se engraçado com a 
narrativa, mas não com o título, que, “sem atractivo comercial, deveria ser substituído”. 
Não se cansasse o Autor à procura de outro, pois ali à mão, sacado da algibeira de seu faro 
editorial, tinha um: Terra do Pecado  título “a que nunca se há-de acostumar”. A alegria 
de ver-se publicado não foi capaz de fazê-lo esquecer “a derrota de ver trocado o nome a 
esse outro filho.” Conclui o “Aviso” dizendo que o livro lhe abrira as portas da literatura 
portuguesa, embora não tivesse sido um sucesso: “Realmente, a julgar pela amostra, o 
futuro não terá muito para oferecer ao autor de A Viúva”. 
Sinalizador, aí fica o “Aviso” para quem vá navegar por essas águas passadas. Não 
se perca o marinheiro de primeira viagem nessa travessia, nem passe à deriva, despercebido 
de faroletes e boias. Quais? 
Facho luminoso a varrer os abrolhos mal entrevistos à superfície do texto, esse falar 
o Sr. José Saramago de si mesmo em terceira pessoa. Modéstia? Afogar em pia batismal o 
Eu, umbigo de todas as vaidades? Exorcisar o desvanecimento de ter triunfado sobre o 
augúrio de que o futuro pouco teria “para oferecer ao autor de A Viúva”? Afinal, o texto do 
“Aviso” é de 1997, escrito, passados cinquenta anos da “pouco lustrosa” estreia por autor já 
então galardoado com cinco prestigiosos prêmios (Prêmio Internacional Literário Mondello, 
Itália, 1992; Prêmio Brancanti, Itália, 1992; Prêmio Vida Literária, Portugal, 1993; Prêmio 
Consagração SPA, Portugal, 1995; Prêmio Camões, 1995) concedidos pelo conjunto de 
uma obra que, então forte candidata ao Nobel (1998), forceja por esquecer A Viúva, quer 
dizer, Terra do Pecado,  “destinado a ter uma vida curta e praticamente sem memória” 1. 
Se descartada a razão acima, por psicologia de almanaque, avente-se outra, a 
explicar este ver-se o Sr. José Saramago a distância, falando de si próprio como outra e 
terceira pessoa, estranhando-se como fez H., em Manual de pintura e caligrafia (1977, p. 
31), ao rever-se em antigo retrato: “Quem sou eu-aquele?” Ora, ora, meus jovens, cinquenta 
(cinquenta e um?) anos distanciam um ser do outro. Rios de heraclitiana tinta correram sob 
a ponte que separa esse experimentado e premiado escriba de 1997 daquele autor incipiente 
(valha-nos aqui a homofonia) de 1947. 
A esta altura, seja por qualquer título (poesia, crônica, conto, romance, teatro), esse 
senhor de setenta e cinco anos deita um olhar terno e comovido sobre aquele rapaz de vinte 
e quatro anos, nele reconhecendo traços biográficos e (ainda?) psicológicos que são os seus: 
calado, introvertido, míope, “diminuta fortaleza física”, pai. Por um momento, heteronímica 
 
1. Reis, Carlos. “O escritor em construção”. In: Diálogos com José Saramago. Lisboa: Caminho, 1998, pp. 
e pessoanamente, esse senhor de setenta e cinco anos foi-o, outrora, agora. A ponto de, 
único instante no texto de “Aviso”, identificar-se e confundir-se com o outro que outrora 
foi:  “Neste ano de 1947 em que estamos nascer-lhe-á uma filha, a quem medievalmente 
dará o nome de Violante, e publicará o romance que tem andado a escrever, esse a que 
chamou A Viúva mas que vai aparecer à luz do dia com o título a que nunca se há-de 
acostumar”. Foi-o, outrora, agora, mas não reconhece seja aquele autor inexperto, e às 
vésperas da paternidade, pai do romancista que nasceria trinta anos depois (Manual de 
pintura e caligrafia, 1977). 2 Daí o distanciar-se, ao revê-lo no espelho do “Aviso”. 
Contudo, o tratá-lo, cinquenta anos transcorridos, como o outro, o homem 
duplicado, que, não obstante todas as semelhanças, ele, distanciando-se, recusa ser, o tratá-
lo assim nesse modo e termos não obscurece ou apaga o fato de, por todos os nomes e 
títulos, ter sido um “manga de alpaca”, “praticante de escrita”, tão cônscio da “escala 
hierárquica” que, “à hora de começar o serviço já está sentado à pequena mesa em que 
trabalha”. Da caverna do ser José Saramago viria a lume, mais tarde, sob a figura de um 
introvertido cinquentão amanuense do Registro Civil, aquele rapaz que fora. Embora não 
deseje a identificação, aquele inexperto jovem de 24 anos foi, quer queira ou não, o pai do 
romancista de Todos os nomes (1997) e O homem duplicado (2002). Machadianamente, o 
menino (aquele jovem autor inexperto de 24 anos) é, ao cabo, o pai do homem, esse Sr. 
José Saramago, que se revê da olímpica altura de seus consagrados setenta e cinco anos. 
Em verdade, o septuagenário, autor agora renomado, não reconhece ou não se 
identifica com ou se distancia daquele novel autor que um dia cometera o pecado de 
escrever A Viúva falto de vivência, saber ou experiência: “Não sabe dizer como lhe veio 
depois a ideia de escrever a história de uma viúva ribatejana, ele que de Ribatejo saberia 
alguma coisa, mas de viúvas nada, e menos ainda, se existe o menos que nada, de viúvas 
novas e proprietárias de bens ao luar.” 
 
 
 
11-27. 
2. “Que senhor é esse que escreveu esse livro? Eu sei lá quem é! Não sou eu...” Carlos Reis, Diálogos com 
José Saramago, Lisboa: Caminho, 1998, p. 41. Cf. página 35: “... aquele senhor escreveu aquele livro, mas 
não com a consciência de que se tinha preparado para ser escritor.” 
 
2. Reminiscências de alheia caligrafia 
Aquele jovem “praticante de escrita” exercitara sua caligrafia literária decalcando, 
às portas da primeira metade do século XX, moldes oitocentistas.3 Seu caderno de caligrafia 
era o Realismo/Naturalismo. A letra que lhe servia de modelo e lhe conduzia o pulso era a 
grafia de Eça de Queiroz, mas reconhece-se também o floreado de Júlio Dinis, sobretudo no 
enfoque dado à Natureza e àquele laborioso, ingênuo e servilcampesinato. 
Da memória literária, e não de um saber de experiência feito, erguera o romance. 
Cujo enredo há de despertar reminiscências na caverna de nossa memória. Enviuvando no 
primeiro capítulo, Maria Leonor sofrerá, ao longo dos restantes vinte e quatro, além dos 
efeitos psicofisiológicos de sua condição de fêmea ainda jovem submetida ao aguilhão da 
abstinência sexual, a ingerência tirânica de uma empregada disposta a zelar pela virtude da 
patroa. Oscilando da abulia à excitação, ao sabor de uma histeria diagnosticada por uma de 
suas empregadas como “falta de homem”, a personagem peleja contra a “teoria da 
fatalidade” orgânica. Graças ao inoportuno aparecimento de sua zelosa serviçal, Benedita 
(benedicta?), a viúva escapa de, com o cunhado, ali no chão do escritório, proceder 
“como fêmea pré-histórica, que se embrenhava no mato, berrando, ciosa pelo macho, e que se 
espojava depois na terra fecunda e negra. Eu era joguete das forças naturais do sexo, as mais misteriosas 
forças da vida, que são o anseio íntimo para a imortalidade dos deuses. Foi pensando isto que me acalmei: 
desde que fora tudo consequência duma causa de que me não era possível defender, sentia-me irresponsável 
como um cavalo que alguém guia para um abismo. Não me cabia responsabilidade na queda, alguém me 
impelia, alguém me guiava...” (pp. 183-184) 
Com  note-se  Os primeiros princípios, de Herbert Spencer, fortemente 
apertado contra o seio (cf. p. 183), a longa explicação acima é dada pela própria Maria 
Leonor, sinal de que, não obstante toda a evolução da espécie, continuamos a abrigar na 
caverna dos instintos naturais a pré-história do ser. De nada vale a Maria Leonor ser essa 
mulier sapiens, ao cabo vencida e subjugada pela “fêmea pré-histórica”. No leito de sua 
viuvez, esquecida da herbert-spenceriana evolução que a guindara de fêmea a mulher  
entenda-se: “representante de uma espécie distinta e superior, em que a posse animal foi 
adornada, crismada, enfeitada de palavras lindas, que a tornaram apresentável, capaz de não 
ofender os ouvidos mais castos e os sentimentos mais puros”, p. 183  , ei-la a sucumbir à 
 
3. “Aquele livro resulta do seguimento de leituras mal arrumadas e mal organizadas  e saiu aquilo.”, 
urgência naturalística do apetite genésico com o cura de seu corpo, o Dr. Viegas, 
cinquentão e velho amigo da família. Desta feita, a inoportuna, vigilante e benedicta 
serviçal não chega a tempo para salvar a virtude da viúva carente. Tacão da moralidade e 
religião castradoras do Evolucionismo, insultada em sua condição de solteirona, invicta e 
beata, Benedita calcará “a serpente horrível do Mal e do Pecado” (p. 285), anatematizando, 
por vergonhoso, o ato, consumado, ora vejam se tem cabimento, fora dos sacrossantos laços 
matrimoniais e ainda por cima no tálamo conjugal: 
“ Pois a senhora atreveu-se? Aqui dentro, no mesmo quarto e na mesma cama onde morreu seu 
marido!?... Mas que espécie de mulher sem vergonha é a senhora? E Deus não a matou, não lhe caiu um raio 
em cima, que os despedaçasse, quando se espojavam aí como dois cães.”(pp. 283-284). 
Escorraçada a fêmea pré-histórica sob os insultos e recriminações da serviçal, 
recompõe-se a mulher ataviada pela evolução da espécie. Viúva e mãe e educada à luz de 
princípios religiosos e morais, sobrevêm o arrependimento e o remorso: 
“A própria recordação do pecado, a lembrança de que se tinham pertencido quando ainda não tinham 
esse direito, ensombraria a vida de ambos: acabariam por odiar-se. E teria ela coragem de dizer aos filhos que 
ia casar-se com o médico? E o que diriam os criados, toda a gente da Quinta, toda a gente de Miranda”(p. 
288). 
Casar-se com Dr. Viegas para curar-se de suas carências, sob o beneplácito e 
permissão da ciosa empregada 4, não seria solução, posto que não o amava. “E ali, se lhe 
apresentou a outra solução: o salto nas trevas, o suicídio, a morte.” (p. 289) De que foi salva 
nas últimas linhas do romance pela morte do Dr. Viegas: 
“ Vínhamos informar a senhora de que o senhor doutor morreu. Encontraram-no no fundo do 
dique, com a charrette espatifada e o cavalo morto também. Deve ter caído...” 
Reticente final, umberto-ecoando que a obra se abra à cogitação do leitor. Acidente? 
Suicídio? A opção interpretativa traz implicações. A morte do Dr. Viegas por acidente é 
providencial demais em todos os sentidos. Além de salvar a viúva do cogitado suicídio 
(tresloucado e condenado gesto aos olhos da santa madre Igreja), a morte acidental do 
doutor conota o castigo do Senhor, raio a fulminar o Mal e o Pecado de que ele fora agente, 
ao sucumbir, num momento de fraqueza, aos apelos da Natureza. Já o suicídio, compelido 
seja pelo remorso, arrependimento ou pruridos moralistas, representaria a derrota de quem, 
 
