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Religião
Prof.a Débora Vanessa Régis Ferreira Sampaio
Prof. Jefferson Rodrigues de Oliveira
geogRafia
CultuRal e da
Indaial – 2020
1a Edição
Impresso por:
Elaboração:
Prof.a Débora Vanessa Régis Ferreira Sampaio
Prof. Jefferson Rodrigues de Oliveira
Copyright © UNIASSELVI 2022
Revisão, Diagramação e Produção:
Equipe Desenvolvimento de Conteúdos EdTech
Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI
Ficha catalográfica elaborada pela equipe Conteúdos EdTech UNIASSELVI
S192g
Sampaio, Débora Vanessa Régis Ferreira
Geografia cultural e da religião. / Débora Vanessa Régis Ferreira
Sampaio; Jefferson Rodrigues de Oliveira. – Indaial: UNIASSELVI, 2020.
250 p.; il.
ISBN 978-65-5663-234-6
ISBN Digital 978-65-5663-235-3
1. Fenômenos geográficos culturais. - Brasil. I. Oliveira, Jefferson
Rodrigues de. II. Centro Universitário Leonardo Da Vinci.
CDD 900
Caros alunos, este livro reúne uma série de discussões textuais
referentes à compreensão da geografia cultural discutida amplamen-
te nas academias, principalmente após o processo de renovação, que
fomentou os debates mais recentes desse significativo subcampo da
ciência geográfica.
As Unidades 1, 2 e 3 têm, como objetivo, proporcionar uma base formativa sólida
que auxilie a interpretar os fenômenos geográficos culturais que ocorrem no espaço e,
sobretudo, poder encontrar referências científicas que possam amparar suas futuras
pesquisas. Os assuntos discutidos encontram-se tangenciados frente à conceituação e
ao entendimento de pensadores, desde os séculos passados ao contemporâneo, como
geógrafos, antropólogos e sociólogos.
Esses capítulos abordarão, especificamente, as diferentes transformações
na geografia, através de um breve histórico ou resgate da história do pensamento
geográfico. Desde as interpretações clássicas e seus fundamentos da base inicial,
buscaremos compreender as relações entre cultura, espaço e algumas das diferentes
dimensões de análise e estudo, assim, poderemos verificar como a geografia e sua
dimensão espacial estão em toda parte.
Nessas circunstâncias, apresentamos a importância da cultura para os estudos,
como esta veio a ser percebida, analisada e incorporada aos estudos culturais da
geografia através das disciplinas Geografia Cultural e Geografia da Religião.
Sugerimos, a você, enquanto graduando e futuro profissional da geografia,
aprofundar seus conhecimentos a partir desse estudo, envolvendo leitura, reflexões e
discussões sobre o campo da geografia cultural. Apesar de estar sendo difundida no
Brasil desde o começo da década de 1990, ainda precisa ser explorada e amplamente
estudada, tendo em vista seu aspecto dinâmico, popular e diverso, mediante a
heterogeneidade da cultura brasileira.
Honrosamente, convidamos você para, a partir do material didático, aprender e
compreender um pouco mais sobre o subcampo que ultrapassou a marca centenária.
Essa jornada, baseada entre homem, espaço e cultura, parece longa, mas ainda possui
muito a ser desvendada, depende, inclusive, de você, futuro geógrafo da geografia
cultural. Desejamos bons estudos!
Prof.a Débora Vanessa Régis Ferreira Sampaio
Prof. Jefferson Rodrigues de Oliveira
APRESENTAÇÃO
GIO
Olá, eu sou a Gio!
No livro didático, você encontrará blocos com informações
adicionais – muitas vezes essenciais para o seu entendimento
acadêmico como um todo. Eu ajudarei você a entender
melhor o que são essas informações adicionais e por que você
poderá se beneficiar ao fazer a leitura dessas informações
durante o estudo do livro. Ela trará informações adicionais
e outras fontes de conhecimento que complementam o
assunto estudado em questão.
Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos
os acadêmicos desde 2005, é o material-base da disciplina.
A partir de 2021, além de nossos livros estarem com um
novo visual – com um formato mais prático, que cabe na
bolsa e facilita a leitura –, prepare-se para uma jornada
também digital, em que você pode acompanhar os recursos
adicionais disponibilizados através dos QR Codes ao longo
deste livro. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura
interna foi aperfeiçoada com uma nova diagramação no
texto, aproveitando ao máximo o espaço da página – o que
também contribui para diminuir a extração de árvores para
produção de folhas de papel, por exemplo.
Preocupados com o impacto de ações sobre o meio ambiente,
apresentamos também este livro no formato digital. Portanto,
acadêmico, agora você tem a possibilidade de estudar com
versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador.
Preparamos também um novo layout. Diante disso, você
verá frequentemente o novo visual adquirido. Todos esses
ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos
nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos,
para que você, nossa maior prioridade, possa continuar os
seus estudos com um material atualizado e de qualidade.
Acadêmico, você sabe o que é o ENADE? O Enade é um
dos meios avaliativos dos cursos superiores no sistema federal de
educação superior. Todos os estudantes estão habilitados a participar
do ENADE (ingressantes e concluintes das áreas e cursos a serem
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para complementar a sua compreensão acerca do ENADE. Confira,
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e dinamizar, ainda mais, os seus estudos –, nós disponibilizamos uma diversidade de QR
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ENADE
LEMBRETE
Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma
disciplina e com ela um novo conhecimento.
Com o objetivo de enriquecer seu conheci-
mento, construímos, além do livro que está em
suas mãos, uma rica trilha de aprendizagem,
por meio dela você terá contato com o vídeo
da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complementa-
res, entre outros, todos pensados e construídos na intenção de
auxiliar seu crescimento.
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Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada!
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SUMÁRIO
UNIDADE 1 — UMA VERSÃO INTRODUTÓRIA DA HISTÓRIA DA GEOGRAFIA
CULTURAL, CONTEXTOS, ABORDAGENS, RETRAÇÕES E
DESENVOLVIMENTO .........................................................................1
TÓPICO 1 — AS INTERFACES DA APLICABILIDADE DA CULTURA NO
ÂMBITO DO DESENVOLVIMENTO DA GEOGRAFIA ............................ 3
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 3
2 CULTURA: UMA PERCEPÇÃO DINÂMICA .......................................................... 5
3 O INTERESSE DA GEOGRAFIA PELA CULTURA E A GEOGRAFICIDADE DA
GEOGRAFIA CULTURAL .................................................................................... 14
RESUMO DO TÓPICO 1 ..........................................................................................22
AUTOATIVIDADE ...................................................................................................24
TÓPICO 2 — UMA REFERÊNCIA AOS PERÍODOS DE DESENVOLVIMENTO
DA GEOGRAFIA CULTURAL .............................................................. 27
1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 27
2 GEOGRAFIA CULTURAL – FASE I - AS PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES:
CULTURA E GEOGRAFIA, O DESVENDAR A PARTIR DE UMA GEOGRAFIA
ENRIJECIDA .......................................................................................................29
3 OS ESTUDOS DE CARL SAUER E SUA IMPORTÂNCIA ..................................... 31
4 GEOGRAFIACULTURAL – FASE II – TRANSFORMAÇÕES NO CAMPO
GEOGRÁFICO E O HIATO NOS ESTUDOS DA CULTURA ...................................39
5 GEOGRAFIA CULTURAL – FASE III – IMATERIALIDADE E RENOVAÇÃO .........42
RESUMO DO TÓPICO 2 ......................................................................................... 48
AUTOATIVIDADE ...................................................................................................49
TÓPICO 3 — A CENTRALIDADE DA ABORDAGEM DA GEOGRAFIA
CULTURAL NO BRASIL: UM CAMINHAR PARALELO ENTRE A
ORIGEM, “NEGLIGÊNCIA” E DINAMISMO ........................................ 51
1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 51
2 GEOGRAFIA CULTURAL NO BRASIL: UMA PRÉVIA DAS PRIMEIRAS
INCURSÕES ........................................................................................................52
3 GEOGRAFIA CULTURAL: UM CAMPO NEGLIGENCIADO NO BRASIL ...............55
4 O FLORESCER DOS ESTUDOS CULTURAIS PÓS-1980 .................................... 57
5 PRINCIPAIS DIFUSORES: A EXPANSÃO E O INTERESSE DA GEOGRAFIA
CULTURAL .........................................................................................................59
6 A PRODUÇÃO DA GEOGRAFIA CULTURAL NO BRASIL .................................... 61
LEITURA COMPLEMENTAR ..................................................................................63
RESUMO DO TÓPICO 3 ..........................................................................................69
AUTOATIVIDADE ...................................................................................................70
UNIDADE 2 — ESPAÇO E CULTURA: UM BALANÇO FUNDAMENTAL,
UM CAMINHO PARA A CONTEMPORANEIDADE ........................... 73
TÓPICO 1 — APROFUNDAMENTO DAS PERSPECTIVAS E APLICAÇÕES
DO CONHECIMENTO GEOGRÁFICO FRENTE À INTERPRETAÇÃO
DA GEOGRAFIA CULTURAL .............................................................. 75
1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 75
2 GEOGRAFIA: O CONHECIMENTO QUE ESTÁ EM TODA PARTE? ...................... 76
2.1 NOTAS: DO NASCIMENTO DA GEOGRAFIA ESCOLAR A UMA GEOGRAFIA
UNIVERSITÁRIA .................................................................................................................. 87
3 ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS DA GEOGRAFIA CULTURAL: UMA BREVE
COMPREENSÃO ....................................................................................................93
RESUMO DO TÓPICO 1 ..........................................................................................98
AUTOATIVIDADE .................................................................................................100
TÓPICO 2 — APOIOS, DINAMISMO E RESISTÊNCIA DA COMPOSIÇÃO DA
GEOGRAFIA CULTURAL .................................................................. 101
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 101
2 PAUL CLAVAL E OS ESTUDOS CULTURAIS ....................................................102
3 FORMAS SIMBÓLICAS ESPACIAIS: BREVES APONTAMENTOS ....................105
RESUMO DO TÓPICO 2 ........................................................................................124
AUTOATIVIDADE ................................................................................................. 125
TÓPICO 3 — POSSIBILIDADES DE ESTUDO A PARTIR DA COMPREENSÃO
DAS DIMENSÕES CULTURAIS DO ESPAÇO ................................... 127
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 127
2 PAISAGEM CULTURAL, TERRITÓRIO, TERRITORIALIDADE E
IDENTIDADE: COMPOSTOS NA GEOGRAFIA CULTURAL ...............................128
3 DIMENSÕES ESPACIAIS ATRAVÉS DA LITERATURA, MÚSICA POPULAR
E IMAGEM .........................................................................................................143
4 INTRODUÇÃO DA GEOGRAFIA CULTURAL EM SALA DE AULA .....................146
LEITURA COMPLEMENTAR ................................................................................ 156
RESUMO DO TÓPICO 3 ........................................................................................ 159
AUTOATIVIDADE .................................................................................................160
UNIDADE 3 — ESPAÇO E RELIGIÃO: UMA ABORDAGEM GEOGRÁFICA ............161
TÓPICO 1 — ESPAÇO E RELIGIÃO: UMA ABORDAGEM GEOGRÁFICA .............. 163
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 163
2 DISCUSSÕES .................................................................................................... 167
3 RELIGIÃO E SUA ESPACIALIDADE: REPETIÇÃO DA HIEROFANIA INICIAL .....173
4 CATEGORIAS DE ANÁLISE: SAGRADO E PROFANO ...................................... 174
4.1 AS DIMENSÕES DE ANÁLISE..........................................................................................176
5 HIERÓPOLIS OU CIDADES-SANTUÁRIO......................................................... 178
6 O ESTUDO GEOGRÁFICO DAS PEREGRINAÇÕES ..........................................186
LEITURA COMPLEMENTAR ................................................................................190
RESUMO DO TÓPICO 1 .........................................................................................191
AUTOATIVIDADE ................................................................................................. 193
TÓPICO 2 — O SAGRADO E A CIDADE: OLHARES SIMBÓLICOS RELIGIOSOS ..... 195
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 195
2 A CIDADE: TRANSFORMAÇÕES E PROCESSOS ............................................. 197
2.1 A HISTÓRIA DA CIDADE: AS VERSÕES E OS OLHARES .......................................... 201
3 O SAGRADO E O URBANO: UMA INTRÍNSECA RELAÇÃO? ........................... 204
4 O FOGO SAGRADO, O COLETIVO E AS PRIMEIRAS CIDADES .......................207
5 O SAGRADO E O URBANO: GÊNESE E FUNÇÃO DAS CIDADES .....................210
RESUMO DO TÓPICO 2 ........................................................................................ 213
AUTOATIVIDADE ................................................................................................. 215
TÓPICO 3 — NOVAS DINÂMICAS DO SÉCULO XXI – RELIGIÃO E
HIPERMODERNIDADE .................................................................... 217
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 217
2 TERRITÓRIO E TERRITORIALIDADE RELIGIOSA ON-LINE:
NOVAS ESTRATÉGIAS DE DIFUSÃO A PARTIR DAS MÍDIAS ......................... 221
3 TV, RÁDIO E INTERNET: O PODER DAS MÍDIAS NA DIFUSÃO DA FÉ ............ 225
4 A RELIGIÃO E AS NOVAS INTERFACES DO SAGRADO NAS ERAS 2.0
E 3.0: AS PEREGRINAÇÕES ON-LINE .............................................................227
5 O SAGRADO E O PROFANO NA ERA HIPERMODERNA .................................. 230
RESUMO DO TÓPICO 3 ....................................................................................... 233
AUTOATIVIDADE ................................................................................................ 235
REFERÊNCIAS .....................................................................................................237
1
UNIDADE 1 —
UMA VERSÃO INTRODUTÓRIA
DA HISTÓRIA DA GEOGRAFIA
CULTURAL, CONTEXTOS,
ABORDAGENS, RETRAÇÕES E
DESENVOLVIMENTO
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
PLANO DE ESTUDOS
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:
• identificar a relação da geografia com as ciências sociais, principalmente com as
áreas da antropologia e sociologia, a partir das nuanças e atualizações do conceito
de cultura, o qual fundamenta os estudos da geografia cultural;
• compreender a geografia culturalenquanto subcampo da ciência geográfica, dedicada
ao estudo das relações do ser humano (fenômenos espaciais), manifestações
culturais, ou seja, das dimensões espaciais da cultura;
• discutir, a partir do estado da arte, o processo da gênese da geografia cultural e o
desenvolvimento da sua dinâmica de renovação;
• analisar a criação da geografia cultural no Brasil, suas influências, interfaces e
heterogeneidade do campo brasileiro.
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de
reforçar o conteúdo apresentado.
TÓPICO 1 – AS INTERFACES DA APLICABILIDADE DA CULTURA NO ÂMBITO DO
DESENVOLVIMENTO DA GEOGRAFIA
TÓPICO 2 – UMA REFERÊNCIA AOS PERÍODOS DE DESENVOLVIMENTO DA GEOGRAFIA
CULTURAL
TÓPICO 3 – A CENTRALIDADE DA ABORDAGEM DA GEOGRAFIA CULTURAL NO
BRASIL: UM CAMINHAR PARALELO ENTRE A ORIGEM, “NEGLIGÊNCIA” E
DINAMISMO
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.
CHAMADA
2
CONFIRA
A TRILHA DA
UNIDADE 1!
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3
AS INTERFACES DA APLICABILIDADE
DA CULTURA NO ÂMBITO DO
DESENVOLVIMENTO DA GEOGRAFIA
TÓPICO 1 — UNIDADE 1
1 INTRODUÇÃO
Sejam bem-vindos! A partir de agora, vocês estão convidados a
navegar em um mar de conhecimento que, por muito tempo, foi negli-
genciado pela comunidade acadêmica geográfica: a geografia cultural,
um campo da geografia humana que se firmou cientificamente e temporalmente. Su-
pera mais de 100 anos de história do pensamento geográfico, tendo, como focos, as
análises baseadas entre homem, espaço e cultura.
Neste tópico, são desenvolvidas, além da introdução, as temáticas “a cultura:
uma percepção dinâmica” e “o interesse da geografia pela cultura e a geograficidade da
geografia cultural”. Ainda, há o resumo referente ao tópico e as atividades, auxiliando o
processo de aprendizagem.
Quando trouxemos “a cultura: uma percepção dinâmica”, tivemos, como prin-
cípio, apresentar, de maneira breve, porém contextualizada e embasada, os processos
evolutivos sobre a definição do termo cultura, respeitando cada momento, aconteci-
mentos em escalas mundiais e influência epistemológica. O assunto discutido encon-
tra-se tangenciado frente à conceituação e ao entendimento de pensadores desde os
séculos passados ao mais atual. É possível encontrar geógrafos, antropólogos e soció-
logos: Edward Burnett Tylor, Franz Uri Boas, Alfred Kroeber, Cliford Geertz e Stuart Hall.
Passamos da definição determinista de cultura inspirada no darwinismo evolu-
cionista, as abordagens sobre o particularismo histórico de Boas, a teoria supraorgânica
de Kroeber, a teoria interpretativista apontada por Geertz e, por fim, o multiculturalismo
compreendido por Hall.
