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Teorias Histórico-Críticas em Psicologia Responsável pelo Conteúdo: Prof.ª Dr.ª Beatriz Borges Brambilla Revisão Textual: Aline Gonçalves Psicologia Latino-Americana Psicologia Latino-Americana • Apresentar o conceito de colonialidade do saber e do poder e epistemologias do Sul; • Compreender historicamente o desenvolvimento do conhecimento psicológico abstrato, generalizante e eurocentrado; • Conhecer os fundamentos históricos, políticos e teóricos que sustentam a Psicologia da Libertação; • Refletir sobre o surgimento de uma Psicologia Social Comunitária e o projeto de compro- misso social. OBJETIVOS DE APRENDIZADO • Introdução; • Um “Saber/Fazer” Desde o Sul: Colonialidade e Libertação; • Ignácio Martin-Baró – Uma Psicologia da Libertação; • A Tradição da Psicologia e a Necessidade da Crítica; • O Fenômeno Psicossocial do Fatalismo; • As Influências de Paulo Freire; • O Fazer Psicológico para Martin-Baró; • A Prática da Psicologia Social Comunitária e da Libertação. UNIDADE Psicologia Latino-Americana Introdução A Psicologia tradicionalmente tem suas bases teóricas e metodológicas em leituras e au- tores europeus e estadunidenses que exprimem em seu pensamento uma visão de mundo e de ciência eurocentrada e colonial, ou seja, compreendendo suas teorias como verdades incontestáveis, gerais e universais, negando as particularidades e singularidades dos sujei- tos nos mais diferentes contextos e reproduzindo um saber capitalista, patriarcal e racista. Tal fenômeno incide diretamente na produção de conhecimento em Psicologia e no exer- cício profissional, na medida em que se reproduz uma concepção hegemônica de ciência que se pretende classificar, mensurar e ajustar os modos de vida e a subjetividade para a manu- tenção do status quo, caracterizando-se como um instrumento de adaptação e controle social. Diante desse cenário, um conjunto de perguntas centrais emergem: Haveria uma Psi- cologia latino-americana? Uma Psicologia a serviço das demandas sociais e das maiorias populares? Qual o fazer psicológico para a melhoria das condições de vida de nossos povos? Quais as práticas e os horizontes de uma Psicologia da libertação? Nesta Unidade, partiremos dessas perguntas e de um mergulho histórico sobre a Amé- rica Latina, as necessidades de nosso povo e a urgência por uma Psicologia da Libertação. Um “Saber/Fazer” Desde o Sul: Colonialidade e Libertação Como vimos em unidades anteriores, a modernidade, marcada pelas grandes nave- gações, do desenvolvimento de tecnologias e colonização de terras e povos ao entorno do mundo, expressa um padrão de pensamento e de vida alicerçados no espírito do iluminismo e numa racionalidade instrumental autoritária e dominadora. Com uma política de controle e autoritarismo, a ocupação e gestão de territórios foi marcada por violência, dizimação de povos, expropriação de riquezas naturais e explo- ração e escravização de indígenas e pessoas sequestradas de África. A colonização foi e é atualizada cotidianamente, a partir das formas de dominação econômica, cultural, política e social do imperialismo estadunidense e europeu. A colonização e a modernidade são, assim, um fato europeu, que produziu, inventou e se beneficiou de um importante instrumento político: a criação das raças. Dussel (1994) afirma que a modernidade é um ego descobridor, conquistador e colo- nizador da Alteridade (um processo de encobrimento do outro). O autor, um dos princi- pais teóricos da Filosofia da Libertação ou da Filosofia Latino-Americana, é argentino e vive na Cidade do México, e tem influenciado o pensamento decolonial contemporâneo, com sua ética e política da libertação. A noção de fato europeu sustenta-se na criação do europeu e do não europeu, em uma afirmação da Europa como centro da história mundial e a invenção da periferia. Essa perspectiva determinou as formas recentes de socialização da história do mundo e da história de nosso país, datada a partir da invasão dos europeus em nossas terras, ocul- tando, ideologicamente, nossa história pré-cabralina, invalidando os povos originários. 