Prévia do material em texto
ESTUDOS CULTURAIS E MEIO AMBIENTE Mait Bertollo Cultura e meio ambiente Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Explicar como a cultura condiciona a visão de mundo do ser humano. Identificar a interferência da cultura no plano biológico. Definir cultura ecológica. Introdução A cultura é influenciada pelas caraterísticas das diversas relações do ser humano com o meio, a transformação das paisagens e o seu desenvol- vimento étnico e social. Ao mesmo tempo, essas características externas também condicionam a cultura dos indivíduos e dos grupos humanos, estabelecendo visões de mundo e condutas nas diversas comunidades. Neste capítulo, você vai ver como a cultura se expressa nas sociedades humanas, o papel das questões do meio ambiente e o conhecimento sobre o espaço em que as sociedades vivem na configuração da cultura. Você também vai conferir como se define a cultura ecológica e como ela pode ser usada por meio de discursos por vários agentes, com diferentes intencionalidades principalmente nos dias atuais, influenciando práticas e concepções. 1 O condicionamento da visão de mundo do ser humano pela cultura A relaç ã o entre a cultura e o espaço geográfi co é tradicionalmente estudada como mais uma forma de analisar e compreender como ocorrem diversas dinâmicas e fenômenos em várias escalas no ponto de vista espacial. Os saberes geográfi cos herdados ao longo da história permitiram que a humanidade des- cobrisse os climas, entendesse os oceanos, domesticasse plantas, modifi casse paisagens, etc., mesmo em locais inóspitos, de difícil adaptação para a vida humana. Por todos esses lugares, há visões diferentes sobre como enxergamos o mundo. Em cada lugar do planeta, há um processo histórico-cultural capaz de criar adaptações para a sobrevivência, como os esquimós que vivem em temperaturas negativas permanentemente ou os Uros, uma etnia que vive sobre as ilhas fl utuantes do lago Titicaca. Assim, é papel da geografia conhecer e estudar esses diversos tipos de cultura e sua influência sobre o ambiente. Os estudos culturais pela ciência geográfica foram organizados e tiveram maior notoriedade a partir do fim sé culo XIX, quando se relacionou sociedade, natureza e cultura — no que se destacaram, principalmente, geó grafos como Paul Vidal de La Blache (1845–1918) e Friedrich Ratzel (1844–1904), entre outros do mesmo período. A obra mais importante que estabeleceu o termo “cultura” na geografia foi o livro Antropogeografia, de Friedrich Ratzel, publicado em 1882, em que o autor estudou os fundamentos culturais da heterogeneidade das sociedades e civilizaç õ es. Friedrich Ratzel nasceu em 30 de agosto de 1844, em Karlsruhe, na Alemanha, e tornou-se famoso por sua criação do termo Lebensraum (em português, “espaço vital”). Ratzel examinou a cultura sob aspectos materiais, analisando o uso de objetos pelos seres humanos em sua relação com o espaç o por meio do desenvolvimento de conceitos baseados na mobilidade das populações, nas condiç õ es de assen- tamento e propagação da cultura por vias de comunicaç ã o (CLAVAL, 1995). Na Franç a, Vidal de La Blache elaborou o conceito de “gê nero de vida”, que foi estruturante nos estudos culturais por meio das análises de relaç õ es entre os seres humanos e o meio, isto é, a relaç ã o entre populaç ã o e os recursos em uma situaç ã o que pressupõe equilí brio. Assim, esse conceito está ligado ao conjunto de técnicas e costumes de uma sociedade que permitem a aplicação dos recursos naturais que estão à disposição em determinado momento. Dessa forma, a ideia principal de La Blache se baseia na aç ã o humana conforme suas circunstâncias, em que o meio fí sico exercia influência sobre alguns gê neros de vida, ao mesmo tempo em que as sociedades també m podiam intervir nesse meio, condicionadas pelo seu está gio civilizatório, por seu desenvolvimento tecnoló gico e cultural. Vidal de La Blache e Friedrich Ratzel partilhavam do entendimento