4
Caros estudantes, o conteúdo possui extensa literatura. Como meio
auxiliar, a biblioteca virtual possui o livro do antropólogo Roque de
Barros Laraia, intitulado Cultura: um conceito antropológico.
No título, o autor consegue expor um histórico sobre a histórica
definição e conceito de cultura, as influências sobre a formação social
por meio da cultura e a dinamicidade e diversidade da cultura entre os
homens. Considera-se uma literatura clássica auxiliar, cujo objetivo é,
de maneira acessível e introdutória, esclarecer o estudo sobre cultura.
DICA
Trazemos, com clareza, que a compreensão conceitual sobre cultura passou
por transformações ao longo do tempo, perpassando caminhos, perdendo e ganhando
estruturas, não indicando graus de inferioridade ou superioridade quanto às abordagens,
mas uma construção de conhecimentos baseados em possibilidades distintas, tendo,
por exemplo, a aproximação da geografia entre alguns campos da humanidade, cujo
resultado rende uma produção interdisciplinar rica, valorizando a dinâmica espaço-
temporal.
O segundo tema, “o interesse da geografia pela cultura e a geograficidade da
geografia cultural”, vem sincronizar com o conteúdo estudado anteriormente, retomando
os pontos de contato entre a ciência geográfica e a cultura. São apresentadas narrativas
geográficas que sustentam cientificamente a geografia cultural e seu interesse pela
espacialidade, este compreendido pela formação de território, poder, territorialidade,
lugar, espaços e paisagens.
Seguimos tratando das novas possibilidades de interpretar as relações socioes-
paciais a partir da importância da cultura na geografia, desconstruindo as barreiras an-
teriormente formadas na macroesfera da disciplina. A temática afirma que os fenôme-
nos geográficos também carregam traços culturais que podem ser desvendados pela
geografia cultural. Embora essa discussão possa parecer retrógrada e aparentemente
resolvida, acredite, ainda é recorrente. Especulações circulam indagando sobre a origi-
nalidade do ramo e se ele, efetivamente, faz parte dos estudos da ciência geográfica.
Por fim, são apresentadas e discutidas nove estruturas culturais da ciência
geográfica: O conhecimento do mundo sempre se faz através das representações;
A cultura é construída a partir de elementos transmitidos ou inventados; A cultura
existe através dos indivíduos que a recebem e a modificam, eles se constroem como
indivíduos no processo; O processo da construção da cultura também é um processo
social; A construção do indivíduo como ser social se traduz pelo nascimento de sentidos
de identidade; A construção da sociedade pela cultura; A construção do espaço pela
cultura; A gênese dos sistemas de crenças e valores e Cultura e ideologias comunitárias.
Bons estudos!
5
2 CULTURA: UMA PERCEPÇÃO DINÂMICA
Certamente, enquanto indivíduos, estudantes e futuros profissionais da
ciência geográfica, vocês já ouviram ou fizeram alusão ao termo “cultura”, certo? Assim,
independentemente das circunstâncias, experiências pessoais ou regionais, optamos
por percorrer os caminhos existentes da (re)construção, elencando as possibilidades
do emprego conceitual da cultura no âmbito acadêmico, cujo foco ampara a geografia
cultural.
Então, primeiramente, para promover essa apresentação, Corrêa (2009) contribui
afirmando que, a cultura, enquanto vocábulo, possui uma diversidade de colocações e
significados, desde o senso comum, o qual não deve ganhar força na aprendizagem em
questão, até nas discussões conceituais, que adentram as matrizes acadêmicas nas
ciências sociais.
No momento inicial da leitura, façamos uma proposta, cujo objetivo indica uma
compreensão histórica dos fatos, realidade acadêmica e período da construção conceitual
do termo cultura. Realize uma retrospectiva, mediante seu conhecimento, quanto à gênesis
da ciência geográfica e seus desafios epistemológicos. Seria possível? Caso contrário,
apresentaremos um contexto inicial.
As concepções epistemológicas no meio científico, antes do Século XX, predo-
minavam sob o aspecto positivista e, posteriormente, neopositivista. Majoritariamente,
os geógrafos mantinham alicerces naturalistas nas pesquisas. As análises sobre o am-
biente, sociedade e cultura eram, basicamente, explicadas mediante as leis naturais.
Caros alunos, atenham-se à palavra epistemologia com uma certa dose de atenção,
porque ela tem estado, com frequência, no ambiente acadêmico, nas aulas ministradas,
livros, e outros meios de busca, mas o seu uso excessivo ou mal alocado, por vezes,
distorce seu conceito essencial. A palavra “epistemologia” tem origem no grego, equivale
à episteme + logos = conhecimento científico, explicação, discurso, opinião. Essa
sentença, criada no Século XX, teve o objetivo de superar a perspectiva
unívoca e homogênea da concepção da filosofia da ciência encontrada
na linha positivista. Ainda, tratar, de maneira crítica, construtiva e
democrática, o conhecimento científico, como apresenta Gomes (2009,
p. 14): “[...] discutir criticamenteas formas de construir um pensamento
científico não quer dizer se transformar, em um tribunal, para julgar a
sua conformidade ou não em relação a um modelo único e ideal, ao
contrário”. Esse entendimento conclui que não existe uma fórmula
determinante para fazer ciência, principalmente, a geográfica, pois
cada fenômeno demonstra uma singularidade e dinâmica.
ATENÇÃO
6
Seguindo na perspectiva predominante de análise epistemológica, encontramos
a definição antropológica de cultura que, não obstante da realidade conceitual da
geografia, também foi compreendida sob o ponto de vista das dinâmicas naturais e
do princípio empirista e sistemático. Contudo, como todo texto possui um contexto,
traremos alguns precedentes que auxiliaram o descortinar da definição inicial da cultura
cujas influências pairaram sobre o desenvolvimento da geografia cultural.
Entre o Século XVIII e XIX, duas palavras foram polarizadas entre germânicos
e franceses. Seccionados como os antecedentes históricos do conceito de cultura,
os termos Kultur e Civilization intuíam considerações primárias: o primeiro refletia sob
as convicções espirituais de um grupo de indivíduos denominado de comunidade
e, o segundo, sobre as conquistas de ordem material de um povo. Com o intuito de
unificar as duas convicções em torno da cultura, Edward Burnett Tylor, nos anos de
1871, apresentou a culture, vocabulário inglês que sistematizava oficialmente a primeira
definição da cultura.
FIGURA 1 – SÍNTESE DA PRIMEIRA DEFINIÇÃO DE CULTURA
FONTE: O autor
Kultur
Civilization
Culture
Configura-se que a criação das primeiras nomenclaturas dadas por países da
Europa Ocidental, para interpretar o complexo social, sinalizou que havia uma inquietação
pelo estudo da sociedade, ou melhor, pelas interfaces de arranjos condizentes com
formação social. Os temas de maiores proporções de estudos, na primeira metade do
Século XIX, estavam relacionados à etnografia dos grupos humanos, suas técnicas,
obras, além das línguas, crenças e tradições (CLAVAL, 2011).
A compilação efetuada por Tylor trouxe, com imponência, a voz que definiu a
cultura dentre os estudos da antropologia, porém, história apontou que não foi a única.
As discussões no universo conceitual têm uma longa jornada, esta que antecedeu e
procedeu a interpretação de culture.
7
Edward Burnett Tylor
Abreviadamente conhecido como Tylor (1832 -1917). Um britâni-
co, antropólogo, cujas atividades foram relacionadas à escola do
evolucionismo social. Foi considerado o pai do conceito moderno
de cultura.
NOTA
Tylor trouxe, como capacidade interpretativa, a causa e regularidade para
cultura, afirmando que ela não faz parte do código genético do indivíduo, não nasce com
características culturais próprias, mas a cultura passa a ser concebida de todas as coisas
que são adquiridas por meio da aprendizagem na sociedade. Como exemplos, símbolos,
práticas, técnicas e tantos outros que formam ciclos de práticas que desenvolvem a
cultura (CLAVAL, 2011).
Sobre a compreensão de cultura, Wagner e Mikesell (2011) introduzem a
temática sinalizando que, em pessoas cujas vivências são em grupos, torna-se comum
apresentar tendências de comportamentos semelhantes, como o pensar e o agir. Tais
atributos são justificados pela rotina de vida e por referências únicas de condiscípulos e
mestres. Compartilham e difundem, em um mesmo nicho, suas relações de trabalhos,
conversas, observações, aprendizagem, significado, rituais e recordações do passado
igualmente vivenciado, ou seja, a definição Tyloriana de cultura acreditou que “[...] o
meio ambiente podia determiná-la ou influenciá-la” (CLAVAL, 2011, p. 6), argumento que
caracterizou uma associação com o determinismo geográfico.
Wagner e Mikesell (2011) destacam que, naquele século, a noção de cultura
se abstinha de estudar o ser enquanto indivíduo único, segundo características
particulares. Contudo, havia destaque no estudo de grupos de pessoas que prontamente
estivessem tomado posse de áreas espaciais amplas e bem demarcadas, além daquelas
que já fossem estabelecidas em suas crenças e comportamentos, pois essas poderiam
identificar ou distinguir entre comunidades evolutivas.
Tylor abriu mão do relativismo cultural e desconheceu os vários caminhos da
cultura. A definição de cultura, inspirada no darwinismo evolucionista que, a princípio,
fundamentou e representou para muitos estudiosos das ciências humanas, entre eles
etnólogos, antropólogos e geógrafos, outrora foi considerada simplista, pois congregava
um termo, uma concepção seccionada sobre toda a diversidade e complexidade das
relações humanas. A exemplo da abordagem unilinear realizada como método de análise
entre civilizações e tribos selvagens.
8
A abordagem unilinear foi um método de análise que, sugestivamente, media
os pares (seres humanos) de continentes diversos, segundo uma régua de estágios
evolutivos. A regra evidenciava que, historicamente, uma sociedade passava por
três fases: a primeira, de selvageria, a segunda, de barbarismo, até chegar ao ultimo
grau, a civilização. Sugestivamente, povos eram dimensionados e expostos a uma
supervalorização e subestimação. Foram sinalizadas, mediante a unilinearidade, as
diferenças latentes entre as tribos indígenas brasileiras e civilizações da Europa.
Franz Uri Boas (1858-1942)
O criador da escola cultural americana nasceu na cidade alemã
de Westfália, mas projetou sua carreira nos Estados Unidos
desde 1886. Apesar de ter estudado nas áreas da física e da
geografia com o professor Ratzel, foi na antropologia que se
descobriu quando fez uma expedição geográfica até a ilha
Baffinland – Canadá. Uma experiência com os esquimós o tornou
o antropólogo da era moderna.
NOTA
Longe de uma conceituação acabada, um outro capítulo sobre a história da
evolução do conceito de cultura foi formado, dessa vez, com Franz Boas, no circuito da
antropologia, entre os anos de 1920-1930 do Século XX (CLAVAL, 2011).
Franz Boas ficou conhecido por se contrapor ao método evolucionista unilinear
e ser contra a teoria do determinismo geográfico quando propagada pela capacidade
generalizadora, referindo-se à normatização da influência geográfica acerca dos
fundamentos culturais de um povo.
O determinismo geográfico considera que as diferenças do ambiente físico
condicionam a diversidade cultural. São explicações existentes desde a Antiguidade,
das formuladas por Pollio, Ibn Khaldun, Bodin e outros. Na virada do Século XIX para o
XX, teorias foram popularizadas e vigorosamente estudadas por geógrafos. A publicação
de obras contribuiu para a expansão do determinismo geográfico. Para a análise, foram
utilizados dois parâmetros, a latitude e os centros de civilização, tomando, como verdade
absoluta, que as regiões dependiam do clima como um condicionante para o progresso.
Ele se diferenciou por erguer a bandeira da ‘diversidade cultural’, inclusive,
entre entes de uma mesma região, difundindo que existia um particularismo histórico.
Boas, enquanto antropólogo, questionou explicações da sociedade e cultura por meio
único de leis evolucionistas, direcionando uma crítica a modos limitados dos métodos
comparativos.
9
De maneira explicativa, a partir de uma abordagem multilinear, Boas sugeriu a
antropologia abdicar do método simples da comparação e fazer análises culturais dos
povos/regiões mediante dois caminhos: primeiro, partindo do pressuposto de que todo
povo ou região possui uma história, para melhor compreensão da realidade, tornava-
se importante fazer uma reconstrução histórica; o segundo, de caráter complementar,
pois traçava um comparativo da relação social entre povos distintos, segundo leis
semelhantes.
Como formador cultural de inúmeros antropólogos, Franz Boas foi uma grandereferência para o antropólogo Alfred Kroeber, um nome que cresceu na sociedade
acadêmica frente à teoria supraorgânica (CORRÊA, 2009).
Kroeber elaborou uma perspectiva da cultura segundo a gênese da vida humana.
Para ele, o processo de desenvolvimento do homem começa pelo nível inorgânico,
orgânico, até a ordem social ou cultural, que se sobrepõe aos demais níveis (CORRÊA,
2009).
No decorrer dos primeiros vinte e cinco anos do Século XX, o desenvolvimento
de outro ciclo na reelaboração do conceito de cultura foi formado. Agora, os aspectos
biológicos/naturais, dados em hegemonia nas análises anteriores, foram interrompidos
em virtude do novo valor empregado à cultura. A “[...] cultura era vista como uma
entidade acima do homem, não redutível às ações do indivíduo e, misteriosamente,
contemplando as leis próprias” (DUNCAN, 2011, p. 64).
Conforme Duncan (2011), os principais holistas transcendentais, criadores da
teoria que elevou a cultura a um patamar de superioridade naquele período, foram os
antropólogos Alfred Kroeber e Robert Lowie. Logo adiante, Leslie White pôde prosseguir
com a tese neoevolucionista.
Kroeber redirecionou a antropologia americana, de um determinismo geográfico
na perspectiva da cultura, para um determinismo puramente cultural. Para a teoria
supraorgânica, os valores funcionavam como código, este que controlava as mentes
humanas e, por conseguinte, suas atividades desenvolvidas. Os indivíduos passaram a
ser reconhecidos como simples coadjuvantes da suprema cultura, apenas com a função
de porta-voz, levando-a por diferentes regiões e períodos (DUNCAN, 2011).
Para Kroeber, a realidade, a natureza do desenvolvimento humano tinha um
formato estabelecido por ordem de prioridades, um cenário no qual a cultura pairava
sob os demais seguimentos, representados em níveis hierárquicos, livres de explicações
associativas entre si (DUNCAN, 2011).
10
FIGURA 2 – COMPOSIÇÃO DA REALIDADE APRESENTADA POR KROEBER
FONTE: O autor
Cultural/Social
Psicológico/Biofísico
Orgânico
Inorgânico
A criação e a veneração pela cultura, como uma entidade autônoma, não
tinham apenas um sentido conceitual, mas objetivos internos da antropologia enquanto
ciência. Assim, “[...] ao elevar a cultura a um nível superior, o antropólogo não tinha mais
necessidade dos indivíduos e, portanto, não precisavam dos processos psicológicos”
(DUNCAN, 2011, p. 67). Trava-se de discutir a cultura sem, necessariamente, interligar
explicações com os fundamentos ou níveis. Sendo protegida dos demais aspectos,
tornava-se um meio autêntico de pesquisa da antropologia.
Para além daquele fato, a visão do holismo transcendental massificou pontos
fundamentais para o período na antropologia e, por conseguinte, influenciou outras
ciências que utilizavam as bases conceituais. É possível que, nesta parte do texto, você
esteja se perguntando: o que seria o holismo transcendental? Discutimos, anteriormente,
que, para Kroeber e demais antropólogos, os indivíduos com suas aparentes atividades
assumiram um papel de meros agentes passivos frente a ordens de algo superior.
“Os holistas acreditam que eventos de larga escala, como o declínio de nações, são
autônomos e amplamente independentes dos indivíduos que participam” (DUNCAN,
2011, p. 66).
Caros alunos, a definição de cultura, realizada por Tylor e tantos outros
antropólogos, passou por críticas a partir da perspectiva de Geertz (2008, p. 3). Ele
expõe que “[...] todavia, esse padrão se confirma no caso do conceito de cultura, em
torno do qual surgiu todo o estudo de antropologia e cujo âmbito tem se preocupado
cada vez mais em limitar, especificar, enforcar e conter”.
Segundo Claval (2011), após os anos 1940-1970, a perspectiva que compreendia
a cultura como algo não redutível ao ser, apesar de haver ampla influência, passou a ser
substituída, pois as relações mundiais passavam por mudanças, motivo que influenciou
a ciência a redirecionar olhares para além da materialidade da vida, técnicas produtivas.
11
Para a ciência, não bastava apenas apresentar os efeitos que os fenômenos
culturais causavam na sociedade. Era preciso atribuir, ao indivíduo, o real valor da sua
visão de autóctone, explicar mais que a permanência das estruturas, compreendendo
suas evoluções e história (CLAVAL, 2011).
Considera-se que os antropólogos da América do Norte, após 1970, apresentaram
mais fortemente outro rumo conceitual de cultura, concepções epistemológicas cuja
abordagem trilhava as dimensões simbólicas (CLAVAL, 2011).
