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UNDER YOUR SKIN_ Dark Romance ( - Zoe X

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Copyright © 2023 Zoe X
 
UNDER YOUR SKIN
1ª Edição
 
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte dessa obra poderá ser
reproduzida ou transmitida por qualquer forma, meios eletrônicos ou
mecânico sem consentimento e autorização por escrito do autor/editor.
 
Capa: Daniel Caetano
Revisão: Bárbara Pinheiro
Diagramação: April Kroes
 
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos
descritos são produtos da imaginação da autora. Qualquer semelhança com a
realidade é mera coincidência. Nenhuma parte desse livro pode ser utilizada
ou reproduzida sob quaisquer meios existentes – tangíveis ou intangíveis –
sem prévia autorização da autora. A violação dos direitos autorais é crime
estabelecido na lei nº 9.610/98, punido pelo artigo 184 do código penal.
 
TEXTO REVISADO SEGUNDO O ACORDO ORTOGRÁFICO DA LÍNGUA
PORTUGUESA.
 
Eu mudei de nome, de vida e, depois de tanto tempo, achei que seria
seguro voltar para Detroit. Agora, o demônio na minha cabeça canta canções
de amor para o garoto que é proibido para mim, para o garoto ao qual eu
destruí a família, e fica de joelhos para o homem implacável e cruel que me
vigia do outro lado da rua.
Eu estou louca. Eu estou me apaixonando.
Eu estou condenada.
Sinopse
Sumário
Aviso 1
Aviso 2
Aviso 3
Playlist
Prefácio
Carta da autora
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Capítulo 54
Capítulo 55
Capítulo 56
 
 
 
 
 
E S T E L I V R O É P R O B L E M Á T I C O P R A C A R A L H O .
 
Não leia se você tiver dificuldade de separar história ficcional de
realidade. Estamos lidando aqui com um mundo quebrado, com personagens
problemáticos, que vivem suas vidas sem regra moral alguma. Não existe
alguém para dizer o que é certo e errado, os personagens aqui não estão
procurando limites ou serem melhores como pessoas. Este livro é direcionado
ao público +18 e para quem gosta de ler sobre gente perturbada, se não é o
seu caso, feche-o agora e vá ler outra coisa. Ciente dos avisos passados, se
quiser prosseguir daqui é de sua total responsabilidade.
 
G AT I L H O S
 
ESTA HISTÓRIA CONTÉM: Abuso sexual e psicológico, pedofilia,
incesto, agressão física, psicológica e verbal, CNC (sexo consensual não
consensual) e personagens com distúrbios mentais. Os personagens não usam
preservativo em momento nenhum deste livro para a construção de pontos
que a autora queria para o enredo. Não era a intenção trabalhar aqui IST’s ou
gravidez, mas é sempre bom lembrar que o uso de preservativo é essencial na
vida real. Aqui você também encontra uma personagem que fetichiza estupro.
Isso é ELA, dela. Não o livro ou o que a autora acredita.
Não confunda ficção com realidade e, se for ler, prepare-se para
respirar fundo algumas centenas de vezes.
 
 
 
Este livro não existe para te fazer melhor, ele existe pra te fazer sentir.
Antes de me ofender nas avaliações, pense bem: te dei todos os avisos e não
te obriguei a ler. A única responsável aqui foi você.
 
Ouça no Spotify clicando aqui.
 
 
https://open.spotify.com/playlist/0wAxgE4BaUbLIsf1gEBrJR?si=367dfea30a164811
 
 
 
 
 
 
 
Quebraram meu coração em pedaços pequenos demais,
da forma mais cruel que existe. O que surgiu disso foi
este livro. Ele é pra você que tem medo do que vive
embaixo da sua cama, mas ama ver como meus monstros
brincam dentro da minha cabeça.
 
E para o meu quase-marido, que dorme ao nosso lado.
 
Você nunca silenciará os seus demônios sem
antes ouvir o que eles têm a dizer.
 
 
 
Ego de escritor é uma merda.
Digo isso com propriedade porque este livro é a prova viva desse fato.
Ele surgiu em algum momento do ano passado, quando tive uma
conversa de madrugada com a Bruna Palazzo e acabei chorando tudo o que
vinha acumulando nos últimos nove meses. A sombra dele me rondava de
modo absurdo, mas só naquela conversa com a Bruna é que tive coragem de
olhar para essa sombra e dizer “é, talvez eu precise encarar você”. (Bruna,
muito obrigada mesmo por ter pegado minha mão naquele dia. Nunca vou
esquecer. Você não sabe, mas salvou minha vida naquela noite.)
Eu sabia a história. Sabia que não tinha nada igual por aqui. Que toda a
galera que me odeia de graça ia cair matando se eu escrevesse. E com muito
medo, eu não escrevi.
Tive medo de ser julgada. Medo de perder leitoras. Medo de acabar
com a minha carreira.
Porra, escrever é o meu sustento. Antes de qualquer coisa, eu preciso
pensar nos números, em como isso impacta na vida da minha família. Como
colocar tudo isso em risco?
Acreditem, quando essa água bateu na minha bunda, eu tentei desistir.
O problema era que, sempre que fechava os olhos, lá estava o dono
deste livro, me encarando atrás das grades. O problema era que, toda vez que
eu me sentia imprestável, quando me questionei mil e uma vezes sobre o que
eu era, a resposta que vinha, a primeira e única era: escritora.
Eu sou isso.
É intrínseco a minha alma.
É visceral.
Tá aqui desde antes de eu nascer e, provavelmente, me acompanhe
depois que eu morrer. E eu entrei nesse mercado exatamente assim. Montei a
Dark Hand com todos os elementos que eu sabia que eram “comerciais” para
a época, com a minha forma de contar histórias. Com meus clichês, eu conto
coisas que têm peso, com o fundinho que aquece o coração, mas também são
do meu jeito. Bad Prince acho que nem preciso explicar, e In Flames – meu
olho está enchendo d’água enquanto escrevo isso – foi quem me provou que
eu ainda conseguia escrever, mesmo com um bando de gente tentando me
derrubar.
Ele também me mostrou que muita gente ainda ia me ler, mesmo com
todo o hate absurdo que eu levo por aí sem mexer com ninguém.
E, de fato, eu nunca precisei.
Meu trabalho sempre falou por mim. Meu amor por isso aqui, minha
paixão alucinante em precisar mostrar para o mundo o que minha cabeça
criou… Só não esperava um trem como UYS passar por cima de mim e eu
não poder mantê-lo escondido.
Este livro não é bonito. Na verdade, este livro é a tradução de todo o
meu último ano em palavras. E eu pensei mil e uma vezes se vocês mereciam,
se queriam ou se precisavam ver toda a feiura dele. E talvez vocês não
precisassem, nem merecessem algo do tipo. Mas, olhando para ele pronto,
não consegui escondê-lo.
Não consegui nem mesmo me arrepender de ter escrito.
Cheguei à conclusão de que, sinceramente, não me importo se as
pessoas não gostarem dele. Eu gostei. Eu me dediquei. Eu coloquei tanta dor
nesse filho da puta, eu me entreguei tão de corpo e alma que… não dá para se
arrepender disso.
Se alguém conseguisse ver meu peito no momento, ele ia ser tão feio
quanto este livro.
Então, mesmo quebrada, mesmo completamente destruída por motivos
que eu nunca vou dar na mão desse mundo literário pronto para acabar
comigo, eu estou muito feliz do que eu fiz da minha dor.
Eu estou muito orgulhosa de dizer: fiz o que tinha que fazer e fiz com
excelência.
No fundo, é óbvio que espero que vocês gostem.
Mas se vocês não gostarem, tudo bem.
O Universo é grande demais para a gente não fazer o que quer/precisa
com medo dos outros.
Com todo o amor do mundo e muito respeito,
Zoe X.
 
 
2 3 d e m a r ç o d e 2 0 1 7
 
Estava tarde.
Menos de três horas que eu havia deixado aquele lugar.
Olhei pelo vidro da janela traseira do carro da polícia, com o estômago
mastigando a si mesmo e tremi quando um suspiro escapou da minhaboca
por conta do choro silencioso.
O céu estava nublado, tingindo tudo de um azul morto, frio e triste.
Tão triste quanto eu estava por dentro.
Eu não queria causar aquilo.
Não queria destruir sua família, não queria perdê-la, não queria
machucá-la, mas querer não é poder quando algo tão nefasto mora dentro de
você. O demônio cravou as garras nos meus ombros e eu não pude resistir.
Precisava obedecê-lo, precisava satisfazê-lo.
E por ser tão fraca, por vontade própria, eu acabei com tudo.
Minhas mãos sobre minhas coxas estavam geladas.
Eu mal senti quando mais uma lágrima grossa se misturou ao restante
da cascata que molhava minhas bochechas, pescoço e o colarinho da camiseta
rosa com coelhinhos estampados. A ansiedade do que vinha a seguir me
consumia e a cada batida da mão do policial na madeira da porta da casa dos
Hunt, foi uma batida do meu coração.
Papai pegou uma das minhas mãos e entrelaçou nossos dedos enquanto
acariciava meu braço. Eu não o encarei. Não tinha coragem. Sabia que ele
estava bravo, que estava se sentindo traído, e se eu não seguisse seu plano até
o final, seria pior para mim.
Prendi a respiração quando o senhor Hunt apareceu na porta.
Christopher Hunt com seu corpo grande e forte, sob a luz azulada da rua,
parecia um mocinho de filme de terror.
Tive pena dele naquele minuto, porque, graças a mim, ele viveria um
pesadelo dia após dia. Mordi com força a bochecha por dentro da boca. O
gosto de sangue preencheu minha língua, mas tudo o que eu fiz foi respirar
fundo e me manter encarando aquela cena.
Foi como se o mundo operasse no mudo.
A tempestade acima das nossas cabeças estava prestes a cair. A luz
amarela de dentro da casa dos Hunt parecia ser o único ponto de calor no
mundo, mas nem ela foi capaz de aquecer o coração daquela família
escondida no fundo do corredor.
Amália Hunt segurava Aidan e Adria junto de si. Em desespero, ela
encarava o marido, o policial e o carro onde eu estava como se o que era dito
não fizesse sentido. Adria olhava apenas para o pai, tentando fugir da mãe
enquanto os policiais o encaminhavam para o outro carro.
Mas foi Aidan, o irmão mais velho da minha melhor amiga, que me
assustou. Ele não tirava os olhos dos meus. Não havia nada no seu rosto. Não
havia raiva, tristeza ou questionamento.
Não havia nada lá.
E eu tinha certeza de que, no dia que tivesse algo, eu não queria estar
perto para descobrir o que era.
s e i s a n o s d e p o i s
 