da função da cultura de intermediar o ser humano e o meio natural, em que a Cultura e meio ambiente2 cultura é principalmente compreendida por meio dos instrumentos, té cnicas, utensí lios e tipos de hábitat das sociedades que modelam a paisagem. Na década de 1920, também foram desenvolvidas discussões sobre a dimensã o cultural da paisagem, principalmente nos Estados Unidos, pelo geógrafo Carl Ortwin Sauer (1889–1975), que considerava a configuração da paisagem como consequência da aç ã o da cultura ao longo do tempo e estabeleceu a escola da geografia cultural com o objetivo dos de analisar as paisagens culturais considerando a morfologia fí sica transformada pela cultura como principal agente. Essa escola considerava a cultura como uma entidade com suas pró prias leis, agindo sobre os indiví duos, que, por sua vez, são considerados como mensageiros da cultura, sem autonomia. Assim, a cultura é vista como algo exterior e sua internalizaç ã o se dá por meio de mecanismos de condicionamento, o que gera há bitos, entendidos como cultura — sem pressupor nesse contexto os conflitos existentes e com uma visão de certa homogeneidade cultural (DUCAN, 2004). Depois de quase meio século, na década de 1970, desenvolveu-se a abor- dagem na qual a cultura está associada ao sistema de representaç õ es. Para Corrêa e Rosendahl (2003), os significados e valores geram a identidade, que se exprime pelos objetos e ações compartilhados e presentes no espaço, em que a cultura se expressa no modo de vida de uma sociedade, incluindo a produç ã o de objetos materiais, em um sistema cultural, um sistema simbó lico e um sistema imaginá rio, e não tem poder explicativo, mas precisa ser explicada. Os movimentos sociais que ocorreram no mundo, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos a partir dos anos 1960 em diante, demandaram outras formas de explicar a realidade, de modo que se abriram possibilidades para desenvolver ideias ligadas à abordagem cultural geográ fica. O ser humano, então, foi posicionado no centro das questões da geografia cultural, que produz e é produto de seu pró prio mundo (CORRÊ A; ROSENDAHL, 1999). O chamado sistema cultural está relacionado aos valores morais, é ticos, aos significados e há bitos manifestados nas prá ticas sociais. Já o sistema simbó lico é composto por mitos e rituais unificadores, enquanto o sistema imaginá rio é a ligação dos dois ú ltimos siste- mas, o que resulta na construç ã o da identidade espacial de um grupo (ZANATTA, 2017). 3Cultura e meio ambiente Outro subsídio importante foi o do materialismo histó rico e dialé tico, que compreende a cultura como um reflexo e uma condiç ã o social, e o do reconhecimento da dimensã o histó rica na relaç ã o entre os seres humanos e a natureza (ZANATTA, 2017). Nesse momento, também se desenvolveu a ideia de produç ã o e reproduç ã o das culturas pelas prá ticas sociais que acontecem espacialmente de maneira diferenciada (MCDOWELL, 1996). Outras abordagens para compreender a cultura e seus condicionamentos estão ligados aos conhecimentos sobre os significados, que analisam a experiê ncia, a intersubjetividade, os sentimentos, a intuiç ã o e a compreensã o (ZANATTA, 2017). Portanto, a geografia cultural, sob os conceitos fundamentais da geografia, como espaç o, territó rio, meio ambiente, lugar e paisagem, passou por uma restrutu- ração em que se enfatizou a questão simbó lica que abrange sua construç ã o cultural. Vários temas são estudados sob esses conceitos, como aqueles ligados à religiã o, à percepção ambiental, à identidade espacial, à s expressões sociais e à interpretaç ã o de textos, das artes e das mídias mais recentemente. Outros temas contemporâneos também podem ser estudados, dado o mo- vimento contínuo das transformaç õ es sociais que têm relação com o espaço, a polí tica, a economia e a cultura. A geografia cultural também utiliza da análise da relação do indivíduocom o mundo, em que investiga primeiramente o próprio fenômeno, com o objetivo de compreender as motivaç õ es e o sentido das escolhas individuais no espaç o, no tempo e na sociedade sob o olhar do afeto, do sistema de valores, das preferê ncias, das crenç as (LEVY, 1981). Assim, sob o aspecto espacial, estuda-se a cultura como um “[...] conjunto infinitamente diversificado e em contí nua evoluç ã o” (CLAVAL, 1999, p. 57). 