8 9 Fenômeno, também, sustentado na submissão, dominação e violência contra os povos locais, desqualificando a cultura e sua existência, buscando confrontar, controlar, disputar e conquistar o “Outro”. Forma-se o mito da racionalidade ocidental, eurocentrada. Tal processo exigiu que estabelecêssemos um novo padrão de relações e de conhe- cimento que tivesse a experiência social, política, histórica e cultural de nossos povos como central para a produção de conhecimento. Uma nova ciência – um novo conheci- mento libertador. Dussel (1994) se propõe a produzir uma teoria desde o sul, uma teoria da libertação, que tem no diálogo seu princípio fundamental, que se debruça sobre as pessoas em situação de opressão, segregação e exclusão social. O autor aponta como horizonte libertador uma comunicação intercultural (pluricultural), a possibilidade do re- conhecimento do “Outro” como uma alteridade imaginada, pensada e vivida, a partir da história, da concretude humana, e da compreensão de que a existência de si e do outro sofre, dialeticamente, processos de dominação/exploração. Desse ponto, encontramo-nos com a seguinte pergunta de Dussel: “Qual deveria ser nossa opção racional ou ética diante de um fato que é um marco na história mundial, certamente, mas banalizado pela propaganda, pelas disputas superficiais ou pelos inte- resses políticos, eclesiásticos ou financeiros?”. O autor aponta como necessidade política um compromisso com o enfrentamento da desigualdade, da violência, do massacre e da dominação, afirmando ser o horizonte da libertação. Saiba mais sobre o assunto. Disponível em: http://youtu.be/GWtKvKPX9NE A crítica à leitura eurocentrada sobre as formas de vida e os modos de pensar foi desen- volvida intensamente por outro importante autor, Boaventura de Sousa Santos. Nascido em Coimbra, dedicou a vida para pensar e escrever sobre a pós-colonialidade, a democracia, os direitos humanos e a política. Santos (2016) cunha a terminologia sobre as epistemolo- gias do sul, e defende a perspectiva do chamado giro-decolonial, produzindo um sul global. Torres Garcia, uruguaio, elaborou um novo mapa, que coloca o nosso rumo: o sul. E propõe uma imagem da América Latina invertida, reivindicando outro lugar da Amé- rica Latina na ordem mundial. Figura 1 – América Invertida Fonte: Wikimedia Commons 9 UNIDADE Psicologia Latino-Americana Diante desse giro, colocam-se como horizonte as epistemologias do Sul, uma propos- ta de expansão da imaginação política para lá da exaustão intelectual e política do Nor- te global, traduzida na incapacidade de enfrentar os desafios deste século, que ampliam as possibilidades de repensar o mundo a partir de saberes e práticas do Sul Global e desenham novos mapas onde cabe o que foi excluído por uma história de epistemicídio (SOU- SA; ARAÚJO, 2016). Tal perspectiva do Sul Global é uma metáfora do sofrimento humano causado pelo capitalismo, pelo colonialismo (racismo) e pelo patriarcado, e da resistência a essas for- mas de opressão. De uma dor e luta, desigualmente distribuídas pelo mundo, com uma multiplicidade de conhecimentos invisibilizados e desperdiçados pela modernidade, que define os excluídos, os seres sub-humanos não candidatos à inclusão social – os povos do sul (indígenas, latino-americanos, africanos, indianos e asiáticos). Para Sousa Santos e Araújo (2016), a negação dessa humanidade é essencial à cons- tituição da modernidade, uma vez que é condição para afirmar a universalidade. Assim, práticas que não se encaixam nas teorias não põem em causa essas teorias e práticas desumanas e não põem em causa os princípios da humanidade. Os povos, saberes e as riquezas do sul foram a base para o desenvolvimento socie- tário da Europa e dos Estados Unidos, pautado na escravização e superexploração das terras, que, para se manterem como centro do mundo, desenvolveramimportantes es- tratégias narrativas e políticas de dominação, entre elas: o epistemicídio! Epistemicídio é um conceito que denuncia a supressão dos conhecimentos locais, que inva- lida o conhecimento não europeu, compreendendo-o como não ciência. É a ameaça à sobe- rania do conhecimento, a partir da desqualificação dos saberes locais, chamando-os como étnico-ciências – é o