Adultos não sabem o que estão fazendo da vida.
Eles só estão lá existindo, tentando tomar decisões que façam as
pessoas em volta acreditarem que eles têm controle de tudo, que estão
seguros com as decisões que tomam, das mais simples às mais arriscadas.
Adultos vivem um eterno jogo de cobrir a cabeça e descobrir os pés.
Eles só não admitem isso para o resto do mundo.
Como eu não fazia naquele momento.
Quem me visse sentada na primeira poltrona do ônibus que partiu
daquela manhã da Virgínia, com meu moletom verde-água e fones de ouvido
brancos, olhando pela janela o efeito do outono que começava a se debruçar
pelas árvores que ladeavam a estrada, jamais imaginaria que tudo o que eu
queria era me encolher, me esconder, ou só sumir.
Queria ser a porra da mosca invisível na parede.
Queria conseguir fazer meu coração bater mais devagar, ou ter controle
sobre o tremor no meu peito, ou na ansiedade que me fazia bater os dentes a
cada pedaço de faixa pintada na estrada.
Era minha forma anormal de distrair a mente.
Era minha tentativa falha de acreditar que voltar para Detroit, depois
de tudo, era uma boa ideia.
— O passado ficou para trás — insisti naquela mentira. — Afrodite
Grayson não existe mais.
Agora eu era Harper Wilde.
Era a estudante de psicologia que havia conseguido uma bolsa na
melhor faculdade de Detroit, órfã, esforçada e esperançosa.
Nada parecida com Afrodite Grayson.
Quis rir quando a voz do ser que eu fingia não coexistir dentro de mim
gargalhou.
Era uma risada alta, fria, maléfica.
Tem certeza de que ainda não é a doce Afrodite? Tem certeza de que
não está indo embora da porra da cidade só porque vão descobrir seu
segredo sujo? — a provocação daquele demônio me fez estremecer.
Neguei com a cabeça.
Tsc. Tsc. Tsc — ele parecia lamentar. — Acha mesmo que ir para a
cidade onde tudo aconteceu como uma pessoa nova vai ajudar você a
superar? A se curar? — O riso na voz daquela podridão agarrada ao meu ser
me enojou.
Ele deu mais uma risada alta, zombando de mim.
Você é doente, Afrodite.
Você é suja.
Você nunca vai se livrar disso.
— CALA A BOCA! — gritei, com o coração acelerado, me
desencostando do banco e a voz sumiu.
Em compensação, todos os olhares em volta focaram em mim.
Um grande adeus ao plano de ser invisível.
— Está tudo bem, querida? — a senhora ao meu lado perguntou,
parecendo um pouco assustada.
Engoli em seco a vergonha. Pousei a mão no peito e respirei fundo,
tirando os fones de ouvido, tentando esconder o rosto do resto das pessoas.
— Eu… — Minha voz era um murmúrio. — Foi só um pesadelo. Me
desculpe — pedi, já me encostando de novo contra a janela do ônibus, me
cobrindo e escondendo o rosto, fingindo que voltava a dormir.
O demônio estava errado.
Eu não voltava por libertação.
Eu voltava porque, depois de tanto tempo, entendia que não adiantava
fugir.
Ele tinha razão. Eu era doente, e suja, e podre. E se eu era tudo isso,
não importava a quantos quilômetros eu estivesse, nem qual era o nome no
meu novo documento.
Nada mudaria o fato de que eu era filha do meu pai.
Que eu era o que era, e fazia o que fazia.
Depois de tentar dormir por meia hora e não conseguir, abri o bolsinho
de fora da bolsa e coloquei um dos calmantes sob a língua. Ainda faltavam
seis horas de viagem, e eu não queria fazer o caminho de volta para casa
consciente.
Eu só queria chegar.
E, quem sabe, sobreviver.
 
 
 
Estava quase anoitecendo quando conferi o número do apartamento na
última mensagem trocada. Segurando minha mala junto ao corpo, apertei
com força o número sessenta e quatro e me abracei, olhando em volta.
A vizinhança não era a mais limpa, ou a mais segura, mas por algum
motivo esquisito da minha cabeça quebrada, aquilo não me assustava. Muito
pelo contrário. O arrepio que correu pela minha coluna quando vi ao longe
sombras escuras se movimentando tinha uma centena de motivos, mas medo
não era um deles.
— Quem é? — A pergunta feita pela voz do porteiro eletrônico me
trouxe de volta.
— Ah, olá. Sou Harper, aluguei um quarto… — Eu nem terminei
minha pequena apresentação.
— Caramba, tinha me esquecido de você! — a voz feminina gritou
alarmada do outro lado. — Espere um pouco, já estou descendo.
Ouvi a batida seca do interfone na base e suspirei aliviada.
Meu quarto novo não era uma pegadinha do craigslist.
Encarei a fachada do prédio, achando a parede cinza e a porta pesada
de ferro escuro e vidro texturizado condizentes com o lugar. Era o que eu
aguentava pagar, e melhor, era longe da parte da cidade onde eu havia
crescido. Ali, com toda a certeza, eu estaria bem longe de todos que um dia
conheceram a antiga eu.
Ajeitei minha postura quando notei que alguém se aproximava vindo lá
de dentro, e segurei o fôlego, ouvindo o trinco barulhento quando a pessoa
girou a chave.
A porta se abriu num solavanco seco, a garota de cabelos tingidos de
vermelhos e olhos grandes sorriu para mim, exibindo os dentes da frente mais
proeminentes.
— Harper? — Nem deu tempo de confirmar. — Olá, eu sou a Amanda.
— Olá. — Ergui a mão, num aceno fraco, enquanto ela me revistava
com os olhos.
— Você só trouxe isso?
Confirmei com a cabeça.
— Ah… — Dando um suspiro, ela colocou a cabeça para fora e olhou
para os dois lados. — Faz o seguinte, entra, vai subindo. A porta está aberta e
o Mark está na sala. Eu só vou pegar uma coisinha ali e já volto.
E pulando para a rua, me deixando sozinha em frente à porta aberta,
ela saiu olhando para os lados, como se não quisesse ser observada.Arregalei um pouco os olhos enquanto negava aquela pequena
apresentação caótica e segui para dentro, tendo a porta sendo batida nas
minhas costas com violência, fazendo aquele som ecoar escadas acima.
Encarei a escadaria que me aguardava. O chão de cimento, o cheiro de
umidade, o corrimão de ferro retorcido pintado de preto.
Não era convidativo, mas não tinha outra opção. Ajeitei a mochila nas
costas, ergui minha mala do chão e, pensando que eram seis andares para
cima, comecei minha saga.
 
 
Chegar ao quarto andar colocando os pulmões para fora me fez
perceber o quanto não era uma desvantagem a vida caber em uma mala de
vinte e três quilos e uma mochila grande. Parei, suada, olhando para baixo e
para cima, pensando que se tivesse mais alguma coisa lá embaixo para
buscar, talvez eu, cansada da viagem e louca por um banho, não teria
capacidade de reclamar, caso fosse roubada.
Quando minha respiração voltou a ficar minimamente controlada, tirei
a blusa de moletom, enrolei-a na cintura, e continuei escada acima sob luzes
amareladas, corredores silenciosos e um pequeno arrependimento de não
escolher um prédio com elevador.
Foi pensando nisso que encontrei a porta do sessenta e quatro
entreaberta, e um pouco aliviada, a empurrei com cuidado. A primeira coisa a
me atingir foi o cheiro enjoativo da maconha, depois a luz vinda da tv sem
som, e enxerguei um garoto de cabelos desgrenhados e barba por fazer, com
uma lata de cerveja na mão e um baseado apagado na outra.
— Amanda, você demorou… — ele disse quando viu a porta abrir,
mas parou um pouco confuso quando me encarou. — Você não é a Amanda.
— Não. — Neguei com a cabeça. — Meu nome é Harper — contei
aquela mentira por tanto tempo que ela era automática. — Aluguei o quarto
dos fundos. — Meu tom dócil o tirou da defensiva.
— Ah, é mesmo, ela falou que você ia subir… Bom — ele olhou em
volta —, é por ali, você precisa de ajuda?
Olhei pelo caminho que ele indicou com a mão.
— Não se preocupe, acho que consigo me virar. — Passei pelo portal
e, ignorando a vibe meio suja do lugar, segui pelo corredor.
No trajeto, enxerguei a cozinha, pensando que eu gastaria algumas
horas ali colocando as coisas no lugar, já que eu gostaria de comer em um
local limpo, e o banheiro que seria dividido, anotando mentalmente que eu
precisava comprar alguns litros de clorox no dia seguinte e carregá-los escada
acima.
Depois daquela visão, o banho do dia estava cancelado.
Eu só rezava que a porta do fundo do corredor fosse acolhedora o
bastante para mim, e quando eu a abri, a expectativa foi atendida com louvor.
A janela estava aberta, ar frio e corrente vinha dela.
O cheiro ali dentro era um pouco menos denso que no resto da casa, e
eu fechei a porta às minhas costas para que o fedor da erva ficasse do lado de
fora mesmo. O colchão parecia novo, o armário recém-pintado, e as paredes
também. Havia uma escrivaninha em um canto, um papelzinho com a senha
do wi-fi nela.
É aqui — pensei.
Os trezentos e vinte dólares que eu pagaria pelo aluguel do quarto
incluíam água e wi-fi. A luz seria dividida, e a alimentação era cada um por
si. Com isso definido, não me senti culpada por não querer conversar com
meus colegas de apartamento naquela hora.
Tudo o que consegui dar conta de fazer foi procurar meu lençol na
mala, forrar o novo travesseiro que me esperava e, depois de deixar só uma
brecha da janela aberta, apaguei a luz, deitei na cama e apaguei.
Amanhã era outro dia.
Hoje, naquele minuto, eu só precisava descansar.
 