2 A interferência da cultura no plano biológico Para compreender como ocorrem as relações entre a cultura e os demais ele- mentos sociais e naturais, cabe observar como o termo “cultura” pode ter vários signifi cados e desenvolvimentos. “Cultura”, enquanto termo, surgiu no sé culo XVIII, na Alemanha, com a palavra Kultur ligada a aspectos espirituais de uma comunidade. Sob outra perspectiva, na Franç a, o termo utilizado é civilization e se refere às obras materiais de um grupo (CORRÊ A; ROSENDAHL, 1999). O antropólogo inglê s Edward Tylor (1832–1917) sintetizou dois conceitos na palavra culture, abrangendo a arte, as crenç as, os costumes, as leis morais e demais elementos ligados à capacidade de aquisiç ã o de há bitos pelos seres humanos, Cultura e meio ambiente4 conceituando cultura como todo o comportamento apreendido, tudo aquilo que independe de uma transmissã o gené tica (CORRÊ A; ROSENDAHL, 1999). Nesse contexto e por meio dos estudos ligados à cultura, a comunicaç ã o seria o processo que difunde as diferenç as de comportamentos, costumes, construç ã o e organizaç ã o dos objetos no espaç o, e só se expande por causa da linguagem em seus diversos sentidos. Assim, a linguagem humana é produto da cultura, e “[...] nã o existiria cultura se o ser humano nã o tivesse a possibilidade de desenvolver um sistema articulado de comunicaç ã o oral” (LARAIA, 2004, p. 52). A partir da dé cada de 1970, desenvolve-se uma maneira de analisar a organizaç ã o social dos grupos e seu cotidiano não só como reflexos materiais, mas que se manifestam no âmbito psicoló gico, como suas crenç as, práticas mentais e toda a forma de perceber o mundo e sua experiê ncia. Nesse contexto, a ideia de interferência da cultura no plano biológico está ligada ao chamado determinismo biológico. Tal ideia alimenta preconceitos culturais que existem há muito tempo e que ainda permanecem, embora tenhamos o contínuo avanç o da ciê ncia, das tecnologias e da maior disseminação de informaç ã o. Nesse contexto, as ideias relacionam: [...] a população indígena como indolente, o brasileiro como preguiçoso cuja herança é do negro africano, do judeu como comerciante e tacanho, japoneses trabalhadores e traiç oeiros, da inteligê ncia superior dos nó rdicos, da superioridade do sexo masculino, da fragilidade do sexo feminino, etc. (LARAIA, 2004, p. 17). Assim, o determinismo bioló gico se baseia na atribuição de capacidades inatas a grupos humanos para amparar ideias e atitudes preconceituosas sem fundamento cientí fico. O antropólogo brasileiro Roque de Barros Laraia (1932–) teve muitas de suas ideias e de seus fundamentos desenvolvidos registradas na Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco), onde antropó logos, bió logos, geneticistas e outros especialistas, apó s a Segunda Guerra Mundial (1939–1945), declaravam que dados cientí ficos nã o confirmavam a ideia de que as diferenç as gené ticas hereditá rias faziam parte das causas das diferentes manifestações culturais e das obras das civilizaç õ es dos distintos povos ou grupos é tnicos, mas que se explicavam pela histó ria cultural de cada grupo, e que o desenvolvimento das sociedades humanas se dá pelas suas aptidõ es, ratificando que as diferenç as gené ticas nã o sã o determinantes das diferenç as culturais. Também ficou registrado que nada comprovava que grupos humanos se distinguem uns dos outros por características psicologicas inatas, como 5Cultura e meio ambiente inteligê ncia ou temperamento, e que os sistemas de divisã o sexual do trabalho são determinados culturalmente, e nã o em funç ã o de