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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA “ESTADO, EDUCAÇÃO E LUTA DE CLASSES: EFEITOS DO NEOLIBERALISMO NA ESCOLA PÚBLICA E MOVIMENTOS SOCIAIS NO BRASIL E NA AMÉRICA LATINA CONTEMPORÂNEOS (ANOS 1970-2016)” GRACIELLA FABRÍCIO DA SILVA Niterói, 2021 GRACIELLA FABRÍCIO DA SILVA “ESTADO, EDUCAÇÃO E LUTA DE CLASSES: EFEITOS DO NEOLIBERALISMO NA ESCOLA PÚBLICA E MOVIMENTOS SOCIAIS NO BRASIL E NA AMÉRICA LATINA CONTEMPORÂNEOS (ANOS 1970-2016)” Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em História da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial à obtenção do título de doutora em História. Área de concentração: História Social Orientador: Professor Doutor Bernardo Kocher Niterói, 2021 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA “ESTADO, EDUCAÇÃO E LUTA DE CLASSES: EFEITOS DO NEOLIBERALISMO NA ESCOLA PÚBLICA E MOVIMENTOS SOCIAIS NO BRASIL E NA AMÉRICA LATINA CONTEMPORÂNEOS (ANOS 1970-2016)” GRACIELLA FABRÍCIO DA SILVA Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em História da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial à obtenção do título de doutora em História. Área de concentração: História Social Aprovada em: / / Banca examinadora ___________________________________________________ Professor Doutor Bernardo Kocher (UFF- orientador) ____________________________________________________ Professor Doutor Carlos Frederico Loureiro (UFRJ) ____________________________________________________ Professor Doutor Cezar Teixeira Honorato (UFF) ____________________________________________________ Professor Doutora Vânia Cardoso da Motta (UFRJ) _________________________________________________ Professor Doutor Rodrigo Lamosa (UFRRJ) _________________________________________________ José Carlos Lima de Sousa (UERJ) Niterói, Março de 2021 Às/aos docentes e estudantes de luta da rede estadual de educação do Rio de Janeiro Agradecimentos Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Ensino Superior (CAPES), pelo financiamento da pesquisa, apesar dos sucessivos cortes realizados durante os governos Temer e Bolsonaro. Ao professor Bernardo Kocher, que, amigável e pacientemente aceitou mais uma vez orientar a minha pesquisa. Ao professor Bernardo cabem os méritos do trabalho. Sobre mim recai a responsabilidade pelos equívocos nele existentes. À minha mãe, Maria de Fátima Fabrício da Silva, professora aposentada da rede pública estadual e do município de Araruama, com quem aprendi a lutar pela educação pública e gratuita. A meu pai, trabalhador da construção civil que teve a oportunidade de estudar somente até à antiga 4ª série (atual 5º ano) da educação básica. Ele não entende muito bem o que é um doutorado, mas não teria sido possível chegar até aqui sem o seu apoio. Apesar de todos os limites impostos pelo capitalismo e pelo racismo, essas pequenas-grandes pessoas de um metro e meio foram incansáveis durante toda a vida para garantir que eu e minha irmã pudéssemos voar mais alto do que nós mesmas imaginávamos e chegar à universidade pública. À minha irmã, Izabelle Fabrício da Silva, também professora da rede pública, que revisa quase todos os meus textos (normalmente enviados em horários pouco comuns) e que é a minha grande parceira na vida. Ao meu companheiro de luta e de vida, Fabio Landi Nolasco, que me acompanha há dez anos e não me deixa sucumbir quando sou tomada pelo desânimo, a depressão e a ansiedade, agravadas durante o governo de Jair Messias Bolsonaro e o genocídio perpetrado por ele contra a população brasileira durante a pandemia de Covid-19. À minha madrinha, Maria Angélica da Silva Rego (in memoriam), que me acolheu durante a graduação e sempre foi entusiasta de todas as minhas decisões na carreira acadêmica. O doutorado é uma com a qual ela vibrava e é uma pena ter partido na reta final e não estar presente na defesa. À psicóloga Tatiana Nascimento Muniz, por me ajudar a aprender um pouco mais sobre mim mesma, assim como por me auxiliar a compreender e a lidar melhor com a realidade. Aos professores Cézar Honorato e Carlos Frederico Bernardo Loureiro, pela crítica construtiva e pelas valiosas sugestões feitas durante o exame de qualificação. Se o resultado do trabalho não foi melhor, cabe inteiramente a mim a responsabilidade. À toda equipe do Colégio Estadual Professor Renato Azevedo (Cabo Frio) e do CIEP 457 Dr. José Elias Mello dos Santos e Colégio Estadual Doutor Francisco de Paula Paranhos (Iguaba Grande), em especial às/aos gigantes com quem tive a felicidade de estar ao lado em algumas das muitas batalhas pela educação pública: Renata Martins, Adriana Vecchi e Patrícia Mota. Às amigas e aos amigos de todas as horas: Natasha Dias, Nathália Terra, Leandro Cabral, Paulo César Gomes, Sílvia Oliveira Cardoso. Sem o amor, o humor, as tretas, os memes, as figurinhas e as infindáveis discussões regadas a churrasco e cerveja que essa tropa me proporciona, teria sido muito mais difícil levar o doutorado até o final com leveza. Às companheiras e companheiros do SEPE Costa Litorânea, incansáveis na mobilização da categoria docente nos municípios de Araruama e Saquarema, apesar de todas as adversidades. À garotada de luta das escolas estaduais localizadas na região das Baixadas Litorâneas: Ludmilla Santos, Hitamara Labre, Chantal Campello, Brenda Alcântara, Emanuel Molina, João Vitor Santos, Hugo Martins Bottini, Mayara Feitosa, Decão, Gustavo, Ian Lemos, Loranni Silva, Yuri Oliveira, Iurio Moreno, Victória Braga, Yasmim Barroso, Nikolly Soares, Francisco Danilo, Deborah Cruz, Dominique Carvalho, Hemelly Fernandes e tantas outras pessoinhas que tanto me ensinaram, me ajudaram e me emocionaram. Às queridas professoras Laurimá Viana e Norma Perrut, duas das principais responsáveis por me despertar a paixão pela História, pelos livros e pela escrita. A todos e todas do grupo Bolsistas CAPES, no Facebook, pelas trocas, pelos debates e pelos momentos de diversão que suavizaram a caminhada até a defesa. Aos cachorros Raul e Neruda, às gatas Marie, Ângela, Briófita e Elza, e aos gatos Capitu e Bentinho por estarem sempre por perto em todos os momentos com toda a sua fofura. Certamente cometi a gafe de deixar algumas pessoas importantes de fora. A todas e todos que contribuíram de alguma forma (pela leitura atenta e crítica do texto, pelos elogios, pelos debates, pelas trocas ou pelas parcerias), meu carinho e meu agradecimento. Resumo A partir dos anos 1970, governos dos Estados Unidos, da Alemanha, do Reino Unido e do Chile iniciaram a implementação dos princípios neoliberais. Em um processo em que as instituições financeiras internacionais, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, atuaram como intelectuais orgânicos na formulação de políticas públicas, o Estado foi reorganizado para gerir o capital em fase de reestruturação produtiva. Um processo de privatização dos serviços públicos foi impulsionado, atingindo diversos setores, entre os quais a educação pública. As políticas educacionais passaram a ser pensadas com base na teoria do capital humano, em que a educação é concebida como um fator de produção, sendo instrumentalizada para formar trabalhadores subordinados às necessidades do mercado. O individualismo e a meritocracia, nesse processo, são características valorizadas em detrimento do pensamento crítico e da solidariedade de classe. Somando-se a isso, as parcerias público-privadas e a introdução de critériosfundados na competição e no mérito para avaliar as escolas favoreceram/foram mecanismos utilizados para promover o avanço do setor privado sobre a esfera pública. A remuneração dos profissionais e a distribuição de recursos entre as unidades escolares, nesse sentido, dependiam da avaliação realizada com base nos critérios citados. Na América Latina, o Chile pinochetista foi o pioneiro na implementação do neoliberalismo na educação pública, em um processo que possibilitou a ampliação dos lucros dos empresários que exploravam a educação como mercadoria. Esse processo, por sua vez, precarizou o trabalho docente e endividou estudantes. No Brasil, essas diretrizes foram implementadas ao longo dos anos 1990 (embora existam pesquisas que apontam que a adoção desses princípios já tivesse ocorrido durante a ditadura empresarial- militar instituída pelo golpe de 1964). Aqui, como em outros países, o resultado da implementação da política neoliberal resultou em uma profunda crise que precarizou as escolas públicas, prejudicando docentes, funcionários e estudantes, que, em diversas ocasiões, rebelaram-se com o justo objetivo de defender uma educação pública, estatal, gratuita e feita por e para a classe trabalhadora. Nesse sentido, destacaram-se as ocupações de escolas realizadas por estudantes secundaristas no Chile (2006) e no Brasil (2015-2016). Palavras-chave: Neoliberalismo; educação pública; ocupação de escolas. Resumen A partir de la década de 1970, los gobiernos de Estados Unidos, Alemania, Reino Unido y Chile comenzaron a implementar principios neoliberales. En un proceso en el que las instituciones financieras internacionales, como el Fondo Monetario Internacional y el Banco Mundial, actuaron como intelectuales orgánicos en la formulación de políticas públicas, se reorganizó el Estado para gestionar el capital en la fase de reestructuración productiva. Se impulsó un proceso de privatización de los servicios públicos que llegó alcanzó a varios sectores, entre ellos la educación pública. Las políticas educativas pasaron a ser pensadas a partir de la teoría del capital humano, donde la educación se concibe como un factor de producción, siendo instrumentalizada para formar trabajadores sumisos a