reconhece o Sr. José Saramago. Id. ibid., p. 35. 
4. “ Não chore, minha senhora, não chore  gemeu Benedita.  Então, por amor de Deus, tudo se há-de 
como homem da ciência, se dizia defensor da natural simplicidade da vida. 
[Dr. Viegas, p. 248]: “Estava a pensar na minha teoria da simplicidade da vida e na inveja louca que 
tenho do apuro a que os homens das cavernas a tinham levado! Naquele tempo, era a grande Natureza a 
senhora de tudo. E não me parece que se tenha verificado a existência de Beneditas arreliadoras, de Leonores 
infelizes e, muito menos, de Viegas cirurgiões e conselheiros. Então, a machadinha de sílex resolvia quase 
todos os problemas e dificuldades... O pior foi que a evolução do teu Spencer deu cabo a tudo.” 
De fato, o evolucionismo de Spencer deu cabo da viúva e do Dr. Viegas, derrotados 
ambos pelas pressões e preconceitos da moralidade e religião castradoras, que, responsáveis 
pelo verniz civilizacional do homo sapiens, acabou transformando a aldeia global em que 
vivemos, e não só a Miranda do romance, na terra do pecado. Afinal, a evolução da espécie 
transformou o instinto sexual, uma das pulsões mais naturais de nossa pré-história, em 
anátema e pecado. 
Simplicidade 5 natural da pré-histórica espécie humana versus evolucionismo 
civilizacional e castrador da Cultura, Religião e consequente Moralidade constitui, pois, o 
conflito do livro. Adequado, portanto, o novo título dado pelo editor em substituição ao 
anterior, no mínimo anódino. Ao fim e ao cabo, segundo a óptica do romance, não 
assistimos todos numa Terra do Pecado, essa legada à nossa espécie pelo Evolucionismo? 
Se lhe considerarmos a pertinência, incompreensível não se tenha acostumado o Autor, ao 
longo de cinquenta anos, com o novo batismo. Ter-lhe-ia causado repugnância o sex appeal 
comercial de um título destinado a mexer com as zonas erógenas do reprimido inconsciente 
do potencial (e evoluído) leitor, voyeur ávido por frestar cenas de alcova? 
Lê-se na história de Maria Leonor a ilustração do mito de Eros e Psiché, cuja 
estatueta (aliás, simbolicamente, salva por Benedita de estilhaçar-se numa queda)6, convive, 
no quarto da viúva, com outra, uma “Virgem de porcelana, que afogava debaixo dos pés a 
serpente horrível do Mal e do Pecado” (p. 285). Óbvia a simbologia e adequada ao tema. 
Sabe-se que o mito de Eros e Psiché figura a submissão e cativeiro impostos à 
transcendência do espírito (Psiché = personificação da alma) pela sexualidade animal (Eros 
= expressão pervertida do amor) que anela apenas o prazer físico e não o sublimado gozo da 
esponsalícia união Carne/Espírito. A duras penas, impostas por Hera, deusa da pureza e do 
 
arranjar!... A senhora casa e tudo esquece...”(p.289) 
5. Em seu sentido primeiro: aquilo que, não sendo duplo ou múltiplo, não abriga desdobramentos conflituosos 
decorrentes da complexidade imposta pela Civilização. 
lar, Psiché (a Alma) libertar-se-á da cegueira, sedução e cativeiro a que a submete a 
sexualidade pervertida e banalizada de Eros 7. 
Sem grandes esforços exegéticos reconhecemos, na abulia depressiva de Maria 
Leonor, nos seus remorsos e arrependimentos após os fogachos eróticos, o conflito Eros 
versus Psiché. Na opressiva vigilância e abanões da benedicta serviçal (outra Virgem a 
esmagar sob e a seus pés a serpente horrível do Mal e do Pecado), lobrigamos a intervenção 
de Hera, a zelar pela pureza da patroa e do lar. Pertinente essa mistura dos maravilhosos 
cristão e pagão no conflito entre a Natureza e a Moral cristã. Metaforismos alegóricos que, 
seminais neste romance de estreia, prometem seara futura. 
Onde se reconhecem as caligrafias de Eça de Queiroz e Júlio Dinis no exercício da 
efabulação? Ambientado, à Júlio Dinis, num campo pletórico, regido pelo ciclo indômito e 
vital da Natureza, o romance transcorre num habitat onde, rescendente de símplice e 
pastoral romantismo, se trabalha e produz ao abrigo de afetuosas relações entre patrão e 
empregados, distante, pois, do panfletário maniqueísmo neorrealista em moda naqueles 
anos Quarenta. Tão afetuosas considerações irmanam superior e subalternos a tal ponto, que 
o inferno terreno de Maria Leonor decorre do imenso amor que lhe devota a serviçal 
Benedita, cheia de boas intenções. O conflito Natureza versus Moral (da viúva) é assistido 
por dois curas, um do corpo, o médico (Dr. Viegas), outro da alma (o padre Cristiano, que 
não se perca ele pelo nome), a lembrar-nos As pupilas do Sr. Reitor. Só que neste romance 
do jovem Saramago as pupilas vigilantes serão de uma reitora, Benedita,  benedicta, já se 
insinuou aqui. 
E é essa mesma Benedita que, cópia e simulacro de outra realidade, faz emergir da 
caverna da memória a reminiscência de outra infernal doméstica, a Juliana de O Primo 
Basílio (1878) do Eça de Queiroz. Não faltam, no conflito entre patroa e serviçal, cartas: 
três, que, contrariando a expectativa, não serão usadas para espezinhar ou martirizar a 
patroa. Enganosamente, o romance leva o leitor a esperar que Benedita calque seus tacões 
vingativos sobre Maria Leonor, que, não obstante loira, não será outra Luísa. Anjo da 
guarda da viúva, a empregada declara guerra não à sua estimada patroa, mas à fêmea que, 
 
6. Ver página 40. 
7. Ver, a propósito, Paul Diel - Le symbolisme dans la mythologie grecque, Paris: Petite Bibliothèque Payot, 
1966, pp. 132-135. 
presa do cio, forceja por vir à superfície das cavernas pré-históricas de suas pulsões e 
necessidades sexuais. “Guardiã da moralidade da casa” (p. 212), essa Hera doméstica passa 
a vigiá-la e a controlá-la, para evitar que, sob o influxo do ciclo vital da Natureza 8, venha a 
espojar-se no terra a terra pecado da carne. 
Lobriga-se em Terra do Pecado outro indício de que esse jovem de vinte quatro 
anos, em 1947, será o pai daquele septuagenário romancista consagrado, em 1997. Refiro-
me ao DNA recriativo das fontes e paradigmas que lhe regurgitam na memória. Surpreende-
se no romance aquilo que Gerard Genette chama genericamente de transtextualidade, ou 
seja, “tout ce qui le [o texto] met en relation, manifeste ou secrète, avec d’autres textes.” 
Mais especificamente, já que se trata de um tipo de transtextualidade, vislumbra-se, em 
Terra do Pecado, manifestações da hipertextualidade  entenda-se a especiosidade 
erudita: toda relação ou derivação resultante do enxerto ou união de um texto B (chamado 
hipertexto) a um texto A que lhe é anterior e serve de modelo (denominado hipotexto). Tal 
relação ou derivação pode ser tácita, “tel que B ne parle nullement de A, mais ne pourrait 
cependent existir tel quel sans A, dont il résulte au terme d’une opération que je qualifierai, 
provisoirement encore, de transformation, et qu’en conséquence il évoque plus ou moins 
manifestement, sans nécessairement parler de lui et le citer.”9 
Esbanjada, em erudito idioma, a conveniente citação, manifestação transtextual da 
voz da autoridade requerida num metatexto que se preze, localize-se a hipertextualidade 
murmurante no romance. Sob a tirânica vigilância das pupilas de um reitor de saias, Maria 
Leonor padece sob os tacões de Benedita, que, bem visto o transvestir, não passa de uma 
Juliana (lembram-se dela, com sua obsessão por botinas, em O Primo Basílio?) às avessas. 
Essa intertextualidade (as mais das vezes, do canto-contra paródico 10), entrevista no 
diálogo travado com a personagem Juliana de O Primo Basílio, há de marcar as obras 
posteriores do Sr. José Saramago, a confabular com Fernando Pessoa/Ricardo Reis (O ano 
 
8. Tempo cronológico o deste romance, em que Maria Leonor, o plantio e a colheita evolucionam segundo o 
relógio das estações: viúva no Inverno, desabrochar genesíaco na Primavera, calores do cio no Verão. 
9. Gerard Genette - Palimpsestes: la littérature au second degré, Paris: Éditions du Seuil, 1982, p. 12. Acerca 
de transtextualidade e hipertextualidade, id. ibid., pp. 7-14. 
10. “D’abord, l’étymologie: ôdè, c’est le chant; para: “le long de”, “à côté”; parôdein, d’où parôdia, ce serait 
(donc?) le fait de chanter à côté, donc le chanter faux, ou dans une autre voix, en contrechant  en 
contrepoint , ou encore de chanter dans un autre ton: déformer, donc, ou transposer une mélodie.” Gerard 
Genette, op. cit. , p. 17. 
da morte de Ricardo Reis, 1984), Alexandre Herculano (O cerco de Lisboa, 1988), Jung, 
Heidegger (Todos os nomes, 1997), Platão (A caverna, 2000), Plauto (O homem 
duplicado, 2002), para ficarmos só com alguns que de pronto me vieram à memória. 
 