Acordei cedo no dia seguinte. Tranquei meu quarto, dei uma olhada no
que faltava na geladeira, e depois de escovar os dentes e analisar a situação
caótica do banheiro um pouco melhor e ver que não era assustador como eu
imaginava, ainda que precisasse de uma limpeza pesada, caí na rua com a
mochila vazia nas costas para trazer as compras de volta.
Em duas horas na rua, conheci o quarteirão em volta do apartamento e
consegui o que precisava. Quando voltei para minha nova casa, enquanto
tirava o que havia comprado da mala, Amanda levantou.
Surgindo no corredor com uma camiseta de banda de rock maior que
seu corpo, as unhas dos pés pintadas de preto estavam descascadas como as
da mão, e ela parecia ter passado por uma noite difícil.
— Bom dia, vizinha. — Dando um meio-sorriso, ela abriu a geladeira,
pegou um frasco de iogurte e o abriu, levando direto para a boca, vindo sentar
na bancada de madeira clara. — Já foi fazer compras hoje?
— É… — respondi, observando um pouco desconfortável enquanto ela
fuçava no que eu havia trazido.
— Hm, você cozinha? — Ela largou o pacote de macarrão de lado,
desinteressada.
— Eu gosto, você não?
Amanda negou com a cabeça.
— Acabo comendo na faculdade, ou comprando algo no meio do
caminho. Minha parte da geladeira só tem comida de café da manhã e coisa
congelada. — Dando de ombros, Amanda virou um pouco mais de iogurte na
boca. — Ei — ela disse um pouco mais alto, me fazendo parar no trajeto para
a geladeira —, você também vai estudar na Detroit Mercy?
Dei um suspiro, e junto de um meio-sorriso, confirmei com a cabeça.
— Vou.
— Que ótimo! Você já conhece o lugar?
— Não — neguei, abrindo a geladeira e liberando uma prateleira dela
para mim. — O plano é ir lá hoje, no período da tarde, resolver sobre
matrícula e aulas. Depois vou procurar emprego em algum lugar no caminho
entre o campus e o apartamento.
— Você procura algo específico? Tem experiência com algo?
— Trabalhei como garçonete e também fiz limpeza por um tempo, mas
acho que aqui a rotina de servir mesas é melhor do que a de passar um dia
inteiro esfregando privadas — respondi, finalmente conseguindo colocar
minhas coisas na geladeira.
Eu me ergui, batendo uma mão na outra, e encarei Amanda sentada no
banquinho alto, apoiada no balcão, olhando através de mim, como se pensar
fosse um esforço muito grande para seu cérebro naquele momento.
— É, tem umas três cafeterias no caminho, e um restaurante bem
grande perto do campus. Acho que essas são suas melhores apostas. Eu só ia
te dizer para tomar cuidado com o horário que vai sair deles, a cidade não é a
mais segura da América, e nosso bairro não é referência em segurança. Uma
menina como você…
Virei rápido demais para ela.
— O que tem uma menina como eu?
Ela sorriu um pouco maldosa e se esticou para pegar um maço de
cigarros fechado no cantinho do balcão.
— Seu rosto grita que você é inocente, que é de fora. — Mal sabia ela.
— Eu vou me cuidar — insisti no tom firme e olhei em volta,
procurando uma saída. — Você se importa se eu der um jeito nesta cozinha?
— Nenhum. — Negando com a cabeça, Amanda deu a primeira
tragada. — Acho que, se você conseguir colocar esta casa em ordem, o
mínimo que posso fazer é te convidar para a festa de início de semestre.
— Festa? Eu não sou muito disso…
Amanda revirou os olhos com força.
— Ah, não me venha com essa caretice. Quantas vezes na vida você
vai ter… Quantos anos você tem mesmo?
— Dezenove.
— Então, quantas vezes na vida você vai ter dezenove anos?
— Uma? — Não era óbvio?
— Por isso mesmo, sexta, às dezenove, você vai estar pronta me
esperando na sala. Ok?
E sem me dar chance de responder que não, ela se levantou,
espreguiçou, e saiu na direção de seu quarto.
Respirei fundo e encarei a bagunça em volta.
Em uma semana, eu arranjaria uma boa desculpa para não ir àquela
merda de festa, ou simplesmente sumiria sem deixar rastro. Eu era boa
naquilo. E não pensando tanto no futuro, comecei a colocar a louça suja no
lava-louças, me preparando para encarar o fogão.
 
 
Duas da tarde. Conferi o celular três vezes enquanto esperava a mulher
da recepção ter boa vontade e me levantar para me atender.
Dei um suspiro pesado, olhei em volta, e bati de leve o celular na
bancada, chamando a atenção dela. Dava para ler Mary na placa em seu peito.
Mary devia ter perto de sessenta anos, e digitava em um computador antigo
como se caçasse milho no teclado.
Quando notouminha impaciência, respirou fundo, tirou os óculos
presos em cordinhas cheias de miçanga em volta do pescoço e me perguntou
com a voz mais imperativa que podia:
— Algum problema, mocinha?
— Eu, ah, é… — Nervosa por ter a mulher me encarando daquele jeito
como se eu estivesse errada em estar ali, respirei fundo, na tentativa de me
acalmar e recomecei: — Eu consegui uma bolsa, vim de outro Estado e
preciso ver se minha matrícula está ok e pegar o horário das aulas…
— Espere. — Ela deu uma última olhada no computador e então
perguntou: — Qual o seu nome?
— Harper. Harper Wilde — reforcei.
— Hm… — Ela levou alguns minutos com a cara fechada e meneou
com a cabeça algumas vezes. — Achei. — Arrastando a cadeira, Mary pegou
dois papéis plastificados e veio até mim. — Aqui estão as aulas disponíveis,
monte sua grade de acordo com o que precisa para o semestre e anote aqui.
— Pousando um bloco de papel em cima do balcão, ela se afastou.
Obedeci, o mais rápido que podia, observando que minha rotina seria
uma bagunça completa. Havia dias em que minhas aulas seriam metade pela
manhã e metade de tarde, outros em que seria só à tarde, e outros que só de
manhã. Achei aquilo um tormento, mas não discuti. Fiz uma cópia do que
havia decidido em outro papel e ergui a cabeça, procurando por Mary,
sinalizando que havia terminado minha obrigação.
Sem nenhuma simpatia, ela pegou minha agenda, levou ao computador
e avisou:
— Você receberá um e-mail amanhã confirmando seus horários.
Qualquer mudança será avisada assim também, então fique de olho.
— Ok… preciso fazer mais alguma coisa?
— Não. Pode ir embora. — O tom entediado dela não me dava vontade
alguma de ficar.
— Certo, obrigada. — Dando meia-volta, atravessei para o corredor de
piso quadriculado em preto e branco, com paredes revestidas em madeira,
pensando que meus próximos dias seriam de esforço para mudar tudo, mudar
minha vida, a mim, a minha cabeça fodida.
E o próximo passo era encontrar um emprego.
 
Atravessei a cidade universitária, me esquivei do máximo de pessoas, e
conforme o nervosismo começava a me abraçar, agarrei o relicário que
carregava no pescoço e brinquei com ele, arrastando-o contra a corrente de
um lado para o outro. Fiz aquilo até entrar no restaurante, e sem ter muito por
onde fugir, fui direto para o balcão.
A garota no caixa tinha unhas pintadas de rosa, o cabelo bem curtinho
e muitas sardas no rosto.
— Olá, querida. O que posso fazer por você hoje? — Ela me ofereceu
um sorriso enorme, o que não me deixou mais calma.
— Eu vim saber se vocês têm alguma vaga de emprego — falei
baixinho, mas a voz atrás de mim era forte e alta, e me pegando de surpresa,
girei rápido demais para encarar o senhor que contava dinheiro na mesa.
— E você tem alguma experiência?
Sustentando um olhar mais duro sob as sobrancelhas grossas e escuras,
eu chutava que aquele homem tinha perto de cinquenta anos. Os braços e
pernas eram finos comparados com o tronco. E a barriguinha redonda contra
a mesa me fez pensar que ele era do tipo que mandava e não fazia nada.
Engoli em seco o medo de levar um não na cara e tentei não gaguejar.
— Tenho. — Confirmei com a cabeça. — Trabalhei servindo mesas
por três anos, tenho referências e tudo o que o senhor precisar.
— Pegue leve com a menina, Phill — a menina atrás de mim falou
alto. — Jullie acabou de pedir as contas, você precisa de alguém que faça os
turnos loucos dela, não seja idiota.
— Mille, se meta no seu trabalho. — O tom de implicância deles
parecia mais íntimo. — Sente aqui, menina. — Ele indicou o lugar à sua
frente para mim. — Me fale sobre você.
Obedecendo, cobri as mãos com a manga da blusa e apoiei os
cotovelos sobre a mesa.
— Me chamo Harper Wilde, tenho dezenove anos, e começo a
faculdade na semana que vem. Vim da Virgínia, tenho boas referências lá e
posso te dar o telefone dos meus antigos chefes.
— Quais seus horários livres? — Ele separou mais um bolinho de
dinheiro, me encarando vez ou outra.
— Aqui… — Tirei do bolso a cópia do que tinha de matérias e mostrei
para Phill. — Acho que não vai ter nenhuma mudança, mas é isso. — Meu
tom era baixo, dócil, submisso.
— Hm… — Analisando o papel, ele começou a fazer contas internas,
vendo como me encaixaria. — Tenho uma vaga que pode te servir. O salário
de experiência é menor. Pago o mínimo por hora nos seus primeiros quinze
dias, se você ficar, dependendo do turno, conversamos sobre o aumento. As
meninas aqui sabem fazer as coisas acontecerem para ganhar gorjetas, se
você é boa nisso, vai pegar o jeito logo. Cuide da sua aparência, use o
uniforme e se mantenha sempre com o sorriso no rosto, isso vai ajudar. Você
é bonita, cliente querendo agradar não vai faltar. — Ele mal me olhava. —
Vai aceitar?
Demorou um longo segundo para eu entender que ele me oferecia a
vaga.
Parecia um golpe de sorte.
Respirei fundo, juntei as mãos entre as coxas, e um pouco mais feliz,
fiz que sim com a cabeça.
— Quando posso começar?
— Volte aqui amanhã cedo, às sete… — E, de repente, ele gritou: —
Mille, apresente a novata para o pessoal da cozinha.
A garota de cabelos curtos veio sorrindo, tocando no meu ombro
enquanto eu me levantava ao entender que a conversa com o chefe tinha
acabado.
— Vamos lá, bem-vinda à casa — Mille soprou cantando no meu
ouvido e me direcionou para dentro do balcão.
 