las necesidades del mercado. El individualismo y la meritocracia, en este proceso, son características valoradas en detrimento del pensamiento crítico y la solidaridad de clases. Además, las alianzas público-privadas y la introducción de criterios basados en la competencia y el mérito para evaluar las escuelas favorecieron / fueron mecanismos utilizados para promover el avance del sector privado sobre la esfera pública. La remuneración de los profesionales y la distribución de recursos entre las unidades escolares, en este sentido, dependían de la evaluación realizada en base a los criterios expuestos. En América Latina, el Chile del Pinochetismo fue pionero en la implementación del neoliberalismo en la educación pública, en un proceso que posibilitó ampliar las ganancias de los empresarios que explotaban la educación como una mercancía. Este proceso, a su vez, hizo que la labor docente fuera precaria y endeudó a los estudiantes. En Brasil, estos lineamientos se implementaron a lo largo de la década de los noventa (aunque hay investigaciones que señalan que la adopción de estos principios ya se había dado durante la dictadura empresarial-militar instituida por el golpe de 1964). Aquí, como en otros países, el resultado de la implementación de la política neoliberal ha provocado una profunda crisis que precarizó las escuelas públicas, perjudicando a docentes, funcionarios y estudiantes, quienes en varias ocasiones se han rebelado con el justo objetivo de defender la educación pública, estatal, gratuita y hecha por y para la clase trabajadora. En este sentido, se destacaron las ocupaciones de escuelas realizadas por estudiantes de secundaria en Chile (2006) y Brasil (2015-2016). Palabras-clave: Neoliberalismo; educación publica; movimientos sociales. Abstract Beginning in the 1970s, the governments of the United States, Germany, the United Kingdom and Chile started to implement neoliberal principles. Because international financial institutions, such as the International Monetary Fund and the World Bank, acted as organic intellectuals in the formulation of public policies, the State had to be reorganized in order to manage capital in a productive restructuring stage. The privatization of public services has, then, gained strength, reaching several sectors, including public education. Like this, educational policies were considered based on Human Capital Theory, where education performs a function in production, being orchestrated to train workers submissive to the market needs. In this sense, individualism and meritocracy are characteristics valued at the expense of critical thinking and class solidarity. In addition, the Public-Private Partnerships and the introduction of criteria based on competition and merit to evaluate schools favored/were mechanisms used to promote the private sector advancement over the public sphere. The employee compensation and the resources distribution among school units depended, in this regard, on the evaluation performed based on the exposed criteria. In Latin America, Pinochet's Chile was pioneer in implementing Neoliberalism in public education, making it possible to increase the profits of those entrepreneurs who exploited education as a commodity. This process, in turn, made teaching work precarious and indebted students. In Brazil, these guidelines were implemented throughout the 1990s (although there are researches showing that these principles adoption had already occurred during the Business- Military Dictatorship instituted by the 1964 coup). Neoliberal policy implementation resulted in a deep crisis not only for that country, but also for others, leading public schools to precariousness, affecting teachers, staff and students, who had, on several occasions, rebelled motivated by the fair goal of protecting a public, state-owned, and free education, made by and for the working class. In this sense, the occupations of schools performed by secondary students in Chile (2006) and Brazil (2015-2016) stood out. Keywords: Neoliberalism; public education; school occupations. https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles-portugues/in https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles-portugues/this https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles-portugues/sense https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles-portugues/the https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles-portugues/of https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles-portugues/by https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles-portugues/secondary https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles-portugues/in https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles-portugues/chile https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles-portugues/and https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles-portugues/brazil https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles-portugues/stood https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles-portugues/out Sumário LISTA DE TABELAS ......................................................................................................... 1 LISTA DE SIGLAS E ABREVIAÇÕES ........................................................................... 2 Introdução ............................................................................................................................ 7 Capítulo 1 - Estado, trabalho e hegemonia burguesa no Brasil pós-ditadura ............. 16 1.1 - Estado, democracia e hegemonia burguesa ........................................................ 16 1.2 - Trabalho, produção e pós-fordismo.................................................................... 62 Capítulo 2 - Hegemonia burguesa e educação no Brasil contemporâneo .................... 76 2.1 – O Instituto Liberal do Rio de Janeiro ................................................................. 89 2.2 – O Instituto de Estudos Empresariais .................................................................. 94 2.3 – O Instituto Mises Brasil ..................................................................................... 104 2.4– A Fundação Fernando Henrique Cardoso ........................................................ 108 2.5– O Todos Pela Educação ....................................................................................... 114 2.6 - As políticas educacionais brasileiras (1990-2015) ............................................ 120 2.7 – As contrarreformas educacionais no estado do Rio de Janeiro ..................... 136 Capítulo 3 - Lutas pela educação pública no Brasil neoliberal ................................... 146 3.1 - As consequências do neoliberalismo na educação pública .............................. 150 3. 2 – A luta dos professores pela escola pública ...................................................... 163 3.3 - O movimento estudantil e a defesa da educação pública ................................. 167 3.3.1 – Movimento estudantil e luta de classes: algumas questões teóricas ........ 167 3.3.2 - O movimento estudantil brasileiro após a redemocratização ................. 172 3.3.3 – “Para de roubar e bota grana na escola”: Greve na educação e mobilização estudantil .................................................................................................................. 183 Capítulo 4 - “Ocupar e resistir”: Uma proposta dos estudantes para a educação .... 188 4.1 – Ocupando ............................................................................................................ 200 4.2 – Resistindo ............................................................................................................ 220 4.3 – Pós-ocupação: golpe e ascensão conservadora no Brasil ................................ 242 Conclusão ......................................................................................................................... 246 Anexo 1 – Escolas estaduais ocupadas no Rio de Janeiro (março a julho de 2016) .. 251 Anexo 2 – Formulário aplicado entre os dias 05/06/2018 e 06/08/2018 aos estudantes que participaram das ocupações de escolas estaduais no Rio de Janeiro (março-julho de 2016) ............................................................................................................................. 255 Bibliografia ....................................................................................................................... 