3. Cassandra desmentida 
Diz velho ditado, suponho que de científica origem evolucionista: quem sai aos seus 
não degenera. Natural, portanto, que na caligrafia daquele jovem de vinte e quatro anos já 
se possa ver rascunhada a origem das letras futuras do romancista septuagenário. 
Para quem será futuro cultor de outra elocução, mais requintada no arabesco do 
barroquismo estilístico, soariam, cinquenta anos depois, (cabe a pergunta), soariam, 
cinquenta anos depois, imperdoáveis e irreconhecíveis seja a descrição (desbotada aquarela, 
florilégio de redação liceal), seja a adjetivação (já dessorada e flácida naqueles anos 
Quarenta), ─ uma e outra responsáveis pelos lugares-comuns que enxameiam em frases 
como 
“À flor da água surgiu a cabeça branca dum peixe, que lutava, desesperadamente, para se manter no 
seu elemento.” (p. 57); “... numa daquelas luminosas tardes com que o outono se despede do verão.” (p. 71); 
“Enquanto o foguete, lá em cima, vivia intensamente a sua vida fugaz, os olhos dos criados, das crianças, de 
todos seguiam-no extasiados.”(p. 88); “As noites tornaram-se claras e profundas, de uma limpidez 
transparente, rebrilhantes de estrelas sem conto, que só desapareciam horas altas, quando a Lua surgia do 
horizonte numa vermelhidão de sangue, que ia aclarando à medida que subia no céu, até se transformar num 
disco pálido, que vogava na frieza da noite, a caminho do outro lado da Terra.” (p. 92); “E as estrelas 
brilharam no céu, do lado do ocidente, como a mirar-se no espelho que surgia por detrás dos montes do outro 
ponto cardeal.”(p. 129); “E ficaram ambos, por segundos, com os olhos presos e as mãos unidas, num abraço 
de almas sólido e perfeito.”(p. 133); “Demorou-se uns instantes a ver duas andorinhas que traçavam no ar, 
com os seus corpinhos negros e alvadios, curvas de maravilhosa beleza, num enredar e desenredar constante, 
como embaraçadas numa teia invisível.”(p.137); “O perdigueiro... latindo para exprimir sua canina alegria.” 
(p. 267) 
Pinçadas ao correr dos olhos ou à vol d’oiseau (em homenagem às duas andorinhas 
saramaguianas com “seus corpinhos negros e alvadios”), todas as citações são resultado de 
rombudo lápis a calcar serôdios modelos de enunciação? Esquecido o Sr. José Saramago de 
que o mesmo Oitocentos lhe oferecia para decalque a grafia ironicamente elegante, 
parnasiano-flaubertiana, de um Eça-Fradique-Mendes-de-Queiroz à procura daquela prosa 
cuja ambição máxima seria captar e reproduzir o inefável? 
Por estes prismas, o da invenção e o da elocução  “Realmente, a julgar pela 
amostra, o futuro não terá muito a oferecer ao autor de A Viuva”. 
Ocorre que, por algum oculto desígnio (acaso? fado? predestinação?, que nome dar-
lhe?)11, o mesmo futuro se encarregou de desmentir o vaticínio. Que me lembre, o Sr. José 
Saramago (em O homem duplicado?) disse que não devemos jogar peras com o Destino. 
Sabido à protérvia, ele (o Destino, claro está) há de comer-lhe as boas e sumarentas peras, 
deixando-lhe as pecas. 
A roda da fortuna  a mesma que pôs o Sr. José-só, de Todos os nomes, à frente de 
sua para sempre perdida anima; a mesma que pôs Tertuliano Máximo Afonso às mãos de 
seu sósia, Daniel Santa-Clara , pois não é que a roda da fortuna houve de, por algum 
oculto desígnio, contrariar-lhe a previsão, comendo-lhe o peco A Terra do Pecado e 
reservando-lhe as sementes para peras vindouras. 
Ainda bem para ele, o Sr. José Saramago. Que não falou pela oracular e fatídica 
voz-Cassandra de D. Carolina, a mãe de outro Homem duplicado  este punido com a 
perda da identidade pretérita. 
(SP, 15/9/03 - 29/9/03) 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
11. “Quis, porém, o acaso, muito mais exacto teria sido dizer que foi inevitável, uma vez que conceitos tão 
sedutores como fado, fatalidade ou destino não teriam cabimento neste discurso...”, O homem duplicado, p. 
97. 
 
II. O ano de 1993 (1975) 
 
Apolo Constantinos Jr. 
(Astrônomo e antropólogo, é autor de Vista do vermelho Marte, a Terra é um deserto humano.) 
 
“Toda Cassandra tem o Apolo e os incrédulos que merece.” 
(Provérbio sibilino) 
 
1. Mala sem alça 
Quando soou o telefone, não estava em ledo e cego engano, qual Inês, posto em 
sossego. Primeiro, porque, conhecendo o nome que tenho, me chamo de Apolo Constatinos 
Jr.; segundo, porque, astrônomo e antropólogo, a contemplar de minha janela alfred-
hitchcokiana indiscreta, com telescópios, lunetas e este binóculo, a conjunção dos astros e 
dos humanos, ora como pode alguém estar com seu quarto minguante posto em sossego. 
Imagine-se, pois, o mau humor com que fui atender aos apelos histéricos da sereia. 
Não vou transcrever a longa conversação telefônica. Toda ficção, por mais real ou 
científica que seja, tem que ter um fundo de verdade e eu não tinha um gravador ligado para 
apresentá-la a qualquer são juízo como prova. Fico, pois, no resumo. 
Tratava-se de um convite para escrever um ensaio acerca de O ano de 1993, do Sr. 
José Saramago. Ensaio que figuraria numa obra coletiva acerca de seu período dito 
formativo, aquele entre 1947 e 1980. Um seleto elenco de autores (palavras do 
Organizador) estava sendo convidado, cada um a cargo de um livro. Queria ele um volume 
bakhtinianamente polifônico, vozes diversas, contrastantes, conflitantes, em torno daquela 
fase pouco conhecida e menos ainda estudada (palavras dele). Meu nome viera à lembrança 
graças a Vista do vermelho Marte, a Terra é um deserto humano, uma obrinha que eu 
publicara à época em que, à procura de um bunker sobrevivente, andava interessado pela 
futurologia catastrófica de Asimov, Well e Orwells (explicação minha). Enfim, interessava? 
Claro que sim, não se fecha a janela a conjunções sejam astronômicas, antropológicas, 
sejam menos ainda astrológicas, e naquele momento, no céu, o Sol e Netuno estavam em 
conjunção, logo Mercúrio ingressará em Aquário e a Lua atingirá seu plenilúnio em 
Virgem. Tudo isso aí não disse, só pensei. O que disse foi  “Pinta algum leitinho pras 
crianças?”, meio de ordenhar o uísque meu de cada dia, já que sou celibatário e de 
bastardos, se os há, não tenho conhecimento. Juro, minha Rainha e Santa D. Isabel. 
Pergunte lá a seu esposo, meu Rei-Trovador D. Dinis, de quem sou fiel servidor. Ofereceu-
me ele (o Organizador, D. Isabel, não D. Dinis!) a ordenha de uma vaca sem medalha nem 
genealogia. Regatear por quê? Por econômico que seja o úbere, mais vale uma vaca no meu 
curral que uma boiada a engordar o pasto vizinho. 
Desligado o telefone, pus-me a arrumar minha bagagem de viajante rumo à 
h.g.welliana máquina do tempo. Estou no século XXI (precisamente, fins de janeiro de 
2005), mas devo regressar ao século XX, a O ano de 1993, publicado pelo Sr. José 
Saramago, em 1975. 
Leitor do Sr. José Saramago levantado do chão a partir de 1980, pouco (para não 
confessar que nada) sabia de sua lavra anterior, aquela que o Organizador, balizando-a entre 
1947 e 1980, chamara de “período formativo”. Qual, portanto, caro leitor, a primeira e 
urgente necessidade que se impunha a satisfazer? Claro, o amigo está coberto de razão, 
levantar a bibliografia do Sr. José Saramago, o que ele publicara ao longo daqueles trinta e 
três anos. E, para bem ou mal de meus pecados, lê-la, dos cascos ao chifres, expressão que, 
incoercível, saltou ao lombo destes teclados, sem dúvida inspirada por aquela vaca sem 
medalha nem genealogia que, bulímica, estou surrealisticamente a vê-la (juro) neste instante 
a ruminar as plantas e ervas que, árcade nostálgico, cultivo na varanda de meu apartamento, 
sobranceiro alcácer erguido bem na esquina da Avenida Ipiranga com o Boulevard São 
Luís. 
Alto lá, Sr. Ensaísta que atende pelo nome de Apolo, como aceita uma tarefa sem a 
menor bagagem intelectual para levá-la a cabo? Como há de cumpri-la? 
Indo à Biblioteca Municipal, sita à Praça D. José Gaspar. Se o amigo não sabe, de 
onde assisto à dita biblioteca é um pulo. Modo de dizer. O prozac que religiosamente tomo 
duas vezes ao dia me impede o salto suicida desta varanda. 
O leitor há de permitir aqui, pelo menos, um salto no tempo. (Valha-me o título de 
uma crônica inserida em Deste mundo e do outro, do Sr. José Saramago. Pago a César os 
direitos que, intertextualmente, lhe cabem). Há, pois, o leitor de me permitir um salto no 
tempo, como convém a todo ensaio-narrativo que (vade-retro, Tentação!) não presume ser 
uma lenga-lenga acadêmica. Salto ou acrobacia estilística possibilitando-me dizer-lhes que 
anoitecia quando, outro Jonas, embora por todos os nomes me chamem de Apolo 
Constantinos Jr., vi-me, a regurgitar de saber, expelido da Biblioteca Municipal. 
(Não sei por que me vi como Jonas quando saí daquele bibliográfico útero granítico. 
Registro a sensação esquizofrênica para uma séria conversa com minha analista. Que, além 
de portuguesa e peregrina leitora de Fernão Mendes Pinto, ainda me confessou uma tarde, 
trocadas as posições no sofá catártico, que o pai era um salazarista de quatro costados e 
cinco quinas. Conhecedor dos seis volumes que o Sr. Franco Nogueira dedicara ao 
maiúsculo Estadista (adjetivo lá dela), o pai quase os reproduzia de cor nos serões de sua 
aldeia, genuflexa, ora pois se calhar e calhou, ao sopé de Santa Comba do Dão.) 
Regurgitado da Biblioteca Municipal, trazia eu, portanto, ou por tão pouco, uma 
carga por saber, assentada num papelinho ufano de minha garatuja: Terra do Pecado 
(romance,1947); Os poemas possíveis (1966); Provavelmente alegria (poesia, 1970); Deste 
mundo e do outro (crônica, 1971); A bagagem do viajante (crônica, 1973); As opiniões 
que o DL teve (crônica, 1974); O ano de 1993 (sei eu lá o que seja, pelo menos por ora, 
mas é o que me cabe, 1975); Os apontamentos (crônica, 1976); Manual de caligrafia e 
pintura (romance, 1977); Objectoquase (contos, 1978); A noite (teatro, 1979); Que farei 
com este livro? (teatro, 1980); Levantado do chão (romance, 1980). 
O leitor perspicaz desconfia o quanto e o como lá vinha eu ajoujado sob a 
insustentável leveza do papelinho com a bibliografia do Sr. Saramago, aquela que, por 
desafogo do talento ou dever do ofício, lhe compunha o dito período formativo. Sem 
dúvida, convenhamos aqui entre nós, uma pena prolífica. Nem direi, parafraseando 
personagem de Guerras do alecrim e mangerona, que em abrindo a boca lhe choviam, 
àquela época, poemas, crônicas, romances, peças teatrais e conceitos aos borbotões. Treze 
títulos, Senhor, à tua ceia, muitas vezes edificam uma obra, mas, benza-o Deus, a do Sr. 
Saramago ainda estava, pasmem, a engatinhar sua formação. 
“Exercícios de caligrafia literária: Saramago quase, meu caro. Tanto que o título do 
volume em que você vai colaborar será exatamente esse  Exercícios de caligrafia 
literária: Saramago quase. E aí, interessa?” 
Quem não perceberia que, num flash-back, recuperei trecho, lá em cima mal 
transcrito, de minha conversa telefônica com o Organizador. Deguste-lhe a retórica e 
concorde comigo que ele já me sabia preso pelos chifres, os da vaca, claro fique, a que, sem 
medalha nem genealogia, haveria de me oferecer. Quando não nos vem a talho uma boiada, 
faça-se praça (a D. José Gaspar, lembram?) a cavaleiro do que nos cabe no lombo,  frase 
assim a modos de apotegma rococó, tão ao gosto das douradas talhas ad altarem linguae do 
Sr. Saramago (como virei a ficar sabendo na viagem de minhas leituras) e que, por desfastio 
do estilo, vem a pelo neste exato momento. 
Ajoujado sob a insustentável leveza do papelinho com a bibliografia do Sr. 
Saramago, pernas para que vos quero, se não para calcorrear universitárias bibliotecas, em 
demanda daquilo que se resguarda para os raros apenas: 
 De tão lido que é, coitado, foi para a encadernação. 
 E quando voltará ao acervo? 
 Só Deus sabe. 
Amigos, para que vos quero senão para me emprestar as raridades estilísticas 
daquele período formativo. Das letras que melhor companhia haveria senão a detentora dos 
autorais direitos do Sr. Saramago aqui no Brasil? E de caminho por que não recorrer a 
Portugal? Mãos à obra, portanto. 
 