Para entender a cultura, Geertz (2008) fez algumas análises sobre o processo
de evolução biológica do homem, refutando a teoria do ponto crítico (ao entendimento
de que a cultura apareceu abruptamente) e, fundamentando-se na paleontologia e
arqueologia, criou algumas hipóteses, entendendo que a cultura vem de um processo
anterior ao desenvolvimento orgânico, a passos ininterruptos, porém lentos. Na sua
teoria, o homem foi um produto da cultura, mas logo tornou-se também um produtor,
acumulando e a desenvolvendo dentro de um processo complexo.
Geertz (2008) menciona que, no período da efervescência do Iluminismo, uma
máxima foi dita por Whitehead para as ciências naturais, foi assumida pelas ciência
sociais como um ideal científico autorizando noções simplistas para a compreensão da
cultura. Segundo o ditado “confie, desconfiando” da simplicidade, para Geertz, o estudo
do homem estava intrinsicamente ligado à cultura, logo, em tons de crítica, ele propôs
que autor da máxima buscasse afirmar o contrário para as ciências sociais: “[...] procure
a complexidade e ordene-a” (GEERTZ, 2008, p. 25).
A perspectiva iluminista do homem era, naturalmente, a de que ele
constituía uma só peça com a natureza e partilhava da uniformidade
geral de composição que a ciência natural havia descoberto sob o
incitamento de Bacon e a orientação de Newton. Resumindo, há uma
natureza humana tão regularmente organizada, tão perfeitamente
invariante e tão maravilhosamente simples como o universo de
Newton. Algumas de suas leis talvez sejam diferentes, mas existem
leis. Parte da sua imutabilidade talvez seja obscurecida pelas
armadilhas da moda local, mas ela é imutável (GEERTZ, 2008, p. 25).
Geertz buscou significar o homem mediante a definição de cultura. Absteve-
se da idealização da clássica ciência antropológica, que foi responsável por criar um
modelo ideal de homem, mas o fato desenvolvido evidencia a diversidade cultural em
contraponto a uma unicidade da espécie humana.
Geertz (2008) demonstra que a cultura, no sentido amplo, não se limita, não
determina, ela circula, é livre, democrática, pode ser partilhada entre as pessoas. O ser
independente de faixa etária sempre estará pronto para vivenciar limitadamente uma
parte da cultura, pois compreendê-la em suas várias dimensões e plenitude seria como
correr junto à persistente dinâmica de significados dos elementos culturais.
12
Numa perspectiva demonstrativa, as dimensões simbólicas se aplicavam às di-
versas práticas sociais e suas interligações, ao contrário dos processos de generaliza-
ção e segmentação de análises, como propõe Geertz (2008, p. 21):
Olhar as dimensões simbólicas da ação social - arte, religião,
ideologia, ciência, lei, moralidade, senso comum - não é afastar-se
dos dilemas existenciais da vida em favor de algum domínio empírico
de formas não emocionalizadas. É mergulhar no meio. A vocação
essencial da antropologia interpretativa não é responder às questões
mais profundas, mas colocar, à disposição, as respostas que outros
deram - apascentando outros carneiros em outros vales – e, assim,
incluir no registro de consultas sobre o que o homem falou.
A antropologia interpretativa identificadana essência dos estudos de Geertz
buscava neutralizar qualquer significado fixo para teorizar a cultura, e sua pesquisa
não se limitou às respostas prontas e acabadas como receitas herdadas. O princípio
do estudo apresentava os mais diversos grupos sociais em relações dinâmicas com as
dimensões simbólicas, significando e ressignificando a cultura.
Cliford Geertz
Ingressou como discente do curso de Antropologia na Universidade de
Harvard - Departamento de Relações Sociais. Posteriormente, como
docente, ensinou por dez anos no Departamento de Antropologia
da Universidade de Chicago, em Princeton. No Instituto de Estudos
Avançados, percorreu uma longa trajetória enquanto professor.
Entre inúmeros ensaios, elaborou o livro A interpretação das Culturas,
no ano de 1973. Como antropólogo, interessou-se em redefinir
dinamicamente o conceito de cultura, mas trabalhou também nas
áreas de desenvolvimento econômico, organização social, história
comparativa e história da ecologia cultural.
NOTA
Outras correntes fizeram parte do processo evolutivo dos estudos de cultura,
e uma é explicada pelo ambiente econômico concebido também pelas guerras. “[...] A
cultura torna-se um instrumento de dominação. É usado pelas classes mais altas para
impor, às classes mais baixas, comportamentos conforme seus interesses” (CLAVAL,
2011, p. 8).
A inserção do marxismo como modo explicativo através da corrente teórica do
materialismo histórico e dialético para a cultura influenciou estudiosos como Gramsci e
Raymond Williams.
13
No período dos anos setenta, embasamentos na área da sociologia, com Stuart
Hall, também trouxeram compreensões sobre os estudos culturais. Ele dinamizou seu
trabalho intelectual, e seu objetivo não era se apropriar de ideias como devoto, nem
retalhar pontos inconsistentes frente seu posicionamento. Além dele:
Deglutiu Marx, Gramsci, Bakhtin. Saboreou Louis Althusser, Raymond
Williams, Richard Hoggort, Fredric Jameson, Richard Rorty, Jacques
Derrida, Michel Foucault, E. P. Thompson, Gayatri Spivak, Paul Gilroy,
com algo de Ien Ang, Cornel West, Homi Bhabha, Michele Wallace,
Judith Butler, David Morley, assim como ingeriu Doris Lessing,
Barthes Weber, Durkheim e Hegel (SOVIK, 2003, p. 10).
Apesar de descordar de alguns pontos relativos à teoria de Marx, Hall foi atraído
pelos atributos do estudo referente à teoria do capital/classe social, de poder/exploração,
e da produção de conhecimento crítico. Ainda, em Gramsci, pôde absorver o estudo
de raça e etnia para compreensão da realidade contemporânea e o multiculturalismo
(SOVIK, 2003).
Hall contribuiu com os paradigmas da teoria da cultura, interessado em pensar
sobre o social e simbólico longe do reducionismo. “[...] Ele persistiu no estudo relação
entre os meios de comunicação e a cultura, o lugar da história no estudo da cultura
contemporânea, a sua epistemologia ou, ainda, a maneira pela qual lê questões das
etnias dominantes e de gênero” (SOVIK, 2003, p. 14).
Stuart Hall (1932)
Sua origem jamaicana auxiliou a escolha por dois motivos de estudo:
preocupações étnicas e anticoloniais. Enquanto intelectual da sociologia,
repensou a cultura frente à globalização. Entre os anos de 1958-1961,
atuou na revista New Left Review, propondo temáticas sobre compreensão
das classes sociais, movimentos sociais e política, desarmamento nuclear
e questões raciais britânicas. Em 1964, na universidade de Birmingham,
foi um dos fundadores do Centre for Contemporary Cultural Studies. Em
1979, foi transferido para a Open University, onde institucionalizou os
estudos culturais britânicos e, em períodos posteriores, pôde constatar o
crescimento dessas pesquisas por diferentes partes do mundo.
NOTA
Cremos que, durante a primeira leitura acerca da cultura enquanto diretriz de
pesquisa acadêmica, você percebeu uma sutil linha do tempo. Ela teve, como propósito,
evidenciar algumas das inúmeras dinâmicas na evolução da definição de cultura. É certo
que não tocamos na totalidade do estudo, tendo em vista que não é nosso objetivo
central, mas apresentamos diferentes períodos, concepções do termo, além de uma
apresentação teórica epistemológica ligada à cultura.
14
3 O INTERESSE DA GEOGRAFIA PELA CULTURA E A
GEOGRAFICIDADE DA GEOGRAFIA CULTURAL
Propomos, nesta fase, que haja uma reflexão sobre a geograficidade da
geografia cultural. Para isso, motivamos você a responder breves perguntas: É possível
tornar geográfico um fenômeno que envolve dimensões religiosas? Como compreender
os territórios além das delimitações físicas? Existem aproximações entre estudos de
identidade e geografia? Certamente, ao longo do processo de conhecimento, outros
inúmeros questionamentos serão realizados, possibilidades de temáticas pesquisadas,
mas atenção quanto à espacialização do fenômeno.
Gomes (2009, p. 27) generosamente esclarece que “há, contudo, sempre
uma análise geográfica quando o centro de nossa questão é a ordem espacial, pouco
importando o tipo de fenômeno [...]”. A geografia cultural possui seus fundamentos
amparados na ciência geográfica e essa unidade pode ser demonstrada a partir da
absorção intelectual nas bases geográficas.
A geografia cultural está associada a experiências que os homens têm da terra,
da natureza e do ambiente. Estuda a maneira pela qual eles modelam para responder às
necessidades, seus gostos e suas aspirações, e procura compreender a maneira como
eles aprendem a se definir, a construir sua identidade e a se realizar (CLAVAL, 1997, p. 89).
FIGURA 3 – RELAÇÃO VISUAL ENTRE A GEOGRAFIA E A GEOGRAFIA CULTURA
FONTE: O autor
Geografia
Geografia
Cultural
Base de estudo para o subcampo
da Geografia Cultural.
Interesses da disciplina Geografia Cultural
• Relação Homem - Espaço;
• Dimensões simbólicas;
• Experiência humana dos sentidos e percepções;
• Estudo da diversidade - integrantes da sociedade.
Como é oriunda da ciência geográfica, é natural que o alicerce da geografia
cultural seja correspondente. Tais fundamentos foram reconhecidos por Claval (2011),
quando apresentou um balanço desses elos mostrando o que vinculam.
15
“[...] A geografia que estuda os grupos humanos se detém nos discursos e
nas representações, uma vez que estas últimas traduzem maneiras de padronização”
(CLAVAL, 1997, p. 93).
A geograficidade é uma nomenclatura referida por Dardel, que propõe a busca
pela decodificação do espaço através do que se sente ou reconhece a partir das distintas
formas atribuídas ao meio. Há categorias: os espaços, lugar, paisagens, naturais ou
artificiais, além da identidade e territorialidade. São estruturas e modo pelo qual o ser
humano pode desenvolver suas habilidades e seu enraizamento existencial.
A seguir, apresentaremos nove pontos sobre os quais a geografia cultural se
baseou para desenvolver suas análises e narrativas.
QUADRO 1 – CONCEPÇÕES ABORDADAS PELA GEOGRAFIA CULTURAL
Relação de aspectos comuns entre Geografia e a Geografia Cultural
I- O conhecimento do mundo sempre se faz através das representações
II- A cultura é construída a partir de elementos transmitidos ou inventados
III- A cultura existe através dos indivíduos que a recebem e a modificam. Eles se constroem
como indivíduos no processo
IV- O processo da construção da cultura também é um processo social
V- A construção do indivíduo como ser social se traduz pelo nascimento de sentidos de
identidade
VI- A construção da sociedade pela cultura
VII- A construção do espaço pela cultura
VIII- A gênese dos sistemas de crenças e valores
IX- Cultura e ideologias comunitárias
FONTE: Adaptado de Claval (2011, p. 16 -19)
Percebe-se que, dentro da abordagem, o homem se destaca. Tal fato caracteriza
a geografia cultural moderna e na perspectiva que discutiremos pontualmente os
conteúdos apresentados.
O primeiro ponto, “o conhecimento do mundo sempre sefaz através das repre-
sentações”, indica que o ser humano, a princípio, não adquire um conhecimento instan-
tâneo sobre os fatos e realidades da terra, pois são distintos, a exemplo das estruturas
de organização espacial e lugares, mas o processo se inicia de maneira básica, com os
sentidos e as sensações liberadas aos primeiros contatos do indivíduo com o mundo.
Claval (1997) afirma que o homem interpreta o mundo por meio dos sentidos
inerentes a ele. Com a visão, observa-se as formas, audição, ruídos e, com olfato,
aromas. “[...] O homem age, primeiramente, em função das indicações que ele recebe
dos sentidos” (CLAVAL, 1997, p. 93).
16
Outra afirmativa do autor supracitado se refere à sensação, garantindo que esta,
apesar de refletir a realidade, apenas torna-se segura quando assume uma condição
estável, ou seja, quando, junto com a sensação, exista uma percepção.
A percepção é um importante elemento da dinâmica das represen-
tações sociais, pois significa o movimento de um sujeito situado na
relação com o concreto em construção. A apreensão que o sujeito
faz a partir dos referenciais faz concluir que a racionalidade não está
imune à ideologia (BOMFIM, 2012, p. 15).
Para Claval (1997), o contexto das representações se pauta em processos
que ocorrem entre indivíduos, relacionando, por exemplo, a educação na troca de
experiências e a construção da realidade e reinterpretação. A estruturação da fase
ocorre no domínio do cognitivo, primeiramente com as sensações adquiridas e, depois,
com a idealização da imagem constituída.
De acordo com o que está sendo desenvolvido e relacionado às representações,
poderíamos questionar qual a finalidade. Claval (1997) sintetiza que as representações
são como tramas, um conjunto de fios entrelaçados que contribuem para que o
indivíduo assimile a realidade, destacando aspectos sociais, geográficos e metafísicos.
Por fim, essas representações subsidiam a criação de valores, alimentando a formação
de ordens regulamentadoras.
Certamente, a discussão ganha rumos discordantes também, pois a realidade
pode não ser refletida fielmente, mas individualizada através da percepção. “[...] Os
homens não agem em função do real, mas em razão da imagem” (CLAVAL, 1997, p. 94).
Se o indivíduo for capaz de captar, questionar, perceber os ambientes, buscando
entender como funciona a criação das representações e, também, sua capacidade de
interferência em escalas macro ou micro, inevitavelmente, sua intenção se alinha às
dimensões da geografia cultural.
As representações são percebidas eficazmente na geografia cultural enquanto
ciência por volta da década de 1980 para 1990. Primeiramente, com as representações
mentais de imagens relacionadas ao meio ambiente, como os alpes, neve, comunidades
locais ou turísticas. Posteriormente, outro aspecto passou a ser levado em consideração,
o do meio social e os discursos, ou o poder da utilização da língua relacionado à
construção da realidade geográfica (CLAVAL, 2011).
O segundo ponto descrito no quadro, “a cultura é construída a partir de elementos
transmitidos ou inventados”, destitui a ideia de que a cultura é inata e nasce com o
homem. As culturas são aprendidas e assimiladas por um processo de transmissão,
representadas pelo agrupamento de práticas, conhecimentos, atitudes e crenças. Dois
fatores são importantes para compreender os conhecimentos e práticas: a natureza e o
conteúdo da cultura portada por cada sujeito.
17
A transmissão pela língua nativa, gestos, escrita e mídias modernas são meios
de difusão da cultura, mas, para a geografia cultural, os lugares onde ocorre essa
difusão se destacam, estrategicamente, tanto na formação do ser humano quanto na
elaboração da cultura, pois “os lugares e suas paisagens servem de suporte a uma parte
das mensagens transmitidas” (CLAVAL, 2011, p. 16).
Para Claval (1997, p. 94), “a informação que constitui a cultura concerne o
ambiente natural no qual vive o homem, a maneira de produzir alimentos, energia e
matéria-prima, assim como as formas de construir instrumentos e de empregá-los para
criar ambientes artificiais”.
No terceiro ponto, é perceptível que a geografia cultural apresente o sujeito
com destaque em relação ao processo de absorção e modificação da cultura, indicando,
também, uma mudança na dimensão individual do ser ao longo da vida.
O processo pode ser tomado, inicialmente, a partir da fase infantil, período de
conhecimento prático, habilidades, competências, base para uma estrutura interna
segundo noções, preferências e crenças. Posteriormente, na adolescência, segundo
um processo de interiorização e reconstrução que prossegue absorvendo novos
conhecimentos, técnicas e valores que vão se transformando nas fases vindouras, ou
seja, todo o processo não finda em uma faixa etária.
Apesar do ciclo de transformações ser constante em todas as fases, é, na vida
adulta, que o sujeito entende os processos de institucionalização indicados pelas regras
e valores desenvolvidos pela sociedade.
Contextualizando, é possível que você, enquanto estudante, já tenha instalado um aplica-
tivo em seu smartphone. Quando a tarefa é realizada, observe que ele vem pronto e pode
ser colocado de forma idêntica em qualquer outro aparelho. São meios engessados, não
pensam por si, já nós, seres humanos, temos a capacidade de controle, somos agentes de
um processo de transformação em cada etapa, temos a escolha de seguir ou
não adiante. As mudanças são constantes, diárias. Em segundos, opiniões
são desfeitas e refeitas.
As culturas também não são como um programa fixo, definido, mas são
heterogêneas, principalmente entre os entes da sociedade, em seus
processos de construção. Imagine o Brasil, onde as regiões possuem
suas particularidades entre cultura, fauna, flora, paisagens,
e todas as dinâmicas espaciais, incluindo grupos sociais
que carregam identidade própria. Certamente, a partir
de um processo de recebimento de cultura que todo e
qualquer indivíduo se desenvolve.
NOTA
18
“O processo da construção da cultura também é um processo social”. Para a
compreensão do tópico, Claval (2011) inicia apresentando o indivíduo como um resul-
tado de um processo social, tendo em vista a influência coletiva que ele experimenta.