268 1 LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Empréstimos do BIRD para a educação por região (1990-2003) Tabela 2 - A educação no Fórum da Liberdade - IEE Tabela 3 - Organização do Todos Pela Educação Tabela 4 - Estabelecimentos de educação básica - Brasil (1991-2018) Tabela 5 - Matrículas na educação básica - Brasil (1991-2018) Tabela 6 - Matrículas na educação básica – estado do Rio de Janeiro (1991-2018) Tabela 7 - Estabelecimentos de educação básica no estado do Rio de Janeiro (1991-2018) 2 LISTA DE SIGLAS E ABREVIAÇÕES AERJ – Associação dos Estudantes Secundaristas do Estado do Rio de Janeiro ALCA – Área de Livre Comércio das Américas ALERJ – Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro ANA – Avaliação Nacional de Alfabetização ANEB – Avaliação Nacional da Educação Básica ANEL – Assembleia Nacional dos Estudantes Livres ANREC – Avaliação Nacional do Rendimento Escolar BANERJ – Banco do Estado do Rio de Janeiro BNCC – Base Nacional Curricular Comum BM – Banco Mundial CACS – Conselho de Acompanhamento e Controle Social CAIC – Centro de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CECA – Colégio Estadual Chico Anysio CEG – Companhia Estadual de Gás CEJLL/NAVE – Colégio Estadual José Leite Lopes/Núcleo Avançado em Educação CEPAL – Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe CFE – Conselho Federal de Educação CIEP – Centro Integrado de Educação Pública CNBB/MEB – Confederação Nacional dos Bispos do Brasil/Movimento de Educação de Base CNI – Confederação Nacional da Indústria CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico 3 CNT – Confederação Nacional do Transporte CNTE – Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação CODEFAT – Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador CONERJ – Companhia de Navegação do Estado do Rio de Janeiro CONSED – Conselho Nacional de Secretários de Educação CRUB – Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito CUT – Central Única dos Trabalhadores DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos EaD – Educação à Distância EAE – Escola Austríaca de Economia FAETEC – Fundação de Apoio à Escola Técnica FAMA – Faculdade Machado de Assis FFHC – Fundação Fernando Henrique Cardoso FHC – Fernando Henrique Cardoso FIES – Fundo de Financiamento Estudantil FIFA – Federação Internacional de Futebol FMI – Fundo Monetário Internacional FNDEP – Fórum Nacional em Defesa da Educação Pública FPE – Fundo de Participação dos Estados FPM – Fundo de Participação dos Municípios FUNDEB – Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização do Magistério FUNDEF – Fundo Nacional de Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério 4 GIDE – Gestão Integrada da Escola IDEB – Índice de Desenvolvimento da Educação Básica IDERJ – Índice de Desenvolvimento Educacional do Rio de Janeiro IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ICMS – Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços IEE – Instituto de Estudos Empresariais IL – Instituto Liberal IMB – Instituto Von Mises Brasil INDG – Instituto de Desenvolvimento Gerencial INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada IPI – Imposto sobre Produtos Industrializados LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional LOCE – Ley Orgánica Constitucional de Enseñanza MBC – Movimento Brasil Competitivo MEC – Ministério da Educação MPRJ – Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro MTE – Ministério do Trabalho e Emprego MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra NED – National Edowment for Democracy OCDE – Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico OMC – Organização Mundial do Comércio ONU – Organização das Nações Unidas OS – Organização Social PAC – Programa de Aceleração do Crescimento 5 PCNs – Parâmetros Curriculares Nacionais PCdoB – Partido Comunista do Brasil PCR – Partido Comunista Revolucionário PD – Plataforma Democrática PDT – Partido Democrático Trabalhista PDE – Plano de Desenvolvimento da Educação PEA – População Economicamente Ativa PED – Programa Estadual de Desestatização PLANFOR – Plano Nacional de Educação Profissional PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro PMGP – Programa de Modernização da Gestão Pública PNE – Plano Nacional de Educação PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento PPR – Partido Progressista Reformador PROEMI – Programa Ensino Médio Inovador PROJOVEM – Programa Nacional de Inclusão de Jovens PRONATEC – Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e ao Emprego PROUNI – Programa Universidade Para Todos PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira PSOL – Partido Socialismo e Liberdade PSTU – Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado PT – Partido dos Trabalhadores PUC – RS – PontifíciaUniversidade Católica – Rio Grande do Sul SAEB – Sistema de Avaliação da Educação Básica SAERJ – Sistema de Avaliação do Estado do Rio de Janeiro 6 SEEDUC-RJ – Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro SEFOR – Secretaria de Educação de Formação e Desenvolvimento Profissional SEPE-RJ – Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Rio de Janeiro SESI – Serviço Social da Indústria TAC – Termo de Ajuste de Conduta TCM – Tribunal de Contas do Município TPE – Todos Pela Educação UBES – União Brasileira dos Estudantes Secundaristas UFES – Universidade Federal do Espírito Santo UFPE – Universidade Federal de Pernambuco UJR – União Juventude Rebelião UJS – União da Juventude Socialista UNDIME – União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação UNE – União Nacional dos Estudantes UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura UNIC – Universidade de Cuiabá UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância UNIME – União Metropolitana de Educação e Cultura UPP – Unidade de Polícia Pacificadora 7 Introdução “Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas foram transmitidas assim como se encontram”. (Karl Marx, O 18 Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo, Boitempo, 2011, p. 25) Escrever sobre História Contemporânea é um desafio. Esse desafio se torna ainda maior quando se trata de escrever sobre a história do tempo presente, o tempo histórico vivido por quem opta por escrever sobre um passado não tão distante. Como mostra a historiadora Marieta de Moraes Ferreira (2002), durante muito tempo a escrita da história contemporânea foi considerada impossível. A ausência de um distanciamento temporal dos acontecimentos e a dificuldade de se ter acesso às fontes oficiais - consideradas primordiais para conferir legitimidade ao estudo sobre a ação humana no tempo - eram tomadas como fatores que impediam os historiadores a escreverem sobre o seu próprio tempo. Felizmente, faz tempo que isso mudou. A crítica à chamada história tradicional, preocupada em narrar os vultosos feitos dos grandes homens (normalmente brancos, heterossexuais e membros das classes dominantes), abriu novas possibilidades de pesquisa histórica, dentre as quais a de se produzir um conhecimento histórico sobre o presente-passado vivenciado pelos historiadores. Ainda no século XIX, Karl Marx e Friedrich Engels mostraram a possibilidade – e a necessidade – de se estudar as contradições do sistema capitalista e as dificuldades que ele impõe à classe trabalhadora. A empreitada tinha um caráter eminentemente político e, por isso mesmo, garantiu a originalidade da obra dos fundadores do socialismo científico em um momento em que havia certo tabu entre os historiadores conservadores quanto à possibilidade de se relacionar o conhecimento histórico à política. 8 No século XX, uma nova escola historiográfica, a Escola dos Annales, amplia ainda mais o leque de atuação dos historiadores. Temas como a cultura, as mentalidades, as ideias e a demografia se tornaram objetos de estudo histórico, que passou por uma renovação com o desenvolvimento de novas técnicas e metodologias a partir do intenso e frutífero diálogo com outros campos da ciência. Após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), as barreiras que limitavam as pesquisas sobre a história contemporânea foram derrubadas. As relações entre marxismo e história, contudo, nunca foram necessariamente tranquilas, havendo um embate direto entre esta e outras vertentes historiográficas. Ele encontra-se, atualmente, em posição desfavorável na disputa por hegemonia na historiografia, onde predominam tendências pós-modernas e conservadoras. Entretanto, ainda que não seja a tendência dominante, a historiografia marxista tem dado relevantes contribuições aos estudos sobre o passado. O marxismo tem acompanhado as mudanças ocorridas no campo historiográfico, sem que isso represente uma perda das principais categorias que o embasam. Nesse sentido, merecem destaque os estudos que vêm sendo realizados com base no pensamento do próprio Marx e de outros intelectuais da tradição marxista, com destaque para Antônio Gramsci. Desde a década de 1970 (quando a obra gramsciana foi introduzida no Brasil, pelo trabalho de Carlos Nelson Coutinho), o pensamento do socialista sardo vem influenciando inúmeras pesquisas voltadas à explicação da luta de classes no Brasil. É cada vez maior o número de pesquisas dedicadas ao estudo dos aparelhos privados de hegemonia e dos intelectuais orgânicos das classes dominantes brasileiras e sua relação com o Estado, com destaque para as que são voltadas ao período ditatorial e pós-ditatorial. Por meio desses trabalhos, tem-se uma elaboração historiográfica complexa narrada de forma dinâmica, construída de modo coeso e fundamentado, que se diferencia das narrativas pós-modernas por não perder de vista a totalidade das relações sociais e por permitir observar concretamente como e porquê a fragmentação característica 9 da vertente da “história em migalhas” acontece, bem como os objetivos por trás da construção de uma explicação sobre o passado que não considere as relações econômicas e sociais em seu conjunto. Como exemplos, podemos citar as pesquisas realizadas por Flávio Henrique Calheiros Casimiro, João Márcio Mendes Pereira, Rejane Hoeveler, Felipe Demier, Eurelino Coelho, Gilberto Calil, Carla Luciana Silva, Virgínia Fontes, Sônia Mendonça e inúmeros outros. Nos estudos sobre Educação, ocorre situação semelhante ao que ocorre na História. O marxismo não é a vertente teórica hegemônica, mas tem norteado pesquisas relevantes neste campo. Exemplares disto são os trabalhos que tratam da precarização do trabalho docente e da interferência empresarial na educação pública. Tais pesquisas têm demonstrado que a exploração capitalista da educação é o fator responsável pela precarização da educação pública, com reflexos na formação, na remuneração, na valorização e nas condições de trabalho dos profissionais da educação. As pesquisas desenvolvidas por Rodrigo Lamosa, Vânia Motta, Fabrício Fonseca da Silva, Carlos Frederico Loureiro, Amanda Moreira, Gaudêncio Frigotto, Luiz Carlos de Freitas, entre outros, são exemplos da validade e da importância do referencial marxista para a construção do conhecimento sobre a educação. Essas transformações ocorridas na historiografia ao longo do tempo criaram as possibilidades para o desenvolvimento da pesquisa como a que ora se apresenta. Enquanto professora da rede estadual do Rio de Janeiro, pude acompanhar de perto o desenrolar de alguns dos fatos aqui narrados, sobretudo após a ocupação da escola onde eu trabalhava à época (o Colégio Estadual Professor Renato Azevedo, localizado no município de Cabo Frio). Naquela altura, as ocupações já faziam parte das conversas, das assembleias da greve docente e dos noticiários. Entretanto, dali em diante pude começar a fazer uma observação mais atenta das tensões e das disputas existentes no processo. 