2. Em busca de que tempo perdido? 
Quem tem boa memória há de lembrar-se que comecei a retouçar estas linhas em 
fins de janeiro de 2005. Estamos hoje, precisamente, numa segunda-feira, 25 de abril de 
2005. Ponhamos lá três meses de beneditino recolhimento a pascer os olhos no que o Sr. 
Saramago cultivara de 1947 a 1980, ciente do arame farpado que delimitava meu pascigo: 
Terra do Pecado (romance, 1947); Os poemas possíveis (1966); Provavelmente alegria 
(poesia, 1970); Deste mundo e do outro (crônica, 1971); A bagagem do viajante (crônica, 
1973); As opiniões que o DL teve (crônica, 1974); O ano de 1993, 1975); Os 
apontamentos (crônica, 1976). 
Nada de estender a gula dos olhos ao pasto dos outros. Segundo o Organizador, à 
exceção de O ano de 1993, os demais títulos outros hão de gramar. Portanto, Apolo 
Constantinos Jr., fica em teus limites, nada de fincar padrão em seara alheia. 
Assim sendo, nesses meses de claustral e beneditino recolhimento, corri olhos pela 
poesia e crônica do Sr. José Saramago, espécie e fôrma muito afins, considerando que 
prosa de cronista frequentemente lança um olhar poético sobre o quotidiano. Não se 
constituía exceção à regra a lavra saramaguiana. A registrar que o cronista Saramago, sob 
piscadelas poética e surreal, apresentava já uma óptica político-social que iria desenvolver-
se no ofício de editorialista: As opiniões que o DL teve (1974); Os apontamentos (1976). 
As opiniões que o Sr. Saramago teve (única cabeça pensante na redação?) pelo 
Diário de Lisboa correm pela “abertura” dos anos marcello-caetanistas de 1972-73. Já os 
apontamentos do Diário de Notícias são editoriais quase diários, de abril a 25 de novembro 
do ano de 1975, registrando como se foram fanando os cravos da Revolução de 25 de abril 
de 1974. 
Diria o senso comum, aqui trazido a (e de) propósito, já que do homem duplicado 
enquanto poeta e cronista tratamos: 
 Se, em 1980, fosses um sem-terra do Alentejo com foice à mão, haverias de saber 
que a seara de O ano de 1993 deitou semente tanto no veio ideológico dessas crônicas 
políticas como no veio poético das inscritas em Deste mundo e do outro (1971). Isso sem 
contar o discurso e imagens surrealizantes de alguns poemas inseridos em Provavelmente 
Alegria (1970), nomeadamente, “Passa no pensamento”, “A mesa é o primeiro objecto”, “É 
um livro de boa-fé”, “Protopoema”. 
Sei, ó senso comum, (afinal, já o disse a crítica especializada), que O ano de 1993 
trilha berma entre a poesia e a crônica em demanda da ficção  aquela prosa perdida n’a 
terra do pecado que foi, segundo reconhece Sr. José Saramago, o seu primeiro romance. E, 
de fato, o título O ano de 1993 já nos segreda alguma coisa, não é mesmo? Vindo a lume 
em 1975, O ano de 1993 promete futurologia que nos remete para o bojo da science fiction. 
Ainda mais se considerarmos que o título faz ressoar em nossa memória o 1984, de George 
Orwell  volume, aliás, que ainda inspirou os fragmentos 11 e 17 (respectivamente pp. 
30-31 e 41 da primeira edição, a de 1975, que tenho sob os óculos). E aí, senso comum, 
achas que estou equivocado? 
(Como o senso comum embatucou sem resposta, prossigo.) 
Quem já leu o romance de Orwell há de reconhecer no fragmento 11 de O ano de 
1993 uma nova versão para o Big Brother: 
“Só essas pessoas assistiram ao primeiro aparecimento do grande olho que iria passar a vigiar a 
cidade 
 Só esses o viram no seu primeiro tamanho 
Mas o sol verdadeiro subiu um pouco no horizonte a esfera de mercúrio dividiu-se em duas em 
quatro em oito em dezasseis, em trinta e duas em centenas de esferas que se espalharam por toda a parte 
Deslocavam-se no ar silenciosamente e continuavam a dividir-se até que houve tantas esferas quantos 
os habitantes da cidade 
Fora instituído o olho de vigilância individual, o olho que não dorme nunca 
Já o fragmento 17, a tratar da “guerra chamada do desprezo”, traz-nos à lembrança 
uma variante e releitura paródica do “programa do ódio” vociferado em 1984. (Chamo de 
variante e releitura paródica pois se trata de uma inversão do modelo. Enquanto no romance 
de George Orwell as manifestações de ódio e protesto se dirigem ao ordenador, visando a 
suscitar a reação de apoio dos ordenados, em O ano de 1993, comandado também por um 
ordenador, “o programa do ódio e das humilhações” visa a suscitar, além do terror, nossa 
simpatia e piedade pelos humanos ofendidos): 
Todos os animais do jardim foram paralisados por acção de misturas químicas nunca antes vistas 
E ainda vivos abertos sobre grandes mesas de dissecção esvaziados de entranhas e do sangue que 
jorrou por fundos canais para o interior da terra donde apenas saía para certos banhos das prostitutas 
principais 
Desta maneira tornados pele massa muscular e esqueleto foram os animais providos de poderosos 
mecanismos internos ligados aos ossos de circuitos electrónicos que não podiam errar 
E estando tudo isto no comprimento de onda do ordenador central foi nele introduzido o programa do 
ódio e a memória das humilhações 
Então abriram-se as portas da cidade e os animais saíram a destruir os homens 
Desperta memória do senso comum, um aficcionado de George Orwell, tendo lido O 
ano de 1993, poderia, aqui e a propósito, lembrar-me que o fragmento 12 (p. 32) propõe 
uma outra revolução dos bichos, à qual não falta uma blitz de pássaros à Hitchckok: 
Um dos resultados da catástrofe foi que de uma hora para outra os animais domésticos deixaram de o 
ser 
A primeira vítima de que houve notícia foi a mulher do governador escolhido pelo ocupante 
Quando o macaco amestrado que a divertia nas horas de aborrecimento a crucificou noportão do 
jardim enquanto as galinhas saíram da capoeira para vir arrancar-lhe à bicada as unhas dos pés 
Muitas velhinhas inocentes foram arranhadas por gatos castrados de estimação em memória do 
atentado sofrido 
E numerosas crianças ficaram infelizmente cegas pelo bicos agudos das aves que se atiravam dos 
ramos e das alturas como pedras 
Privadas dos animais domésticos as pessoas dedicaram-se activamente ao cultivo de flores 
Destas não há que esperar mal se não for dada excessiva importância ao recente caso de uma rosa 
carnívora 
Agradeço-lhe a pertinente lembrança, caro leitor. Mas não posso deixar de aduzir 
que aqui se trata também de inspiração e diálogo intratextual, uma vez que a ideia dessa tal 
revolução dos bichos, profetizada para 2968, seminalmente estava inscrita na crônica “Os 
animais doidos de cólera”, inserta em Deste mundo e do outro (1971). 
 