processo de evangelização, escolarização e colonização do “Outro”. Importante considerar que esse processo não se findou. Aníbal Quijano, peruano, mundialmente reconhecido por ter desenvolvido o conceito de “colonialidade do poder”, explicitando a noção moderna de classificação social da população mundial, a partir da invenção da ideia de raça – nomeadamente a estratégia de dominação colonial mais eficaz da história – aponta que o eurocentrismo é a ideologia mais duradora e estável, mais até do que o próprio colonialismo. Raça, portanto, é uma categoria mental, inventada pela modernidade. Surge na coloniza- ção da América, marcada por diferenças fenotípicas, na diferenciação e hierarquização – em relações de dominação –, raça como instrumento de classificação social e justificativa sociocultural-política de produção de desigualdade. É essa base conceitual e histórica que nos leva a pensar os processos de colonialidade e decolonialidade do saber e do fazer. No campo da Psicologia, tivemos influência direta das concepções advindas do histórico das teorias da libertação – Teologia, Pedagogia, Filosofia e Psicologia. O sul, e as perspectivas do sul, não são apenas um con- ceito geográfico! 10 11 As teorias da libertação são expressão de um movimento político de introdução das ideias de igualdade social e de direitos humanos para o catolicismo, em especial. Se- gundo Noronha (2012), é um movimento feito pelo povo e tem como base a fé que transforma a história. Ela está “intimamente ligada à própria existência do povo – à sua fé e à sua luta. Faz parte de sua concepção de vida cristã” (BOFF, 2010, p. 25 apud NORONHA, 2012, p. 185-186). Em síntese, é uma perspectiva que possui compromisso com os pobres, uma abor- dagem humanista de solidariedade e empatia com os que sofrem, que faz de seus fiéis militantes por melhores condições de vida das maiorias populares, visando à libertação das situações de opressão – do capitalismo. Ignácio Martin-Baró – Uma Psicologia da Libertação Nascido em Valladolid, Espanha, em 7 de novembro de 1942, lugar onde passou a maior parte de sua infância, Ignácio Martin-Baró estudou no colégio jesuíta São José onde, desde cedo, esteve envolvido com as questões religiosas que fizeram despertar a sua voca- ção religiosa. Em 18 de setembro de 1959, aos 17 anos, Ignácio ingressa na Companhia de Jesus. Logo nos anos 1960, Martín-Baró foi para Quito, com compromissos da con- gregação, onde estudou humanidades clássicas. Depois, em 1964, na cidade de Bogotá, obteve o bacharelado em Filosofia e, no ano seguinte, a licenciatura em Filosofia e Letras. Em seguida, mudou-se para El Salvador e, no ano de 1970, formou-se em Teologia. Ob- teve a licenciatura em Psicologia na Universidade Centro-Americana José Simeón Cañas (UCA), em 1975. Em 1977, obteve o título de mestre em Ciências Sociais e, em 1979, o doutorado em Psicologia Social e Organizacional, ao defender sua tese na Universidade de Chicago, Estados Unidos, conhecida por sua importância para a Psicologia Social hegemô- nica, positivista, individualista e acrítica (BORGES DE OLIVEIRA et al., 2014). Desde o início de sua formação, ficou evidente a proposta de Martín-Baró, pois nessa Universidade se vivia uma realidade muito diferente da de El Salvador e, mesmo assim, ele se ocupou de investigar a realidade salvadorenha. Ao voltar de Chicago, assumiu o posto de vice-reitor da UCA e muitos outros cargos, como o de chefe do Departamento de Psicologia e Educação, o Conselho Editorial da UCA e de sua principal revista, a ECA (Revista Estudios Centro-Americanos). Foi com a realidade salvadorenha, uma realidade marcada pela desigualdade, injustiça, governos autoritários, guerra civil e com más condições materiais de realizações das aspi- rações da população, que Martín-Baró realizou a maior parte de sua produção acadêmica; longe, portanto, da tranquilidade e serenidade que se pressupõe em uma vida acadêmica encastelada em seu próprio fazer, na maioria das vezes distante da realidade concreta. Para conhecer mais sobre Martín-Baró, assista. Disponível em:https://youtu.be/7w4i2nT9vVo A luta política de Martin-Baró, em meio à guerra civil e à violência em El