10 Os convites dos estudantes do C. E. Professor Renato Azevedo e de outras escolas situadas na região das Baixadas Litorâneas do estado do Rio de Janeiro1 para auxiliar e realizar algumas intervenções (palestras, rodas de conversa, participar de reuniões, etc.) se tornaram uma possibilidade de buscar compreender cientificamente as raízes históricas da precarização da educação pública brasileira e a trajetória e a composição do movimento estudantil contemporâneo. Nesse sentido, tomei como ponto de partida a máxima de Marx citada no início deste texto. O interesse em tentar compreender e explicar as causas da revolta estudantil e do magistério da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro foi a motivaçãoinicial da pesquisa, sob o impulso de algumas perguntas: Por que lutavam os estudantes? De que forma a luta estudantil se relaciona ao movimento mais amplo da luta de classes? De que forma a estrutura e a conjuntura política, social e econômica influenciaram os acontecimentos? A princípio, o objetivo era realizar uma tese que abordasse especificamente as ocupações de escolas ocorridas na rede estadual de ensino fluminense, no ano de 2016. Entretanto, a pesquisa ganhou contornos diferenciados conforme foi sendo desenvolvida. Conforme ela foi avançando, foi se tornando claro que era impossível tratar das ocupações secundaristas sem referenciar de maneira crítica o sistema educacional. Isso colocou a necessidade de tomar a própria educação como objeto de investigação histórica. Nesse sentido, se tornou patente a realização de uma análise minuciosa da construção do sistema educacional do Brasil e de outros países da América Latina, a partir dos anos 1970. Esse marco se justifica por ter sido o momento em que a historiografia sinaliza como sendo o início do avanço global do capitalismo sob a roupagem neoliberal. Panfletos, fotografias, reportagens, conversas, vídeos e publicações nas redes sociais (especialmente o Facebook) foram as principais fontes históricas utilizadas no desenvolvimento do trabalho. 1 Além do Renato Azevedo, visitei as ocupações do C. E. Miguel Couto – Cabo Frio; do C. E. Dr. Francisco de Paula Paranhos – Iguaba Grande; do C. E. Edmundo Silva – Araruama; do CIEP 460 – Araruama; e da FAETEC – Saquarema. 11 A escolha da educação pública como objeto de pesquisa histórico se vincula claramente a uma perspectiva política, a despeito da onda em voga que prega religiosamente em favor de uma escola e de uma universidade sem partido e ideologia, regidas pela lógica do livre mercado (como se o simples fato de se proclamar sem partido fosse destituído de ideologia). Assim sendo, ao longo desta tese, argumento como a educação pública no nível básico está permeada pela ideologia neoliberal que coloca sob os ombros dos sujeitos a responsabilidade pelo seu sucesso ou fracasso, ao mesmo tempo em que forma mão de obra ajustada política e intelectualmente às necessidades do capital. Para desenvolver esse argumento, foi utilizada a concepção gramsciana de Estado ampliado. Como mostra Sônia Regina de Mendonça (2014), a concepção gramsciana do Estado difere da concepção liberal. Se no liberalismo o Estado surge como se fosse algo dado pela natureza, na concepção gramsciana ele é resultado da luta de classes. A categoria de aparelhos privados de hegemonia criada pelo socialista sardo se constitui em um valoroso instrumento para se observar e analisar a forma pela qual o Estado é apropriado privadamente pela burguesia. Com essa categoria, Gramsci procurou mostrar a organicidade da relação entre sociedade política e sociedade civil. Desse modo, o socialista sardo fortalece e dá continuidade à tradição marxista e se distancia das formulações liberais que operam uma cisão abstrata entre Estado e sociedade; formulações essas que impedem a constatação crítica da interpenetração entre ambos nas sociedades capitalistas. Com base nisso, observo, ao longo dos dois primeiros capítulos, o processo de inserção subordinada da América Latina, principalmente do Brasil, no sistema capitalista por meio dos aparelhos privados de hegemonia da burguesia. No primeiro deles, analiso a atuação do Estado brasileiro na implementação das determinações políticas e econômicas prescritas pelo Banco Mundial no período compreendido entre a década de 1970 e 2016. O foco recai especialmente na observação de como essas determinações advindas das 12 instituições financeiras internacionais interferiram na formulação de políticas educacionais ao longo desse período, assim como sobre o papel desempenhado pelos diferentes governos para viabilizar a implementação das diretrizes neoliberais no sistema de educação pública. Com base nisso, defendo que essas ações foram voltadas à preservação da hegemonia burguesa e à adequação do sistema educacional às necessidades do mercado. No segundo capítulo, aprofundo a análise sobre a relação entre a hegemonia burguesa e a educação pública. Nesse sentido, analiso como a educação pública foi mobilizada pela burguesia brasileira para a formação de mão de obra e para a construção e manutenção de sua hegemonia, assim como também discorro sobre o papel da “teoria do capital humano” nesse processo e sobre as políticas educacionais implementadas pelos governos brasileiros nos níveis federal e estadual, com base nas orientações de aparelhos privados de hegemonia nacionais e internacionais ao longo dos anos 1990 e na primeira década do século XXI. Os aparelhos privados de hegemonia analisados foram selecionados com base nos seguintes critérios: a) a relevância que adquirem na pesquisa acadêmica sobre a hegemonia burguesa no capitalismo contemporâneo; b) a relação de um ou mais desses aparelhos com os fatos histórico-políticos relacionados aos acontecimentos ocorridos no estado do Rio de Janeiro no período estudado. Já no terceiro capítulo, verifico o impacto das políticas neoliberais sobre a educação pública. Começo com uma abordagem historiográfica sobre a necessidade e a importância de se escrever uma história a partir “de baixo”. Seguindo o caminho teórico traçado por historiadores da Escola dos Annales e da historiografia marxista britânica, reafirmo a crítica a uma história dedicada a reverenciar as classes dominantes e a validade de uma leitura do passado que contemple os aspectos contraditórios e - por que não? - perversos dos seus governos. A partir dessas considerações, debruço-me sobre uma série de dados empíricos e de estudos que analisaram os impactos das políticas neoliberais em diversos países. Dessa 13 forma, constato que tais políticas voltadas à manutenção da reprodução ampliada do capital estão na raiz da precarização da educação pública brasileira. São elas as responsáveis por problemas materiais e imateriais (falta de material, má remuneração dos profissionais da educação, segregação e adoecimento psicológico de docentes e estudantes, entre outros) presentes no cotidiano das escolas públicas brasileiras. A essa exploração e precariedade, opuseram-se professoras, professores e estudantes, que, ao longo do período mencionado, travaram inúmeras batalhas em defesa da educação pública, estatal, laica, diversa, inclusiva e gratuita. Ao longo do capítulo, também narro as lutas do movimento docente e do movimento estudantil brasileiro contra a ofensiva neoliberal na educação. Na medida do possível, tento observar a inserção dessas lutas no movimento mais amplo da classe trabalhadora pela sua emancipação. Aqui, tento identificar como alguns problemas enfrentados pelo conjunto da classe trabalhadora, como a fragmentação política, interferiram na mobilização e na organização dos/das docentes e estudantes. Após percorrer essa longa trajetória histórica, chego ao quarto e último capítulo, em que trato especificamente do tema das ocupações de escolas estaduais do Rio de Janeiro, ocorridas no ano de 2016. Nele, defendo a hipótese de que as ocupações foram um movimento organizado pelos secundaristas das escolas da rede estadual, que visava questionar os fundamentos da política neoliberal para a educação e construir uma outra hegemonia, uma hegemonia da classe trabalhadora. Agregando estudantes ligados aos grêmios estudantis e/ou a juventude de partidos como Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e do Partido Comunista Revolucionário (PCR), a Associação dos Estudantes do Rio de Janeiro (AERJ) foi a principal entidade envolvida na organização dos estudantes. Além desses grupos, também participaram estudantes autonomistas, que não estavam ligados a nenhuma organização. O movimento (que foi organizado e conduzidode forma autônoma pelos/pelas secundaristas) contou com o apoio de diversos profissionais e foi marcado por 14 muitos conflitos com a Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro (SEEDUC-RJ), que recorreu a variados métodos para