Desde atitudes, costumes, representações e valores, foi argumentado que, dentro de
cada processo social, a transmissão torna-se a etapa mais significativa. É a partir dela
que o sujeito se torna um ser social, diferente ou semelhante a outros. “O processo é tão
fundamental quanto o processo de divisão da sociedade em profissões, em estatutos,
em classes ou conforme as riquezas” (CLAVAL, 2011, p. 17).
Neste momento, vamos observar o seu entendimento da afirmativa: “A
construção do indivíduo como ser social se traduz pelo nascimento dos sentidos de
identidade”.
A grande maioria dos brasileiros porta documentos, e um deles é a identidade. É
caracterizada por conter informações básicas de quem você é, sua origem, descendência,
sobrenome, o local de nascimento, quesitos que podem dizer algo ao seu respeito,
não o bastante quando se refere à construção da individualidade e às diferenças. Ao
longo da vida, de forma individual, o sujeito busca formar uma identidade, e as pessoas,
coletivamente, buscam perpetuar uma identidade já estabelecida.
Sobre o sentido da identidade, Claval (2011) afirma que é uma experiência indi-
vidual, e está relacionada com os convívios familiar e social. A identidade, em caso de
confissão de fé ou concretude de uma nação, advém de conjunto aplicado à construção
do intelecto e ao ensino sistemático. Um outro ponto se refere à imparcialidade entre a
ligação de um dado território com uma identidade anteriormente assumida. A partir do
advento das mídias modernas,outras perspectivas foram analisadas, houve uma inter-
venção quanto às posições hegemônicas e novos conceitos foram gerados e associados.
A partir de uma experiência pessoal, é possível entender o sentido da
identidade na formação do ser social. Eu, sou professor, por exemplo,
sou natural da cidade de Campina Grande, localizada no estado da
Paraíba, região do Nordeste brasileiro, mas hoje escrevo de uma
cidade situada na Região Sul, conhecida por ter sido uma colônia
alemã, Blumenau.
Com os blumenauenses, revivi as raízes culturais germânicas a
partir de festas típicas, do uso da língua alemã entre as famílias, na
culinária, nas construções e edificações, apesar de brasileiros, assim
como eu, outros habitantes da cidade, se distinguirem de mim e das
minhas heranças culturais. Essas relações formam grupos com uma
identidade local e demais com suas referências culturais diferentes.
NOTA
19
As identidades se associam ao espaço: elas se baseiam nas lembranças
divididas, nos lugares visitados por todos, nos monumentos que refrescam a memória
dos grandes momentos do passado, nos símbolos gravados nas pedras das esculturas
ou nas inscrições (CLAVAL, 1997).
O sexto tópico explica que, assim como a sociedade, a partir da cultura, interfere
na formação do indivíduo, a sociedade também é resultado das práticas culturais:
A análise parte do calendário de cada um, de sua agenda, dos papéis
diversos que ele tem no tempo, da proximidade com aqueles que
têm o mesmo papel. O processo gera uma consciência de pertencer
a uma comunidade compartilhada, a uma mesma classe, quando
os indivíduos que efetuam as mesmas atividades se comunicam
facilmente e têm uma ideia clara da semelhança de seus problemas
e interesses. Ao mesmo tempo, a participação dos indivíduos em face
de relações institucionalizadas explica a divisão do trabalho social e
o funcionamento dos grupos (CLAVAL, 2011, p. 18).
A geografia cultural deve, como prioridade, apresentar a construção do espaço
pelo prisma da cultura. Claval (1997; 2011) fez uma retrospectiva para compreendermos.
A princípio, o homem fez uso do espaço de maneira que contemplasse suas
necessidades de alimentação, retirando da natureza, da segurança e proteção em relação
aos eventos naturais e àqueles oriundos do meio social. De maneira esclarecedora,
o autor expõe que a organização do espaço desenvolvida pelo homem nem sempre
apontou por efeitos nocivos, mas, em sua maioria, exaltou-se pela representatividade
da conquista e domínio do meio.
Para Claval (2011), a organização espacial é resultado de percepção de que
o homem tem, do espaço, uma força de atuação coletiva, desenvolvendo técnicas,
modelos e sua socialização para construir.
No âmbito da organização espacial, é inerente focalizar no item da socialização
do espaço. É, por meio do desempenho de diversos seguimentos, que há a composição
da sociedade, desde a dimensão individual, coletiva, até organizações institucionalizadas
que são empregadas as condições de direito de uso da terra, de práticas estratégicas de
atividades produtivas ou de lazer.
A influência na construção do espaço está na interiorização, na atuação do
homem desde o momento em que se criou ou idealizou representações acerca da
realidade. Esses elementos representam os seus anseios, desejos e valores.
A socialização do espaço não distribui os direitos de uso ou de
propriedade do espaço duma maneira igualitária. Os poderosos e ricos
têm muitas mais possibilidades. Eles utilizam para escolher as ótimas
localizações, os lugares, os nada agradáveis, e para impor as formas
de utilização da terra e da construção de edifícios. A qualidade de
suas escolhas confere um estatuto mais alto e legitima a sua posição
social (CLAVAL, 2011, p. 18).
20
Ainda na perspectiva mencionada, Claval (2011) propõe refletir sobre a direta
participação ou luta das classes menos favorecidas na construção espacial, além da
apropriação social do espaço. Independentemente dos atos reais que agreguem atenção
para os grupos, eles, por diversas vezes, são colocados nas zonas de invisibilidade da
sociedade. Para facilitar o entendimento sobre essa realidade: vocês consegue lembrar
de algum ato ou protesto de entidades ou parcelas da população realizado em espaços
públicos? Pois bem, atos são caracterizados pela busca da visibilidade com a apropriação
social dos espaços.
O ponto oitavo busca apresentar uma compreensão de como surgiram
os sistemas de crenças e de valores. A princípio, cada ser possui uma capacidade
interpretativa, mental e de experiências únicas com o espaço. Quando somadas essas
realidades complexas que os indivíduos produzem e materializam, são formalizadas as
ordens normativas, as quais representam individualmente e coletivamente.
Esses alhures oferecem a visão de outros mundos. Servem de
modelo para orientar a ação dos homens. As perspectivas abertas
são a fonte dos sistemas de crenças, religiões ou ideologias, dando
uma dimensão normativa à vida social, dirigindo a ação humana e
conduzindo a construção dum futuro melhor, neste mundo ou no
outro (CLAVAL, 2011, p. 19).
Pode ser confirmado que os sistemas de crenças e de valores somente são
possíveis quando entendidos a partir de normas criadas, das relações entre grupos
sociais e da socialização dos espaços (CLAVAL, 2011). Com essa interação, é possível
difundir que fundamentos concretos e abstratos se conectam em prol de uma
organização funcional.
O aspecto sobre cultura e ideologia comunitária, no ponto nove, retrata a noção
da cultura a partir de uma sequência mencionada anteriormente no ponto dois. A
cultura se caracteriza por ser um conjunto de processos transmitida pelos e entre os
homens, os quais produzem e reproduzem comportamentos não congênitos, ou seja
não se encontram no DNA dos seres humanos.
FIGURA 4 – AFIRMATIVAS SOBRE A CULTURA
A cultura não é
Fixa ou imóvel
Intangível ou imcompreensível
A cultura é
Múltipla, formada por vários elementos
Evolui contínuamente
FONTE: Adaptado de Claval (2011)
21
A cultura desenvolve outra face quando utilizada em grupos comunitários. Iden-
tidades são construídas e certas dimensões apresentam aspectos normativos, aqueles
que regulamentam, propõem padrões e regras por indivíduos que vivem determinados
espaços, territórios ou sociedades. As ideologias comunitárias entram na discussão
para justificar a dimensão ideológica que se forma através da cultura. Como exemplo,
há uma comunidade cristã da fé reformada. Ela se une em prol do compartilhamento de
uma visão cristocêntrica, carregando regras de fé, condutas, valores.
Apesar do exemplo mencionado, vale lembrar que existem grupos que constro-
em uma identidade para realizar práticas de fundamentalismo religioso, utilizando a fé
para impor violentamente suas crenças, causando conflitos de intolerância religiosa em
escala local e, até mesmo, internacional.
O Tópico 1 introduz etapas evolutivas do entendimento sobre cultura, culminando
no Tópico 2, com o interesse da dimensão espacial da cultura pela geografia cultural em
sua perspectiva moderna. Ao desenvolver do estudo, longas trajetórias serão explicadas
nas seções seguintes. Realizamos, até o presente momento, uma breve apresentação
da descendência, originalidade e pertencimento da geografia cultural, seu elo com a
ciência geográfica, e aproximações com as ciências sociais afins, o que demonstra sua
interdisciplinaridade e importância na produção de estudos de ordem espaciais.
22
Neste tópico, você aprendeu:
• Existe uma reflexão interdisciplinar na geografia cultural em torno da construção
conceitual da definição de cultura. Foi tangenciada por geógrafos, antropólogos e
sociólogos, como Edward Burnett Tylor, FranzUri Boas, Alfred Kroeber, Cliford Geertz
e Stuart Hall. Profissionais que produziram, em séculos, e com influências filosóficas
distintas.
• A concepção filosófica tyloriana definiu que o meio ambiente podia determinar e gerar
influências à cultura, segundo o princípio de determinismo geográfico e a concepção
unilinear.
• Boas foi um geógrafo e antropólogo que se diferenciou por utilizar o discurso
multilinear para conceituação da cultura. Amparando-se no particularismo histórico,
ele afastou-se de uma perspectiva de comparação metodológica, segundo as leis
evolucionistas, para buscar explicações culturais. Boas partiu do princípio de que
todo povo ou região possui uma história singular e, por esse motivo, sua história
deveria ser reconstruída.
• Kroeber foi responsável pela teoria cultural supraorgânica que, posteriormente, foi
assimilada e adotada por Sauer. A definição sobre a cultura se vinculava e reproduzia
uma estrutura da gênese da vida humana na perspectiva evolucionista, iniciando pelo
nível inorgânico, orgânico, até a ordem social ou cultural, cuja dimensão se posiciona
acima do homem, além dos demais níveis.
• Na teoria interpretativista, a cultura passou a ser interpretada como sistemas
simbólicos (linguagem, arte, mito ritual), desenvolvida, sobretudo, pelo estadunidense
Clifford Geertz, um dos maiores nomes da antropologia do Século XX.
• Outro nome importante que rompeu com o antigo paradigma sobre uma cultura
pronta e engessada foi o sociólogo Stuar Hall. Ele propôs aliar as temáticas sociais
com as simbólicas para, então, compreender a cultura. Em seus estudos, trata, por
exemplo, das relações entre cultura e meios de comunicação, história e cultura,
etnias, gênero e outros temas.
• A geografia cultural é definida como um subcampo da geografia, e os objetivos
de análise da disciplina seguem através da ordem espacial da cultura, ou seja, as
dimensões simbólicas do espaço, os sentidos e percepções do homem, a diversidade
de contextos espaciais etc.
RESUMO DO TÓPICO 1
23
• A geografia cultural foi substanciada pelas cíclicas revisões na conceituação
da cultura, como a abdicação do entendimento supraorgânico da cultura. Há a
possibilidade de assimilar a cultura através de coisas comuns do dia a dia familiar, no
ambiente de convívio social, linguagens, habilidades referentes a classes ou minorias
sociais.
• A base da geograficidade da geografia cultural advém de Dardel, historiador e geógrafo
que preocupou-se em compreender o seu meio, independentemente de ser natural
ou artificial, mas, em sua forma mais ampla, envolvendo sentimento nas relações dos
espaços, com paisagens, territorialidade, identidade etc.
24
AUTOATIVIDADE
1 Com relação à abordagem de Tylor em 1871 sobre a cultura, marque com (V) as
proposições verdadeiras e com (F) as falsas:
( ) Tylor, em 1817, propôs uma concepção complexa sobre cultura: “a cultura era
absorvida mediante o relativismo cultural; tudo era inato do homem”.
( ) Para Tylor, a cultura não faz parte do código genético do indivíduo. Este não nasce
com características culturais próprias, mas a cultura passa a ser concebida por
meio da aprendizagem na sociedade, a exemplo da linguagem, símbolos, práticas,
técnicas, leis etc.
( ) Os geógrafos apoiaram a concepção tyloriana da cultura mediante o determinismo
geográfico representado na estrutura conceitual.
( ) Tylor se abdicou do relativismo cultural, mas fez uso da abordagem unilinear,
método que comparava, em níveis equivalentes, todos os seres humanos de cada
sociedade, ou seja, as mais diversas sociedades se tornaram reféns de um único
modelo evolutivo. Assim, foi entendendo que todas as sociedades seguiam um
único processo composto por três fases evolutivas: de selvageria, barbarismo e, por
fim, a conquista de um modelo civilizatório.
Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:
a) ( ) F- V – V - V.
b) ( ) V – V – V - V.
c) ( ) F – F – V - V.
d) ( ) V – F – F - F.
2 Sobre a percepção de Franz Boas nos estudos de análises culturais, é CORRETO dizer
que:
a) ( ) Para compreender a cultura, é necessária a reconstrução histórica de cada povo
e região, identificando o particularismo/singularidade dos mais diversos grupos
humanos e suas realidades.
b) ( ) Boas utilizava as abordagens unilineares para valorizar o discurso evolucionista
do Século XIX.
c) ( ) Boas se contrapôs ao método evolucionista unilinear e à teoria do determinismo
geográfico.
d) ( ) As opções a e c estão corretas.
25
3 Sobre a teoria cultural supraorgânica, assinale a alternativa CORRETA:
a) ( ) Ela é considerada uma entidade superior, controladora de mentes e atividades
humanas.
b) ( ) Democrática e dinâmica, vistos os acontecimentos referentes ao Século XX.
c) ( ) A cultura assimila as dimensões simbólicas aplicadas aos processos sociais.
d) ( ) Mudança em sua conceituação, passando a ser compreendida a partir da
sociedade de classes.
4 Quem foi o autor da antropologia que teve, como foco, neutralizar qualquer significado
fixo para teorizar a cultura? Ainda, não se limitou às respostas prontas e acabadas
como receitas herdadas, mas, em seu estudo, apresentava os mais diversos
grupos sociais em relações dinâmicas com as dimensões simbólicas, significando e
ressignificando a cultura.
a) ( ) Stuart Hall.
b) ( ) Franz Boas.
c) ( ) Clifford Geertz.
d) ( ) Edward Tylor.
5 Sobre as influências teoóricas marxistas, o sociólogo Stuart Hall concordou com
alguns pontos, EXCETO:
a) ( ) A falta de interesse da teoria marxista pelos assuntos referentes à cultura e suas
perspectivas simbólicas.
b) ( ) Atributos do estudo referente à teoria do capital/classe social, de poder/
exploração.
c) ( ) Movimentos sociais e política.
d) ( ) Desarmamento nuclear e questões raciais britânicas.
6 De acordo com o Quadro 1, escolha um título e apresente uma breve descrição
reflexiva.
26
27
UMA REFERÊNCIA AOS PERÍODOS
DE DESENVOLVIMENTO DA
GEOGRAFIA CULTURAL
UNIDADE 1 TÓPICO 2 —
1 INTRODUÇÃO
Caros alunos, chegamos ao Tópico 2. Nesta fase de estudos,
vamos ancorar na leitura e refletir sobre uma breve apresentação da
longa história do pensamento geográfico e suas contribuições para a
formação e estabelecimento da geografia cultural.
O Tópico 2 tem, como objetivo, responder algumas questões referentes ao
nascimento, ao percurso e conceito. Como a cultura foi abordada pela geografia?
Quem a influenciou? Em qual período? Quais as compreensões adotadas pela geografia
cultural?
Neste tópico, serão desenvolvidas, além desta introdução, os assuntos centrais,
os quais se dividem em: Geografia Cultural - Fase I, Geografia Cultural - Fase II, Geografia
Cultural - Fase III e suas sessões.
A Fase I, na sessão “As primeiras aproximações cultura e geografia: a contribuição
das escolas alemã e francesa”, traz o período que data o início das menções sobre a
geografia cultural com o processo de introdução do campo. Neste momento, pode-se dizer
que a geografia enquanto disciplina-mãe apresentou flashes a partir dos quais indicou
aberturas para aplicação de abordagens em direção ao futuro da geografia cultural.
A partir do desenvolvimento geográfico das escolas alemã e francesa de Ratzel
e Vidal de La Blache, respectivamente, uma narrativa objetiva a compreensão sobre
a inclusão da cultura na ciência geográfica. A análise se delineia formalmente a partir
da obra Antropogeografia, da noção de gênero de vida, da base darwiniana e outra
lamarckiana, da seleção das espécies e adaptação das espécies ao ambiente. Esses
vetores contribuíram, principalmente,para tratar de uma embrionária geografia cultural,
segundo o alicerce científico naturalista.
A sessão Os estudos de Carl Sauer e sua importância traz um histórico sobre
parte da biografia do precursor da geografia cultural, Carl Sauer, compreendendo suas
escolhas teóricas durante a vida de estudante, professor e pesquisador do campo
cultural da ciência geográfica norte-americana.