Salvador, levou ao seu assassinato. Na madrugada do dia 16 de novembro de 1989, ele foi assassinado, 11 UNIDADE Psicologia Latino-Americana juntamente com seus companheiros jesuítas. Uma ordem vinda dos altos setores militares e dos assessores norte-americanos fora lançada para que fossem exterminados os intelec- tuais acusados de comunistas e terroristas que apoiavam as guerrilhas de resistência. Essa ordem de extermínio fora lançada em uma campanha na rádio, com difusão massiva. Tudo aconteceu muito rápido – os soldados invadiram a UCA na madrugada, indo até a moradia dos jesuítas, exterminando o reitor da UCA, Ignacio Ellacuría, Ignácio Martín-Ba- ró e outros jesuítas que, com eles, compunham a administração superior da Universidade. A Tradição da Psicologia e a Necessidade da Crítica A Psicologia na América Latina consolidou-se pela dominação imperialista, ou seja, pela importação de modelos já existentes vindos da realidade norte americana e euro- peia. Esse processo de afirmação de teorias do “norte” carregam a primazia da teoria sobre a prática, inclusive, produzindo polarização e tensionamento entre a teoria e a prá- tica, impossibilitando a construção de uma práxis em consonância com as necessidades do povo latino-americano. Ao importar esquemas teóricos e práticos, buscava-se adquirir um status de cientifi- cidade e reconhecimento social, tomando, portanto, emprestada a bagagem conceitual, metodológica e prática de uma realidade abissal à nossa, fenômeno que distanciou a Psicologia da realidade, marcada pela pobreza, exploração, desigualdade e opressão. É nesse contexto, a partir da necessidade de uma prática libertadora, alinhada às demandas dos povos latino-americanos, que surge a Psicologia da Libertação, com um compromisso ético de psicólogas e psicólogos à construção de uma prática de libertação pessoal e coletiva das estruturas opressoras. Uma Psicologia que pudesse colaborar na construção de um processo de libertação dos povos latino-americanos, com uma identidade própria, autônoma e com novas bases teóricas e metodológicas. O Fenômeno Psicossocial do Fatalismo Fatalismo é um importante conceito desenvolvido por Martín-Baró que, ao analisar a história do povo latino-americano, considera que uma sociedade marcada pela alienação e opressão, estruturada em relações de poder, torna-se campo fértil para o surgimento de um fenômeno psi- cossocial. O fatalismo é um processo que anestesia o indivíduo perante a realidade, fazendo com que ele a aceite sem questioná-la e, portanto, tomando a realidade como fadada ao imutável. Enquanto fenômeno psicossocial, o fatalismo refere-se a uma forma peculiar dos su- jeitos darem sentido à sua relação consigo mesmos, com o mundo e com os fatos de sua 12 13 existência (MARTÍN-BARÓ, 2000). A expressão desse fenômeno ocorre em caráter tri- plo: ideal, afetivo e comportamental. Quadro 1 – Caráter triplo do fatalismo Ideias • A vida está predefinida; • A própria ação não pode mudar um destino fatal; • Determinismo religioso em relação à tomada de decisão e ao des- tino individual. Sentimentos • Resignação frente ao próprio destino; • Desconfiança/desimplicação afetiva e emocional em relação aos sucessos na vida; • Aceitação do sofrimento causado pela dureza do próprio destino. Comportamentos • Conformismo e submissão; • Passividade e pouco envolvimento com projetos pessoais e coletivos;• Presentismo, ausência de memória e planejamento. Na obra “O latino indolente: caráter ideológico do fatalismo latino-americano”, Martín- -Baró (2017) apresenta essas considerações sobre os efeitos psicossociais do fatalismo como um fenômeno ideológico que produz uma representação social específica de nosso povo como cordial, passivo, preguiçoso, irresponsável e emocional, expressão das raízes do fatalismo no psiquismo humano, produto da desigualdade social e da segregação. Essa noção psicologizada do fatalismo contribuiu para a produção/manutenção de um estereótipo das maiorias latino-americanas, pois aponta para uma naturalização do ser latino como folião, inconstante, irresponsável e religioso. Guzzo e Lacerda Jr. (2007) compreendem que essa concepção faz com que fatalismo seja