debelar a onda de ocupação de escolas que atingiu 23 municípios e 80 escolas estaduais. Após a realização de audiências judiciais, as reivindicações dos estudantes foram atendidas e formalizadas. Desse modo, foram conquistados os direitos de os/as estudantes formarem grêmios nas escolas do estado, de possuírem passe livre nos transportes públicos e da comunidade escolar eleger os/as seus/suas diretores/as. Além disso, foi dado o encerramento de alguns itens da política educacional neoliberal, como a avaliação externa e a reformulação democrática do currículo escolar. Na elaboração da análise, recorri a uma multiplicidade de fontes para tentar reconstruir, narrativamente, o movimento da forma mais precisa possível. Utilizo entrevistas coletadas junto aos/às estudantes nas ocupações, respostas dos/das estudantes a um formulário aplicado online, conteúdos publicados nas redes sociais, jornais e sites da internet. Além da exposição dos fatos que marcaram o movimento de ocupação, abro diálogo com pesquisadores e pesquisadoras que produziram trabalhos sobre as ocupações de escolas. Assim sendo, ao longo do quarto capítulo, também é feito um debate sobre questões teóricas e metodológicas presentes nos estudos sobre as escolas ocupadas no Brasil, em geral, e no estado do Rio de Janeiro, em particular. Uma delas se refere à utilização dos relatos dos estudantes como base para a construção da narrativa histórica sobre as ocupações. Usando como referência a produção acadêmica no campo da história oral, entendo que é problemático basear a análise histórica tendo por referência apenas o que é narrado por quem viveu os acontecimentos. As limitações impostas pela opção de utilizar somente os relatos dos/das estudantes justificam a escolha por outras fontes. Realizo esse procedimento não para apontar erros e/ou invalidar a luta dos estudantes e os relatos que eles produziram sobre a batalha contra a precarização da escola pública imposta pela política neoliberal, mas para 15 validar e dar mais clareza na análise sobre o significado histórico das ocupações de escolas. Acredito que, ao adotar tais procedimentos, seria possível caracterizar a natureza do movimento realizado pelos estudantes secundaristas fluminenses de forma mais precisa. Desse modo, concluo que a ocupação das escolas estaduais continha elementos que apontavam para a construção de uma outra hegemonia. Esses elementos eram identificados nas falas e nos métodos de organização dos estudantes. Obviamente, não há qualquer intenção de dar o assunto por encerrado e de se ter a palavra final sobre os temas tratados. Entretanto, acredito que o material aqui apresentado contribui para a formulação de um conhecimento sobre alguns dos principais problemas existentes ao longo da história da educação pública no Brasil e na América Latina contemporâneos. 16 Capítulo 1 - Estado, trabalho e hegemonia burguesa no Brasil pós-ditadura 1.1 - Estado, democracia e hegemonia burguesa Em meados da década de 1940, Friedrich Hayek disseminou a ideia de que era necessário acabar com o principal empecilho para o desenvolvimento pleno e progressivo do capital: o Estado. Adepto do pensamento liberal, Hayek concebia o Estado como uma entidade abstrata que existia por si mesma, acima da sociedade. Esse Leviatã só conduziria a um único caminho: o da servidão, manifesta politicamente na forma do socialismo e do fascismo, entre os quais não haveria qualquer distinção. Ambos seriam igualmente autoritários, perigosos e inimigos da liberdade (HAYEK, 2010).2 Conforme mostrado por José Garajau da Silva Neto (2019), Hayek parte de uma concepção de indivíduo fundada nas ciências naturais, de modo que essa concepção se constitui como fundamento ontológico em sua obra. Abstraindo a influência do Estado e das formações sociais sobre os sujeitos, Hayek afirma que a livre concorrência, compreendida pelo austríaco como um dado natural, regularia o mercado, sendo esse o único espaço possível onde os indivíduos poderiam ser livres de qualquer forma de coerção. Hayek era diretamente influenciado por Ludwig von Mises, defensor da primazia do mercado sobre as relações humanas. Segundo Mises, o mercado corresponderia ao reino da liberdade, ao local onde os indivíduos estariam livres de coerções de qualquer tipo. Para ele, o Estado seria “o aparato social de coerção e compulsão” que não deviria intervir nas atividades dos cidadãos, “as quais são dirigidas pelo mercado”. A intervenção estatal deveria ser a menor possível e seria legítima apenas para 2 No pensamento hayekiano, o fascismo e o nazismo seriam consequências diretas do socialismo. 17 evitar que as pessoas empreendam ações lesivas à preservação e ao funcionamento regular da economia de mercado. Protege a vida, a saúde e a propriedade do indivíduo contra a agressão violenta ou fraudulenta por parte de malfeitores internos e de inimigos externos. Assim, o estado cria e preserva o ambiente onde a economia de mercado pode funcionar em segurança (MISES, 2010, p. 135). Em análises dotadas de um forte anticomunismo e desprovidas de qualquer embasamento histórico, o objetivo desses autores era justificar o modo de produção capitalista, propondo, concomitantemente, supostas soluções para o que consideravam falhas do sistema capitalista. Em suas avaliações, essas “falhas” residiriam na presença de elementos que consideravam interferências socialistas no interior do Estado e das sociedades. Nesse ponto, os economistas da chamada Escola Austríaca de Economia (EAE) atacavam as medidas de proteção social características do Estado de Bem Estar Social keynesiano. Para eles, essas medidas impediam o pleno desenvolvimento do livre mercado, criavam condições para o avanço do socialismo e o consequente fim da liberdade dos indivíduos. Temos, então, uma característica do neoliberalismo, que é, conforme destacou Leda Paulani (2004), o fato de ser normativo e prescindir da ciência. “[...] A ciência está muda, é desnecessária, mais atrapalha que ajuda. Desse ponto de vista a ciência econômica torna- se uma espécie de ficção literária que pouca relação tem com o mundo real. (PAULANI, 2004, p. 5)”. Nesse movimento, em que ocorre um deslocamento da ciência para a técnica cujo único objetivo é a garantia da estabilidade monetária e o respeito aos contratos, o conhecimento econômico produzido nas universidades é esvaziado. Tudo não passa de retórica e pouco importa se o que é dito possui ou não uma verdade. Entretanto, Paulani destaca a impossibilidade de aplicação das normativas neoliberais nos países periféricos de forma nua e crua e de considerá-las apenas como retórica, tal como afirmado pelos 18 representantes do pensamento neoliberal. Isto ocorre devido à proximidade entre os economistas e o poder tal como ocorre no Brasil. Pegando como exemplo a crise inflacionária brasileira da década de 1980, Paulani mostra que nas circunstâncias do Brasil de meados dos 80, a relação dos economistas entre si e deles com a realidade concreta do país podia ser qualquer coisa, menos uma “conversação” inconsequente, para deleite apenas daqueles nela envolvidos, os quais estariam pleiteando o Oscar da persuasão. Muito ao contrário, a disputa era real e concreta e continuou real e concreta, com as diversas visões, inclusive as ortodoxas, sucedendo-se no comando da política econômica do país até o alcance da estabilidade em 1994. [...] (PAULANI, 2004, p. 16). Desse modo, o caso dos países periféricos e do Brasil, em particular, mostra que “[...] partir do momento em que as ideias se objetivam e passama conformar essa mesma realidade não há mais como confinar as divergências ao limitado mundo da pragmática. [...]” (PAULANI, 2004, p. 16). Estudos posteriores ao de Paulani também apontam para o caráter meramente normativo e ideológico dos pensadores neoliberais. José Garajau da Silva Neto (2019), em sua tese de doutoramento, mostra que o pensamento dos economistas da EAE não passa de apologia ao capital. Para tanto, reúne argumentos que comprovam a vitalidade das categorias de modo de produção, classe e luta de classes, bem como a viabilidade da construção do socialismo como única forma possível de suplantar em definitivo as contradições engendradas pelo modo de produção capitalista e legitimadas pelo pensamento neoliberal. Desse modo, o autor mostra a vitalidade da obra de Marx e de outros intelectuais comprometidos com a superação do modo de produção capitalista que o sucederam, como Lênin, Gramsci e Mészáros. Como veremos ao longo desta tese e, particularmente, neste capítulo, longe de engendrar mais liberdade, a reprodução ampliada do capitalismo ao longo dos anos 1990 e 2000 resultaram no reforço da histórica subordinação dos países periféricos e na perda de direitos conquistados pela classe trabalhadora em meados do século XX. Ou 19 seja, o avanço do capital durante e após a Guerra Fria se deu às custas da privação de milhares de trabalhadoras e trabalhadores dos meios de produção e do despojamento das condições de organização política desse enorme contingente; organização essa que lhe permitiria lutar para se libertar dos seus grilhões. Liberdade, se houve, foi só para alguns – não por serem mais fortes ou mais aptos, no sentido biológico atribuído a esses termos pela lógica darwinista social que permeia o discurso dos autores da EAE -, mas por terem à sua disposição uma série de instrumentos, obtidos às custas da expropriação e da exploração, permitindo-lhes, assim, renovar a sua posição histórica de dominação. A crítica às ideias dos intelectuais que integram a chamada Escola Austríaca torna- se relevante por fundamentarem uma série de políticas implementadas diante da projeção que obtiveram a partir