 
Estou em casa.
Foi esse pensamento que me atingiu, claro, sem meias-palavras, como
um soco no estômago.
Está mesmo? — A resposta veio do intruso vivendo dentro da minha
mente.
— Não é sobre a casa — me justifiquei, mesmo sabendo que ele não
merecia. — É sobre a cidade.
E eu sabia que aquele sentimento tinha tomado conta de mim depois da
chuva forte começar de madrugada. O tempo no Michigan era sempre
inclinado para o frio e, graças aos deuses, a umidade nunca era baixa, mesmo
quando o inverno tomava conta, ou o calor do verão vinha para castigar. Eu
sentia falta daquilo, daquela sensação diferente no ar, que enchia os pulmões
de algo que em nenhum outro canto que pisei conseguiu me dar.
Você sente falta da cidade porque sabe que aqui é fácil de caçar, sua
putinha safada. Está se iludindo como uma adolescente sonhadora por quê?
Engoli em seco, me livrando das cobertas e encarando o teto.
— Odeio você — falei baixo, sentindo a garganta arranhar.
Ah, aí está uma verdade. Você me odeia, odeia muito, até porque, eu
sou você. — E ele gargalhou, não me dando opção a não ser levantar, já que
se eu ficasse mais tempo na cama, corria o risco de acabar concordando com
o demônio que vivia dentro da minha cabeça.
Entrei no chuveiro antes das seis e meia. Saí perto das sete. Merecia
um banho longo. Precisava de um banho longo.
Sem muita alternativa, liguei o secador no meu quarto de porta
fechada, e enquanto alinhava os cachos loiros que desciam até o meio da
cintura, ouvi o abrir e fechar de portas do lado de fora.
Eu tinha acordado a casa toda? Merda.
Ótima primeira semana, querida… — A voz diabólica soou na minha
mente fazendo aquela velha sensação de sempre ser um incômodo ressurgir
em meus ombros como uma velha conhecida.
Era tudo o que eu não precisava naquele recomeço.
Minha desculpa e desejo de boas-vindas foi traduzida em uma pilha de
panquecas e café fresco que deixei depois de tomar minha parte. Quando
desci as milhares de escadas do prédio cinzento e triste para cair na rua, sabia
que meus companheiros de casa estavam agradecendo por eu ter aparecido e
não me odiando por acordá-los por precisar secar o cabelo.
Assim que abri a porta para a rua, a rajada de vento bagunçou meus
cabelos e abaixou meu capuz azul-acinzentado. A brisa com cheiro de chuva
e fumaça queimou meu nariz e, olhando em volta, vi que estava certa.
Fossem pelos meus motivos, fossem pelos motivos dele, eu estava em casa.
 
 
O vestido vermelho de gola alta e decote em V agarrava minha cintura
e me incomodava um pouco nas coxas. Se eu não tomasse cuidado ao
abaixar, poderia mostrarmais do que gostaria.
O avental quadriculado em amarelo e branco era um pouco ridículo e
eu fui obrigada a prender meu cabelo em um rabo de cavalo alto.
— Adorei seus brincos — Rose, a garota que dividiria o turno comigo
pelo que vi anotado no quadro do vestiário, disse para chamar minha atenção.
— Eles vão amar. — Ela indicou o lado de fora da porta enquanto forçava o
pé para dentro de botas de couro vermelho.
— Obrigada… — falei baixo, parando em frente ao espelho na parede,
fingindo retocar meu batom para observá-la melhor. Sua maquiagem era
muito pesada para o horário da manhã, e a forma como ela se comportava, os
sinais que seu corpo emitia… havia algum segredo muito mal escondido ali,
mas quem era eu para julgar?
Exatamente, sua depravada de merda. Quem é você para pensar mal
de sua nova colega? Pelo menos, ela deve cobrar para fazer o que faz, já
você? — A risada que ele deu arrepiou meus braços, meu ventre, minha
alma.
Engoli em seco, já que ele tinha razão, eu era pior, muito pior que
Rose, e me virei na direção dela, ajeitando o vestido.
— Acha que estou bem? — Encarei meus sapatos, os tênis brancos
pareciam inocentes demais perto das botas de couro de Rose.
— Está ótima. Parece que você acabou de sair de um comercial de
alvejante, com esses dentes brancos e batom vermelho. Se essa sua vibe
garota do campo inocente der certo e suas gorjetas forem maiores que as
minhas, amanhã vou matar você e me vestir com sua pele.
Ela riu.
Eu abri um sorriso sem dentes.
Aquele poderia ganhar a lista de top 5 elogios mais estranhos que eu já
havia recebido.
 
Passei pela cozinha dando bom dia ao pessoal, notei a cara de alívio da
menina do turno anterior quando me viu chegando para rendê-la e, depois de
ela me explicar o que cada mesa tinha pedido e o que faltava, me beijou
ambos os lados do rosto como se eu fosse uma velha amiga e foi para o
vestiário.
Conhecendo bem a rotina de um restaurante cheio, olhei primeiro para
as mesas com clientes de prato vazio e passei em cada uma delas, me
apresentando com o bloco de anotações na mão. Conferi se cada cliente da
minha estação estava satisfeito, trouxe os pratos que o pessoal do balcão
gritou ser da minha área, limpei as mesas vazias e enchi os copos de café até
a jarra estar vazia e eu precisar colocar mais para passar.
Era uma dança a qual eu sabia dançar.
Era confortável estar no papel que eu sabia desempenhar bem.
E eu o fiz até que ele entrou.
Eu soube que era ele, porque além de ele olhar tempo demais para mim
antes de escolher o lugar onde sentar, o diabo dentro de mim riu.
Era o riso mais alegre e doloroso que ele podia dar.
E daquela vez, quando fui pegar o cardápio para levar até ele, minhas
mãos tremeram.
Controle-se — exigi de mim, mas o que fiz foi tropeçar nos próprios
pés chegando bem à mesa dele.
Todos pararam o que faziam.
— Ei, menina, você está bem? — A mão áspera e forte pegou em meu
braço e eu senti todo o corpo gelar.
— Eu… droga. — Fechei os olhos, envergonhada, me colocando de pé
e alisando minhas roupas. — Estou. Desculpa. — Respirei fundo, evitando
olhar em seus olhos, evitando ver seu rosto, e olhando para o meu bloquinho
como se fosse o único ponto para encarar, já que o cliente tinha o menu nas
mãos, perguntei, gaguejando um pouco: — O-o que o senhor vai querer hoje?
— Saiu baixa, sussurrada, a minha pergunta e me senti encolher ainda mais
quando ele ergueu o rosto para mim.
Seus olhos não estavam procurando a garçonete.
Aquele homem estava pouco se fodendo se eu o serviria uma xícara de
café ou um balde de merda.
Seus olhos estavam nas minhas coxas, nos meus quadris, na minha
cintura, nos meus seios grandes e pesados. No meu rosto de olhos claros,
nariz pontudinho, nas bochechas coradas e nos lábios cheios pintados de
batom vermelho.
Eu o vi lamber os lábios pela visão periférica.
Tudo em mim aqueceu.
— Para começar, quero café e… pode me dizer o que é isso?
Precisei afastar o bloco de anotação do rosto e vê-lo.
O homem à minha frente tinha por volta de trinta e cinco anos, cabelos
castanhos, barba por fazer, nariz largo e olhos escuros profundos, com
olheiras leves embaixo deles. Não era o tipo de homem que pararia o trânsito.
Não era feio. Com sua camisa xadrez e cheiro de madeira, provavelmente
trabalhava com carpintaria, e com a aliança grossa em seu dedo na mão que
apontava algo no menu, eu chutava que ele tinha três filhos que nunca
sonhariam que o pai estava prestes a fazer o que faria comigo. Engoli em
seco quando percebi o que precisaria fazer, e o fiz.
Aproximei-me um pouco mais dele e curvando o corpo ao seu lado,
sentindo seu braço parado na mesa roçando no meu seio, li a opção onde o
dedo dele ficava ao lado.
— Isso é nosso combinado mais pedido da casa. — Me afastei,
encolhendo os braços, me escondendo de novo atrás do bloquinho. — São
torradas, ovos, bacon e um bolinho de canela.
— Certo, então vou querer um desses. Qual o seu nome? — O modo
como ele perguntou e me encarou me fez engolir seco antes de encará-lo.
— Harper — soprei meu nome, ansiosa e excitada por dizê-lo.
— Harper — ele repetiu. — Nome bonito. — Sorrindo para mim, me
senti na obrigação de devolver o sorriso.
— Em um minuto, já volto com seu café.
Quando dei as costas a ele, senti seus olhos queimando em minha nuca,
em meu traseiro.
É ele. Definitivamente, é ele. — O diabo bateu no meu ombro,
parecendo empolgado.
Queria repreendê-lo. Queria mandá-lo embora, mas a verdade era que
estava começando a ficar tão ansiosa quanto ele.
 