28
Apresentamos a expressividade e importância que as obras de Sauer, a partir do
Século XX, trouxeram para a comunidade acadêmica, além da formação de discípulos na
área, forçando a geografia cultural a assimilar e a assumir sua identidade, favorecendo
a abertura de um novo ciclo. A primeira renovação ocorreu nos Estados Unidos, mais
precisamente na escola de Berkeley, onde o processo de teorização historicista e a
utilização da supraorgânica substantivaram a geografia cultural, disseminando-a para
inúmeras universidades mundo.
A morfologia da paisagem representou o carro-chefe de seus escritos, pois
reverenciou a impressão do homem (um autômato) na superfície terrestre através da
cultura (a entidade independente de leis próprias), ao invés da posição determinista do
meio ambiente. Fica evidente que a geografia cultural de Saeur contemplou tendências
do historicismo.
Dando continuidade ao processo de fixação da geografia cultural, chegamos
a um momento de desaceleração, a Fase II, “Transformações no campo geográfico e o
hiato nos estudos da cultura”. Sumarizamos, em uma abordagem amostral que ocorreu
entre os anos de 1950 a 1970, tempo em que existiram muitas tentativas de direcionar
e redirecionar a geografia, incluindo, consequentemente, o domínio da geografia
cultural. Uma das linhas epistemológicas em destaque refere-se à teórico-quantitativa,
alinhada ao neopositivismo e suas referências estatísticas. Inicialmente, a associação
da geografia ao método de análise matemático tratou de silenciar algumas tendências,
incluindo a sauariana, tecendo críticas por afirmar que ela se ocupava com comunidades
tradicionais, ao invés de utilizar a visão pragmática em suas pesquisas.
Parte do período representou dois estágios: a perca de pujança da geografia
cultural e a transição para a renovação com incursão das novas perspectivas críticas
do materialismo histórico dialético, dando início à terceira fase: “Imaterialidade e
Renovação”.
O movimento da geografia de 1970 e pós-1980 reflete a inquietação científica
pela explosão de conhecimento proposto para a disciplina. Houve a reflexão da
ausência da versão crítica balizada pelo materialismo histórico e dialético, cujo foco
estava, principalmente, nas condições econômicas e sociais do povo. Logo, a corrente
enxergou a necessidade de romper com o neopositivismo e gerar conteúdo no campo
cultural da geografia, reafirmando as dinâmicas sociais referentes às esferas de gênero
e etnicidade, por exemplo. No entanto, sabe-se que a filosofia não compreendeu a
corrente idealista, assumindo incompatibilidade nas visões filosóficas, cujo resultado
volta-se à negligência das dinâmicas imateriais do campo cultural.
O movimento de renovação, a virada cultural, além de tantos atributos, vieram
para corrigir algumas brechas que, ao longo da história do pensamento geográfico,
foram abertas, e uma delas referiu-se ao silenciamento das concepções subjetivas.
Houve a ressurreição da ordem fenomenológica, além das análises voltadas ao mundo
vivido, a valorização da cultura e experiências humanas junto ao meio.
29
2 GEOGRAFIA CULTURAL – FASE I - AS PRIMEIRAS
APROXIMAÇÕES: CULTURA E GEOGRAFIA, O
DESVENDAR A PARTIR DE UMA GEOGRAFIA ENRIJECIDA
A geografia cultural denota-se como um subcampo expressivo da ciência
geográfica, mas a abordagem cultural passou por ciclos evolutivos e complementares.
Tais dinâmicas aconteceram sincronicamente com uma engrenagem de dimensões
maiores da disciplina, relacionadas à busca de método e doutrina, além do seu objeto
de estudo.
Anteriormente ao processo da utilização da cultura nas análises geográficas, o
método racional, naturalista imperou no Século XVIII, além do crescimento e influência
da física newtoniana. Observações, experiências e cálculos matemáticos nascem a
partir de conhecimentos voltados para análises de estrutura e minerais das rochas,
plantas e animais. Assim, a ciência geográfica cria uma espécie de fosso, separando-o
dos aspectos sociais e culturais (CLAVAL, 2010).
O ponto de vista, aos poucos, foi sendo minado pelos acontecimentos dos
demais fenômenos geográficos da contemporaneidade, gerando um certo desconforto
na comunidade acadêmica e limitando o campo de pesquisa que, futuramente, buscou
uma renovação. Os processos evolutivos foram sendo observados timidamente.
Os aspectos racionais também se aplicaram às análises humanas e sociais, já
que, no fim do Século XVIII, questionamentos surgiram, porém, a perspectiva utilizou ba-
ses utilitárias, observando o homem sob vistas dos interesses materiais (CLAVAL, 2010).
Na perspectiva de Sauer (2011), é evidente, ao decorrer da evolução da ciência,
que a geografia se responsabilizou por uma subdivisão dos interesses geográficos entre
os grupos da geografia humana e cultural, limitando o particularismo e objetivações.
Apesar de ambas se desenvolverem no mesmo período, cada uma surgiu com um ponto
de partida.
Sendo a geografia cultural disseminada entre duas vertentes, certos números
de geógrafos compreendiam ela como um subcampo da geografia humana, “[...] uma
outra formulação da geografia humana” e, para outros, ela surgiu com a perspectiva do
estudo da cultura material dos grupos humanos (CLAVAL, 2011, p. 5).
Todavia, compreende-se que, na passagem do Século XIX para o Século
XX, na Europa, surgiam as bases da dimensão cultural, marcadas por uma aguçada
curiosidade científica e pela diversidade das sociedades desde suas línguas, técnicas,
obras e princípios morais (CLAVAL, 2011). A geografia buscava, na cultura material e
na análise entre gêneros de vida e paisagens rústicas, conteúdos básicos para o seu
desenvolvimento (CLAVAL, 2002).
30
Naquele século, grande parte dos geógrafos comungava do alicerce científico
naturalista, o qual deu apoio ao princípio de que o ambiente, mediante suas leis,
explicava a sociedade e, por conseguinte, a cultura. A partir da realidade, empreendeu-
se uma inclinação por uma geografia de conteúdos regidos pela ação da natureza, com
objeção negativa ao que estivesse à parte da concepção científica. Suas premissas
negavam o estudo das dimensões psicológicas ou mentais da cultura, mas aprovavam
o desenvolvimento disciplinar sob a ótica do evolucionismo (CLAVAL 2002).
Com o olhar contemporâneo, compreende-se que era compartilhado o uso da
cultura em seu aspecto reducionista, fomentado pelos ditames de alguns representantes
da disseminação doutrinária. Quando a geografia tornou-se livre do “fundamentalismo”
religioso, imposto por uma sociedade teocêntrica, automaticamente, foi fisgada por uma
doutrina de afirmações racionais formuladas por uma elite pensante, obscurecendo,
por décadas, conteúdos de ordens imaterial e subjetiva, em função da formulação dos
dados objetivos originários da ordem física.
No contexto da geografia ratzeliana alicerçada por Humboldt e Ritter, foi realizada
a primeira incursão de cultura na geografia, porém, a novidade remete ao entendimento
evolucionista darwiniano que influenciou diretamente o desenvolvimento da geografia
humana/cultural. Foi, sob o elo homem e seu ambiente, evidenciado por Friedrich
Ratzel, em 1882, que se discutiu a expressão cultura. Apesar da ênfase ambientalista e
de afirmações áridas na produção, o alemão também se propôs a discutir uma geografia
humana que também pôdeser considerada cultural a modos da época. Os estudos
eram voltados para a mobilidade populacional, condições de assentamento humano e
difusão da cultura, todavia, geógrafos ocidentais disseminaram, em maior proporção, a
faceta ambientalista de suas obras, visto que a atmosfera preponderante doutrinaria a
partir do positivismo (SAUER, 2011).
Numa espécie de cenário investigativo em busca de conhecimento, a geografia
humana de Vidal de la Blache transpareceu pontos de contatos semelhantes frente à
geografia de Ratzel, em relação ao uso de referências básicas de pesquisas. A exemplo
de Ritter e as adversidades do evolucionismo, La Blache optou pela perspectiva
lamarckiana de adaptação das espécies ao invés do proposto por Darwin quanto à
seleção das espécies (CLAVAL, 2010).
A perspectiva de adaptação das espécies explicava o lugar, ou seja, a combinação
da adaptação dos grupos humanos ocasionava a apreciação do gênero de vida, o qual
podia ser visto através da paisagem.
Imersa no movimento, a geografia francesa vidaliana aderiu ativamente aos re-
sultados pautados na ecologia, assunto relativamente distante da geografia cultural.
Contudo, através do conceito de gênero de vida que foram descobertos novos rumos
da geografia clássica (CLAVAL, 2011). A partir de então, iniciou-se uma sutil abordagem
cultural, cujo foco limitava-se às técnicas e hábitos dos grupos humanos. Nas inte-
31
rações analisadas entre o homem e o meio ambiente, eram percebidas atividades de
subsistência, como preparo do solo, cultivo, colheita de alimentos, caça, pesca, criação
de animais e a produção de utensílios, como ferramentas.
Na visão vidaliana, mesmo não sendo expressamente declarados, existiram
momentos em que o discurso direcionou para fatores culturais, como os aspectos
da religião, contudo, a análise mais sensível centrou-se estritamente nas edificações
estruturais de igrejas, expondo templos e mesquitas (CLAVAL, 2011).
3 OS ESTUDOS DE CARL SAUER E SUA IMPORTÂNCIA
O conhecimento e a compreensão da fase Sauariana na geografia cultural
ocasionam a recuperação das bases que firmaram a disciplina. Adentrar no perfil
histórico é necessário, pois descortinaremos a evolução da geografia cultural.
Iniciaremos propondo responder, principalmente, duas perguntas, a primeira: Quem foi
Carl Ortwin Sauer? Toda história pessoal de Carl Sauer sugere um caminho explicativo
sobre suas escolhas enquanto geógrafo. A segunda pergunta: Qual foi a importância de
seus estudos para a geografia cultural? Essa explicará as conexões realizadas por ele
em virtude da construção do ramo da ciência geográfica.
Em 1889, nos Estados Unidos da América, em Wisconsin, Carl Ortwin Sauer nas-
ceu. Embora sua nacionalidade seja estadunidense, suas origens familiares permane-
ciam firmadas na Europa central, mais precisamente em Wurtemburg, na Alemanha. O
então pequeno Sauer, desde a infância, apresentava um perfil intrépido, de natureza
curiosa, pelo estímulo dos seus ambientes familiar e educacional, ressaltando que parte
do seu período escolar foi em um internato alemão (GADE, 2011; MOREIRA, 2008).
Em busca de conhecimento, Sauer matriculou-se na universidade de Nor-
thwestern, no curso de Geologia, porém, num intervalo de um ano, ingressou na univer-
sidade de Chicago, transferindo-se para o curso de Geografia, criado em 1903, por seu
professor orientador, o geólogo Rollin Salisbury, pessoa quem inspirou Sauer para além
da graduação, pela metodologia utilizada, pautada na base filosófica socrática.
Sua pesquisa de doutorado apresentou a face dos grupos étnicos irlandeses,
escoceses e os alemães que migraram para Missouri. A tese destacava que eram os
dois grupos mais importantes que ocuparam parte das montanhas de Ozark. Na
pesquisa, Sauer localizou esses povos e descreveu seu modo de vida. Ele concluiu que a
comunidade dos irlandeses (escoceses) apresentava um estilo de vida simples, fincava
raízes nas encostas do planalto e concordava em ter uma vida simples, com recursos
restritos. O comportamento era distinto do praticado pelos alemães, por exemplo, que
se instalaram nas várzeas dos vales, locais de grandes terrenos com capacidade para
criação de animais e práticas de cultivo da terra.
32
“[...] Os alemães desenvolveram uma vida mais civilizada, manifestada pelas
casas bem construídas, uma dieta ampla e variada, e escolas para que os filhos
pudessem ler e escrever” (GADE, 2011, p. 24).
Alcançado o nível de doutor em 1915, Sauer conquistou novos espaços para
realizar pesquisas e disseminar práticas metodológicas variadas na geografia cultural.
Sauer apresentava características próprias de fazer ciência, como itens relacionados à
curiosidade, intelectualidade, ao historicismo aprofundado, às formas, às relações com
as funções intuitivamente evidenciadas e uma filosofia a despeito de si próprio, a cultura
como entidade supraorgânica. Foram alguns dos modelos das perspectivas analisadas
pelos geógrafos sauarianos Daniel Gade, Speth, May, Entrikin, Penn e Lukermann (COR-
RÊA; ROSENDAHL, 2011).
Considerada uma teoria utilizada de maneira implícita nas construções de
conhecimentos, o historicismo, para Speth (2011), teve os primeiros contatos com o
geógrafo a partir das obras dos representantes da matriz teórica, os filósofos alemães
Johann G. Herder e Goethe. A apresentação se deu por intermédio da proximidade de
Sauer com a origem germânica, em suas visitas a uma entidade que produzia rodas
de debates, discussões e estudos aprofundados sobre ideologias historicistas firmadas
pelos filósofos.
Goethe foi um escritor clássico do Século XVIII, conhecido por sua
dedicação em disseminar o movimento cultural do romantismo. Herder,
por construir um papel importante nas ciências humanas. Quando
fundamentou o conceito de cultura, contribuiu para interpretação
de textos filosóficos do romantismo. Contrário às teorias filosóficas
francesas proeminentes, teceu a teoria do desenvolvimento histórico
mediante a base de cultura nacional, que se justificava pelo período de
unificação territorial que a Alemanha passava (PEDROSA, 2015).
NOTA
33
FIGURA 5 – BASE FILOSÓFICA DO HISTORICISMO
HISTORICISMO
O idealismo concede, ao mundo, a vontade e o desejo.
É a esfera da liberdade, das ideias, do espírito.
Identificado como um movimento para resguardar valores
espirituais desgastados pelo cientificismo mecaniscista;
Fundamentado em um espírito transcendental;
Possui uma visão subjetiva da realidade, descobrindo, na
humanidade, uma vontade independente da natureza;
Oriundo do Idealismo
FONTE: Adaptado de Speth (2011)
Um novo momento surge com a geografia cultural norte-americana em 1923,
quando a Universidade da Califórnia, campus de Berkeley, recebeu Carl Ortwin Sauer, um
professor transferido da Universidade de Michigan, em Ann Arbor, que tinha o objetivo
de dedicar-se e desenvolver sua carreira enquanto geógrafo até o fim da vida, em 1957.
Ele se dispôs a apresentar um formato particular para pesquisar a ciência geográfica e,
vista sua projeção, por ser um exemplo de profissional erudito que se negou a replicar
e a reproduzir as abordagens recorrentes, foi eleito honrosamente o geógrafo norte-
americano de maior importância do Século XX (GADE, 2011; MOREIRA, 2008).
Segundo Corrêa e Rosendahl (2011), a escola de Berkeley teve papel fundamental
para a geografia cultural, pois representou o primeiro start no desenvolvimento e
disseminação de conteúdo intelectual.
Berkeley é uma cidade da periferia da Califórnia, onde a geografia
cultural começou a florescer. A importância da escola introduziu,
ao campo universitário, uma importância como polo difusor dos
estudos culturais na geografia, a famosa Escola Saueriana ou
Escola de Berkeley.
NOTA
34
De acordo com Duncan (2011), a atuação de Sauerem Berkeley, entre as décadas
de 1920 e 1930, proporcionou sua aproximação com os maiores nomes da antropologia
cultural americana da época, Alfred Kroeber e Lowie, além da aplicação da perspectiva
cultural do superorgânico que, a princípio, dominou não apenas a antropologia, mas a
geografia cultural.
Tornando-se o principal fomentador do campo de pesquisa, o professor e
fundador da escola Berkeley introduziu as intervenções iniciais para os estudos da
geografia cultural, privilegiando a paisagem cultural, além das outras temáticas.
Dos anos de 1926 em diante, o professor embarcou em uma aventura de
descobertas e pesquisas pelo mundo. A primeira parada foi no norte do México, local
onde percebeu, através da paisagem, vestígios de uma sociedade pré-industrial ainda
com evidências, marcas que o levaram a descobrir o passado por meio do presente
tempo (GADE, 2011).
Para que vocês tenham acesso à realidade de vida daquela sociedade, Cunha e
Ávila (2019, p. 11) discorrem acerca dos acontecimentos na corrente da década de 1920:
É importante ressaltar que a indústria de mineração petrolífera ainda
estava em seus estágios iniciais de desenvolvimento de suas técnicas
de operação, e que nem sempre a concessão de uma licença para
perfurar um posso se traduzia em sucesso comercial. Na década de
1920, a República Mexicana haveria de se tornar a maior exportadora
mundial de petróleo e a segunda maior produtora. Em 1921, de cada
cinco barris de petróleo produzidos no mundo, um era mexicano.
Entusiasmado, Sauer não parou e, assim, viajou por todo o país do México,
América Central e Antilhas, com o objetivo de investigar os aspectos da geografia
histórico-regional (GADE, 2011). Segundo Speth (2011), Sauer tinha uma visão disciplinar
baseada no historicismo com incursões atuais. Por meio da geografia americana
desenvolvida por ele, alguns dogmas deterministas foram excluídos, proporcionando,
ao pensamento geográfico, o foco no homem enquanto ser, e agente modificador da
natureza e da cultura.