3. O ano de 1993: uma história de que futuro? 
A perspectiva futurante de O ano de 1993 não esconde, no título, o teor cronístico 
de uma história do futuro, sugerido, aliás, na epígrafe colhida em Fernão Lopes: “... porque 
screpvendo homem do que nom he certo, ou contara mais curto do que foi, ou fallara mais 
largo do que deve; mas mentira em este volume, he muito afastada da nossa voomtade.” 
Se bem entendo a senha, da perspectiva do presente em que está a viver e a escrever 
seu O ano de 1993, o Sr. José Saramago, tal qual redivivo Fernão Lopes, intentava poer em 
caronyca a história futura de nossa humanidade, perspetivando-a do contexto sócio-político 
português. Compreensível, tendo em conta que todo cronista é um historiador do dia a dia, a 
lembrar-nos que o presente, muitas vezes fruto peco do passado, não pode fazer-nos 
esquecer que o futuro pode ser amargo. 
A poesia ressoa e sabe também o livro. Diga-o a litania versicular, dando à mancha 
do texto um jeito de poema em prosa posto a serviço de um relato futurante, apocalíptico e 
distópico cujo argumento, não obstante fragmentário em sua recusa à linearidade, guarda 
um fio narrativo:  a retomada e reconstrução de um país que, seja pela defecção, 
alienação ou colaboracionismo de seus habitantes, fora gradativamente ocupado pela 
repressão, violência e consequente desumanização. Portanto, lê-se em O ano de 1993 
alegórica ficção científica, a que, como pede o gênero, não faltarão realismo e maravilhoso, 
vazados aqui ao jeito de poema em prosa. 
A que vem o experimentalismo da alegórica ficção científica inscrita em O ano de 
1993? O que a motiva? 
Tendo trilhado a poesia e a crônica, talvez estivesse o Sr. Saramago conjugando-as 
naquele 1975 à procura de um estilo e dicção que, próprios, viessem a caracterizar-lhe a 
futura aventura ficcional. (Note-se que a forma versicular do texto dispensa os sinais de 
pontuação, delegando-os ao fôlego e compreensão do leitor, achado encontrável em futuros 
textos do Autor.) 
Para além dessa motivação experimental, é preciso considerar o contexto que lhe 
gestava a alegórica ficção científica que dava a lume. Afinal, toda alegoria futurante da 
science fiction se nutre da potencialidade apocalíptica do presente. Elucubremos um pouco, 
como requer todo ensaísmo que se preza. 
A primeira edição de O ano de 1993 data, já o sabemos, de 1975. Sai, portanto, à 
época em que, de princípios de abril a 25 de novembro de 1975, no Diário de Notícias, o 
Sr. Saramago acompanhava com seus apontamentos o estiolar dos cravos do 25 de abril de 
1974. Estaria, pois, a registrar e a vaticinar, em sua alegoria futurante, o malogro da 
aventura que foi a Revolução dos Cravos? 
Não o creio. O sonho revolucionário do MFA, apoiado pelas intervenções de 
editorialista nas páginas do Diário de Notícias, morre exatamente em novembro de 1975, 
mês em que foi demitido do jornal e ano em que o livro foi publicado. Por mais automática 
que fosse a urgência daquela crônica vaticinante, surrealista seria pensar que a tenha 
composto ao longo de 1975. Mais plausível seria cogitar que a história do futuro inscrita 
em O ano de 1993 era a crônica da agonia do marcellismo (1970-1974). Sobretudo se lhe 
considerarmos a linguagem criptográfica (naturalmente imposta pela censura) e a alegoria 
futurante, ambas a registrarem a decomposição de uma terra “doente de peste”, ocupada e 
ditatorialmente oprimida. A ser correta a interpretação, poder-se-ia datar-lhe a redação entre 
os anos de 1972-74, ainda mais ponderando que nos anos de 1972-73 o Sr. Saramago 
diagnosticava nas páginas do Diário de Lisboa os estertores do Salazarismo. 
 Alto lá, Sr. Apolo Constantinos Jr.! Então é possível que o senhor, posto aqui a 
rasurar O ano de 1993 do Sr. Saramago, de quem sou fã de carteirinha, desconheça texto de 
eminente crítica, a Sra. Dra. Luciana Stegagno Picchio, saído no número 3 da revista 
Veredas, onde se lê, com todas as letras que, segundo testemunho do próprio Autor, o livro 
de que o Sr. Apolo trata, a saber, O ano de 1993, cito com as aspas devidas, “tinha tido a 
sua origem em 16 de março de 1974, um mês antes da revolução de 25 de abril, sob a 
profunda frustração sobrevinda à tentativa falhada de um pequeno grupo de militares de 
derrubar o governo e mudar o regime. Naquele próprio dia tinha sido escrito o primeiro dos 
trinta poemas que compõem o volume.” 
Sinceramente agradeço a aparição intempestiva da Sra. Dra. Cassandra de Troia 
(assim ela se me apresentou, “Muito prazer”, “Sempre à suas ordens”). Devo esclarecer, sob 
minha condição de Apolo, que se trata de uma “aparição intempestiva”, porque a secção 
Cartas à Redação: foro e desaforo dos leitores (ágora baktiniana deste Exercícios de 
caligrafia literária: Saramago quase) está ainda para ser criada. 
Para que não pareça totalmente ignorante, devo, outrossim, esclarecer que o 16 de 
março de 1974, dia em que o Sr. Saramago escreveu (conforme reza a Dra. Luciana 
Stegagno Picchio) “o primeiro dos trinta poemas que compõem o volume”, “sob a profunda 
frustração sobrevinda à tentativa falhada de um pequeno grupo de militares de derrubar o 
governo e mudar o regime”, aquele 16 de março de 1974, conhecido como o “Golpe das 
Caldas”, data, segundo me instruo em António Reis (“A Revolução do 25 de abril de 1974”, 
in História de Portugal, dirigida por José Hermano Saraiva, Publicações Alfa, volume 6, 
página 361), “uma precipitada tentativa de golpe por parte de um grupo de oficias próximos 
do general Spínola, que arranca das Caldas da Rainha com uma coluna sobre Lisboa a 16 de 
março. Rapidamente controlados, são presos ou transferidos algumas dezenas de oficiais”. 
De toda essa arenga acadêmico-bibliográfica fica-me a certeza de que em abril de 
1974 o livro ainda estava sendo redigido. Certeza confirmada ante qualquer título de 
protesto pelo fragmento 28. À página 65 da primeira edição que compulso (Editorial 
Futura), lê-se: 
“Uma após outra as cidades foram reconquistadas e de todos os lugares afluíam as hordas que outro 
nome começavam a merecer 
......................................................................................................... 
E quando chegavam à vista das cidades vinham os de dentro a recebê-los levando flores e pão porque 
de ambos tinham fome os que haviam vivido nas terras devastadas 
............................................................................................................... 
Ó este povo que corre nas ruas e estas bandeiras e estes gritos e estes punhos fechados enquanto as 
cobras os ratos as aranhas da contagem somem no chão 
Ó estes olhos luminosos que apagam um a um os frios olhos de mercúrio que flutuavam sobre as 
cabeças da gente da cidade 
E agora é necessário ir ao deserto destruir a pirâmide que os faraós fizeram construir sobre o dorso 
dos escravos e com o suor dos escravos 
E arrancar pedra a pedra porque faltam explosivos mas sobretudo porque este trabalho deve ser feito 
com as nuas mãos de cada um 
Paraque verdadeiramente seja um trabalho nosso e comecem a ser possíveis todas as coisas que 
ninguém prometeu aos homens mas que não poderão existir sem eles” 
Claramente se percebe, na euforia do relato e na intervenção do versiculista, o 
registro da incontida alegria de testemunhar e vazar, poeticamente, no preciso instante 
daquele 25 de abril de 1974, a derrota de uma ditadura que durara quase cinquenta anos. E 
de cujos escombros brotava, rubro cravo, a esperança de reconstrução de uma sociedade 
erguida sob o pedestal do Socialismo. Desse ângulo, é muito provável que a segunda 
epígrafe do livro, colhida em Diderot, tenha sido aposta aquando da publicação do livro, ou 
seja, entre, digamos lá, maio e qualquer outro mês ainda esperançoso (mas anterior ao 
fatídico novembro de 1975): “Mais il semble que ta voix est moins rauque et que tu parles 
plus librement.” Liberto do garrote da censura salazarista, natural que naquele período de 
1975 parecesse ao Sr. Saramago que a voz lhe saísse menos rouca por falar mais 
livremente. 
Ocorre que a rouquidão cavernosa e apocalíptica e profética do texto que vinha 
gestando (o futurante ano de 1993) pareceu ter cura em 25 de abril de 1974. Registrada a 
cura no fragmento 28, como vimos acima, o que fazer? 
Cassandra da escrita alheia, por todos os nomes que tenho (Apolo Constantinos Jr.), 
ouso retroativamente futurar o que pensou o Sr. Saramago naquele crucial 25 de abril de 
1974: 
 Cá estou a escrever um livro futurante, a denunciar, criptográfica e 
surrealistamente, a realidade do Portugal salazarista, quando de repente, contra todas as 
expectativas, irrompem os cravos da Revolução. Que fazer com o rebento? 
Autor que se preze é pai de prole que não lançará à roda dos enjeitados. Tendo já 
escrito àquela altura 28 fragmentos, mais dois, prenhes de esperança na reconstrução futura, 
poriam ponto final à gestação. Foi o que fez nosso Autor. 
No fragmento 29, pletórico de imagens facilmente decodificáveis, inscreve-se a 
renovação da vida ao sopro de “um grande vento” que arrastava os despojos do passado 
“para longe para os países onde os pesadelos nascem e o terror”. Lavada por lustral chuva, 
“a terra ficou subitamente verde com um enorme arco-íris que não se desvaneceu nem 
quando o sol se pôs.” “O dia amanheceu numa terra livre”, onde “os animais pastavam 
erguendo os focinhos húmidos de orvalho e as árvores carregavam-se de frutos pesados e 
ácidos enquanto no interior delas se preparavam as doces combinações químicas do 
outono”. “Entretanto o arco-íris tem voltado todas as noites e isso é um bom sinal”. 
No último fragmento, o trigésimo, presidido pela anáfora “uma vez mais” a martelar 
sete dos dez segmentos, sugere-se o eterno retorno da vida, com sua maré montante e 
jusante de conquistas e fracassos, vitórias e derrotas, ação e fadiga. Apoteótico, não poderia 
faltar a esperançosa metáfora de uma criança, em cujas mãos (proclamam os esquecidos de 
Freud e da filogenia) está o futuro sem a sombra de passado tenebroso: 
“E uma criança objectiva se aproxima e estende as mãos para a sombra que fragilmente retém o 
cotorno ainda mas não já o cheiro do corpo sumido 
 Uma vez mais enfim o mundo o mundo algumas coisas feitas contadas tantas não e sabê-lo 
 Uma vez mais o impossível ficar ou a simples memória de ter sido 
 Consoante se conclui de nada haver debaixo da sombra que a criança levanta como uma pele 
esfolada”. 
Convenhamos que um sibilino epílogo. Pros raros apenas. 
 