Três dias de emprego novo.
Três dias ganhando uma quantidade estúpida de gorjeta enquanto
sorrio gentilmente para os clientes que se sentam na minha estação. Três dias
em que uma onda de pequenos choques acompanha lugares muito
particulares do meu corpo a cada vez que o homem que descobri se chamar
Roy aparece para comer.
Mais cedo, eu o vi entrar em uma caminhonete escura do outro lado da
rua, e agora que saía do trabalho, ao colocar os pés na rua em uma noite
pouco movimentada, com vento de chuva varrendo as calçadas, vi a
caminhonete estacionada no mesmo lugar.
Não havia ninguém dentro dela, e se o motorista não estava no
restaurante, ele só podia estar me seguindo.
Que fácil! — o demônio na minha mente comemorou. — Solte os
cabelos. — Era o conselho mais amoroso que ele podia dar. Sempre era
assim quando ele estava prestes a ganhar algo.
Eu obedeci, e um pouco atrapalhada, conferindo meus bolsos para não
perder a chave do apartamento, caso algo acontecesse, virei a esquina e
esperei.
Sabia jogar aquele jogo, mas nunca ficava menos interessante. Nunca
ficava menos excitante. Na verdade, toda vez era como a primeira, e sempre
que a possibilidade de ter o que eu precisava aparecia, era como se fogos de
artifício fossem acesos dentro do meu estômago.
Nunca borboletas. Só fogo, luzes. Bonito, efêmero, dolorido.
Meus passos eram lentos, me fingi de distraída, mas só o fiz porque
precisava ter certeza de que Roy continuava atrás de mim.
A confirmação veio quando passei em uma fachada espelhada e vi que
lá do outro lado da rua, em um casaco pesado, boné e uma tentativa horrenda
de ser discreto falando ao telefone e tapar o rosto, ele me acompanhava.
Meu coração acelerou. A sensação de alerta, de perigo, fez meu sangue
pulsar.
Ele vem aí… — a voz diabólica cantou nos meus ouvidos.
Acelerei um pouco o passo. Não é porque gostava que não me
assustava. A diferença, no final das contas, era que eu gostava do que sentia,
gostava do que a caminhada enérgica provocava quando minhas coxas
grossas roçavam uma na outra.
Porra, se eu continuasse daquela forma, era capaz de ter um orgasmo
só por causa daquela fricção antes de chegar ao próximo quarteirão.
Tentei controlar minha respiração, inspirando pelo nariz e expirando
pela boca. Aquilo não melhorou a sensação no meu estômago, na minha pele,
nos meus braços e pernas. Era como se houvesse uma placa de gelo se
formando entre a pele ea carne. E a carne começava a ferver.
Meu Deus, eu posso quase sentir o gosto… — As imagens que
invadiram minha mente vieram acompanhadas de riso. — Estamos famintos,
Afrodite. Estamos sedentos por amor, amor bruto, doentio e sujo — a voz
melodiosa continuou. — Como acha que ele fará? Aposto que ele não vai
olhar em seu rosto, que vai te enfiar contra a parede e te foder por trás. Será
medo de você vê-lo e não poder mais servir café roçando os peitos em seu
ombro?
Mordi meu lábio com força, quase ansiosa demais, me segurando para
não olhar para trás, tentando conferir se ele ainda estava lá em qualquer
brecha de reflexo que encontrava.
A verdade era que eu, depois de ter o que precisava, nunca me
lembrava deles. Ele estava preocupado que eu visse seu rosto? Foda-se seu
rosto, depois de tudo, ele não passaria de um borrão. Uma alma errante. Um
desgraçado que encontrou alguém pior que ele no meio do caminho.
Meu coração batia forte. Havia suor se acumulando na minha testa,
mesmo com a ventania castigando, anunciando a chuva que viria naquela
noite. E eu, propositalmente, diminuí meu passo ao passar em todo beco
escuro, desesperada para que Roy tomasse uma atitude logo.
Ele é devagar. Será que já fez isso antes? Acho que teremos que
ensiná-lo. Mais dois quarteirões e estaremos em casa. Você não quer chegar
cedo em casa hoje, não é mesmo?
Não, eu não queria.
Então pare no próximo beco. Derrube o celular no chão, fale sozinha
em voz alta, fique parada fingindo que algo está errado. Ele vai pegá-la pelo
cabelo e tapar sua boca. Finja se esforçar muito para fugir, não deixe ele
saber que você gosta…
Balancei a cabeça, calando aquela maldita voz.
Eu não precisava de instruções, eu sabia exatamente o que precisava
fazer, e quando cheguei ao primeiro beco escuro, bem em frente, deixei meu
celular cair.
Meu coração martelou nas orelhas.
Meu corpo era uma divisão de gelo e fogo alucinante.
Eu podia sentir o ar em volta, mesmo com todo aquele vento, mesmo
com a cidade vibrando, e sabia que ele estava vindo.
Fingi estar chateada, xingando o celular enquanto sabia que embaixo
de mim, se eu não estivesse usando calcinha, haveria uma poça, tamanha
minha excitação.
Eu torcia para que ele viesse. Eu precisava desesperadamente que ele
viesse. E no segundo em que o senti trocando de calçada, pronto para chegar
até mim, ouvi a voz feminina de Amanda da esquina em frente.
— EI, HARPER? Porra, Harper, o que você tá fazendo parada aí… —
O que Amanda disse se tornou um borrão nos meus ouvidos.
Roy passou por mim, me ignorando completamente.
Comecei a tremer. Minha mão foi involuntariamente para o colar no
meu pescoço e meus olhos se encheram d’água.
Eu tinha raiva de Amanda naquele minuto. Um ódio tão preciso e
denso que, se não houvesse o mínimo controle, eu teria ido até ela e socado
sua cara. Mas não. Não fui. Não fiz.
Eu respirei fundo, coloquei o celular no bolso e passei a mão pelo
rosto, limpando as lágrimas discretamente.
— Meu celular caiu no chão. — Recuperei minha voz e andei na
direção dela. — Parei para conferir se estava tudo bem.
— É, mas não é legal ficar por aqui assim. Não é seguro, ainda mais
para você que não é daqui… — Mal sabia ela.
— Certo…
E enquanto ela contava suas aventuras pelo bairro perigoso, lidei com
o demônio em minha cabeça gritando e se debatendo dentro de mim enquanto
fingia ser a garota calma, doce e perfeita que tanto gostavam.
 
O gosto amargo na minha língua desceu pela minha garganta conforme
subia os degraus ao lado de Amanda. O demônio dentro da minha cabeça
mostrava cenas do que queria fazer com ela. Ora sua cabeça era estourada
contra a parede. Ora eu me via jogando seu corpo miúdo pelo guarda-corpo
da escada, assistindo-a cair lá embaixo, ouvindo seu grito ecoar pelas
escadas.
Aquela não era eu. Eu não faria isso.
Mas se deixasse que ele tomasse conta… não podia garantir nada.
Respirei fundo, mordi a ponta da língua e tentei voltar à realidade.
Minha mão ainda estava no antigo relicário, passando-o de um lado
para o outro na corrente presa ao meu pescoço.
— Harper? Harper, você ouviu alguma coisa do que eu disse? — Ela
parecia um pouco irritada, mas seu sorriso amarelo me dizia que Amanda se
esforçaria para ser gentil comigo.
— O quê? Ah, me desculpe. — Pousei uma das mãos na testa em
frente à porta do nosso apartamento e enquanto ela a abria, respirei fundo. —
Acho que estou cansada demais.
— Seu turno foi muito difícil? Trabalhar nessas escalas malucas não
deve ser fácil.
— Eu até gosto, já me acostumei, mas o ritmo é diferente. Eu morava
em uma cidade menor, aqui é o tempo todo barulhento, gente de todo lado, é
um pouco assustador… — Minha voz dócil de garota do interior deslumbrada
a ganhou.
— Bom — ela fechou a porta assim que passei e foi seguindo para a
cozinha, eu a acompanhei —, estava te falando sobre como o bairro é
perigoso. A garota do quarto andar tomou uma facada e precisou ficar
internada um tempo, em uma tentativa de estupro, então, por favor, tenha
cuidado.
— Eu terei. — Meu tom de voz firme a fez acreditar nisso.
— Não é bizarro que a gente fique mais feliz por ela ter tomado uma
facada do que ter sido violada? Meu Deus, eu realmente me pergunto em que
mundo a gente vai parar… — Interrompendo seu pensamento, ela abriu seu
suco de laranja e virou no gargalo em frente à geladeira aberta.
Eu me aninhei com os cotovelos apoiados no balcão, observando-a.
— É uma merda que ela tenha passado por isso, nós estamos
vulneráveis o tempo todo…
— Por que acha que esses depravados fazem isso? Só por sexo? Não
pode ser. Se fosse, uma prostituta poderia resolver, ou as esposas, porque eu
tenho certeza de que parte desses monstros são casados.
Muito bem-casados, às vezes, nós sabemos, não é mesmo, Afrodite?
Ignorei aquela voz.
— Sinceramente? Eu nunca vou conseguir entender a fundo. — Não
era mentira. — Mas acho que é pelo poder. Li alguma coisa no jornal que um
homem foi forçado à castração química, mas continuou violando mulheres
com cabos de vassoura e qualquer outra coisa que pudesse ser introduzida,
bem, você sabe onde…
— Porcos nojentos — Amanda xingou.
— Imundos — reforcei, não discordando dela.
Era imoral, nojento, sujo. Era o pior ato que um ser podia cometer com
outro. Mas era a única coisa capaz de me colocar em um estado no qual eu
era viciada. Era a única coisa que fazia o demônio na minha cabeça calar a
boca por um tempo. Era a única coisa que o saciava o suficiente por algumas
semanas, ou dias, e então ele voltava querendo mais.
— Você veio a pé do trabalho hoje? — Amanda perguntou, se
curvando para fuçar o fundo da geladeira, procurando seu jantar.
— Vim, sim. — Não justifiquei o motivo.
— São muitas quadras, está tentando perder peso ou algo do tipo? — O
olhar recriminador dela caiu sobre mim por meio segundo. — Se for, pelo
amor de Deus, seu corpo é lindo. Eu daria tudo pelas suas curvas e…
— Não, nada de problemas com meu corpo — cortei logo. — Eu só
gosto de andar, mesmo.
— Ah, sendo assim, se quiser companhia para voltar, às quartas eu
tenho aula de debate e sempre vai até mais tarde, podemos voltar juntas.
— É que não sei o horário que vou sair nas próximas vezes, mas se for
próximo ao seu, acho que podemos. — Tentei ser gentil e espantar qualquer
pensamento negativo que ela pudesse ter de mim. — Já pegou o que
precisava para o seu jantar? — perguntei, vendo-a com um pote nas mãos.
— É salada de batata e frango, você quer? — Ela me ofereceu o pote.
— Não, obrigada. — Passei por ela, pegando as coisas na minha
prateleira da geladeira. — Vou cozinhar algo rápido e dormir, amanhã tenho
o dia cheio, trabalho, faculdade começando…
— E você já está sabendo da festa que vai ter?
Parei, erguendo a cabeça para ela, negando.
— Festa? Não. Ainda não tenho amigos aqui, então ninguém me
avisou de nada.
Amanda revirou os olhos no primeiro segundo ao me ouvir dizer que
não tinha amigos.
— Garota, fala sério… — Com asmãos na cintura, ela suspirou de
modo mais dramático e apontou na minha direção. — Sexta terá festa em
uma fraternidade do campus. A mais famosa, cheia de letras do alfabeto
grego.
— Credo. — Meu comentário a fez rir, e eu o fiz com um sorriso no
rosto também.
— E você vai comigo. Vou te apresentar todo mundo, talvez seja um
pouco demais para você, já que eu percebi que você não curte muito coisas
que façam fumaça… na verdade, preciso perguntar, você já foi a alguma festa
assim?
— Sinceramente? — Me virei para o fogão, pronta para fritar meu
frango. — Não. — Mentira.
O diabo riu, orgulhoso de mim.
— Então, prepare-se. Que horas você sai do trabalho, na sexta?
— Acho que perto das oito da noite, por quê?
— Porque vou te esperar aqui. — Ela parecia muito animada enquanto
engolia um pedaço grande de batata quase sem mastigar. — Vou escolher sua
roupa, sua maquiagem, arrumar seu cabelo e você vai comigo nessa festa.
Pretendo te dar seu primeiro porre, se puder, compre algo para ressaca
amanhã.
Eu ri, negando com a cabeça.
— Não sei se eu…
— Você tem dezenove anos, é gente boa, bonita, e de fora. Pense nisso
como meu presente de boas-vindas para você. — Ela parecia animada.
— Ok, eu vou…
— Certo. — E cheirando sua axila, Amanda encarou o pote de comida
fria que havia devorado e completou: — Agora eu vou para o banho. Preciso
mesmo de um.
Sem se despedir, me deixou para trás.
Com calma, eu cozinhei meu macarrão, piquei o frango em tirinhas,
coloquei no prato e comi em paz, enquanto ouvia risos vindo do quarto de
Mark e a água do chuveiro rolando. Quando Amanda terminou o banho, antes
de ela sair do chuveiro, fui rápida em colocar a louça suja no lava-louças,
incluindo o pote vermelho que ela largou em cima do balcão, e voei para o
meu quarto.
Não queria papo, não queria segurar aquela máscara por mais tempo.
Tudo o que fiz foi escorregar para o chão do quarto, apoiar a cabeça
nos joelhos, e naquele escuro total, enquanto meu demônio se erguia do nada
para me açoitar, eu chorei.
Fraca.
Suja.
Podre.
Eu não queria ser, mas não tinha mais poder de escolha.
 