A visão historiográfica de Sauer também carregou a influência do departamento
de história de Berkeley, através do professor historiógrafo Herbert Bolton e seus estudos
e transcritos documentais sobre a história do México e do Sudoeste Norte-Americano.
A trajetória do geógrafo Sauer é vasta, resultou em relevantes obras, muitas
das quais os brasileiros desconhecem, pois ainda não foram traduzidas para a língua
portuguesa. Os assuntos permearam o mapeamento do uso da terra, a domesticação
das plantas e animais, geografia histórica do México, Antilhas e Estados Unidos da
América, e o importante texto sobre a origem e a dispersão da agricultura no mundo
inteiro (CORRÊA; ROSENDAHL, 2011).
35
A partir de 1940, ele reuniu informações com base em observações
pessoais, fontes históricas e restos arqueológicos para sintetizar uma
longa discussão sobre as plantas do novo mundo (1950, 1952). Por mais
desatualizada que seja agora, aquela obra representava a primeira
apresentação da história cultural das plantas cultivadas originárias
da América Latina em sua diversidade (GADE, 2011, p. 25-26).
A abordagem colocou em destaque a impressão humana na Terra, rompendo o
enfoque preponderante do determinismo do meio ambiente (GADE, 2011). No caso, não
ficou apenas na afirmação recorrente de que o ambiente era o meio influenciador do
homem. A cultura do homem, de certa forma, exercia seu poder de transformação sobre
o meio e comprimiu, em seus estudos, tendências estéticas e filosóficas, empíricas e
éticas do historicismo (SPETH, 2011).
Assim como toda teoria possui características próprias, o historicismo não fugiu
à regra:
• Descrição, comparação, indução, generalização sintética.
• Subjetividade, relativismo metodológico.
• Liberdade, contingência.
• Ênfase no passado.
• Importância da mudança, sucessão de fatos.
• Crença na diversidade e na importância do único fim em si mesmo.
• Tradicionalismo, moralismo.
• Contemplação, apreciação estética.
• Compreensão.
A morfologia da paisagem apresentada por Sauer não estava puramente
vinculada ao aspecto orgânico, mas sob a influência da cultura. “A cultura é o agente; a
área natural, o meio; e a paisagem cultural, o resultado” (SAUER, 2012, p. 69).
Contribuindo para o raciocínio de Sauer sobre cultura, os seus discípulos Philip
Wagner e Marvin Mikesell (2011, p. 27) apresentaram que:
Os aspectos da Terra, em particular aqueles produzidos ou modificados
pela ação humana, são de grande significado. O estudo desses
aspectos geográficos resultantes da ação do homem considera as
diferenças entre as comunidades humanas que criam ou criaram e
se refere aos modos especiais de vida.
Em outras palavras, a cultura torna-se um código a ser decodificado. Seguindo
o preceito de cultura, áreas foram rotuladas mediante os atributos identificados pelas
comunidades humanas.
Baseado nas discussões, o período precedeu o processo de revisão e renovação
dos conceitos de cultura utilizados pelos geógrafos. Analisando temporalmente a
trajetória da geografia cultural, que ultrapassa os 100 anos de história do pensamento
36
geográfico, Corrêa e Rosendahl (2012) desmembraram a geografia cultural em duas
vertentes essenciais: primeiramente, a geografia cultural sauariana, estruturada no
historicismo, que enfatizava a diversidade cultural, buscando a compreensão do
presente tempo sob o aspecto de valorização do passado.
Wagner e Mikesell sintetizam que, ao analisar os aspectos da superfície da terra,
torna-se possível compreender a geografia cultural, pois a ligação entre os aspectos
ambientais e da ação humana apresenta os aspectos geográficos criados ou mantidos
pelos povos.
A cultura foi dimensionada dentro de uma base geográfica quando compartilhada
e difundida entre pessoas que ocupam uma área e cultura comum ou por territórios
diversos, por meio dos agentes, objetos e ideias que percorrem.
A atribuição de significados inerentes à cultura orienta a ação
(quer vista como símbolos ou utilitária) e resulta, desse modo, em
expressão concreta, como sistemas de crenças, instituições sociais
e bens materiais. Portanto, o caráter dos elementos da cultura deve
ser amplamente inferido da base de características significativas da
comunicação e simbolização – de fórmulas verbais a trajes e gestos
(WAGNER; MIKESELL, 2011, p. 29).
A área cultural apresentada desperta uma característica de uniformidade
relativa comparada a outras áreas, ou seja, apesar de muitas áreas se apresentarem
numa mesma continuidade geográfica e a língua ser semelhante, não significava que as
uniformidades eram absolutas, mas relativas.
Segundo Sauer (2011), para o geógrafo da área cultural, é importante considerar,
de maneira única, as representações, símbolos, personificações, todos conjuntos
culturais que possam remeter ou retratar qualquer expressão quanto ao aproveitamento
do homem na Terra.
Uma das funções do geógrafo consiste, primeiramente, em representar, geo-
graficamente, com mapas, a forma como estão organizados os vestígios deixados pelas
culturas. Em seguida, vários elementos são unidos para, assim, formar associações ge-
néticas. O processo inicia com uma minuciosa descrição que data sua origem, e logo se
dissocia em sínteses, formando sistemas comparativos de áreas culturais (SAUER, 2011).
Conforme asseguram os geógrafos Wagner e Mikesell (2011, p. 32):
A similaridade cultural relativa aparece em diferentes graus, desde
a identidade virtual de atitudes e aptidões num pequeno território,
até semelhanças gerais ou ampla disseminação de características
individuais ou elementos de cultura em grandes áreas.
37
Como continuidade da linha de pesquisa, e sobrea ótica da classificação, des-
crição e distinção, outro item aparece como parte da compreensão cultural da geografia,
as paisagens culturais, que poderiam ser identificadas tanto pelos aspectos ambientais
como pelas transformações realizadas pelos indivíduos. “[...] Para o geógrafo, a área cul-
tural também é sempre uma ‘paisagem cultural’” (WAGNER; MIKESELL, 2011, p. 35).
As paisagens culturais aqui estudadas, têm, como propósito, mostrar as diferen-
ças através do modo de comportamento do indivíduo sob o mérito das culturas. A inves-
tigação também perpassa as circunstâncias de alterações naturais por vias humanas.
Já a história da cultura prevê, com o nome enfatiza, buscar, no passado, o des-
cobrimento da gênese. É preciso elencar as características históricas possíveis das
áreas culturais e, consequentemente, das paisagens, assim, as descobertas surgem
por meio de questionamentos referentes ao passado. Em algum momento, você já se
perguntou sobre a história da sua região ou cidade? O que, por ventura, pôde ter acon-
tecido? Quais eventos, por meio dos caminhos e descaminhos evidenciados pelos indi-
víduos e suas culturas? Eram tais questionamentos que moveram a história da cultura.
Por meio de documentos, topônimos ou outras evidências linguísticas,
os investigadores podem descobrir sequências na ocupação de uma
área por diferentes grupos e podem conectar esses grupos a pessoas
em outras áreas, apresentando características similares (WAGNER;
MIKESELL, 2011, p. 35).
Topônimos são referentes à toponímia. A nomenclatura refere-
se a uma relevante marca cultural que pode ser expressa pela
apropriação espacial, por aqueles distintos grupos culturais. A
nomeação de elementos encontrados na cidade ou no campo,
desde ruas a marcos fronteiriços naturais, como rios.
NOTA
Uma outra questão analisada na geografia de Sauer era a ecologia cultural.
Envolve apreciar alguns processos de correlação vinculados à manipulação humana
sobre o meio ambiente, identificando suas interferências no quesito bem-estar de
maneiras macro e micro, tanto das comunidades, como da humanidade em geral.
De acordo com Wagner e Mikesell (2011), as propostas apresentadas enveredaram
a disciplina por cinco ramificações de estudo: cultura, área cultural, paisagem cultural,
história da cultura e ecologia cultural.
38
FIGURA 6 – BASE DE ESTUDO DA GEOGRAFIA DA ESCOLA DE BERKELEY
Cultura:
Classifica seres humanos e áreas ocupadas pelos grupos.
Área Cultural:
Região/território habitado em qualquer período determinado, por
comunidades humanas e caracterizado por culturas específicas.
Paisagem Cultural:
Tem uma função de descrição sistemática, e apresenta uma base para
classificação regional, possibilitando uma reflexão sobre a responsabilidade
do indivíduo frente às alterações geográficas, desvendando alguns aspectos
culturais de cultura de comunidades culturais.
História da Cultura:
Na reconstrução da sucessão local e regional de culturas e da história das
origens e dispersões culturais, adotam-se muitos dos mesmos indicadores
considerados na definição de áreas culturais contemporanêas.
Ecologia Cultural:
Compara dados observáveis, examina diferentes condições da paisagem.
Com o intuito investigativo, visa descobrir quais elementos da paisagem
podem ser vinculados a práticas recorrentes.
G
EO
G
R
A
FI
A
C
U
LT
U
R
A
L
Apesar de componentes comuns, como as relações entre homem e meio
ambiente e articulações regionais e paisagens, o período de formulação da geografia
clássica também foi marcado por distintas intervenções geográficas estabelecidas
mediantes escolas formadas em países como França, com Vidal de la Blache,
Alemanha, com Ratzel, e Estados Unidos, com Carl Sauer, porém, o último, apresentou
outra capacidade de análise para as paisagens culturais, baseada nas formas físicas e
materiais. Contudo, além da perspectiva, foram trabalhadas as combinações ecológicas
de seres vivos, a materialização de práticas humanas, compreendendo tanto as aptidões
desenvolvidas como o conhecimento (CLAVAL, 2010).
FONTE: Adaptado de Wagner e Mikesell (2011)
39
4 GEOGRAFIA CULTURAL – FASE II – TRANSFORMAÇÕES
NO CAMPO GEOGRÁFICO E O HIATO NOS ESTUDOS DA
CULTURA
Para uma melhor profundidade desses estudos sauerianos da
Escola de Berkeley, os geógrafos Roberto Lobato Corrêa e Zeny
Rosendahl, no ano de 2011, pela editora EdUERJ, lançaram o
vigésimo volume da coleção Geografia Cultural, com o título
Sobre Carl Sauer. O livro é de total interesse para os geógrafos
que possuem interesse em conhecer um pouco mais do
desenvolvimento do processo dos estudos culturais na geografia,
principalmente através da obra apresentada. Carl Sauer, com um
estudo multidisciplinar, aprofundava-se em outras leituras das
ciências humanas, como na antropologia, sociologia e história,
evidenciando e descortinando suas diferentes análises sobre o
campo cultural.
DICA
No campo da geografia e, por conseguinte, no ramo cultural da geografia, alguns
períodos foram marcados por apresentar suas singularidades. Destacamos que, apesar
de dimensioná-los, não trataremos como períodos severamente medidos, limitados em
inícios e términos absolutos, porque se interpõem, se cruzam. Em muitos casos, os
períodos se iniciam anteriormente, como fase inicial de pesquisa, mas eclodem ou se
tornam mais conhecidas posteriormente. No caso da fase dois da geografia cultural,
assim como as demais, refletem, basicamente, as conceituações sobre cultura, método
de pesquisa, linha epistemológica e a busca por um objeto de estudo autêntico da
ciência geográfica.
Segundo Moreira (2008), no período da geografia clássica, eram comuns
os embates sobre os posicionamentos conceituais entre as principais escolas,
alemã e francesa, pois refletiam a busca por um eixo central da disciplina. Dentro da
efervescência, o destaque dava-se para o paradoxo entre a crítica e o prestígio, pois,
ao mesmo tempo em que a geografia se difundia e ganhava prestígio, por outro lado, as
críticas repercutiam e ganhavam espaço entre geógrafos do mundo inteiro.
Na fase anterior, até meados de 1940, a geografia cultural iniciou um processo
de desenvolvimento com a geografia humana, havendo uma significativa ascensão nos
estudos, porém, entrou na década de 1950 com sua força reduzida. O lapso ecoou nos
anos seguintes de 1960 e 1970, pela perca de interesse nas pesquisas das dimensões
materiais da cultura, além das transformações ocorridas na sociedade e suas relações
entre o homem e meio. Outro aspecto influenciador foram as análises provenientes de
40
técnicas quantitativas e, por conseguinte, a crítica, representada pela forma de se fazer
geografia, tendo em vista que a linha teórica e práticas esbarravam numa realidade
parcial, não apresentando resultados semelhantes à realidade.
Aproximadamente, na década de 1950, o pensamento geográfico dominante
entre o meio acadêmico era denominado por: geografia quantitativa, pragmática ou
nova geografia. Originou algumas novas percepções de teorias regidas sobre uma
base estatística. Com características marcantes, ela se destacou por enfatizar, como
premissas básicas, as seguintes percepções:
• Priorizar as investigações e seus resultados de modo objetivo, rápido e exato com o
uso da matemática e lógica como meio de linguagem.
• O empírico, o ato de pesquisar usando a experiência tornou-se prioridade no âmbito
do conhecimento.
• A apropriação de técnicas matemáticas e estatísticas era fundamental para
investigação;
• Recomendava-se que, na esfera científica, houvesse uma unanimidade na linguagem
entre todas as ciências.
• Em virtude do uso de técnicas com conjuntos de normas e procedimentos, era exigida
exatidão quanto à aplicação de métodos científicos.
• A utilizaçãode um parâmetro único entre ciências sociais e naturais.
A corrente pragmática, além de outros interesses, teve, para a geografia e o
Estado, a finalidade de sinalizar um forte pactuado de poder, pois os dados geográficos
poderiam ser utilizados e manipulados estatisticamente como instrumentos de infor-
mação nacional.
De forma explicativa, a geografia clássica apresentou limites e imperfeições
na sua construção, esta que repercutiu na apropriação e efetivo uso da metodologia
centralizadora de resultados, gerando um sentimento de desencanto e aflorando após
o período da segunda guerra entre os geógrafos. Além do senso, ocorrências, como
as gradativas independências política, econômica e cultural, instalavam-se em parte
das colônias. Ainda, outra questão diagnosticada foram os evidentes abismos de
desigualdade que se formaram entre os países industrializados e aqueles que não eram.
Essa sensação de pouca consistência teórica e influxos internos produziu
obstinação em buscar um instrumento metodológico para explicar os novos processos
e interrogações ocorrentes. A situação, a princípio, estremeceu o caminhar da
subdisciplina, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, e as repreensões críticas
metodológicas permeavam desde a linha teórico-quantitativa ao materialismo histórico
e dialético. Conforme Claval (1999, p. 48), “[...] a geografia cultural entrou em declínio
41
porque desapareceu a pertinência dos fatos de cultura para explicar a diversidade das
distribuições humanas”, tendo em vista que as explicações via cultura se apoiavam
na concepção transcendental da entidade supraorgânica e pelo enquadramento dos
estudos do determinismo cultural.
Percorrendo as fases de evolução e retração da geografia cultural, ancoramos
a leitura no fim da década de 1960 e na primeira metade de 1970, tempo em que a
nova geografia obscureceu a presença da geografia cultural, tornando incipientes suas
explicações por meio da cultura, vistas as mudanças e modernizações que a sociedade
enfrentava. “[...] A preferência mudou dos estudos sobre paisagens culturais, habitat
rural, sistemas agrícolas e difusão cultural para estudos sobre lógicas locacionais e
estudos urbanos” (CORRÊA, 2009, p. 2).
Fadada a um espaço com pouca representatividade, a geografia cultural ficou
subjugada aos apontamentos da grande disciplina, diga-se de passagem já fragmen-
tada, em setores da geografia física e humana. A perspectiva quantitativa proposta se
alinhava à análise com uma base do neopositivismo lógico, em que a ciência geográfica
incorporou, em seus estudos, análises matemáticas, e apontou, com “exatidão”, os re-
sultados de uma geografia cultural e humanizada. Novamente, houve um choque entre
o que se definia como teoria e realidade.
Então, ficou dividido entre a euforia da difusão da ciência geográfica e a crítica,
esta que gerou certa instabilidade entre a unidade dos geógrafos. É importante ressaltar
que a “crise” se deu num contexto em que a sociedade moderna adentrava a fase inicial da
ousada e forte industrialização, momento em que o Estado se fazia presente em relação à
reformulação e planejamento dos espaços urbanos, nas mudanças da economia e avanço
do capitalismo em dimensão mundial. Tais características semelhantes foram recorrentes
em diversas sociedades, pois refletiram o momento pós-guerra (MOREIRA, 2008).
Inserida dentro do contexto, a geografia percebeu que estava lutando com as
estratégias erradas e que os problemas contextuais que assolavam a discussão entre
meio – homem eram mais profundos e possuíam outras diretrizes e perspectivas de
análise. Diante de enigmas e outros possíveis parâmetros epistemológicos, a geografia
desacelerou e propôs os objetivos de repensar e questionar os padrões orientados até
aquele momento (CLAVAL, 2010).
Cotada ao desaparecimento, a geografia cultural ressurge reformulada no
fim da década de 1970 a 1980, a partir um novo ciclo, a “virada cultural”. Ela cria uma
transição de renovação evidenciada por uma crítica às escolas Sauariana e Vidaliana e
maior valorização à cultura enquanto meio de compreensão do mundo.