uma questão bioló gica. Outra questão que se assemelha ao determinismo biológico é o determi- nismo geográ fico. Por meio dessas ideias, principalmente desenvolvidas e disseminadas no fim do sé culo XIX, foi proposto que as diferenç as físicas do ambiente condicionavam a diversidade cultural. Diferentemente do que sugere o determinismo biológico, a cultura se manifesta a partir do momento que o ser humano utilizou seu cé rebro para produzir e distinguir sí mbolos, gerar linguagem para se comunicar e transmitir ensinamentos para outros indiví duos (LARAIA, 2004). Assim, as culturas vão tratar dos padrõ es de comportamento que são social- mente transmitidos, a fim de adaptar as sociedades e suas condições biológicas. Para isso, as comunidades utilizam técnicas e meios para sua organizaç ã o econô mica, padrõ es de agrupamento social, organizaç ã o polí tica e de trabalho, bem como, no campo do simbólico, as crenç as e as prá ticas religiosas. Considera-se, também, que o ser humano mantém uma relaç ã o de adap- tação constante com o seu meio para sobreviver. Essas mudanç as adaptativas da cultura se disseminam e ocorrem principalmente no âmbito da economia de subsistê ncia, das técnicas e dos elementos da organização da sociedade. Portanto, o sentido de cultura trata de um processo complexo, que é gerado a partir da interaç ã o entre os seres humanos por meio do desenvolvimento da inteligê ncia, do controle dos meios de comunicaç ã o entre os indiví duos e do uso e domínio dos sí mbolos (LARAIA, 2004), sendo um processo em sucessiva transformação em que a cultura influencia e é influenciada pelas sociedades. No fim do século XIX, houve uma série de estudos acadêmicos no Brasil sobre a articulação entre raça e nação, sobre o negro e os aspectos sociais, culturais e políticos resultantes desse grupo que forma a sociedade brasileira. A questão sobre que tipo de raça resultava do processo de miscigenação e sobre como isso afetava a sociedade brasileira fazia parte dos discursos e das práticas para as propostas de formação de uma sociedade civilizada. Havia vários pensadores que utilizavam o chamado “evolucionismo social” ou “darwinismo social”, que afirma que os seres humanos são desiguais por natureza em função de suas diferentes aptidões inatas, que resultam em superiores ou inferiores. Assim, promoveu-se, e ainda se promove, uma série de ideias que relacionam raça, patologias psiquiátricas e tipologias criminais (SANTOS; SCHUCMAN; MARTINS, 2012). Cultura e meio ambiente6 3 A cultura ecológica “Cultura ecoló gica” é um termo que pode ser utilizado em diversas ciências, não só na geográfi ca, e pode ser entendido a partir da leitura de autores que desenvolvem pesquisas considerando também o fator da ecologia, que, por sua vez, está ligada à biologia, que trata das relaç õ es entre os seres vivos e deles com o seu ambiente. O termo cultura ecoló gica, portanto, pode ser entendido como um “[...] sistema de valores ambientais que reorienta os comportamentos individuais e coletivos, relativos à s prá ticas de uso dos recursos naturais e energé ticos” (LEFF, 2000, p. 63), em um contexto em que a cultura ecoló gica também pressupõe um estoque de conhecimentos sobre o meio durante o tempo (ALMEIDA, 2003). Dessa forma, há vários usos desse termo para referê ncias mais gené ricas sobre as prá ticas ambientais expressas por qualquer grupo social. Atualmente, os termos “desenvolvimento sustentável” e o próprio termo “cultura ecoló- gica” têm como principal discurso a biodiversidade, que projeta uma série de imagens e significados sobre florestas, suas populaç õ es tradicionais e seus conhecimentos sobre a natureza. Esses discursos são utilizados para legitimar determinados modelos sob “[...] valores econô micos do mercado ou valores nã o materiais; pode levar em conta os processos ecoló gicos, [...] guiar suas prá ticas [...]ou desprezar o efeito de suas aç õ es sobre o ecossistema” (GÓMEZ RIVERA, 2010, documento