4. Fazendo praça da República 
Já disse algures que, da açoteia onde moro e demoro, tenho privilegiada visão da 
Praça da República. De dia, claro está. À noite (quando, segundo pintam, todos os gatos e 
gatas são pardos), a dita praça é couto defeso. Caro turista, pater familia amigo, nem pense 
em passar por ali, a não ser que esteja o distinto à procura de emoções fortes, nefandas. Foi 
essa praça (quem desconhece?) batizada em homenagem à nossa República, proclamada 
(anotem aí, meninos e meninas) em 15 de novembro de 1889. Feitas as contas, nossa 
República veio à luz vinte anos e nove meses antes do parto da República portuguesa, 
ocorrida em 5 outubro de 1910. Efeméride lusitana que haveria de merecer homenagem, 
tanto que em Lisboa há uma Avenida 5 de Outubro... 
De atalaia na varanda, marulhava eu ao sabor on the rocks desses pensamentos, 
quando, aproveitando-se de minha happy hour, britanicamente iniciada às 17h00, lá me 
surde o bom senso a segredar, dando uma de Tirésias, desejoso de dissipar a cegueira deste 
ensaio: 
 Apolo, a Av. 5 de Outubro, 317-1°, não é o endereço da Editorial Futura? Aquela 
que publicou as primeiras edições de A bagagem do viajante, em 1973, As opiniões que o 
DL teve, em 1974, e O ano de 1993, em 1975? 
Apesar das buzinas que lá embaixo congestionavam o trânsito, ouvi o segredado 
cicio do inconsciente, esse Tirésias travestido de bom senso, e corri a pegar a primeira 
edição de O ano de 1993. Virada a capa, na página seguinte se lia, abaixo do nome do autor 
e do titulo: 
EDITORIAL FUTURA 
CARLOS & REIS, LDA 
 Av. 5 de Outubro, 317 - 1° 
 Lisboa 1975 
Também cifrada, por obra e desgraça dos longos anos de repressão e censura, a 
mensagem ali inscrita sob o codinome de uma Editora? Não me venham debitar aos vapores 
espirituosos de um legítimo scotch o insight da exegese que lhes anuncio como uma boa 
nova. Tenho a sustentar-me a inventiva do Sr. Saramago, capaz de abrir, galhofeiramente, a 
lavra ficcional posterior a 1980 com epígrafes colhidas em livros inexistentes. 
 Como? Nessa pele levantada da inventiva do Sr. Saramago se conclui haver 
debaixo dela a sombra pretérita de Jorge Luís Borges, cujas ficções de sua translúcida 
cegueira ensaiam a aparente lucidez e brilho de ficcionistas futuros? 
Confesso que a insistência desse Tirésias aqui emboscado me embatucou. Mais do 
que a aparição daquela Sra. Dra. Cassandra de Troia aflita em conquistar um espaço que 
(sei-o porque Apolo me chamam) só lhe será concedido como foro para, inclusive, 
desaforos no futuro próximo de capítulos seguintes. Como todo bom político embatucado, é 
hora de tergiversar, mudar o foco, lançar holofotes de proscênio sobre o Sr. Saramago, de 
quem aqui se trata e não de seus inspiradores ou modelares precursores. 
Assim sendo, ao gosto do Autor aqui em pauta  o Sr. José Saramago, lembre-se, e 
não Jorge Luís Borges , imaginemos que toda verdade histórica não passa de ficção. 
Imaginemos que, sita à Av. 5 de Outubro, a dita Editorial Futura, de Carlos & Reis Ltda., 
sob cuja égide se publicou a primeira edição de O ano de 1993, não obstante escriturada a 
verdade comercial ou fiscal de sua existência, imaginemo-la que, sendo Editorial Futura, 
esteja ela a serviço da mensagem inscrita na futurologia de O ano de 1993. Imagine-se, 
como propõe Georges Duby (e em sua esteira o Sr. José Saramago futuro), que, à falta de 
documentos, as lacunas e interstícios desse passado 1975, eu  como dublê do Revisor de 
O cerco de Lisboa  tenha de recriá-los ao sopro e ao fiat lux da subjetividade 
interpretativa e ficcional. 
Assim sendo, mero autor de um livrinho de ficção científica só lido pela família 
(relembre-se: Vista do vermelho Marte, a Terra é um deserto humano), ignorante da 
bibliografia crítica desse período formativo do Sr. Saramago, hei de preencher o passado 
1975, ano em que veio a lume O ano de 1993, lendo a marca 
EDITORIAL FUTURA 
CARLOS & REIS, LDA 
Av. 5 de Outubro, 317 - 1° 
Lisboa 1975 
sob óculos (devo confessar que sou míope) impressionistas. 
Brinquemos com a ideia de que é pertinente e significativo que uma obra de science 
fiction venha a lume sob a égide Futura de uma editora. Crônica poética engajada contra 
um tempo e regime ditatoriais (o Salazarismo em seus estertores marcello-caetanistas) cujo 
cesarismo temsuas raízes na monarquia, seja absolutista ou constitucional,  
naturalíssima, pois não?, a alusão à sociedade limitada (LDA.) de Carlos & Reis. Nesse 
ponto, o inconsciente, esse Tirésias travestido de bom senso, desconfiando de minha 
miopia, assentou no nariz aquilino meus óculos impressionistas e resolveu ser didático: 
a) sociedade limitada, aquela de natureza civil ou mercantil em que o Capital, com 
seu custo e benefício, se divide em partes por alíquotas, às quais se restringe a 
responsabilidade de participação dos sócios, ou seja, do status quo,  leia-se, da sociedade 
nela inserida; 
b) Carlos & Reis sugere a genealogia monárquica de um cesarismo que se vinha 
arrastando e capengando desde a Restauração de 1640. Carlos I (1863-1908), trigésimo 
segundo e penúltimo rei dos Reis de Portugal, foi aclamado em 1889. Morreu assassinado, 
juntamente com o príncipe herdeiro, Luís Filipe, em 1908, num atentado republicano. 
Sucedeu-lhe o infante D. Manuel, o segundo. Perceba lá a ironia do Destino, meu caro 
Apolo Constantinos Jr.: segundo a História, essa sibila enigmática, é sob o cetro desse 
secundário Manuel que, em 5 de outubro de 1910, a pompa e a circunstância monárquicas 
de uma sociedade limitada naufragam no areal de outro Alcácer-Quibir. O que não sabiam 
nem desconfiavam os republicanos vencedores é que esse Alcácer-Quibir do 5 de outubro 
de 1910 não passava de outro deserto de ideias e reformas. 
c) Tão desértico de ideias e reformas básicas foi o Alcácer-Quibir de 5 de outubro de 
1910, que a sociedade limitada do status quo propiciou o golpe do cesarismo militar em 
1928, soleira do cesarismo civil de Salazar a partir de 1932. 
Dada a lição de História, retirou-se o bom senso, esse Tirésias travestido de 
inconsciente, deixando-me às voltas com o endereço (ou a direcção, com se diz em 
Portugal) da Editorial Futura:  Av. 5 de Outubro, 317 - 1° Lisboa. 
O que fazer com essa direcção deixada por Tirésias, esse bom senso travestido de 
inconsciente? 
Brinquemos mais um pouco, leitor paciente, inspirados pela inventividade do Sr. 
Saramago. Percebo que o amigo, embevecido pelas alegorias e metáforas saramaguianas, é 
ávido de mistérios e arcanos. Atentemos, pois, no 317 - 1°. Se somarmos 3 + 1+ 7 e lermos 
aquele – 1 como sinal de diminuição, não é que chegaríamos a 10... Teríamos então uma 
Av. 5 de outubro de 10... 
Bebeu, pontificaria o bom senso (por todos os nomes Tirésias ou inconsciente?), se 
ainda aqui estivesse. 
Alto lá, nem tanto assim, ó Tirésias. Só algumas doses acima da humanidade, como 
receitaram Humphrey Bogart e Vinícius de Moraes. Ademais, se desejam um cânone 
etílico-interpretativo da realidade, brindemos a Baudelaire e Rimbaud que de simbolismos e 
simbologias entendiam, tanto que sugeriam o navegar no bateau ivre dos sentidos 
destrambelhados à busca de correspondências. Convenhamos que o 5 de outubro de 10 
(1910, entenda-se, conforme lá em cima assentou cabalística aritimética) abriu larga via, 
uma maiúscula Avenida, para o cesarismo ditatorial do golpe militar de 1928 e do Estado 
Novo salazarista. 
Mas, larga e maiúscula Avenida, o 5 de outubro republicano abriga também a 
direcção do discurso criptográfico da science fiction de O ano de 1993, do Sr. Saramago. É 
calcorreando essa Av. 5 de outubro que nosso Autor busca onde se perdeu o ideário 
democrático do republicanismo. E é em defesa desse ideário democrárico da República que 
cerra fileira na resistência contra o regime ditatorial do Estado Novo. Não podendo à altura 
em que inicia o texto (16/3/74, ensinou-me a Dra. Cassandra de Troia) extravasar seu 
protesto mais livremente, embuça o braço e punho revolucionários. Para pintar o quadro de 
um país doente e devastado pela peste do cesarismo, serve-lhe, a contragosto, a paleta do 
Surrealismo, empunhada às linhas iniciais do livro numa alusão a Salvador Dali: 
As pessoas estão sentadas numa paisagem de Dali com as sombras muito recortadas por causa de um 
sol que diremos parado 
(...) 
Não importa que Dali tivesse sido tão mau pintor se pintou a imagem necessária para os dias de 1993 
Por que tão mau pintor o Salvador Dali, embora tenha esboçado na memória da 
retina do Sr. Saramago “a imagem necessária para os dias” de O ano de 1993? Talvez 
porque, pondo a seu serviço o Capital, Salvador Dali se tenha distanciado do diletantismo 
marxista nutrido por alguns membros do movimento surrealista. Mas essa consideração 
marginal não importa. O que conta é que a coloração surrealista servia à alegoria 
apocalíptica da science fiction inscrita no livro. Ao contrário do epílogo de O ano de 1993, 
 onde “se conclui de nada haver debaixo da sombra que a criança levanta como uma pele 
esfolada” , levantada a pele surrealista do quadro saramaguiano, lobrigaríamos, sim, uma 
sombra,  a sombra engelhada do Neorrealismo. 
 