dos anos 1970. As suas ideias, a partir de então, serviram de diretriz para as políticas públicas implementadas por diversos países do centro e da periferia do capitalismo. A evocação ao arsenal teórico de Hayek e Mises nas manifestações que precederam o golpe contra Dilma Rousseff no Brasil, em 2016, tornam o seu escrutínio sob uma perspectiva crítica ainda mais importante. As ideias dos economistas austríacos serviram de justificativa para a realização de ataques a qualquer medida que representasse direitos ou benefícios para a classe trabalhadora a partir da década de 1970. Frente à crise estrutural do capital iniciada naquele momento, a ideia de “Estado mínimo” elaborada pelos intelectuais neoliberais norteou as políticas implementadas no centro e na periferia do capitalismo a partir de então. Governantes dos Estados Unidos, da Inglaterra, da Alemanha e do Chile realizaram uma série de contrarreformas para criar as condições materiais e políticas necessárias à continuidade da reprodução ampliada do capital nessa nova fase. Um dos seus principais marcos foi a legislação antissindical britânica elaborada durante o governo Margareth Thatcher, coroando a derrota da greve realizada pelos mineiros ingleses nos anos 1980 (ALENCAR, 2018). É 20 necessário destacar que a efetivação do neoliberalismo ocorreu por diferentes caminhos nos diferentes países em que foi implementado. No Chile, a implementação do neoliberalismo ocorreu de forma autoritária, após o golpe de Estado que depôs o presidente Salvador Allende, em 1973. Na Inglaterra e nos Estados Unidos, os governos comprometidos com o neoliberalismo chegaram ao poder por meio de eleições. Segundo Rodrigo Castelo, o sucesso do projeto neoliberal adveio de “[...] um consenso construído e moldado segundo a imagem e semelhança da burguesia rentista, com diferentes variações nos países [...] (CASTELO, 2013, p. 229)”. Esse consenso pressupunha a participação – muitas vezes passiva e despolitizada – das classes médias e dos trabalhadores daqueles países, que, com o seu voto, consubstanciaram o projeto neoliberal, dando uma legitimidade política poucas vezes vistas na história de um sistema formalmente democrático. (CASTELO, 2013, p. 229) Esses diferentes percursos mostram que a implementação do neoliberalismo envolveu a articulação entre coerção e consenso, expressa também na repressão aos movimentos das classes subalternas que eclodiram tanto na ditadura chilena como nos governos democráticos da Inglaterra e dos Estados Unidos. No final da década de 1970, o neoliberalismo ainda não era hegemônico, apesar de ter se materializado, nessa época, em países importantes do centro do capitalismo. A eleição de governos social-democratas em países da Europa Ocidental – como França, Grécia e Espanha – pareciam contrabalançar a expansão neoliberal no continente. No entanto, como nos lembra Castelo (2013), não tardou para a social-democracia capitular e começar a adotar medidas fiscais ortodoxas que feriam a sua plataforma eleitoral. O transformismo dos partidos social-democratas e o fim da União Soviética abriram caminho para o crescimento do neoliberalismo no continente europeu, ao longo dos anos 1980 e 1990. Os efeitos nefastos da ortodoxia neoliberal recaíram sobre as classes subalternas, que protagonizaram uma série de levantes contra a precarização das condições de vida impostas 21 pelos governos neoliberais. Diante dessa inquietação, surgiu uma nova vertente do pensamento neoliberal, a qual propunha a adoção de medidas assistencialistas para mitigar os efeitos do neoliberalismo entre os mais pobres. Essas medidas não resultaram de lutas políticas entre as classes, mas de concessões das classes dominantes com o objetivo de manter a sua hegemonia (CASTELO, 2013, p. 242). Essa vertente é denominada de “social- liberalismo”. Como descreve Castelo, [...] Virou moda, no social-liberalismo, empresários bilionários, socialites, celebridades, esportistas milionários e toda sorte de membros das classes proprietárias doarem recursos para instituições do “Terceiro Setor”, sendo que muitos assumem o papel de empreendedores sociais criando suas próprias fundações filantrópicas. No limite, alguns membros ativos da burguesia procuram romper com a divisão entre trabalho material e intelectual e se põem a escrever sobre as crises capitalistas e a “questão social” sem, no entanto, produzir uma teoria consistente a respeito destes fenômenos complexos. As melhores amostras são George Soros, que atualmente financia uma das maiores instituições de caridade mundiais – a Fundação Soros – e publica livros de tons críticos à globalização (Soros, 1998), e Muhammad Yunus, conhecido como “banqueiro dos pobres”, cujo banco ganhou o prêmio Nobel da Paz de 2006, quando pela primeira vez uma instituição privada com fins lucrativos foi laureada com esta honraria. (CASTELO, 2013, p. 246) Desse modo, [...] as desigualdades socioeconômicas deixaram de ser uma solução para questões específicas do capitalismo e passaram a ser um dilema social a ser tratado pela burguesia e seus intelectuais. Assim, as classes dominantes promoveram uma ofensiva na direção das bandeiras ideológicas da esquerda, tradicionalmente vinculadas às lutas igualitaristas. O que antes era um ideal progressista passou a ter significados políticos e culturais conservadores. (CASTELO, 2013, p. 248). Com essa ofensiva, as classes dominantes buscavam reconstruir a sua hegemonia diante da explosão de lutas sociais que ocorreram em vários países nos anos 1980 e 1990, ao mesmo tempo em que mantinham intactas as bases de acumulação do capital. Intelectualmente, o social-liberalismo encontra suasformulações nas obras de intelectuais como Anthony Giddens e Alain Touraine. Giddens utiliza o termo “terceira via” 22 para se referir à sua proposta de que deveria haver uma maior aproximação entre Estado, sociedade civil e mercado. Segundo ele, a terceira via ficaria numa posição de centro político e representaria a superação da divisão entre esquerda e direita e seria o modo de superar o marxismo e o neoliberalismo. Identificado como social-democracia, a terceira via de Giddens não possui vinculação entre as classes, ao mesmo tempo em que não entende as desigualdades sociais como algo necessariamente negativo. Em seu pensamento, as desigualdades não desapareceriam historicamente, mas podem ser mitigadas por meio de ações comunitárias desenvolvidas em organizações não-governamentais (ONGs), associações filantrópicas, ações sociais de empresas “socialmente responsáveis” e de mecanismos de participação da sociedade civil no interior do aparato estatal (CASTELO, 2013). O Novo Trabalhismo britânico, representado por Tony Blair, foi a principal expressão política da terceira via de Giddens. Além de Anthony Giddens, um outro intelectual social-liberal é Alain Touraine. Para Touraine, tanto o liberalismo como o socialismo teriam sido incapazes de resolver os problemas sociais. Ambos teriam se mostrado como regimes que tiveram como o autoritarismo e a opressão como resultado. Como saída, ele propõe o abandono de qualquer formulação teórica totalizante que se proponha explicar a realidade de uma forma que as diferenças culturais e individuais sejam subtraídas. No lugar dos tradicionais partidos políticos e do movimento operário, se deveria dar voz aos chamados “novos movimentos sociais”, tais como o feminista, o ambientalista e outros movimentos que tenham como referência a valorização da diversidade cultural. Como explica Castelo, para Touraine, “[...] A igualdade seria construída a partir do desejo de diferenciação, de individuação dos sujeitos pessoais, que deveriam se tornar atores do seu próprio destino [...] (CASTELO, 2013, p. 306)”. Assim, “[...] [a]s diferenças individuais deveriam ser reconhecidas e 23 elevadas a primeiro plano para patrocinar a eliminação das desigualdades do atual sistema social. (CASTELO, 2013, p. 306). Todavia, a mudança cultural reivindicada pelos “novos movimentos sociais” deveria ser feita sem mexer na estrutura econômica da sociedade. O mercado e as tecnologias surgidas com a globalização econômica não deveriam ser atacados, pelo contrário. Eles deveriam ser valorizados, ao contrário do Estado e do capital financeiro. Em sua visão, o mercado não seria um problema, mas a organização contemporânea do capitalismo sob esta última forma. Segundo o próprio intelectual francês, Deve-se concluir que convém deixar o mercado alocar os recursos? Certamente que não. Mas não é de mais Estado ou de mais mercado que precisamos, mas sim de menos Estado e menos mercado, e de mais iniciativas, negociações, projetos, conflitos propriamente sociais, por meio dos quais construir-se-ão as relações indispensáveis (e constantemente mutáveis) entre as obrigações e as possibilidades da economia e as demandas ou as resistências dos atores sociais (TOURAINE, 1999, p. 110 apud CASTELO, 2013, p. 300). No pensamento de Alain Touraine, ao Estado caberia controlar o capital contra a especulação global. No entanto, como já apontamos, para ele não haveria necessidade de realizar mudanças estruturais mais profundas com a finalidade de acabar com a dominação classista. Politicamente, as formulações de Touraine se distinguem da de Anthony Guiddens. Para o sociólogo francês, a terceira via proposta por Guiddens seria de centro-direita e seria a marcada pela proposta de capacitação e empoderamento dos indivíduos. Por outro lado, a via que denomina de 2 ½ seria de centro-esquerda e caracterizada pela proposta de inclusão social dos marginalizados por meio do crescimento econômico, de políticas de promoção e de geração de emprego e renda (CASTELO, 2013, p. 301). Em que pesem as