on-line). Para produzir esse discurso, agentes distintos, como corporações, uni- versidades, organizações não governamentais, instituições, bió logos e am- bientalistas locais interpretam à sua maneira o que é a biodiversidade e as respostas à crescente destruiç ã o e modificação da natureza. De acordo com a ideia sobre a natureza e biodiversidade, há suportes para ações que articulam a natureza e sociedade em conjunto com a ciê ncia, as culturas e a economia (ALMEIDA, 2003). Entre o fim do século XX e o início do século XXI, houve uma série de discussões, discursos e desenvolvimento de ideias sobre as relaç õ es entre a sociedade e o meio natural, principalmente ligadas à instrumentalizaç ã o da natureza e ao que ela simboliza. Ainda que hoje em dia exista uma variedade de entendimentos sobre o que é o natural, geralmente a natureza é vista como alheia à intervenç ã o social, como um produto simples das leis da seleç ã o natural sem dimensã o histó rica. Dessa forma, não é feita a relação da natureza com a vida urbana, com culturas e prá ticas sociais — como se não existisse nenhuma sociedade e significaç õ es sociais. 7Cultura e meio ambiente A natureza começa a ser vista por seu valor, em um contexto em que as florestas, o litoral, os manguezais e o cerrado, por exemplo, sugerem certa valorizaç ão por sua exploraç ã o, preservaç ã o e/ou conservaç ã o. Assim, o valor atribuí do a determinados lugares se vincula à relaç ã o do ser humano com a natureza, tratando-a como recurso econô mico, em que possa ser controlada (ALMEIDA, 2003). Há uma série de metodologias para a apreciaç ã o da riqueza da natureza e para definir seu valor econô mico, em que a medida da natureza passa ao preç o segundo um indicador adequado, resultando no valor do uso atual, o valor opç ã o e os valores nã o econô micos, para calcular por mé todos que consideram a disposição de se pagar para manter um ambiente ou a disposiç ã o para receber uma compensaç ã o por dano ambiental (LEFF, 2000). Logo, o preç o nã o revela a essê ncia da natureza e do ambiente, mas permite que as pessoas indiquem, por exemplo, como se constituem os valores que um conservacionista pagaria pela preservaç ã o de fragmentos do cerrado ou um madeireiro que pagaria o valor da madeira (ALMEIDA, 2003). Nesse contexto, os objetivos econô micos sã o diferentes dos objetivos conser- vacionistas. Excelentes resultados econô micos nã o garantem a conservaç ã o — servem para seu controle ou possibilitam polí ticas ambientais e pesquisa cientí fica. Ao analisar espacialmente a cultura ecológica, é importante considerar que as relaç õ es sociais estão presentes e permeadas por questões econô micas, sociais e polí ticas de cada sociedade juntamente às visões de mundo e inten- cionalidades que formam a cultura ecoló gica. Os pressupostos da cultura ecológica estão baseados em um sistema de valores ambientais que orienta as condutas individuais e coletivas em relação ao tipo de uso dos recursos naturais e energé ticos (LEFF, 2000) e influencia a gestão dos recursos dos biomas. Nesse contexto, é por meio da cultura que as populaç õ es se relacionam com a natureza, intervêm espacialmente e concebem seu modo de vida. Assim, compreender o uso e as representaç õ es da natureza permite verificar essa interação e como as populaç õ es que vivem em vários biomas se fixam no territó rio (CLAVAL, 1997). Outro aspecto importante sobre a construção da cultura ecológica é o desenvolvimento da noção de interesse por parte de corporações, Estado, ciências e do capital em geral para manter a diversidade biológica por meio de um fenômeno chamado de “erupç ã o do bioló gico” (CLAVAL, 1997), cuja discussão foi inserida centralmente nas polí ticas globais no fim do sé culo XX e permanece até os dias atuais, principalmente em á reas tropicais do planeta com rica diversidade. Cultura e meio ambiente8 Dessa forma, são realçadas as regiões marginalizadas pelo sistema capitalista e as populaç õ es