entendido como impotên- cia, onde, tradicionalmente, a Psicologia tratou a impotência associada a psicopatologias surgidas de defeitos individuais; ou seja, culpa-se aqueles que são assujeitados de sua existência em um sistema de exploração que, na realidade, ao vivenciarem tais situações, sentem-se incapazes de mudar sua realidade. Para enfrentar essa perspectiva, Martín-Baró (2017) diz que é preciso abandonar a compreensão estereotipada do fatalismo, em favor de uma compreensão do fatalismo como atitude síntese de três dimensões: a impossibilidade de mudança, a internalização da dominação social e o seu caráter ideológico. Quadro 2 – Três dimensões para compreender o fatalismo Impossibilidade de mudança • Condição socioeconômica dos países latino-americanos; • Ausência de possibilidade de ação no sentido da transforma- ção, mesmo que mínima, das condições de vida. Internalização da dominação social Perda da capacidade de protagonismo da própria vida, devido ao modo de subjetivação que tem como elemento principal o sofri- mento relativo à exclusão e dominação social. Caráter ideológico O mascaramento da realidade contribui e produz dominação so- cial. Faz com que se atribua a postura de conformismo e submis- são, induzindo a um comportamento dócil diante daqueles que têm poder, o que facilita a dominação. Fonte: Adaptad o de MARTÍN-BARÓ, 2017 13 UNIDADE Psicologia Latino-Americana As Influências de Paulo Freire Paulo Freire, brasileiro, pernambucano, reconhecido mundialmente por construir um novo modelo de educação, numa base crítica, dialógica e libertadora. Tem na conscienti- zação fundamento essencial para uma pedagogia da autonomia. Para o autor, conscien- tização é alfabetizar, o que não significa exclusivamente aprender a ler e escrever, mas ler o mundo, que precede a leitura da palavra. Alfabetizar-se para aprender a ler e ensinar os semelhantes. Um ato político, práxico, de tomada de consciência. A conscientização é um processo de aprender a ler a realidade vivida e a escrever a própria história pessoal e coletiva! Um reconhecimento sobre a humanidade, sobre a existência, enquanto sujeito ativo, social, histórico e político, a compreensão de uma existência, que é dialeticamente pes- soal e coletiva. Trata-se, portanto, de um saber crítico sobre si, sobre seu mundo e sobre sua inserção nesse mundo. A conscientização, no sentido freiriano, não consiste em uma conscientização ex- clusivamente individual, mas também comunitária; ou seja, não é apenas uma compreen- são da própria vida, mas a compreensão das condições concretas a que seu grupo social está submetido e, principalmente, na elaboração de ações que sejam transformadoras dessas condições. Transformação das condições materiais às quais um grupo social está submetido, que levaria à libertação pessoal, um processo coletivo, com impacto pessoal. A conscientização freiriana é muito presente e é um dos princípios básicos na obra de Martín-Baró, em que ele a coloca como o quefazer (quehacer) da Psicologia da Libertação. O Fazer Psicológico para Martin-Baró A conscientização, considerada o horizonte da tarefa histórica da Psicologia, é um processo que pressupõe: • O ser humano, como ativo e social, que se transforma ao modificar sua realidade; • A decodificação do mundo explícita e a desnaturalização das opressões, produzin- do novas possibilidades de ação – uma nova práxis – uma nova consciência; • Memória histórica como base para um futuro autônomo/liberto – ação no mundo como ação libertadora. A conscientização não consiste, portanto, em uma simples mudança de opinião sobre a realidade, em uma mudança individual e subjetiva que deixe intacta a situação objetiva na qual o sujeito a constrói. A conscientização supõe uma mudança das pes- soas, concomitantemente ao processo de mudança da relação com o meio ambiente e, sobretudo, com as demais pessoas. Essa perspectiva pressupõe a compreensão de que o conhecimento deve ser transformador da realidade, e todo conhecimento que transfor- ma a realidade deve envolver transformações das relações entre os sujeitos. 