diferenças, os pensamentos de Guiddens e de Touraine possuem em comum o fato de reforçarem tendências pós-modernas, uma vez que ambas 24 desconsideram a possibilidade e a necessidade de transformação social radical que ponha fim ao sistema capitalista e à dominação classista. Como veremos mais adiante, a vertente do social-liberalismo se tornou hegemônica nos anos 2000 e se materializou em diversos governos latino-americanos. Por trás disso, houve forte atuação de aparelhos privados de hegemonia, entre os quais se destacam instituições financeiras internacionais, como Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, que, ao longo do tempo, incorporaram parte das propostas de Guiddens e de Touraine. As instituições financeiras criadas após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) – Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial (BM) – exerceram um papel fundamental na difusão e na internalização da agenda neoliberal, atuando como atores intelectuais, políticos e ideológicos (PEREIRA, 2010, p. 318). Ambas instituições podem ser consideradas mecanismos de expansão capital-imperialista estadunidense, uma vez que os Estados Unidos exercem forte controle político, econômico e ideológico sobre elas (PEREIRA, 2010)3. Com base em Gramsci, podemos afirmar que “as gêmeas de Breton Woods” (PEREIRA, 2010) exercem o papel de aparelhos privados de hegemonia e de intelectuais orgânicos coletivos do neoliberalismo. Segundo Gramsci, o Estado é formado pela relação dialética entre sociedade civil (escola, igreja, partidos, jornais, etc.) e sociedade política (Estado no sentido estrito). Na formulação gramsciana, à sociedade civil corresponde a função de hegemonia, enquanto à sociedade política, a de comando, de domínio (GRAMSCI, 2006, pp. 20-21). De acordo com 3 O termo “capital-imperialismo” fora cunhado pela historiadora Virgínia Fontes para se referir à continuidade da expansão do capital na sua forma imperialista em forma cada vez mais ampliada, nos últimos trinta anos. Ver: FONTES, Virgínia. O Brasil e o capital imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: EPSJV/Editora UFRJ, 2010. 25 Gramsci, os intelectuais exercem uma função peculiar nessa estrutura de organização e funcionamento do Estado. Eles são “prepostos” do grupo dominante para o exercício das funções subalternas da hegemonia social e do governo político, isto é: 1) do consenso “espontâneo” dado pelas grandes massas da população à orientação impressa pelo grupo fundamental dominante à vida social [...]; 2) do aparelho de coerção estatal que assegura “legalmente” a disciplina dos grupos que não “consentem”, nem ativa nem passivamente, mas que é constituído para toda a sociedade na previsão dos momentos de crise no comando e na direção, nos quais desaparece o consenso espontâneo (GRAMSCI, 2006, p. 21). O Estado possui, assim, uma função formativa e educativa, exercida pelos intelectuais, “cujo fim é sempre o de [...] adequar a ‘civilização’ e a moralidade das mais amplas massas populares às necessidades do contínuo desenvolvimento do aparelho econômico de produção [...] (GRAMSCI, 2017, p. 23)”. Como exposto na citação anterior, os intelectuais exercem um papel específico no que diz respeito à organização e ao funcionamento desse Estado; eles integram a camada social que formula, organiza e difunde as concepções de mundo, as ideologias da classe ou fração de classe dominante entre as camadas subalternas, de modo que essas sejam integradas ao projeto de sociedade do bloco que ocupa o poder do Estado. Os intelectuais que exercem essa função são categorizados como “intelectuais orgânicos”, que diferem dos chamados “intelectuais tradicionais”, justamente por essa função de organização da atividade estatal e pela de criação dos meios necessários àreprodução e expansão do grupo social dominante4. 4 Gramsci afirmava que os intelectuais tradicionais possuem a função de colocar a massa de trabalhadores em contato com o aparelho burocrático-estatal. São “de tipo rural [...] , ligados à massa social do campo e pequeno-burguesa, de cidades (notadamente de centros menores), ainda não elaborada e posta em movimento pelo sistema capitalista”. (GRAMSCI, 2006, p. 22-23).Por exercer a referida função, possuem um “grande função político-social, já que a mediação profissional dificilmente se separa da mediação política.” (GRAMSCI, 2006, p. 23). Os intelectuais orgânicos, por seu turno, são aqueles que, oriundos de um grupo social fundamental, extrapolam os limites corporativos e assumem a função de organização e direção da sociedade. Tais intelectuais dão ao grupo social dominante “homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e político” (GRAMSCI, 2006, p.15). O socialista italiano escreveu ainda que, se não todos, mas pelo menos uma parte dos empresários capitalistas deve 26 Na teoria gramsciana, a questão do Estado e dos intelectuais se relaciona diretamente aos partidos políticos, onde se articulam organicamente. No partido político (“moderno Príncipe”), os interesses econômico-corporativos são superados e se tornam agentes de ações políticas mais amplas. Segundo Gramsci, isso se deve ao fato de que o partido possui uma função fundamental, [...] que é a de elaborar os seus próprios componentes, elementos de um grupo social nascido e desenvolvido como ‘econômico’, até transformá-los em intelectuais políticos qualificados, dirigentes, organizadores de todas as atividades e funções inerentes ao desenvolvimento orgânico de uma sociedade integral, civil e política. [...] (GRAMSCI, 2017, p. 24). Por meio do partido, se forma um amálgama entre intelectuais tradicionais e intelectuais orgânicos, na medida em que ele permite que “um intelectual que passe a fazer parte do partido político de um determinado grupo social confunde-se com os intelectuais orgânicos do próprio grupo [...] (GRAMSCI, 2017, p. 24)”. O partido político possui, portanto, a função de organizar a vontade coletiva (definida como “consciência operosa da necessidade histórica, como protagonista de um drama histórico real e efetivo (GRAMSCI, 2017, p. 17)” e de ser “o anunciador e o organizador de uma reforma intelectual e moral, o que significa [...] criar o terreno para um novo desenvolvimento da vontade coletiva nacional-popular no sentido da realização de uma forma superior e total da civilização moderna (GRAMSCI, 2017, p. 18)”. Essa reforma deve estar ligada a um programa de reforma econômica, que “é o modo concreto através do qual se apresenta toda reforma intelectual e moral (GRAMSCI, 2017, p. 19)”. A análise gramsciana sobre o Estado pode ser complementada pelos apontamentos feitos por Nicos Poulantzas. Embora influenciada por Gramsci, a obra de Poulantzas organizar não somente a produção, mas também o próprio Estado, a fim de criar as condições para a expansão da própria classe. (GRAMSCI, 2006, p. 15). 27 apresenta formulações diferentes da do filósofo sardo, de modo que desenvolve concepções que representam um avanço na elaboração teórica marxista no campo da política. Segundo Poulantzas, a superestrutura política concentra as contradições da estrutura social e reflete as relações dos outros níveis da luta de classes. Por isso, o Estado constitui um “fator de coesão de uma formação”, uma vez que a luta política de classe tem como objetivo o controle de seu aparato. Em outras palavras, o Estado de sociedade cindida em classes é perpassado pela luta entre elas, refletindo a relação de forças presentes na sociedade em determinado período histórico de um dado modo de produção. Essa relação de forças entre as classes é expressa na forma de uma disputa pelo poder, definido pelo cientista político como a “capacidade de uma classe social de realizar seus objetivos específicos” (POULANTZAS, 2019, p. 106). É no campo das práticas de classe que o poder se constitui. Logo, o Estado capitalista é um “centro de exercício do poder político”, que é sempre o poder de uma classe ou fração de classe. Entretanto, ele não se apresenta às classes como o Estado de uma classe, a dominante, mas como um “Estado-popular-de-classe” em que a dominação política de classes está ausente das suas instituições. Opera-se uma cisão abstrata e ideológica entre o aparelho de Estado e as classes sociais, de modo que o resultado é um Estado “[...] organizado como unidade política de uma sociedade com interesses econômicos divergentes, não interesses de classe, mas interesses de “indivíduos privados”, sujeitos econômicos [...]” (POULANTZAS, 2019, p. 190). Para que isso ocorra, é necessário isolar as classes dominadas do centro de poder, ao mesmo tempo em que elas são convencidas pelas estruturas jurídicas e ideológicas que o tipo de Estado em questão (o capitalista) também o representa. Isso faz com que o Estado capitalista seja “um Estado com direção hegemônica de classe” (POULANTZAS, 2019, p. 137). Nesse ponto, Poulantzas se diferencia em relação a Gramsci. 