 
Quinta, Roy não apareceu.
Meu dia foi uma merda.
Sexta, eu estava tentando superar que talvez ele não viesse mais, que
tivesse vergonha de si, do que pensou em fazer, e tentasse me evitar.
Ele é a porra de um covarde. Vamos encontrar outro — a voz
insistente na minha cabeça pediu. E eu estava quase convencida a deixar para
lá quando, enquanto eu servia café a uma senhorinha e sua neta, tentando ser
o mais gentil possível para que a gorjeta fosse boa, ouvi a voz que aprendi a
reconhecer no salão.
Não me virei e tentei não demonstrar nenhuma emoção enquanto ia
para o balcão grande conferir os pratos que a cozinha mandava. Quando me
virei para o salão de novo, lá estava ele, sentado na minha estação.
Segurei o sorriso que queria dar.
Senti o estômago queimar, a pele arrepiar.
Eu me mantive no papel de garçonete prestativa e carinhosa.
Passei pelas mesas que precisava, e depois da minha bandeja esvaziar,
me aproximei dele. Roy cheirava à colônia masculina barata. Tinha ajeitado
os cabelos com algum gel e largado o chapéu na mesa, com uma das mãos
sobre a peça, ele me encarava.
Parei bem em frente a ele e sorri.
— Como vai, Harper? — ele perguntou.
— Bem, Roy. E você?
— Estou faminto.
Abrindo um sorriso ainda maior, peguei meu bloco de anotações e a
caneta, prendendo a bandeja embaixo do braço.
— E o que vai querer? — Esperei ansiosa, encarando-o, olho no olho.
Eu me senti audaciosa.
Ele ficou naquele transe, me encarando, por um longo segundo em
silêncio, então suspirou e disse:
— Me dê o que você tem de melhor.
Feliz pelo desafio, anotei o pedido que sabia que o agradaria e lhe dei
as costas, sabendo dos olhares que ganhava dele, sabendo que aquilo era só o
começo.
Não demorou muito, mas fingi estar mais ocupada do que realmente
estava, conferindo as mesas que eram minha obrigação, e depois de servir um
pedaço de torta de abóbora para a avó e a netinha, voltei ao balcão para o
prato de Roy.
Precisei encarar o chão enquanto caminhava na direção de servi-lo, e
quando coloquei o prato na sua frente, ele abriu um sorriso tão quente, tão
confortável, que meu coração pareceu tropeçar.
Ouvi uma risada cruel. Uma que mais ninguém ouviu.
— Você é perfeita, Harper. Como adivinhou que eu tinha fome?
— Conheço bem meus clientes. — Dei de ombros, um pouquinho
convencida, sorrindo para ele.
— E como vai a faculdade? — Parei, encarando-o um pouco incerta,
franzindo o cenho. Nunca havia falado sobre a faculdade com ele. — Ouvi
você conversando com aquela baixinha um dia desses. Está gostando?
— Ah, está começando, então não tenho muito para dizer ainda…
Conte a ele da festa. Diga onde vai estar — a voz dentro da minha
cabeça ordenou e, obediente, eu o fiz.
— Hoje tenho minha primeira festa, essas coisas de fraternidade e tudo
mais, sabe? Não sei muito bem como vai ser, mas vou.
— Sério? Espero que você se divirta.
— É, vai ser no bairro vizinho, onde tem aquelas casas maiores. Nunca
fui para aqueles lados, mas vou com minha colega de apartamento, mesmo
que acredite que volte sozinha para casa. Ela é descolada, legal, e é daqui,
então conhece muito mais gente do que eu. — Tentei parecer encantada com
a oportunidade que a cidade grande me dava.
— Você vai gostar, e vai se divertir. Só tome cuidado, não ande
sozinha, a cidade não é tão segura…
— É, eu sei. Prometo que vou me cuidar.
Logo fui chamada por outra mesa, depois por outra, e quando dei por
mim, Roy já tinha limpado seu prato e deixado cem pratas na mesa.
Era minha maior gorjeta, até então, e eu sabia que era um pagamento,
um pedido de desculpas antecipado, pelo que ele faria comigo mais tarde.
 
Girei a chave na porta, ouvindo o som de risos. Dentro do apartamento,
havia uma pequena confusão no sofá. Meninas se maquiando, rindo e
conversando, envoltas em fumaça de cigarro e maconha.
Amanda estava ganhando pequenas tranças no cabelo vermelho
enquanto uma loira maquiava seu rosto.
Parei, observando aquela cena, um pouco incerta do que fazer, até os
olhos da minha roommate baterem em mim.
Seu sorriso cresceu quase como o de um predador e ela gritou meu
nome, animada:
— Harper! — Suas outras duas companheiras me encararam, curiosas.
— Essa é Alice — ela indicou a menina de cabelos curtos e loiros que a
maquiava — e essa é Jordan — apontou para a morena com mechas laranjas
que trançava seu cabelo —, elas vão me ajudar com você hoje.
Bati a porta às minhas costas, ergui a mão, meio incerta, e agitei os
dedos em um cumprimento tímido.
— Oi… — Minha voz quase falhou.
— Você chegou um pouco mais cedo do que planejamos, mas é
melhor assim. — Amanda deu de ombros. — Por que você não vai
adiantando seu banho? Vamos terminar com Jordan e aí, seremos todas suas.
— Pode ser. — Me sentindo sob pressão de uma maneira meio
desconfortável, coloquei minha chave no aparador e caminhei na direção do
meu quarto, completamente arrependida por aquelas duas estranhas estarem
tão próximas sem eu ter escolha.
 
Tomei banho, lavei os cabelos e os sequei. Enrolada na toalha,
coloquei a cabeça no corredor e pedi orientação para roupa. As meninas riram
e a tal Alice brotou na porta do banheiro com uma sacola.
— Acho que é do seu tamanho.
— Obrigada… — Tentei corresponder seu sorriso, mas logo fechei a
porta e senti a pontada da ansiedade me pegando pelo pescoço.
Revirei a sacola, achando um vestido curto, de veludo preto-azulado, e
meia-calça. Sem muita expectativa, vesti as peças e quando olhei no espelho
de corpo inteiro atrás da porta, meu coração acelerou.
Eu gosto disso. Gosto muito. — Quase tomei um susto com a voz
intrometida no meio dos meus pensamentos, mas não discuti com ele.
O vestido abraçava minha cintura, marcando-a ainda mais, desenhando
meu corpo, apertando um pouco demais meus seios no decote em V
profundo. As alças dele eram um pouco mais grossas, o que me fezagradecer
mentalmente, mas virando de costas, a visão da beiradinha da minha bunda
de fora quando me movi, fingindo dar um passo para frente, me fez querer
descartar o vestido.
Abri a porta para reclamar daquilo, mostrei para as meninas, mas fui
fortemente proibida de mudar de roupa.
Não queria que elas me odiassem, não queria ser um problema ou
excluída, então, quando me arrastaram para o sofá, sem me dar a chance de
fugir e mudar de roupa, vindo com pincéis sobre minha pele e todo o tipo de
maquiagem que um rosto pode sustentar, as garotas brincaram de boneca
comigo.
Quando terminamos, me senti sufocada e não era graças à fumaça.
Aproveitei que elas queriam terminar de se arrumar e corri para o meu
quarto, conferir o que tinha sido feito.
No reflexo do vidro da janela, conferi que meus olhos estavam
maquiados com sombra preta e várias camadas de rímel. Minha boca, como
no trabalho, gritava um vermelho-sangue envolto em gloss da moda com
cheiro de morango.
Meu cabelo estava solto, com trancinhas perdidas por ele, como o de
Amanda, e parecia que essa era a nova moda.
Desconfortável por saber que estava chamando atenção demais,
procurei uma jaqueta no guarda-roupa e a coloquei por cima do vestido.
Calcei minhas botas, coloquei o relicário no pescoço e, depois de dar duas
borrifadas do perfume que gostava, achando que talvez pudesse ter uma noite
comum de garota de faculdade, me encontrei com o pequeno bando agitado e
ansioso na sala e saí com elas.
 
 
O táxi parou em frente ao número 213 da avenida de rua larga cheia de
repúblicas estudantis. A casa onde íamos tinha o gramado cheio de gente
conversando, fumando, rindo e se beijando. Um grupinho animado brincava
com um galão de cerveja e dois caras com camiseta de time de futebol
seguravam um terceiro de ponta-cabeça, enquanto este parecia prestes a
vomitar, mas não parava de beber pela torcida em volta.
Desconfortável era pouco para definir como eu me sentia desde o
momento em que botei os pés em casa naquela noite. Eu devia ter recusado o
convite de Amanda. Aquela vida universitária não era para mim. Eu não era
normal. Eu não devia e não merecia me misturar com aquela gente, não era
justo com eles, não era bom para mim.
Seria catastrófico para todos.
— O que foi? — Amanda parou na minha frente quando viu que não
me movi. — Está assustada?
— Eu… — Não tive tempo de formular uma mentira decente, e
agradeci por ela não me deixar terminar a frase.
— Nunca foi em uma festa assim? — O sorriso dela era reconfortante.
Mal sabia Amanda pelos lugares que eu já tinha passado.
Suas mãos gentis vieram sobre minha jaqueta e ela empurrou o tecido
para fora dos meus ombros.
— O que está fazendo?
— Você é linda, está escondida todo esse tempo e eu acho que você
merece um bom início de semestre. Vamos considerar esse o seu batismo,
ok? — Tirando minha jaqueta, ela a amarrou na minha cintura e trouxe as
mãos para o meu rosto, acariciando minhas bochechas antes de se afastar. —
Só não transe com ninguém aqui hoje, porque garotos de faculdade
conseguem ser babacas com novatas como ninguém. Fique perto, beba, se
divirta. Só se tem dezenove uma vez na vida. Aproveite. — Seu sorriso largo
era convidativo e a mão esticada na minha direção também.
Então, mesmo sabendo que podia acabar mal, mesmo sabendo que eu
nunca pertenceria ao mundo das pessoas normais, mesmo sabendo que eu não
merecia que ela fosse tão boa comigo, eu aceitei sua mão.
 