 5. O punho revolucionário do Surrealismo 
Convenhamos que extemporâneo (demodée, disse minha analista, quando lhe 
apresentei o problema estético que me tirava o sono apesar dos soporíferos receitados), sim, 
demodée o engajamento neorrealista naquele 1975. A não ser que o ataviá-lo sob a fantasia 
surrealista tivesse o intuito de inocular-lhe ares de modernidade vanguardista. 
Ao cabo, reciclagem de lições pretéritas, fazendo-as parecer expressão da mais pura 
novidade  decretei, ortodoxo, à minha analista. 
Uma vez mais trocadas as posições do sofá catártico, escapuliu-se ela de sob o peso 
de minha consideração, rumo ao banheiro (à casa de banho, disse ela lusitanamente), 
deixando-me às voltas com aquela história de reciclagem das lições pretéritas de 
Neorrelaismo e Surrealismo tornadas pelo Sr. José Saramago expressão da mais pura 
novidade. 
Uma vez mais só, abandonado por minha analista, entrincheirada na casa de banho, 
(como já o fizera aquele Tirésias, bom senso travestido de inconsciente?, ambos a carregar 
o botão do autoclismo, traduza-se, ambos a puxar a descarga da privada, querendo ver-se 
livre de quê?), uma vez mais só, vejo-me eu a tratar do braço revolucionário do Surrealismo 
a serviço de criptônico Neorrealismo em O ano de 1993. 
Ninguém desconhece que o Surrealismo engajou-se numa dupla revolução, ao lutar 
pela libertação do homem tanto no plano individual como no social. Para libertar o 
inconsciente e a imaginação humanos dos recalques interiores, receitava o divã de Freud. 
Para alforriar o homem da opressão e escravidão externas exercidas pela luta de classes, a 
doutrina marxista oferecia-se como solução, postulava André Breton. Afinal, como realizar 
o sonho acalentado da “grande transformação do mundo”, da “profunda revolução social”, 
se o homem não deixasse de ser escravo de si mesmo e dos outros homens? 
Por esse ângulo, é natural que o engajamento neorrealista do Sr. Saramago possa 
embuçar-se de Surrealismo. Ainda mais considerando que, no contexto português anterior 
ao 25 de abril, a militância política de cunho marxista propiciava certa irmandade entre 
Surrealismo e Neorrealismo ao exprimirem um e outro o engajamento contra a ordem 
social, política e ideológica então entronizada pelo Estado Novo. Servia-lhe, pois, a 
contento o punho revolucionário do Surrealismo,  punho de rendas filigranadas com o 
maravilhoso da science fiction, com a mistura do real e do irreal, do cotidiano e do 
fantástico. 
A estratégia consistiu em desvelar sua contemporaneidade (o contexto português 
estado-novista) à luz de um discurso em que a litania versicular, à São João, soava, na 
science fiction de O ano de 1993, como as trombetas de bíblico apocalipse. Como toda 
ficção futurante (ou será como todo apocalipse bíblico?) que se preze, transpôs para o por 
vir o fruto presente de um passado peco. Ambientou a ação (e sua dialética reação) num 
país em momento nenhum nomeado... 
Aqui entre nós, segredo de polichinelo. Quem, a não ser mais cego que o Tirésias de 
meu inconsciente, nãoreconheceria que se trata do Portugal salazarista? Basta ler, com 
olhos de ver, os fragmentos 4 (a tortura da “estátua”), 5 (a tratar do “lobos”, metáfora 
inscrita no engajamento neorrealista de Aquilino Ribeiro, em Quando os lobos uivam, e de 
Manuel da Fonseca, em Seara de vento, antes intitulada Tempo de lobos), 19 (as simpatias 
nazi-fascistas do Salazarismo, legíveis quando “Determinou o ordenador que todos fossem 
numerados na testa como no braço se fizera cinquenta anos antes em Auschwitz e outros 
lugares”). E já que a “ordenador” nos referimos, quem o Ordenador seria se não o Sr. 
Oliveira Salazar a proclamar em seus discursos “Ordem, ordem!” 
 
6. Divã catártico 
Sem ter trocado a posição no divã catártico, pedi à minha analista que lesse essas 
páginas, que me orientasse nessa exegese de O ano de 1993. 
Você já leu O ano de 1993? Na última sessão eu lhe emprestei o livro e pedi que 
lesse. Você leu? 
Li. 
E daí? Entendeu. 
Mais ou menos. 
Gostou do livro? 
Gostei. 
Por quê? 
Sei lá. Tem assim umas coisas que tocam fundo... A alegoria de um povo oprimido 
que se liberta... que se organiza para pôr fim a qualquer ditadura... 
Leu o ensaio que eu estou a escrever? 
Li. 
Entendeu? 
Assim assim. Você está dando uma no cravo e outra na ferradura. 
Na ferradura de quem? Espera aí. Agora quem não entendeu fui eu. 
Percebo que você não tem dormido. 
Tirésias, o cego a representar o bom senso de meu inconsciente, tem-me ditado esse 
ensaio. 
Os soníferos não têm funcionado? 
Dormir pra quê? 
É durante o sono que o inconsciente se mantém em vigília, a trabalhar. 
Só não a convido para dormir comigo porque seria uma ofensa. 
Ofensa a quê? 
Imagine que, convidada a dormir comigo, você não conseguisse me manter 
acordado a noite toda... 
Vamos ao que interessa. Trouxe-lhe uma preciosidade que vai servir para sua arenga 
com O ano de 1993. Trata-se de uma crítica do Sr. José Saramago ao romance Os mastins, 
de Álvaro Guerra. Crítica saída no número 1462, agosto de 1967, na revista Seara Nova. 
O ano de 1967? Socorro, Mnemósine! Ó memorioso Funes, por que não te ergues da 
paralisia imposta pelas ficções jorge-luis-borgianas em meu auxílio? 
Já não lhe disse que o melodrama faz mal à sua saúde? É açúcar demais para sua 
diabetes... 
 O ano de 1967?... Vou lembrar, vou lembrar... 1967... Um ano depois de ter 
publicado Os poemas possíveis, que são de 1966... Vinte anos depois de A terra do 
pecado... Quer dizer, com só dois livros publicados, bem no comecinho do tal período de 
formação... E daí? Que têm Os mastins do Álvaro Guerra com minha insônia? Já li Os 
mastins. Mas seus latidos nada têm a ver e a soar com o arreganhar de caninos e a baba 
hidrófoba da besta ladradora de meu inconsciente. 
Para você o que interessa nesse momento não é a crítica do romance, mas o que o 
Sr. José Saramago diz acerca do uso da alegoria. Você não anda às voltas e revoltas com a 
alegoria de O ano de 1993? Pois faça bom proveito da fotocópia que lhe trouxe. 
Onde você arrumou isso? 
Tenho minhas fontes bibliográficas. Ao contrário de você que não passa de um 
inconsciente, cego e surdo ao que já foi dito ou escrito. 
Você veio aqui só para me ofender? 
Não. Tanto que lhe trouxe essa fotocópia. 
Se queres a paz, prepara-te para a guerra. Não é assim que se traduz aquele ditado 
latino de Júlio César? Foi em De bello galico? Ah, sei lá... Vamos lá, deixa esse xerox de 
fidedignas fontes bibliográficas aí e façamos as pazes na cama. Quero ver se, apesar dos 
soníferos receitados, você me deixa acordado para os sentidos destrambelhados a noite 
inteira. 
Quer saber de uma coisa, Sr. Apolo Constantinos Jr., vá solenemente à merda com 
suas cantadas e seu umbilical marialvismo! 
Dito isso, com passos marciais de generala, retirou-se de minha sobranceira 
cobertura (sita, como já sabem, na esquina da Praça da República com o Boulevard São 
Luís) a psicóloga e psicoterapeuta Maria de Jesus Caetano Freire. Não tenho culpa de o pai 
dela, um salazarista de quatro costados (lembram-se?), ter-lhe dado o nome da governanta 
de cama, mesa e banho dos intestinos de Portugal no Palácio de São Bento. 
 