tradicionais, que começam a ser consideradas como “centros de inovaç ã o” e de “mundos alternativos emergentes” (ALMEIDA, 2003). Assim, são estabelecidos novos significados para á reas tropicais, como preciosa reserva gené tica e com populaç õ es nativas com sabedorias sobre a natureza. Um exemplo é a rica biodiversidade do Cerrado (Figura 1), cujas espécies compõem vasta informaç ã o gené tica, fonte para drogas de interesse de indústrias farmacêuticas e alimentos, alimentando a área da biotecnologia. Ao mesmo tempo, esse bioma também abriga uma sociedade que domina a natureza por meio de sistemas econô micos alternativos para conservar modos de vida tradicionais. Figura 1. A rica biodiversidade do bioma Cerrado e diversas frutas típicas — o pequi. Fonte: Merlin (2018, documento on-line). Nesse contexto e no período presente, prevalece o discurso de salvamento da natureza de prá ticas que a depredam, instituindo ações de conservaç ã o. As ideias que permeiam esse discurso pressupõem a natureza mediada pelas técnicas, pela ciência e pelo capital. Isso ocorre porque estão envolvidas na elaboração e na disseminação desse discurso da cultura ecológica instituiç õ es dominantes com interesses claros, como, por exemplo, da indú stria quí mica e farmacê utica, para utilizar recursos por meio do desenvolvimento de pesquisas e da quantificaç ã o da biodiversidade. Essas ações resultam em várias políticas ligadas aos direitos da propriedade intelectual para proteger descobertas que rendem a comercializaç ã o desses 9Cultura e meio ambiente produtos. Portanto, preservar as identidades e culturas ligadas à terra, como no caso de populações tradicionais, é fundamental para a biodiversidade, pois permite “[...] manter a base de recursos como legado de um patrimô nio histó rico e cultural” (ALMEIDA, 2003, documento on-line). As populações que vivem nas matas, nos cerrados, nas caatingas, nos demais biomas e nas á reas rurais expressam sua cultura ecoló gica por meio do grande conhecimento acumulado ao longo do tempo pelos agricultores e pelas populaç õ es nativas. Esse conhecimento se refere sobretudo às plantas medicinais, às espé cies nativas e aos sistemas de uso do solo. Dessa forma, defender a cultura dessas populaç õ es é uma importante ferramenta para conservar a biodiversidade e é oportuno para todos os agentes. As significativas tradiç õ es culturais e como as populaç õ es interagem com a natureza são elementos importantes nas decisõ es sobre a biodiversidade e sobre o seu uso. Por meio dessas culturas ecológicas, que incluem o uso e a conservaç ã o da biodiversidade onde a população está inserida e que não agregaram valor aos recursos bioló gicos, foi possível manter sua existê ncia até os dias atuais. Essas culturas, portanto, “[...] devem ter participaç ã o em direitos de propriedade intelectual, recebendo os benefí cios derivados da exploraç ã o econô mica dos componentes da biodiversidade” (ALMEIDA, 2003, documento on-line). No canal no YouTube Rede TVT, você encontra uma matéria sobre como comunidades tradicionais e os povos indígenas são essenciais para a preservação da biodiversidade, principalmente na Amazônia, abordando o risco que correm com a superexploração atual dos biomas. Para assistir, digite em seu buscador “É possível preservar florestas se os povos tradicionais forem protegidos”. Assim, ressalta-se que a cultura geográfica pressupõe, também, uma percepç ã o espacial na ordem do que é visí vel, palpável e também ligada à imaginaç ã o geográ fica como experiê ncia espacial. Há uma série de estudos sobre o que o ser humano vivencia e vê ligados à mente humana. Nesse contexto, essa noção também é gerada por relatos e noções da própria realidade, além de ideias para dar sentido à sua existê ncia (CLAVAL, 2010). Cultura e meio ambiente10 ALMEIDA, M. G. Culturaecoló gica e biodiversidade. Mercator - Revista de Geografia da UFC, v. 2, n. 3, 2003. Disponível em: http://www.mercator.ufc.br/index.php/mercator/ article/view/166/133. Acesso em: 20 ago. 2020. CLAVAL, P. A geografia cultural. Florianó polis: EdUFSC, 1995. CLAVAL, P. A geografia cultural: o estado da arte. In: ROSENDAHL, Z.; CORRÊ A, R. L. (org.). Manifestaç õ es da cultura no espaç o. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999. CLAVAL, P. As abordagens da geografia cultural. In: CASTRO, E. de C. et al (org.). Exploraç õ es geográ ficas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. CLAVAL, P. Terra dos homens: a geografia. Sã o Paulo: Contexto, 2010. CORRÊA, R. L.; ROSENDAHL, Z. Geografia cultural: passado e futuro: uma introduç ã o. In: ROSENDAHL, Z.; CORRÊ A, R. L. (org.). Manifestaç õ es da cultura no espaç o. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999. CORRÊA, R. L.; ROSENDAHL, Z. (org.). Introduç ã o à geografia cultural. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. DUCAN, J. A paisagem como sistema de criaç ã o de signos. In: CORRÊ A, R. L.; ROSENDAHL, Z. (org.). Paisagem, textos e identidade. Rio de Janeiro: UERJ, 2004. GÓMEZ RIVERA, S. M. Por uma cultura ecoló gica. Dissertaç ã o (Mestrado) - Escola Su- perior de Agricultura “Luiz de Queiroz”, Universidade de São Paulo, Piracicaba, 2010. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/91/91131/tde-20092010-141932/ publico/Sara_Rivera.pdf. Acesso em: 20 ago. 2020. LARAIA, R. de B. Cultura: um conceito antropoló gico. 17. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. LEFF, E. Ecologia, capital e cultura: racionalidade ambiental, democracia participativa e desenvolvimento sustentável. Blumenau: FURB, 2000. LEVY, B. ‘Humanistic geography’: ou le pari humaniste de la geó graphie anglo-saxonne. L'Espace Géographie, v. 10, n. 4, p. 301-303, 1981. MCDOWELL, L. A transformaç ã o da geografia cultural. In: GREGORY, D.; MARTIN, R.; SMITH, G. Geografia Humana. Sociedade, Espaç o e Ciê ncia Social. Rio de Janeiro: Zahar, 1996. MERLIN, R. Pequi, o verdadeiro ouro do cerrado. In: MIXOLOGY News. [S. l.: s. n.], 2018. Disponível em: http://mixologynews.com.br/02/2018/mixologia/pequi-ouro-do-cer- rado/. Acesso em: 20 ago. 2020. SANTOS, A. O.; SCHUCMAN, L. V.; MARTINS, H. V. Breve histórico do pensamento psi- cológico brasileiro sobre relações étnico-raciais. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 32, 11Cultura e meio ambiente Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos testados, e seu fun- cionamento foi comprovado no momento da publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. 2012. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414- -98932012000500012&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 20 ago. 2020. ZANATTA, B. A. A abordagem cultural na geografia. Revista Temporis[ação], v. 9, n. 1, 2017. Disponível em: https://www.revista.ueg.br/index.php/temporisacao/article/ view/5995. Acesso em: 20 ago. 2020. Leituras recomendadas DUCAN, J. O supra-orgâ nico na geografia cultural americana. In: CORRÊ A, R. L.; RO- SENDAHL, Z. (org.). Introduç ã o a geografia cultural. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. É POSSÍVEL preservar florestas se os povos tradicionais forem protegidos. Amazônia: [S. n.], 2019. 1 vídeo (4 min). Publicado pelo canal Rede TVT. Disponível em: https:// www.youtube.com/watch?v=WLDYEfitwpE. Acesso em: 20 ago. 2020. PASSMORE, J. Atitudes frente à natureza. Cadernos de História UFPE, v. 11, n. 2, jul./ dez. 1996. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/cadernosdehistoriaufpe/ article/view/110029. Acesso em: 20 ago. 2020. POSEY, D. Consequê ncias ecoló gicas da presenç a do Í ndio Kayapó na Amazô nia: recursos antropoló gicos e direitos de recursos tradicionais. In: CAVALCANTI, C. (org.). Desenvolvimento e natureza: estudos para uma sociedade sustentá vel. 2. ed. Sã o Paulo: Cortez. Recife: Fundaç ã o Joaquim Nabuco, 1998. SANTOS, M. M. Direitos de propriedade intelectual na á rea bioló gica. Campinas: André Tosello, 1996. Cultura e meio ambiente12