Atravessamos o gramado, Amanda fez questão de me apresentar para
cada uma das pessoas que a cumprimentou. Rostos e nomes demais de uma
vez só. Se gravei três, foi muito no caminho até a porta.
Quando conseguimos passar pelo portal, a música alta me obrigou a
soltar a mão de Amanda e tapar os ouvidos.
A garota de cabelos tingidos de vermelho riu quando me viu daquele
jeito e segurou na manga da jaqueta para me guiar pelos corpos dançantes. Eu
mal consegui prestar atenção na casa com todas aquelas luzes piscantes e
barulho ensurdecedor. Isso até sairmos daquela sala quente e apertada. A
cozinha estava lotada também, mas o som que predominava ali era o de
conversas e risos.
Olhando em volta, tentando assimilar o ambiente, não recusei quando
Amanda colocou um copo de plástico com um líquido vermelho e cheiro
doce na minha mão e continuou me puxando até despontarmos no quintal
traseiro.
— Você parece um pouco assustada — Amanda comentou, achando
graça enquanto sacava um cigarro e o acendia.
— Não sei se foi uma boa ideia vir.
— Imagina. — Soprando a fumaça do cigarro para o lado contrário, ela
se voltou para mim, afastou meu cabelo do colo e deu uma puxadinha no meu
vestido para baixo. — Vou te apresentar todo mundo que precisa conhecer, e
isso vai facilitar e muito sua vida na faculdade, acredite.
— Sério? Não vejo como conhecer pessoas pode ajudar…
Amanda me interrompeu, rindo:
— Bobinha. Vamos lá — ela respirou fundo e encarou o gramado —,
ali estão os caras do time de futebol. Os do time de basquete e os da natação.
Em alguns anos, esses caras estarão jogando e você vai assistir da sua tv. Os
da natação, com certeza, irão para as Olimpíadas, acredite. Ali atrás, perto
daquela loira, está o pessoal de administração. Ali do lado, sentados naquela
rodinha, está vendo? É a nata, o pessoal da medicina, e sinceramente, pense
no network que você pode fazer. Todo mundo ali ou tem um bom contato de
emprego, ou família rica, ou qualquer coisa que, dentro e fora da faculdade,
pode te abrir portas.
— Entendi — respondi baixinho, dando um suspiro.
— Então, acredite, eu respeito muito o seu trabalho honesto, mas se
você não quer terminar com um diploma e emprego nenhum, é bom saber ser
amiga de quem pode te ajudar no futuro. — Dando mais uma tragada, ela
voltou a pegar minha mão e disse: — Se precisa um pouquinho de coragem,
dê um bom gole no seu copo agora. Vou te apresentar ao pessoal que importa
de verdade.
Sem opção, eu obedeci.
O suco misturado com vodca era doce e forte.
Minha garganta queimou. O estômago reclamou.
Eu dei três goles grandes. Foi o que deu tempo antes de Amanda voltar
a me puxar pelo deck e descer as escadas para o gramado.
 
Beber de estômago vazio nunca era uma boa ideia.
O tempo de atravessar o grande quintal traseiro foi o bastante para o
álcool bagunçar um pouco meu cérebro. Foi pior do que eu pensei quando
Amanda começou a me apresentar para pessoas que se aproximavam
fisicamente para me cumprimentar. Que moda era aquela?
Garotos e garotas, que nunca me notariam no mesmo corredor que
eles, pararam para me cumprimentar. Alguns me ofereceram maconha ou
alguma bebida diferente da minha, todos foram legais e perguntaram meu
nome, de onde eu vinha e o que estava cursando.
Sentindo a língua mais solta, não me senti tão mal de conversar com
eles.
Amanda me permitiu assimilar a primeira rodinha do pessoal do
futebol, e fez muita propaganda de um garoto chamado Luke. Ele sorriu para
mim o tempo todo, e o modo como me olhou não foi inocente, mas me retraí
um pouco, mesmo que houvesse o riso cruel no fundo da minha mente
sugerindo que aquele garoto poderia aliviar um pouco as coisas.
Arriscado demais — sussurrei para o demônio.
E daí? — ele respondeu de volta.
Tentei ignorá-lo, dei mais um gole na bebida.
 
Por quase uma hora, nós transitamos pelo quintal.
O copo na minha mão era trocado o tempo todo.
Amanda ria, eu ria de volta.
Ela me apresentava a alguém como amigo, eu o tratava como amigo.
A timidez foi ficando de lado.
Consegui conversar, rir, e num atrevimento momentâneo, corresponder
o olhar de flerte que Luke me lançava da roda vizinha.
— Ei, Amanda, não vai trazer sua amiga nova pra gente conhecer? —
Ouvi alguém chamar por cima das conversas paralelas e da música.
Virei o rosto na direção do chamado, junto da minha colega de
apartamento, e sorrindo genuinamente, segui atrás dela enquanto Amanda
parecia bem feliz de ser chamada para a rodinha mais querida e poderosa do
lugar.Foi então que aconteceu e eu me senti idiota de não ter percebido
aquela desgraça chegar.
O vento soprou, brincando com meu cabelo, arrepiando minha pele.
Era um alerta.
O ar ficou mais frio, as pessoas mais lentas e tudo em volta ficou no
volume zero, conforme minha visão se tornava mais clara.
Meu sorriso se desfez do rosto lentamente, como se cada segundo para
processar que aquela imagem era real custasse cada grama de felicidade que
já havia sentido na vida.
Amanda não parou de me puxar. Eu não tive forças para parar.
Como Caronte, pronta para me transportar pelo rio Estige, ela
continuou seguindo e eu o via cada vez mais nítido atrás dela, mais velho e
mais bonito do que nunca, sentado como um rei na poltrona azul-escuro,
vestindo uma jaqueta colegial branca com símbolos azuis, com sua lata de
cerveja na mão, os lábios curvados pouca coisa para cima, covinhas vincadas
nas bochechas, cabelos loiros meio bagunçados e olhos castanhos muito
interessados na minha direção, estava um dos rostos mais presentes nos meus
pesadelos. Um dos meus maiores carrascos. Uma das minhas vítimas mais
fatais.
Lá estava Aidan Hunt.
Porra — pensei. — Ele sabe quem eu sou. Ele sabe o que eu sou.
E ele vai te matar — o diabo alertou. — Fuja, criança tola.
E eu não precisei de um segundo aviso para soltar a mão de Amanda,
dar as costas a tudo, e sair correndo dali.
 
Podia ouvir Amanda chamando meu nome falso ao fundo.
Podia ouvir alguns risos, sentir a estranheza das pessoas, mas nada me
parou. Na verdade, aquela sensação ruim, aquele peso no peito, só me
repeliu.
As garras do meu demônio pessoal estavam em volta do meu pescoço,
do meu estômago, do meu coração. Minha cabeça girava, meu peito doía, a
garganta ardia. Não conseguiria segurar o choro por muito mais tempo, e
depois de atravessar a cozinha, foi um alívio soltar o gemido estrangulado e
feio no meio daquele som alto.
As lágrimas desceram queimando pela pele gelada.
Quentes como lava, intensas como um rio.
Era real. Era ele.
Era ele e tudo estava arruinado.
Assim que saí pela porta da sala, senti a mão no meu estômago se
apertar mais ainda. Me arrastei para fora dali, fingindo ser invisível, tentando
ser rápida e, finalmente, depois de me bater com corpos, da cabeça girar, de
ver flashes e mais flashes, minhas botas bateram contra o asfalto e a primeira
coisa que consegui fazer foi correr.
Três casas depois, eu mal tinha fôlego, e me agarrando a um arbusto,
todo o álcool do meu estômago veio para fora.
Tossindo, quase me engasgando por falta de ar, vomitei toda aquela
merda colorida no gramado de alguém que me odiaria no dia seguinte.
Limpei a boca no braço da jaqueta, passei a mão pelo rosto e tentei
soltar os braços, fechar os olhos e respirar fundo.
Todo meu corpo doía. O tremor que vinha lá de dentro da alma
começava a se espalhar. Cada órgão meu, cada mísera célula sabia que eu
estava em perigo.
Meu Deus, e se ele me reconheceu? E se contar para Adria? E se a
senhora Hunt vier atrás de mim? E se… — Não tive tempo de pensar em
mais nada.
Não tive nem mesmo tempo de gritar pelo susto.
A mão em volta da minha boca me puxou contra o corpo do meu
agressor. Minha cabeça bateu contra o peito dele e fui abraçada, imobilizada.
Tentei me debater, me esforcei para fazer algum barulho, mas isso só o
fez ser mais rápido.
Mentalmente, eu agradeci.
O medo que eu sentia antes, sobre os Hunt, era perigoso. Do tipo que
me travava. O que surgiu naquele tranco de adrenalina repentino era o que me
relaxava, o que me deixava respirar.
Meu coração tremeu.
Meu estômago começou a esquentar.
O demônio no fundo da minha mente lambeu os lábios.
Eu pensaria em Aidan depois.
Se precisasse, eu até iria embora da cidade, mas antes ganharia meu
pequeno prêmio de consolação por ser uma idiota de achar que voltar para
Detroit era uma boa ideia.
 
A casa na qual eu estava no quintal, se encontrava completamente
escura. O recuo da garagem era perfeitamente escondido para ele fazer o que
quisesse comigo.
O cheiro de Roy era fácil de reconhecer. Sua mão quente e suada
contra meu rosto me dava alguma noção do quanto ele estava acelerado e
ansioso para me pegar daquela forma.
Vadiazinha sortuda, você — meu demônio debochou.
Eu o ignorei.
Se desse certo, ele me deixaria em paz por pelo menos um mês.
Roy não disse nada quando me ergueu do chão. O máximo que surgiu
foi um gemido meio rosnado pelo esforço de me arrastar para o fundo da
garagem, para o canto escuro e esquecido, e a cada passo daquilo, a resposta
do meu corpo foi querer mais e mais. Foi gostar, mais e mais.
Principalmente, quando as apostas do meu demônio se mostraram
certas.
Ele me colocou com o rosto contra a parede. Sua mão segurou com
força na minha nuca. Tanta força que eu sabia que ficaria marcada depois.
Seu corpo gigante cobriu o meu, a textura das suas roupas contra mim,
seu cheiro, sua presença. Tudo aquilo me abraçou e engoliu, mas ele nem
sonhava que quem o mastigaria e cuspiria depois seria eu.
Seria eu a arruinar suas noites de sono quando ele abraçasse sua
mulher, ou visse sua filhinha brincando de boneca. Seria eu que torturaria sua
mente pela vontade de fazer de novo, e também o machucaria eternamente
quando a culpa aparecesse. E Roy fazia esse tipo, o que, alguma hora, lá no
fundo da consciência, tentaria afogar a lembrança do que fez comigo em um
copo de cerveja.
Quis rir, mas sua mão não permitia, ainda me calando.
A outra no meu pescoço afastou meu cabelo para o lado.
Sua barba arranhou minha pele, e grosseiro, ele me cheirou antes de
pousar a boca quente em mim.
Primeiro ele me mordeu, depois chupou. Eu gemi alto, ainda no meu
papel de vítima, mas ele nunca sonharia que as lágrimas que molhavam sua
mão eram de gratidão.
Eu não queria pensar em Aidan. Eu não podia acessar aquela merda de
memória. Eu só queria continuar fugindo. Então, sabendo que ele não tinha
experiência naquilo, fui a garota que sempre deveria ser e parei de gritar.
Ele notou a diferença na minha postura e afastou o rosto, parecendo
esperar alguma reação surpresa. A mão dele na minha boca se afastou por um
mísero segundo e eu sussurrei:
— N-não vou gritar — saiu baixo, trêmulo, meio engasgado pela
garganta machucada. — Só-só n-não me machuque. — O pedido era feito
com tristeza, com raiva e conformismo.
O pior do fingimento. Eu era uma desgraçada, mas ele não precisava
saber.
Então, parecendo acreditar na sua vítima medrosa e submissa, a mão
que estava no meu rosto desceu para minha garganta. Ele me segurou por ali,
e parecendo aproveitar a chance como um ladrão sabendo que o tempo é seu
inimigo, usou da mão livre para abaixar as alças do meu vestido.
Meus seios ficaram expostos, minha cabeça foi forçada para frente e
bati a testa na parede. Fechei os olhos e apreciei a sensação do tremor do
medo e da ansiedade me tomando conforme aquele homem nada
desconhecido me apalpava, me descobria, me sentia também.
Foi então que o senti, bem na minha bunda, duro e pronto.
Por um segundo, fiquei triste por Roy ser inexperiente.
Eu precisava de alguém que me acertasse com socos, que me deixasse
no chão, que não se importasse de eu ver seu rosto, ou de me machucar. Mas
ele era tudo o que eu tinha, e eu sabia como usaria isso a meu favor.
— Por favor, não — choraminguei.
Mas ele não parou, e me surpreendendo, suas mãos foram parar nos
meus ombros e desceram, vasculhando cada pedaço livre da minha pele, até
pegar minhas mãos. Por meio minuto, ele entrelaçou os dedos nos meus, e me
movendo como se eu fosse um boneco, grudou minhas palmas na parede.
— Não se mova. — Ele tentou disfarçar a voz.
Ouvi-lo soprar as palavras na minha nuca arrepiou todo meu corpo.
Fiz que sim com a cabeça e me mantive lá, quieta, com as pernas
entreabertas, esperando, chorando, sentindo meu corpo balançar graças aos
tremores de mil causas diferentes.
 