7. O xerox da alegoria 
Fico a indagar-me que recepção teria tido O ano de 1993 aos olhos da censura e do 
público, apesar de sua criptografia surrealista. Como o livro saiu em 1975, a censura 
salazar-marcello-caetanista estava já devidamente encarcerada a coçar o saco e a matar o 
tempo, segundo testemunho teatral do Sr. Cardoso Pires em Corpo delito – na sala de 
espelhos. Assim sendo, resta o público leitor. Qual? O Sr. Saramago ainda não tinha 
recebido o Óscar. Portanto, ninguém se veria obrigado a lê-lo para não incorrer na 
suposição de parvo ou iletrado. 
“Poetas por poetas sejam lidos”,  como o exigia, em seu “Arrazoado”, Filinto 
Elísio, por todos os nomes chamado Francisco Manuel do Nascimento no setecentismo 
neoclássico? Engajados por engajados sejam lidos? Curto circuito a promover o fogo-fátuo 
de incêndios revolucionários? 
Ao relatar, nos trinta fragmentos de seu poema em prosa, a história de um povo a 
lutar contra a opressão; ao pincelar, numa tela surrealista, a angústia, o medo e a esperança 
de um povo oprimido que pouco a pouco vence a resignação e organiza a resistência até à 
batalha decisiva que levará ao regresso da vida e da liberdade  convenhamos que a 
ideação de O ano de 1993, (imagem de quantos povos sofreram, e ainda sofrem, a tirania de 
regimes discricionários), ora, como negar que esse quadro nutre a pretensão de assumir ares 
universalizantes ao sopro da alegoria. 
Vislumbra-se aqui o travejamento que fará a fama e fortuna dos romances 
saramaguianos posteriores a 1980. Data a partir da qual sua ficção (tendo por charneira 
Jangada de Pedra, de 1986) assumirá, gradativamente, a feição de Jano, cabeça com duas 
faces, uma voltada para o Passado, outra para o Futuro. 
À face voltada para o Passado corresponderão suas revisões da História: Memorial 
do Convento, 1982; O ano da morte de Ricardo Reis, 1984; A história do cerco de 
Lisboa, 1988; O Evangelho, segundo Jesus Cristo, 1991). Na face voltada para o Futuro, a 
óptica da alegoria:  Ensaio sobre a cegueira, 1995; Todos os nomes, 1997; A caverna, 
2000; O homem duplicado, 2002; Ensaio sobre a lucidez, 2004. 
Saído nesse 2005, a reincidência teatral do Sr. Saramago, nomeada Don Giovanni 
ou o dissoluto absolvido, confirma que a dupla face ostentada por sua obra, dita pós-
moderna, condensa o viés intertextual de sua perspectiva, a dialogar seja com autoral 
Estória seja com autoritária História. Insiste o Sr. Saramago em encarnar o papel do Revisor 
de O cerco de Lisboa, desautorando o Passado, para que nele (o Passado ou Sr. Saramago?) 
releiamos a vida pregressa de modo a não cometermos, no Futuro, os mesmos erros. Aqui a 
lição que nos ensina a História, essa lembrança do esquecimento humano. 
Aliás, em termos de memória ou de criptomnésia, há de revelar-se espantoso seu 
autodidatismo. Vem-me à lembrança Funes, o memorioso, das Ficções de Jorge Luís 
Borges. Alusão ou analogia que logo corrijo, ao lembrar-me que, na elaboração de O ano de 
1993, o Sr. Saramago esqueceu-se do que um dia escreveu acerca da alegoria. No xerox 
deixado por minha psicoterapeuta, por todos os nomes Maria de Jesus Caetano Freire, lê-se 
(número 1462, agosto de 1967, da Seara Nova) o que então ele pensava acerca do recurso à 
alegoria: 
“Proposta para os historiadores da nossa cultura: como, quando e porquê [...] recorreu o artista ou o 
escritor português aos caminhos traversos da alegoria para exprimir a sua posição perante a sociedade em que 
viveu. [...] 
Claramente se vê que o uso de tal processo de expressão pressupõe ao dirigir-se ao leitor ou 
espectador, o conhecimento exterior do código empregado. Doutro modo, a mensagem era indecifrável, sem 
efeitos práticos imediatamente  reduzida, portanto, a mero exercíciode estilo cujas intenções só na mente 
do autor se definem. Este parece-nos ser o mais grave defeito da alegoria, a sua fraqueza orgânica. Daí que as 
obras que segundo as suas regras se estruturam sejam quase sempre circunstanciais, ressalvados aqueles raros 
casos em que a constância das circunstâncias as incorporou no acervo ideológico de gerações.” 
Transformaria o Sr. Saramago essa crítica à alegoria numa autocrítica a O ano de 
1993? 
Não teria ele, como escritor português, também recorrido “aos caminhos traversos 
da alegoria para exprimir a sua posição perante a sociedade em que viveu”? 
O “uso de tal processo de expressão” [a alegoria] em O ano de 1993 não 
pressuporia, “ao dirigir-se ao leitor ou espectador, o conhecimento exterior do código 
empregado”? Poetas por poetas sejam lidos ou engajados por engajados sejam lidos, nova 
versão do odi profanus vulgus? 
Desconhecendo o leitor o sentido criptográfico da alegoria, não seria a mensagem 
indecifrável, “sem efeitos práticos imediatamente  reduzida, portanto, a mero exercício 
de estilo cujas intenções só na mente do autor se definem” ? (Que se tratava de “mero 
exercício de estilo”, não tenho dúvida. Apetecia-me perguntar, em nome da exegese 
acadêmica, que intenções se definiam então na mente do Autor.) 
Obra estruturada segundo as regras da alegoria, não seria O ano de 1993 também 
circunstancial, natimorta à nascença, considerando que, nascida em 16 de março de 1974, já 
não teria mais razão de ser quarenta e quatro dias depois? 
Toda Cassandra tem o Apolo [Constatinos Jr.] e os incrédulos que merece. Assim 
sendo, aventuro-me a vaticinar que no vindouro foro (e desaforo) dos leitores,  Cartas à 
Redação há de chamar-se , alguma leitora, a cavalo do incêndio de Troia, há de contestar-
me. Pura e simplesmente dizendo que O ano de 1993 está ressalvado de todos os defeitos 
da alegoria por ser (e vai recitar a crítica saramaguiana) um daqueles “raros casos em que a 
constância das circunstâncias as incorporou no acervo ideológico de gerações.” Serei eu 
(cito agora o desaforo vindouro da minha leitora trojan horse ), serei eu “tão ignorante que 
não percebo que ainda hoje, em pleno século XXI, está inscrita n’ O ano de 1993 a imagem 
de quantos povos sofreram e sofrem, aqui e alhures, a tirania do neoliberalismo, esse punho 
rendado do selvagem Capitalismo?!” Praza aos céus que escapei do cajado e estaca  ?! 
 dos sinais de sua indignação. 
Ó deuses, onde o sonífero receitado por minha psicoterapeuta, a generala Maria de 
Jesus Caetano Freire? Ah, na gaveta da piniqueira, meu criado mudo, ao contrário dela. Ei-
lo aqui, revestido em sua brancura de antisséptico silêncio. Quem sabe, misturado com três 
doses de uísque acima da Humanidade, esse Morfeu encapsulado há de livrar-me do 
pesadelo apocalíptico de O ano de 1993. 
[SP, jan.-set./2005] 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Cartas à Redação: foro e desaforo do leitor 
 
“Quem dá com a língua nos dentes, às vezes está à procura do siso.” 
(Incunábulo dos Apólogos) 
 
Têm chegado a esta redação cartas de leitores. Como esta redação quer-se um fórum 
democrático e polifônico, interessado, pois, em diversos e contrastantes pontos-de-vista, 
tornemo-la uma ágora passada, fazendo praça de que o espaço aqui aberto serve para 
manifestações e debate públicos, sempre saudáveis à liberdade de credos, sejam políticos, 
religiosos ou literários. 
Asim, com o intuito de acolher a opinião dos leitores, o diretor desta redação houve 
por bem chamar uma plenária com as bases operário-tipográficas, a fim de estabelecer 
critérios para, recebidas as missivas, divulgá-las. Depois de prolongada e rebarbativa 
discussão, tendo abandonado o plenário quase todo mundo, vá lá saber-lhes a razão, quase 
ninguém, ou seja, meia dúzia de gatos pingados, soberana vontade da classe e cidadão 
ausentes, votou e decidiu que: 
a) as cartas devem ser encaminhadas com assinatura e identificação. (Entenda-se por 
identificação: árvore genealógica, mapa astral, endereço com xerox comprovante de 
residência, e-mail e telefone do remetente. Correspondência sem identificação completa 
será desconsiderada. Garante-se sigilo absoluto. Nenhum risco, pois, de vazamento seja 
para repórteres investigativos seja para malas-diretas.); 
b) esta redação se reserva o direito de selecioná-las, além de resumi-las e copidescá-
las, para publicação. Tudo isso posto e disposto, democraticamente, com o único fito de 
zelar pela fiel observância dos princípios da ética. 
Ensaio também sobre a cegueira e sobre a lucidez, interessa a esta redação o que 
miopias impressionistas, hipermetropias acadêmicas, cataratas e olhos de lince podem 
enxergar no que leem. 
“Se sabes ler, começa por soletrar as entrelinhas.”  é a divisa desta redação, 
grafada em letra gótica, a subscrever, em caprichoso formato de lua-nova, seu emblema: 
uma luneta, a de Galileu  lembrança de que a hipertrofia da visão, diziam já os Barrocos, 
pode ajudar-nos a enxergar além das aparências assentes e aceitas por qualquer dogma dito 
indiscutível, seja religioso, político ou literário. “Pues ese cielo azul que todos vemos/ ni es 
cielo ni es azul. Lastima grande/ que no sea verdad tanta belleza.” São versos de um poeta 
espanhol, Lupércio Leonardo de Argensola (1559-1613), a falar da maquilagem ostentada 
pela “realidade” com o intuito de embair-nos os sentidos. 
Considera, pois, leitor(a), que a evidência de qualquer miopia, hipermetropia ou 
cegueira será sempre um ensaio sobre a lucidez. 
A Redação. 
 
Entulho do autoritarismo 
Quero registrar meu veemente protesto contra as normas que regulam a participação 
do leitor no fórum de debates instituído por essa Redação. As exigências feitas para a 
identificação do missivista são simplesmente absurdas. Não passam de piada sem a menor 
graça. Elas mais parecem aquelas requeridas por cadastros bancários para a abertura de 
simples e reles conta-corrente. Ademais, reservar-se a Redação o direito de selecionar, 
resumir e copidescar as cartas é a mais clara manifestação do entulho, para não dizer lixo, 
autoritário que ainda nos soterra. Deusdédit Protestante da Silva, Monte Santo de Minas 
(MG). 
 
Coisa de doido 
Ora, façam-me o favor. Só mesmo saída da cabeça de um maluco que mistura 
uísque com antidepressivo aquela interpretação dada para a Editorial Futura, Carlos & Reis 
Ltda., sita à Av. 5 de Outubro, 317 - 1°, que publicou O ano de 1993. Norberto Rosas, 
Franco da Rocha (SP). 
 
Maluco beleza 
Discordo do leitor Norberto Rosas (Coisa de doido). Pode ser coisa de maluco toda 
aquela interpretação sobre a Editorial Futura, mas foi uma beleza. Acaso o citado leitor 
desconhece ensinamento do poeta francês Rimbaud, o de que só navegando no bateau ivre 
dos sentidos destrambelhados temos as verdadeiras iluminações? Ah, caso o Sr. Norberto 
Rosas não saiba, bateau ivre (barco bêbado) é um poema do Rimbaud, autor também de uns 
poemas em prosa intitulados Illuminations. Sereno Ribas, Atibaia (SP). 
 
Confissões 
Eu sou aluna de um curso de Letras. Eu sou fã incondicional de Fernando Pessoa e 
José Saramago. Eu adoro o Álvaro de Campos que meu Professor diz ser Fernando Pessoa. 
Eu confesso que não entendo muito bem essa coisa de Álvaro de Campos ser Fernando 
Pessoa. Mas o que eu quero dizer mesmo é que fiquei fã incondicional do José Saramago 
porque o meu Professor defendeu uma de tese de mestrado falando sobre O Memorial do 
Convento. Quando ele dá aula sobre a literatura em Portugal [,] ele pede que a gente leia O 
memorial do convento. Eu li e adorei. Verdade que não tinha entendido quase nada. Além 
de ser escrito de um modo muito complicado, fazendo com que a gente tenha de prestar 
muita atenção para entender o que está sendo dito, o livro falava de uns tempos passados. A 
construção do Convento de Mafra no século XVIII, disse o meu Professor.

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