42
5 GEOGRAFIA CULTURAL – FASE III – IMATERIALIDADE E
RENOVAÇÃO
Estabeleceu-se que o marco de renovação da geografia cultural ocorreu após
a década de 1970 e 1980, num contexto epistemológico pós-positivista, em que os
estudos culturais estavam aliados a uma compreensão mais ampla de mundo.
Holzer (2012) esclarece que mesmo que a geografia cultural estivesse retraída pela
ascensão da geografia quantitativa e pelo aparecimento da geografia comportamental,
geógrafos das linhas cultural e humanística buscaram restaurar e recolocar a geografia
que estava sendo esquecida. Primeiramente com David Lowenthal e, posteriormente,
com Yi-Fu Tuan, ambos com o método filosófico de investigação alternativo, longe do
descritivo.
A discussão proposta por Lowenthal desviava-se do eixo então dominante, o da
procura de metodologias que se adequassem aos modelos matemáticos, remetendo-se
para a fundamentação de uma teoria de conhecimento geográfico. Seu ponto de partida
era a “geosofia”, com base em um projeto de ciência que abarcasse os vários modelos
de observação, o consciente e o inconsciente, o objetivo e o subjetivo, o fortuito e o
deliberado, o literal e o esquemático (HOLZER, 2012).
Na perspectiva de Tuan, a geografia deveria aderir aos novos paradigmas, favore-
cendo os estudos das vivências que se projetam de um lugar particular, a exemplo do lar,
para as paisagens mais globais, de uma paisagem humanizada para outra mais primitiva
(HOLZER, 2012). Sobre as experiências dos lugares, a particularidade de sentimentos, vis-
tas suas experiências de viagens (CLAVAL, 2011). Essas afirmações conceituais criadas
por esses e outros autores imbuíram todo o movimento vindouro da geografia cultural.
Segundo Claval (2011), aderir novos horizontes partia da necessidade de uma
melhor compreensão da escola francesa, seus desígnios, além das alterações realizadas
nas orientações humanista e radical das geografias inglesa e americana.
O processo de despertar para uma nova dimensão cultural na geografia pas-
sou a ser evidenciado após a prefixação de alguns princípios. O primeiro é evidenciado
quando o conceito de cultura foi retomado dentro da linha da geografia cultural, opon-
do-se às concepções antropológicas criadas por Edward Tylor, no ano de 1871 (CLAVAL,
2011; CORRÊA, 2011). Posteriormente, a crítica aos discípulos que faziam uso da defini-
ção de cultura autônoma e abrangente desenvolvida pelo antropólogo Alfred Kroeber
(DUNCAN, 2011).
[...] A década de 1970 foi, em realidade, uma arena de embates
epistemológicos, teóricos e metodológicos. Emerge uma geografia
crítica e diferentes subcampos que, nos anos 80, iriam confluir,
em parte, para gerar a denominada geografia cultural renovada. A
década de 1980 vê configurar-se a nova versão da geografia cultural
(CORRÊA, 2009, p. 2).
43
Ainda em 1980, os debates de ordem epistemológica foram estendidos, apesar
das mudanças já ocorridas no domínio anglófono. Diferentemente das propostas dos
anos anteriores, em 1950 e 1960, a geografia não se apropriou dos métodos científicos
voltados para natureza nem para vida, mas apresentou, como resultado, incessantes
questionamentos sobre o que se entende pelo progresso, desenvolvimento, influência
e reconhecimento. O conjunto de fatores orientou as ciências para as conhecidas
“viradas”, iniciando com a “linguística”, “virada espacial” e, por fim, na geografia, a “virada
cultural” (CLAVAL, 2014).
Muitas das concepções preestabelecidas estavam sendo desmistificadas,
avaliadas e reinterpretadas. Algumas se referiam exatamente aos conceitos abrangentes
de cultura, paisagem cultural, objetivos e método de análise de pesquisa. Romper com
a antiga interpretaçãoda paisagem cultural torna-se um exemplo, pois compreendia
que a cultura tomava o lugar da centralidade, passando a se manifestar como o agente
transformador da paisagem natural (CORRÊA, 2014).
Buscando uma conotação significativa, as críticas revelaram ser contra a
percepção cultural apresentada como uma entidade superior ao homem. Não bastava
entender “[...] a cultura como entidade abstrata, supraorgânica, sem agentes sociais
concretos, sendo gerado um quadro harmonioso: a paisagem cultural [...]” (CORRÊA,
2014, p. 41), pois o significado da paisagem também possui realidades simbólicas, de
explicações visíveis das manifestações na esfera terrestre.
O contraponto dos estudos focados no conceito de cultura surge, efetivamente,
na década de 1970. Com uma nova interpretação para a temática, a geografia inglesa
eleva o nome de Denis Cosgrove, o qual se propôs a trabalhar e a trilhar uma perspectiva
marxista, cuja escolha ocorreu por influências acadêmicas.
O conceito de cultura tinha, para Cosgrove, outras raízes e
configurações. Com base em Cassirer, no Centre for Contemporary
Cultural Studies da Universidade de Birmingham, dirigido na
década de 1970 por Stuart Hall, de Raymond Williams, professor na
Universidade de Oxford, e na antropologia interpretativa de Clifford
Geertz, cultura era entendida como os significados elaborados e
reelaborados pelos diferentes grupos sociais a respeito das diversas
esferas da vida (CORRÊA, 2014, p. 40).
Baseados em suas convicções científicas, Cosgrove e Peter Jackson fazem
uma conceituação para a insurgência da geografia cultural:
Uma possível definição dessa “nova” geografia cultural seria:
contemporânea e histórica (mas sempre contextualizada e apoiada
na teoria); social e espacial (mas não reduzida a aspectos da paisagem
definidos de forma restrita); urbana e rural; atenta à natureza
contingente da cultura, às ideologias dominantes e às formas de
resistência. Para essa “nova” geografia, a cultura não é uma categoria
residual, mas o meio pelo qual a mudança social é experienciada,
contestada e construída (COSGROVE; JACKSON, 2011, p. 136).
44
Como autor âncora da antropologia, que contribuiu para a geografia no
momento de ebulição científica, em relação ao conceito de cultura, Geertz pôde reforçar
o entendimento da diversidade cultural e acrescentar a possibilidade de elencar diversas
maneiras que obscureçam o sentido conceitual da cultura. Todavia, alertou que tal ato
ocasiona uma simplificação, empobrecendo a concepção de estudo.
Imaginar que a cultura é uma realidade “supraorgânica” autocontida,
com forças e propósitos em si mesma, isto é, reificá-la. Outra
é alegar que ela consiste no padrão bruto de acontecimentos
comportamentais que, de fato, observamos ocorrer em uma ou outra
comunidade identificável (GEERTZ, 2008, p. 8).
No caso, os significados da cultura e da análise das paisagens passaram a ser
reconduzidos nas explicações geográficas. A princípio, tudo era esclarecido por meio
da cultura material, porém, cresceu a importância de explicação segundo as mudanças
que ocorriam na sociedade, a exemplo do enraizamento do capitalismo e todos seus
resultados impressos no organismo social. A abordagem contemporânea firma-se na
ideia de que o homem é um agente ativo e a cultura não está à parte do indivíduo,
mas intrinsecamente relacionada a ele, desde costumes a princípios. A cultura deve
ser analisada como parte das construções sociais. Cosgrove e Jackson (2011, p. 142)
afirmam que “[...] as culturas são contestadas politicamente. A visão unitária de cultura
dá lugar à pluralidade de culturas, cada uma com suas especificidades de tempo e lugar”.
A partir do olhar, Corrêa (2011, p. 170) expõe que “[...] a diversidade cultural não
pode ser restrita às convencionais diferenças raciais, étnicas, linguísticas ou religiosas”.
Para Geertz (2008), quando o conceito de cultura delineia formas, torna-se limitado,
pois age especificando, sufocando e representando uma análise não esclarecedora,
apontando que não é adequado elaborar uma “Teoria Geral de Interpretação Cultural”,
tendo em vista que:
[...] O homem é um animal amarrado a teias de significados que ele
mesmo teceu, assume a cultura como sendo teias e a sua análise.
Portant,o não como uma ciência experimental em busca de leis, mas
como uma ciência interpretativa à procura do significado (GEERTZ,
2008, p. 4).
Cada grupo social produz cultura, e essa são várias, e podem ser recriadas,
heterogêneas e variantes.
Na geografia, em uma escala gradual de correntes, entende-se que a diretriz
do pensamento clássico progressista não foi capaz de sanar ou explicar as dúvidas
recorrentes do século XIX e XX. Ao longo da busca por um rumo, a geografia foi
apresentada à corrente do pensamento radical crítico, situando a ciência nas realidades
econômica, social e política.
45
Essa conversa, da geografia cultura com a matriz crítica, apesar de importante,
por vezes, desvalorizou temas complementares, a exemplo de concepções religiosas na
geografia, sob a influência dos materialismos histórico e dialético. Ainda, a retórica nas
lutas de classes entre proletariado e burgueses, processo produtivo, ou seja, em todo
universo da produção capitalista.
A reflexão teórica marxista foi aplicada aos problemas sociais e
aos de ação política de transformação da sociedade em direção ao
socialismo. O procedimento rigorosamente materialista de análise em
busca de novas forças que realmente moviam a sociedade levou os
geógrafos críticos a marginalizarem as questões religiosas de seus
estudos. Em realidade, o materialismo histórico e dialético é ateu, isto
é, diferentemente de considerar a existência de Deus uma questão
científica, como no positivismo, admite plenamente, com base na
visão materialista, a inexistência de Deus (ROSENDAHL, 1996, p. 22).
Nos embalos das diversas possibilidades de pesquisa, a temática emudecida na
geografia tradicional e avivada na virada cultural foi a sacrorreligiosa. Apesar de ecoar
antes da renovação ou evolução da geografia de 1980, por décadas, foi ignorada e,
quando estudada, colocada sob a ótica do visível, palpável e objetivo.
Toda a movimentação colaborou para que o espaço de discussões ficasse aberto
para o surgimento de novas intervenções epistemológicas. A proposta estava em dispor
as diferentes possibilidades de análise, descapsulando as práticas remanescentes, que
determinavam alguns resultados e métodos únicos como verdades absolutas.
Essas reflexões acerca do quadro epistemológico permitiram dar abertura para
a subjetividade humana no campo das pesquisas nas ciências sociais, potencializando
o processo da virada cultural. A ressurreição da ordem fenomenológica reencontra
ideologias ligadas às experiências dos homens nos meios social e ambiental,
compreendendo a significação no sentido dado às vidas e à diversidade (CLAVAL, 2011).
[...] A corrente nova parece virar as costas à atualidade: volta-se para
as lembranças de infância e à maneira como modela a sensibilidade
das pessoas. Fala-se daquilo que dá charme às paisagens, descobre-
se a festa, o espetáculo (CLAVAL, 2011, p. 221).
O novo momento da geografia trouxe novas perspectivas e paradigmas de
análise, dando, ao indivíduo, a possibilidade de se apresentar a partir da sua história de
vida, contemplando a percepção que tem do mundo por meio da construção que faz
do lugar onde produz suas relações, envolvendo, inclusive, suas convicções religiosas
(ROSENDAHL, 1996).
Compreende-se que, no novo ciclo, a dimensão subjetiva não se sobrepôs às
análises de cultura material, mas construiu uma dinâmica aberta, valorizando tanto uma
quanto a outra, mediante o uso optativonas pesquisas.
46
Outro quesito preservado é a cerne conceitual da geografia: território, lugar, região,
paisagem e espaço. A partir destes que outros temas surgem. São como uma trama,
que cruzam segundo as perspectivas simbólicas e tecem as variantes pertencentes
aos conhecimentos geográfico e cultural. Questões são levantadas, como identidade
territorial, imaginário espacial, formas simbólicas, literatura e música, religião etc.
Corrêa e Rosendahl (2012) consideram a geografia cultural um conhecimento
heterotópico, pois tem a capacidade de se enraizar por diferentes horizontes a partir de
uma base, sendo que nenhuma dessas zonas de ramificação, por mais plural que seja,
pode se sentir superior, já que a diversidade caracteriza uma cultura aberta, sujeita a
uma amplitude no campo de investigação.
A seguir, apresentaremos um resumo reflexivo de três concepções de cultura
utilizadas ao longo das três fases da geografia cultural.
QUADRO 2 – CONCEPÇÕES DE CULTURA
FONTE: Adaptado de Claval (2002)
Classificação de três concepções culturais
Primeira
Concepção
CULTURA
• Conjunto de práticas, conhecimentos e valores.
• Cada indivíduo recebe e se adapta a situações evolutivas.
• Aparece, ao mesmo tempo, como uma realidade individual (resultante
da experiência de cada pessoa) e social (resultante de processos de
comunicação).
• Não é uma realidade homogênea.
• Compõe muitas variações.
Segunda
Concepção
• Apresentada como um conjunto de princípios, regras, normas e valores que
deveriam determinar as escolhas dos indivíduos e orientar a ação.
• Define-se como imutável.
• É útil para compreender a componente normativa dos comportamentos.
• As regras são interpretadas para justificar e motivar as escolhas diversas.
Terceira
Concepção
• Apresentada como um conjunto de atitudes e costumes que dão, ao grupo
social, a sua unidade.
• Tem um papel importante na construção das identidades coletivas.
Caro aluno, a compreensão de cultura ultrapassa níveis de realidades
diferentes, não podendo ser considerado um aspecto banal de ser analisado. A cultura
pode ser considerada um meio para interpretar formações sociais complexas, grupos
identitários, classes sociais com alguns seguimentos das ciências, como antropologia,
sociologia, história, religião e geografia, porém, nesta última é importante percebê-la
enquanto fenômeno dentro da ordem espacial. A reflexão sobre o aparato discursivo
propõe apresentar seus avanços, levando em consideração a epistemologia, espaço
dos acontecimentos e experiência de cada autor no desenvolvimento de teorias e
interpretações sobre a cultura.
47
Sobre a perspectiva de estudo da geografia cultural, indicamos
o vídeo Relação da geografia com a cultura, desenvolvido pelo
Observatório do Desenvolvimento Regional (ObservaDR). A
conversa foi realizada com o Dr. Rogério Haesbaert da Costa,
a partir do uso das categorias geográficas território, paisagem
e lugar e suas conexões interpretativas. O vídeo possui,
aproximadamente, 11 min de duração, e pode ser encontrado
na plataforma digital do youtube, no endereço https://www.
youtube.com/watch?v=P5N2x78YZYk.
DICA
48
Neste tópico, você aprendeu:
• Na virada do Século XIX para Século XX, algumas mudanças ocorriam no cenário
científico. A geografia, enquanto ciência, abriu espaço mesmo que, timidamente,
para o desenvolvimento de um subcampo diferente de todos, o da geografia cultural.
É a área que se interessou pelas dimensões espaciais da cultura, elevando temas
referentes ao gênero de vida e paisagem cultural. As escolas geográficas dominantes,
no primeiro momento, atendiam aos interesses vidalianos e ratzelianos.
• Por volta de 1925, nos Estados Unidos, na escola de Berkeley, a geografia cultural
apresenta uma força anteriormente não experienciada. Com Carl Sauer, o subcampo
foi difundido, motivo pelo qual construiu uma identidade própria, firmada nas
sociedades tradicionais, no historicismo e na antropologia de Kroeber e demais
autores da teoria supraorgânica.
• A geografia cultural passou por um período de inexpressividade, que se iniciou na
década de 1950, estendendo-se ao fim dos anos 1970. As críticas advieram das
correntes predominantes e da versão dos materialismos histórico e dialético. Uns
julgavam pela geografia cultural não conter uma análise fiel ao teor pragmático, e
outros por não se preocupar com as causas sociais e grupos dominantes através do
capitalismo, por exemplo.
• O processo de democratização do estudo da geografia cultural foi fomentado
desde a virada dos séculos 1970 para 1980, firmando em 1990, quando as críticas
cresceram e novos contextos teóricos sobre a valorização cultural surgiram. Pode ser
considerado um processo de evolução complementar, respeitando as discussões em
sua diversidade.
• Fizeram parte do movimento de renovação: a tradição contida nos estudos de Sauer,
as incursões da escola francesa de Vidal de La Blache, a corrente filosófica fenome-
nológica, de significação e experiências, o materialismo histórico representado por
uma cultura dominante e alternativa de sociedades de classes e, por fim, a concor-
dância com as ciências humanas antropologia, sociologia, das religiões e outras, que
foram fundamentais para o fortalecimento do subcampo da geografia cultural.
RESUMO DO TÓPICO 2
49
AUTOATIVIDADE
1 O nascimento da geografia cultural ocorreu no fim do Século XIX, coincidindo com:
a) ( ) O nascimento da geografia econômica.
b) ( ) O nascimento da geografia física.
c) ( ) O nascimento da geografia humana.
d) ( ) O nascimento da geografia da religião.
2 Sobre os estudos de Carl Sauer, assinale a alternativa CORRETA:
a) ( ) Suas teorias foram amparadas na antropologia de Franz Boas do supraorgânico,
em que a cultura foi considerada uma entidade acima do homem.
b) ( ) Foi a partir de 1925, em Berkeley, que a geografia cultural ganhou identidade,
segundo as bases do historicismo e sua valorização do presente.
c) ( ) O historicismo amparado no idealismo e a visão de cultura supraorgânica de
Kroeber conduziram os estudos de Carl Sauer.
d) ( ) Os discípulos de Sauer, em 1962, privilegiaram o estudo de cinco temas na escola
de Berkeley: cultura, paisagem cultural, história da cultura, cultura dominante e
ecologia cultural.