14 15 O fazer psicológico materializa-se na mediação de processos psicossociais de desaliena- ção individual e coletiva, na construção de estratégias de estranhamento de si e do mundo, num constante de processos de desnaturalização das vivências e experiências, produzindo possibilidade de um saber crítico sobre si e sobre o mundo: a conscientização. A conscientização, logo, como processo pessoal e social, exige que compreendamos: “Não há pessoa sem família, aprendizagem sem cultura, loucura sem ordem social”. “Não pode, tampouco, haver um eu sem um nós”. Essas afirmações de Martin-Baró (1996) revelam a necessidade de compreender a re- lação dialética entre sujeito-grupo, entre processos individuais e a cultura, fazendo com que o conhecimento psicológico responda às situações de injustiça, promovendo uma consciência crítica sobre as raízes, objetivas e subjetivas, da alienação social. O autor compreende que apenas uma simples consciência sobre a realidade não su- põe, por si só, a mudança dessa realidade. No entanto, considera que, para haver um avanço com mudanças sociais necessárias, é fundamental a explicitação da realidade, o descortinamento, a retirada de um véu de justificativas, racionalizações e mitos que encobrem os determinantes da situação dos povos. Desta forma, a conscientização não só possibilita, mas facilita o desencadeamento de mudanças, a partir da ruptura de esquemas fatalistas que sustentam ideologicamente a alienação das maiorias populares. A Prática da Psicologia Social Comunitária e da Libertação Com a finalidade de construção de processos grupais que visem à ruptura de situ- ações mecânicas reprodutoras das relações de dominação-submissão, diz-nos Martín- -Baró que devemos adotar uma perspectiva dialética para a leitura do mundo, que permite ao indivíduo encontrar-se e assumir-se como pessoa, supondo uma mudança radical das relações sociais, em que não existam opressores nem oprimidos – e tal re- ferência deve ser horizonte para todos os campos de trabalho em Psicologia, tanto na psicoterapia quanto na educação escolar, ao processo de produção em uma fábrica, ou ao trabalho cotidiano em uma instituição de serviços públicos. Para Martín-Baró (1996), a tomada de consciência aponta diretamente ao problema da identidade tanto pessoal quanto social, grupal e nacional. A conscientização leva as pessoas à recuperação da memória histórica, a assumir o mais autêntico do seu passado, a depurar o mais genuíno do seu presente e a projetar tudo isso em um projeto pessoal e nacional. Para o autor, é imprescindível compreender o processo de aprendizagem, de orientação vocacional ou de aconselhamento terapêutico buscando o desenvolvimento ou a realização das pessoas, atrelando ao contexto social e nacional, e, por conseguinte, colocar o problema da autenticidade do sujeito, considerando-o sempre como membro de um grupo, parte de uma cultura, cidadão de um país. 15 UNIDADE Psicologia Latino-Americana É possível que para a maioria das(os) psicólogas(os) a dificuldade não resida tanto em aceitar esse horizontecomo direção, mas em visualizá-lo em termos práticos. O que significa conscientizar na e com a atividade psicológica? Trata-se de aplicar alguma técnica em particular? Deve-se incluir nos processos alguma forma de reflexão política? Significa mudar os tipos de testes empregados ou os temas daqueles que usamos? Devemos abandonar a terapia individual e realizar algo como ergoterapias coletivas? O horizonte conscientizador, tanto no trabalho clínico quanto em outras áreas de atuação profissional, supõe uma importante mudança no fazer psicológico. Não se trata de abdicar do papel técnico que, em ambos os casos, corresponde à(ao) psicóloga(o); trata-se de despojar esse papel de seus pressupostos teóricos adaptacionistas e de suas formas de intervenção a partir de posições de poder. Deve-se, então, nutrir-se de uma concepção contra-hegemônica para emergir cria- tividade e inventividade para novos métodos e modelos de diagnóstico e intervenção/ implicação. Para Martín-Baró, no campo clínico, algumas das iniciativas empreendidas pelo movimento antimanicomial da antipsiquiatria podem lançar luzes sobre as mudan- ças necessárias que se teve que implantar no trabalho psiquiátrico como resultado de