28 Em primeiro lugar, Poulantzas aplica o conceito de hegemonia para se referir às práticas políticas das classes dominantes de uma formação capitalista, não ao Estado. Em segundo lugar, o sociólogo marxista utiliza esse conceito em dois sentidos. O primeiro Indica a constituição dos interesses políticos dessas classes, em sua relação com o Estado capitalista, como representativos do “interesse geral” desse corpo político que é o “povo-nação”, e quem tem como substrato o efeito de isolamento no econômico. [...] (POULANTZAS, 2019, p. 140) O segundo sentido do conceito de hegemonia trabalhado por Poulantzas se relaciona ao que denomina de “bloco no poder”, ou seja, à predominância de uma classe ou fração de classe politicamente dominante. “[...] Nesse segundo sentido, o conceito de hegemonia abrange a dominação particular de uma das classes ou frações dominantes em relação às outras classes ou frações dominantes de uma formação social capitalista. [...]” (POULANTZAS, 2019, p. 140). A classe hegemônica seria, portanto, “aquela que concentra em si, no nível político, a dupla função de representar o interesse geral do povo- nação e de deter uma dominância específica entre as classes e frações dominantes – e isso, em sua relação particular com o Estado capitalista” (POULANTZAS, 2019, p. 141). A abordagem do Estado feita por Gramsci e Poulantzas se diferem daquelas outras denominadas por Poulantzas como “Estado-coisa” e “Estado-sujeito”, nas quais ora o Estado é dominado de forma absoluta por uma classe dominante coesa e homogênea, ora um Leviatã. As formulações teóricas do socialista italiano e do sociólogo marxista grego podem ser observadas empiricamente na análise histórica da relação entre os aparelhos privados de hegemonia e intelectuais orgânicos e o Estado capitalista brasileiro. Da sua fundação, em 1944, até a década de 1960, o BM investiu em projetos de desenvolvimento nos países da periferia do capitalismo, com destaque para a América Latina. Mais do que uma mera ajuda econômico-financeira, o financiamento de projetos em áreas como agricultura e infraestrutura serviam como instrumentos para tentar evitar a 29 ocorrência de revoluções sociais. Pertencer ao grupo de países sob a influência dos Estados Unidos era critério para receber recursos da instituição (PEREIRA, 2010). O atrelamento do crescimento econômico dos países periféricos a empréstimos fez aumentar o endividamento desses países, que foram fortemente impactados pela crise econômica iniciada com o segundo choque do petróleo e a alta da taxa de juros americana. A crise, que estourou no final dos anos 1970, levou o BM(então sob a direção de Robert McNamara5) a trocar os projetos de desenvolvimento pela política de “ajuste estrutural”. Nos Relatórios de Desenvolvimento Mundial de 1978 e 1979, o banco expressara o seu entendimento sobre o papel da dívida externa dos países periféricos na estrutura global do capital, qual seja: o endividamento dos países periféricos era “[...] parte do processo de ajustamento global necessário para responder aos desequilíbrios crescentes nos balanços de pagamentos, em particular dos países importadores de petróleo [...] (PEREIRA, 2010, p. 232)”. Para viabilizar o ajuste estrutural da periferia, McNamara anunciou a criação do “empréstimo de ajustamento estrutural”, que [...] tinha o objetivo de financiar o déficit no balanço de pagamentos, sobretudo de países importadores de petróleo. A autorização desse tipo de empréstimo estava condicionada à realização, pelo prestatário, de um programa de estabilização acordado previamente com o FMI e de um pacote de reformas na política macroeconômica, ambos voltados para adequar a economia doméstica ao novo ambiente externo e manter o pagamento do serviço da dívida. (PEREIRA, 2010, p. 233) Em linhas gerais, o ajustamento estrutural englobaria as seguintes ações: [...] liberalizar o comércio, alinhar os preços ao mercado internacional e baixar tarifas de proteção; desvalorizar a moeda; fomentar a atração de investimento externo e a livre circulação de capitais; promover a especialização produtiva e expandir as exportações, sobretudo agrícolas. No âmbito das políticas sociais e da administração estatal, o ajuste tinha 5 Antes de se tornar dirigente do Banco Mundial, Robert McNamara foi secretário de Defesa nos governos John F. Kennedy e Lindon B. Johnson. Sua passagem pelo cargo foi marcada pela participação dos EUA na Guerra do Vietnã (1964-1974) e pela crise dos mísseis em Cuba (1962). 30 como meta central a redução do déficit público, especialmente por meio de medidas como: a) o corte de gastos com pessoal e custeio da máquina administrativa; b) a redução drástica ou mesmo a eliminação de subsídios ao consumo; c) redução do custo per capita dos programas, a fim de ampliar o grau de cobertura; d) a reorientação da política social para saúde e educação primárias, mediante a focalização do gasto na parcela da população em condições de “pobreza absoluta”. (PEREIRA, 2010, p. 236) Segundo Pereira, a política de ajustamento estrutural do Banco Mundial expressava institucionalmente as pressões dos EUA e da Inglaterra pela liberalização econômica e a mudança na correlação de força entre capital e trabalho. Significativo desse último item era o ataque aos direitos sociais e trabalhistas nas medidas de ajuste (PEREIRA, 2010, p. 237). Contudo, a implementação das orientações do BID nos países receptores dos empréstimos não ocorreu de forma automática e imediata. Houve tensões entre o banco e os agentes dos governos, assim como entre as frações da classe dominante que os integravam. Isso fez com que a aplicação da agenda neoliberal no país apresentasse variação de um governo a outro, bem como em relação a outros países latino-americanos. Em primeiro lugar, as diretrizes do banco eram diretamente influenciadas pelo curso das disputas políticas nos Estados Unidos, de onde provinham a maior parte dos recursos da instituição e quem possuía poder de veto a propostas de investimento da instituição. A reposição de recursos estadunidenses dependia da relação do executivo com o Congresso e podia aumentar ou ser reduzida conforme a maior ou menor capacidade de negociação do governo com os parlamentares. Nesse sentido, tomando como recorte o início dos anos 1980, observamos uma reavaliação do papel dos EUA na instituição. O governo Reagan (1981-1989) defendeu a redução da ajuda dos EUA ao Banco Mundial e outras instituições multilaterais, sob o argumento de que o capital privado era mais eficiente para promover o crescimento econômico do que o setor público e a ajuda multilateral. Segundo Pereira, o plano era aumentar os recursos para a área militar e reduzir pela metade a ajuda bilateral e multilateral dos EUA para 1982-1986. Entretanto, o 31 Departamento de Estado conseguiu reverter a decisão do governo e a ajuda internacional americana foi mantida, sob a condição de apoio dos democratas ao aumento dos recursos para a assistência militar bilateral (PEREIRA, 2010, p. 244). As relações do governo Reagan com o Banco Mundial melhoraram com a nomeação de Tom Clausen (ex-presidente do Bank of America, um dos principais credores privados dos países periféricos), na medida em que foi considerada um rompimento com a política desenvolvimentista (PEREIRA, 2010, p. 245). Como exemplo disso, temos a avaliação do governo Reagan, do início de 1982, na qual o Banco Mundial e outras instituições multilaterais constituíam uma importante ferramenta a favor dos interesses dos Estados Unidos. O país continuaria a colaborar com elas, com a condição de que o apoio americano seria para promover “[...] a abertura dos mercados nacionais e a superioridade do capital privado no financiamento da atividade econômica em relação ao setor público [e a] realização de reformas políticas nos países receptores [...] (PEREIRA, 2010, p. 248)”. Entretanto, a ajuda dos EUA ao banco deveria ser reduzida gradativamente. Ainda em 1982, estourou a crise mexicana. De acordo com Pereira, a declaração da moratória pelo México alterou a percepção do Banco Mundial sobre a dívida dos países periféricos, que deixaram de ser vistos como exemplos de sucesso na aplicação das medidas liberalizantes para serem culpabilizados pela crise; o discurso era de que a crise era resultante de erros da política econômica interna, sem ligação com causas externas (PEREIRA, 2010, p. 249). Para solucionar a crise, as autoridades financeiras propuseram a reorientação da produção para bens exportáveis, a redução dos gastos públicos e a estatização da dívida privada (PEREIRA, 2010, p. 249). Além disso, houve uma abrupta interrupção do acesso dos países latino-americanos aos recursos externos. Segundo Pereira, A decisão dos bancos perdurou durante quase uma década e bloqueou, na prática, o acesso dos devedores ao sistema financeiro internacional. Como o financiamento da atividade econômica e, cada vez mais, do próprio 32 Estado tornara-se altamente dependente de recursos externos, a interrupção dos fluxos de capital condenou à estagnação e à bancarrota os países da periferia. Os mais afetados eram, precisamente, os mais industrializados e endividados: Brasil e México. (PEREIRA, 2010, p. 250) Em 1983, foi criado o empréstimo de ajuste setorial. Fatiar setorialmente os recursos destinados aos países endividados foi vista como uma forma de acelerar a aplicação das medidas de ajuste determinadas pelo Banco Mundial e pelo FMI. Acreditava-se que, dessa forma, a oposição teria dificuldade de ser organizar e pressionar os governos contra as medidas. Esse tipo de atuação tornava mais explícito o componente político do banco, que se tornou ainda mais claro com a exigência de redesenho da ossatura material do Estado pela instituição. Assim, o BM se distanciava da ação prevalecente até então de criar enclaves dentro do Estado. O tema da reforma do Estado ganhou corpo no Relatório do Desenvolvimento Mundial de 1983, em que se recomendava: [...] a) a criação de uma autoridade central responsável pela coordenação e pelo enquadramento da política central à pauta macroeconômica [...]; b) a criação ou aperfeiçoamento de um sistema unificado de informações sobre o gasto público nos três níveis de governo [...]; c) maior seletividade do Estado na prestação direta de infraestrutura e de serviços básicos, aumentando o volume de subcontratação a empresas privadas [...]; d) a utilização da força de trabalho das
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