O homem que me observou por dias, começou a se sentir seguro para
explorar umpouco mais. Suas mãos voltaram aos meus seios. Ele parecia
achar graça que meus mamilos estivessem tão duros em um momento tão
desgraçado. A prova disso é que seus dedos me beliscavam, torciam,
provocavam. Era sua tentativa de fazer ser bom para mim?
Mal sabe ele que seu sobrenome é desgraça. — Ignorei a voz.
Beijando meu ombro nu, roçando a barba por toda minha pele, bruto,
meio sem jeito, mais confiante e agressivo, Roy desceu uma das mãos por
dentro do tecido, invadindo o vestido, meia-calça e calcinha de uma vez.
Sua palma cobriu minha boceta e quando sentiu o calor, a umidade
toda dali, eu o vislumbrei sorrir.
— Por favor, eu sou virgem — implorei quando seu dedo tocou meu
clitóris inchado e escorregadio de tão molhado. — Não tire isso de mim, faça
em outro lugar, mas não… — Sufoquei o pedido, fingindo me abraçar.
Meu demônio começou a rir.
Rir não. Gargalhar.
Eu sabia que ele ria da minha encenação, mas mais ainda do homem
que me estuprava e tentava ser benévolo ao escolher meu cu em vez da minha
boceta só por um pedido virginal.
Frouxo do caralho — dessa vez foi minha própria voz quem disse.
O diabo continuou rindo enquanto Roy, apressado, erguia meu vestido,
abaixava minha meia-calça junto da calcinha e trazia meu quadril mais para
trás.
Minhas mãos escorregaram para baixo, meu corpo ficou curvado. O
topo da minha cabeça contra a parede. Encarando o chão, vendo minha
calcinha na altura dos joelhos, os pés dele entre os meus.
Ouvi o zíper das suas calças sendo aberto, e logo depois ele deixou
suas calças caírem também.
Eu vi a tatuagem em sua perna, mas naquele escuro não consegui
decifrar o que era. Mesmo que tentasse, duvidava que conseguiria, já que
meu coração batia nos ouvidos, na cabeça, na ponta dos dedos.
Meu corpo fervia, implorava, gritava por seu castigo, por sua punição.
Quando ele roçou o pau por toda minha extensão, provocando meu
clitóris e a entrada da minha boceta, eu quase gritei ao senti-lo forçar um
dedo no meu cu.
— Por favor, para! — Engasguei pelo susto. — Por favor, você está
me machucando! — Tentei pedir misericórdia, mas sabia que ele não daria.
Tudo o que ele fez foi puxar minhas mãos para trás, fazendo com que
eu abrisse mais minha bunda para ele tentar entrar.
Ouvi a cuspida logo que ele se afastou, depois o dedo tentou entrar de
novo junto do pau se esfregando em mim. Meu clitóris sensível pra caralho
parecia distribuir ao meu corpo pequenas doses do anúncio inevitável.
Eu seria completamente violada.
E adoraria cada segundo daquela coisa doentia e suja.
Minha boceta pesava de tão molhada e excitada. Como aquele idiota
realmente acreditava na minha virgindade? Quis rir, mas me contive.
Estávamos perto, muito perto. Eu não podia perdê-lo.
Me forcei de pouquinho em pouquinho para trás. O movimento curto e
lento de vaivém do corpo roçando o pau dele que parecia ser grande entre
meus lábios. Trazendo seus dedos cada vez mais para dentro de mim, abrindo
caminho no lugar mais apertado, me preparando para o gran finale.
Roy não era do tipo que me prenderia por horas, que me castigaria.
Ele só queria seu objeto de cobiça, e depois que conseguisse, correria
para ir embora e fingiria que aquilo nunca tinha acontecido.
Eu era capaz de vê-lo na manhã seguinte, me perguntando como foi
minha noite de festa, como se ele não tivesse tido sua participação especial
em destaque.
Parecendo perceber que eu não sentia dor com seus dedos enterrados
no meu rabo, Roy os tirou com cuidado e, sem proteção, sem nada entre nós,
encaixou a cabeça do pau na entrada onde seus dedos faziam pressão
segundos antes e se forçou para dentro.
Não consegui segurar meu grito. Roy realmente era grande, quente e
pulsava.
Abri minha bunda ainda mais para ajudá-lo. Senti conforme ele se
tocava ao encaixar a glande dentro de mim, esperando o caminho se abrir
com maior facilidade.
Lágrimas de dor e prazer escaparam dos cantos dos meus olhos.
Insano, sujo, minha perdição.
Forcei o corpo contra o dele.
Ouvi seu gemido bruto, inesperado, rouco.
Uma das mãos seguraram meu quadril, a outra o ajudou a não ser
expulso do meu corpo com a pressão que acontecia.
Respirei fundo. Relaxei. E, pouco a pouco, eu o senti entrando,
rasgando, machucando, ardendo, doendo.
Senti cada mísero centímetro daquela primeira entrada.
Meu demônio bebeu cada gota de dor, de desespero, de prazer do meu
flagelo, direto do meu seio.
E no primeiro movimento de entra e sai, ele quase levou tudo de mim.
Empinei mais a bunda, as mãos de Roy apertaram meus quadris em
uma força brutal, e depois disso, ele esqueceu tudo, assim como eu.
Minha mente virou um espaço em branco, quieto, divino, e conforme
ele me fodia como a vadia barata que eu era, enquanto castigava meu corpo,
invadia meu cu e gemia alto, eu atingi meu momento de redenção.
O calor excruciante do meu estômago se espalhou por todo canto.
Eu gemi. Eu chorei.
Tremendo, com o coração batendo na garganta e o corpo sem controle
algum, eu gozei, abraçando-o internamente com tanta força quando meu
corpo se retraiu, que foi tarde demais para Roy.
Por culpa minha, ele gozou pesado dentro de mim, do meu cu.
 
 
Levou dois segundos para ele entender o que tinha feito.
Então, quando a consciência o pegou pelo pescoço, tudo o que aquele
covarde idiota fez foi me largar, não se importando que eu tivesse batido os
joelhos com força demais no chão, ajeitar suas calças e correr dali.
 
Eu não queria ver meu estado. Só acompanhei a corrida do meu
estuprador para longe e, depois de alguns minutos, limpei o rosto, ajeitei o
cabelo, me recompus e voltei para a rua, para a caminhada longa para casa,
finalmente, com a mente em silêncio.
 
De olhos fechados, eu podia ver tudo.
Todas as luzes e todas as cores passando pelas minhas pálpebras, como
se estivesse deitada no gramado do parque mais movimentado da cidade, ao
pôr do sol, e não escondida no armário do corredor, com os pulsos amarrados
e um medo congelante que acabou fazendo com que eu urinasse nas calças.
Toda aquela pequena vida em um filtro eterno em tons de cinza.
— Afrodite! — Ouvi de longe e tentei puxar o ar pela boca.
Não pude.
Toquei a fita prateada que cobria meus lábios e mais lágrimas
desceram. Quentes, grossas, carregadas de agonia.
Ele me chamou mais uma vez, sua voz cheia de raiva:
— Afrodite!
Permaneci em silêncio. Eu só tinha cinco anos.
Eu não podia, eu não queria, mas não tinha opção.
Então o monstro abriu a porta, esticou as garras na minha direção, e eu
finalmente acordei.
 
Acordar com a boca seca e o coração disparado era rotina para mim.
Toda vez que o passado, ou minhas transgressões vinham visitar minha
mente vulnerável durante o sono, era assim.
No começo, quando aquilo me afetava, eu gritava.
Depois, passei a me debulhar em lágrimas como a criança assustada
que eu era, mas agora? Agora tudo não passava de uma dor silenciosa, de um
demônio sentado no peito, bem sobre o que restava do meu coração.
 
Chovia lá fora.
Sabia disso pelo som dos pingos na minha janela, mas além desse
barulho, vinha o estranho ranger da cama e gemidos abafados da parede atrás
do meu armário. Aquilo era obra de Amanda. 
Sexo por si só não me abalava, mas depois da noite passada, me testei.
Esperei ouvir alguma coisa, qualquer coisa, na minha mente.
Não veio. Nada. E eu quase comemorei.
Só não o fiz porque a verdade era só uma: eu tinha medo dele.
Tinha medo de um dia ele abrir meu peito por dentro, me rasgar ao
meio, e expor toda a podridão que eu carregava.
Quando ele me dava aquele tempo de paz, eu acreditava fielmente que
só fazia o que fazia por culpa dele. Se não houvesse aquele diabo no meu
ombro, podia jurar por Deus que nunca mais me colocaria em risco, que não
meteria um alvo nas costas como fazia, mas não ousava dizer aquilo em voz
alta.
Tinha medo de ele aparecer em carne e osso para gritar na minha cara
o quanto eu era mentirosa.
Pousei a mão sobre o peito, e me sentindo mais calma,

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