uma concepção distinta sobre a realidade do transtorno psíquico e, portanto, de uma práxis terapêutica ampliada; na psicologia escolar, a própria experiência da educação conscientizadora, sobretudo em seu paralelo e em sua diferença com a proposta deses- colarizadora, permitem vislumbrar novas formas de orientação. Em que consiste, então, essa nova colocação teórica e prática do trabalho psicoló- gico conscientizador? Fixar-se num horizonte ético-político profissional transformador, em qualquer que seja a área de atuação. Para isso, deve-se sempre subsidiar-se de perguntas críticas sobre os sentidos da atividade psicológica, sobre o papel profissional que está desempenhando na sociedade (para isso, menos importa o local, mas a partir de quem). Ou seja, deve-se perguntar em benefício de quem se dá a intervenção/implicação psi, perguntando-se sobre as consequências históricas concretas da atividade produzida. 16 17 Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Livros Crítica e libertação na psicologia: estudos psicossociais MARTÍN-BARÓ, I. Crítica e libertação na psicologia: estudos psicossociais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017. Reúne textos de Ignacio Martín-Baró, psicólogo social que problematizou processos como violência, fatalismo, conflitos intergrupais e saúde mental considerando a historicidade da relação indivíduo-sociedade e criticando a desigualdade social que marca as sociedades latino-americanas. O livro é uma contribuição para os que perguntam sobre o papel da Psicologia Social em processos de libertação. Vídeos Ignácio Martín-Baró e O papel do psicólogo (2020) Live do grupo Psicologia e Ladinidades, com o professor da Universidade Federal de Goiás, especialista em Martín-Baró no Brasil, Fernando Lacerda Jr. https://youtu.be/WCsbDteXPO0 Diálogos latino-americanos entre Psicologia e Sociedade: a teoria revolucionária de Martín-Baró Roda de Conversa: “Diálogos latino-americanos entre Psicologia e Sociedade: a teoria revolucionária de Martín-Baró”. Convidado: Prof. Ignacio Dobles Oropeza Escuela de Psicología – Universidad de Costa Rica. Data: 22 de março de 2017. Local: Laboratório Interinstitucional de Estudos e Pesquisas em Psicologia Escolar – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Organização: Laboratório Interinstitucional de Estudos e Pesquisas em Psicologia Escolar – LIEPPE/IPUSP. Programa de Pós-Graduação Interunidades em Integração da América Latina – PROLAM/USP Coordenadora: Prof.ª Marilene Proença R. de Souza. https://youtu.be/6D6G3Aq7ps8 Eurocentrismo e América Latina Entrevista com o professor Nildo Ouriques – Economia/UFSC – IELA. https://bit.ly/2Q8irq8 17 UNIDADE Psicologia Latino-Americana Referências BORGES DE OLIVEIRA, L. et al. Vida e a obra de Ignácio Martín-Baró e o Paradig- ma da Libertação. Revista Latinoamericana de Psicología Social Ignacio Martín- -Baró, v. 3, n. 1, p. 205-230, 2014. DUSSEL, E. O Encobrimento do Outro. A Origem do Mito da Modernidade: Conferên- cias e Frankfurt. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993. GUZZO, R. S. L.; LACERDA JR., F. Fortalecimento em tempo de sofrimento: reflexões sobre o trabalho do psicólogo e a realidade brasileira. Revista Interamericana de Psi- cologia/InteramericanJournal of Psychology, v. 41, n. 2, p. 231-240, 2007. MARTÍN-BARÓ, I. O papel do Psicólogo. Estudos de Psicologia, v. 2, n. 1, 7, p. 27- 29, 1996a. ________. Acción y ideología: psicología social desde Centroamérica. San Salvador: UCA Editores, 2000. ________. O latino indolente: caráter ideológico do fatalismo latinoamericano. In: LA- CERDA JR., F. (org.). Crítica e Libertação na Psicologia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017. NORONHA, C. U. A. Teologia da Libertação: origem e desenvolvimento. Revista Frag- mentos de Cultura-Revista Interdisciplinar de Ciências Humanas, v. 22, n. 2, p. 185-191, 2012. QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. Buenos Aires: CLACSO, 2005. SANTOS, B. de S.; ARAUJO, S.; BAUMGARTEN, M. As Epistemologias do Sul num mundo fora do mapa. Sociologias, Porto Alegre, v. 18, n. 43, p. 14-23, dez. 2016. 18
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