3 Quais as duas principais correntes do pensamento geográfico que fizeram crítica à
escola de Berkeley?
a) ( ) Teorético – quantitativa e fenomenologia.
b) ( ) Historicismo e materialismo histórico dialético.
c) ( ) Teorético – quantitativa e historicismo.
d) ( ) Teorético – quantitativa e materialismo histórico dialético.
4 Sobre a renovação da geografia cultural, assinale a alternativa CORRETA:
a) ( ) A década de 1980 representou uma fase obscura na geografia cultural, prevale-
cendo o determinismo cultural e o senso comum.
b) ( ) A década de 1980 representou uma democratização dos estudos culturais na
geografia, a espacialização da cultura, a valorização das perspectivas material e
não material, o objetivo e subjetivo e as experiências expressamente vividas e
planejadas.
c) ( ) O período de renovação da cultura, apesar de ser valorizado com a eclosão da
“virada cultural”, não foi satisfatório, pois o conceito de cultura não pôde ser
redefinido, permanecendo com perspectiva única do supraorgânico.
d) ( ) A renovação remonta um marco na geografia segundo o amparo na base
estruturalista, em que os estudos culturais estavam aliados a uma compreensão
mais ampla de mundo.
50
51
TÓPICO 3 —
A CENTRALIDADE DA ABORDAGEM DA
GEOGRAFIA CULTURAL NO BRASIL: UM
CAMINHAR PARALELO ENTRE A ORIGEM,
“NEGLIGÊNCIA” E DINAMISMO
UNIDADE 1
1 INTRODUÇÃO
Caro acadêmico, até o presente momento, trouxemos, nos tó-picos anteriores, uma contextualização importante sobre os parâmetros
em que a geografia cultural se posicionou. Aparentemente localizadas
em esferas longínquas, as grandes escolas do pensamento geográfico, a exemplo da
França, Alemanha e Estados Unidos da América, tocaram, literalmente, a geografia no
Brasil, sim, algumas influências mais fervorosas, outras menos, mas assim que se for-
taleceu o campo cultural.
É chegada a hora de vocês conhecerem o perfil e incursões culturais geográ-
ficas no Brasil entre as décadas de 1930 e posteriores, seus desdobramentos, alguns
pesquisadores, além de analogias.
Identificamos que o campo de estudo no Brasil constitui uma resposta do pro-
cesso de difusão realizado a partir de eventos de proporções maiores. Os atos realizados
formaram a inserção salutar, visto que, a partir do Século XIX, o prisma sobre a geografia
cultural ganhou um perfil caleidoscópico. A cada giro ou fenômenos no espaço, uma
nova abordagem se formava sobre cultura na geografia. O processor de formas e fun-
ções diferenciadas foi mudando até o formato que temos na década de 2000 na, então,
geografia cultural brasileira.
A proposta congregou, nas temáticas, o cunho explicativo sobre a história e
desenvolvimento da geografia cultural no e do Brasil. A princípio, com “Geografia cultural
no Brasil: uma prévia das primeiras incursões”, “A produção acadêmica da geografia cul-
tural”, “Geografia cultural: um campo negligenciado no Brasil”, “O florescer dos estudos
culturais pós-1980”, “Principais difusores: a expansão e o interesse da geografia cultu-
ral” e, por fim, “A produção acadêmica da geografia cultural”.
52
2 GEOGRAFIA CULTURAL NO BRASIL: UMA PRÉVIA DAS
PRIMEIRAS INCURSÕES
Iniciamos fazendo uma abordagem geral da condição da geografia do Brasil
enquanto grande disciplina entre os anos de 1930 a 1970. É certo que a busca por uma
compreensão mais abrangente se traduz em explicações futuras sobre o campo da
geografia cultural.
Antes da geografia ser estudada academicamente no país, o conhecimento
geográfico se fazia presente a partir de formas comunicadoras, a exemplo das letras
com a literaturas e imagens com a linguagem visual. Eram realizadas descrições,
classificações que traduziam as paisagens, além das distribuições locacionais, porém,
com uma percepção europeia marcada, inicialmente, pela herança colonialista
portuguesa (MOREIRA, 2008).
Moreira (2008, p. 30) afirma que “a geografia brasileira já nasce clássica”. A
máxima vem explicar que o desenvolvimento da ciência geográfica brasileira se deve
a um movimento sinalizado pela ciência em âmbito das grandes escolas geográficas já
existentes no mundo, cujas referências influenciaram diretamente o crescimento.
Oportunamente, no Século XX, inúmeros trabalhos geográficos foram produzidos.
Apesar de obedecer às regras vigentes dos modelos descritivos e estatísticos, tal ato se
transformou em estratégia para fomentar a geografia no Brasil. Com o apadrinhamento
estrangeiro, foi natural que, de maneira inicial, a geografia no Brasil tivesse sua essência
marcada por princípios e interpretações de ordens francesa, alemã e norte-americana.
As influências enriqueceram a ciência e, mais tarde, o diálogo se deu de maneira mais
equilibrada, frente às construções de conhecimento geográfico próprio do Brasil,
proporcionando a construção identitária de uma geografia brasileira realizada por sua
gente (CLAVAL, 2012).
No ano de 1934, a geografia no Brasil ganha o primeiro capítulo: torna-se
acadêmica na Universidade de São Paulo (USP). Naquele ano, foi criado o departamento
de geografia e o de história. Mais adiante, em 1936, no Rio de Janeiro, o segundo curso
de geografia foi criado, na antiga universidade UDF, atual Universidade Federal do Rio de
Janeiro - UFRJ (CORRÊA; ROSENDAHL, 2005; MOREIRA, 2008).
Geógrafos como Miguel Delgado de Carvalho, Everardo Backheuser, Pierre
Monbeig e Pierre Deffontaines se destacaram por auxiliar na implantação dos cursos,
associação dos geógrafos do Brasil, congressos de geografia, conselho nacional de
geografia e órgãos como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
53
Delgado de Carvalho foi um dos grandes nomes do Século XX na geografia
brasileira. Foi ele quem introduziu o sentido de uma geografia moderna no país. Com
uma formação acadêmica francesa, Carvalho mergulhou nas bases vidalianas que
estavam em voga no começo daquele século, trazendo a origem da escola francesa
para lapidar os primeiros cursos e instituições de geografia no Brasil. O tema relativo
às ordens físicas sobre a primeira proposta de divisão regional do Brasil, setentrional,
meridional, norte oriental, oriental, central/ocidental, subsidiou as posteriores divisões
regionais elaboradas pelo IBGE (MORREIRA, 2008).
FIGURA 7 – PRIMEIRA DIVISÃO REGIONAL EM 1913 POR DELGADO DE CARVALHO
FONTE: Costa e Farias (2009, p. 6)
54
Everardo Backheuser também foi um dos representantes contemporâneos no
desenvolvimento da geografia brasileira. Ele traça adaptações da antropogeografia rat-
zeliana com elementos conceituais franceses, segundo Brunhes e Vallaux. Com uma
pluralidade e diversidade de temas, Backheuser hora perpassa pela geologia, geomor-
fologia, e outrora na geopolítica. Como possibilidade, em 1944, ele apresenta uma com-
binação da geografia com a religião, “a religião em antropogeografia” (MOREIRA, 2008).
Tanto Monbeig quanto Deffontaines foram discípulos de Vidal de La
Blache, fonte que direcionou teoricamente a geografia brasileira, as primeiras e as
gerações posteriores, consequentemente. O papel de ambos se cruzou mediante as
responsabilidades acadêmicas assumidas, primeiramente, com a USP e, depois, com a
UFRJ. Em um comparativo, Moreira (2008) singulariza Monbeig como um produtor de
trabalhos clássicos focado na geografia agrária, na base físico-territorial, caracterizando
a atomização em campos setoriais, ou seja, estudos fracionados. Deffontaines, como
um produtor de geografia integrada, baseado na geografia humana do Brasil. O homem,
meio descrito por ele, tinha uma comunicação intrínseca, pois partilhava de uma leitura
dos aspectos humanos e do meio natural.
Para Claval (2012), Deffontaines teve um papel fundamental na construção
da geografia cultural, principalmente por suas reflexões acerca da criação de cidades
brasileiras. Ele percebeu que os grandes latifundiários, em sua maioria, edificavam um
templo que atendesse a necessidades da população. Em torno da criação da igreja,
passava a existir uma dinâmica espacial envolvida, que modificava os arredores. Um
grupo de pessoas passava a se deslocar semanalmente para participar, por horas, das
atividades religiosas desenvolvidas. Em outros casos, havia a permanência de pessoas
naquele espaço durante todo o fim de semana, nas chamadas casas secundárias,
aquelas construídas para uso excepcional, no caso, para o compromisso religioso.
Durante a caminhada profissional, Pierre Deffontaines ressaltou algumas
pesquisas que apontam para uma geografia cultural francesa sobre folclore e etnografia
rural. Os recortes espaciais contemplam suas vivências pessoais e manifestações
visíveis da cultura referente aos países e regiões nos quais residiu: no Sudoeste e Leste
da França, Europa Central, Quebec, Catalunha e o Brasil, num período curto antes da
segunda guerra (CLAVAL, 2012).
Suas obras, para as geografias humana e cultural, O homem e a serra, O homem
e a floresta, O homem e o inverno no Canadá, O homem e a vinha, O homem e o arado,
O homem e as plantas cultivadas, substantivaram geógrafos brasileiros, dos quais
destacou-se Alberto Ribeiro Lamego Jr. Ele escreveu, nas décadas de 1940 e 1950, obras
em estruturas semelhantes às de Deffontaines, mas como teor conteudístico brasileiro:
O homem e o brejo (1946), O homem e a restinga (1946), O homem e a Guanabara (1948)
e O homem e a montanha (1950).
55
Como a mais importante matriz geográfica do Brasil, a escola francesa se
preocupava em apresentar, em suas pesquisas, os estudos regionais. De forma alegórica,
a cultura aparecia em uma ação conjunta entre elementos para fornecimento de uma
identidade regional.
Tratando-se da influência da escola sauariana nos estudos geográficos brasilei-
ros, pode-se dizer que, apesar de ter sido implantado pelo professor Hilgard Sternberg
na Universidade do Brasil até meados de 1960, o resultado foi insatisfatório, pois não
houve uma adesão frente à linha teórica holística de Berkeley. Da década de 1970 até
1980, a geografia brasileira era dividida em três linhas: tradução francesa, visão teoréti-
co-quantitativa e a referenciada pelo materialismo histórico e dialético (CLAVAL, 2012).
Significativamente, a geografia cresceu, pesquisadores surgiram, mas o
campo da geografia cultural permanecia marginalizado. Independentemente das
particularidades, dinamismo e heterogeneidade cultural existentes no Brasil, até o fim
da década de 1980, inúmeros geógrafos desconheciam o subcampo de conhecimento
pertencente à ordem geográfica.
3 GEOGRAFIA CULTURAL: UM CAMPO NEGLIGENCIADO
NO BRASIL
Uma modesta perspectiva de crescimento quanto ao estudo cultural geográfico
pôde ser evidenciada na passagem da década de 1970 para 1980. O período mostrou
as ebulições científicas, o princípio de decadência das orientações quantitativas e a
ascensão de uma geografia radical ou crítica.
Contudo, algumas obras pós 1980, a exemplo de dicionários da geografia
humana-cultural, foram escritas com o intuito de reafirmar a geografia cultural como
ciência descritiva, com definições estabelecidas e conceitos existentes, uma geografia
norte-americana de ramo sistemático da geografia humana com análises morfológicas
em sua essência.
Apesar da efervescência iniciada em anos anteriores, inclusive com a virada
linguística, não mudou bruscamente a realidade do ramo da geografia. A abordagem
cultural ocorria esparsamente em pequenos grupos.
A passagem da década de 1970 no Brasil pouco impactou os movimentos
culturais na geografia, pois a influência da geografia clássica francesa prevaleceu,
principalmente nas produções acadêmicas. Com os trabalhos de conclusão de curso,
geralmente, permeavam temáticas de interesse regionais e locais, deixando adormecido
o aspecto cultural na maioria das pesquisas.
56
Segundo Claval (2012), os geógrafos brasileiros estavam fadados às práticas
recorrentes e entusiasmados para experimentar outras epistemologias e temas
voltados para atualidade da época, como a dinâmica e conceituação do espaço. Então,
introduzida, pela literatura do geógrafo Pierre George, a compreensão do movimento
da geografia ativa ou crítica, além da base marxista, com vistas para a geografia das
populações mundiais.
No período, o Brasil estava sob a governança militar, motivo que favoreceu a
busca pelo afastamento do regime socialista e a implantação do experimento comunista
no país. O regime militar investiu nas incursões quantitativas difundidas pelos Estados
Unidos, com a justificativa: a aproximação com o pragmatismo desvincularia o país do
progressismo encontrado na Europa.
Em virtude da tomada e declínio militar, o contexto geográfico também absorveu
as mudanças. No fim da era militar, inúmeras hipóteses foram contestadas e a verdades
absolutas dadas como incertas, primeiramente, em relação à geografia regional instituída
pela escola francesa e, posteriormente, com a geografia quantitativa norte-americana,
com duas correntes que influenciaram o desenvolvimento da geografia no Brasil.
Em 1970, como protagonista, a geografia crítica ou radical se instala
principalmente com a difusão de pensamentos materializados por Milton Santos.
Ele representou o start da renovação da disciplina no país, abordando temáticas
anteriormente sem esclarecimentos geográficos. Ainda, foi a fundo nos processos de
urbanização, globalização, países subdesenvolvidos. Um pesquisador ativo desde que
deixou um legado importante para a geografia.
O retrato da geografia cultural de 1950 a meados de 1980, no Brasil, era de
esquecimento ou desprezo quanto à renovação. Apesar do processo ter iniciado na
Europa, não foi suficiente para conquistar de imediato as cátedras brasileiras. Empecilhos
e interesses contra a efervescência permearam até a condição política, pois o sentido
científico oficial eram aqueles baseados na geografia lógica.
As conquistas da virada cultural no Brasil são introduzidas segundo práticas
disciplinares de uma geografia que renasce com a aplicação de representações
espaciais mentais, com os “mapas mentais”, de origem interdisciplinar, voltados para a
psicologia, cartografia e geografia, seguindo os autores Jean Piaget, Bárbara Petchenik
e o humanista Yi – Fu Tuan, grandes representantes na escala de conhecimento.
A assimilação humanística se deu a partir da professora Lívia de Oliveira, na
passagem de 1960 para 1970. Como precursora de uma geografia humanística no Brasil,
Oliveira apontou para a possibilidade de estudar os fenômenos imateriais com os de
ordem material. Ela também trouxe, para a geografia, associações didáticas baseadas
nas leituras afetiva e cognitiva piagetiana. Em parceria com Lucy Marion C. P. M., em
1975, desenvolveu trabalhos sobre a percepção geográfica de adolescentes a partir de
noções topológicas e euclidianas na construção de mapas iniciais.
57
4 O FLORESCER DOS ESTUDOS CULTURAIS PÓS-1980
A reinterpretação cultural dirigiu parte das mudanças na geografia cultural.
Tem-se a impressão de se tornar mais coerente e participativa nas leituras geográficas.
Métodos alternativos, como traduções de materiais acadêmicos, influenciaram positiva-
mente, como o caso do livro Topofilia (topo= lugar, filia= gostar de), de Yi-fu Tuan.
O geógrafo tornou-se o precursor de um pensamento humanista voltado para
as dimensões sensoriais e afetivas na geografia. A paisagem, por exemplo, torna-se
mais do que a conceituação “até onde nossos olhos possam ver”. Com a nova dimensão,
é possível utilizar todos os sentidos humanos.
Tuan realizou novas associações com incursões fenomenológicas, criando uma
geografia sob a compreensão do homem e suas realidades e, num sentido interdisciplinar,
aproximou-se das ‘convicções’ do Eric Dardel (1900-1968), historiador, com formação
semelhante à dos geógrafos na França.
Claval (2011, p. 157) aponta que L’homme et la terre “[...] foi escrito em uma
linguagem magnífica, clara, musical”.
Claval (2011) afirma que, principalmente, na obra, Dardel propôs comunicar
alguns novos aspectos possíveis na geografia a partir da apropriação dos sentidos
dados para si (homens) em relação às vivências na superfície terrestre:
1) Investigar mais intensamente sobre o sentido da existência humana no globo terrestre.
2) Reconhecer as convicções religiosas.
3) Os mitos como abordagem na geografia.
4) Dimensões sobrenaturais, relativas ao que se torna indissociável ou transcendente.
O período em que aconteciam as transformações ideológicas no Brasil, a
partir de autores como Lívia de Oliveira, refletiu os processos de “cultural turn”, com
as desconstruções conceituais anteriormente postas como verdades absolutas e
enrijecidas pelos métodos científicos.
A virada cultural chegou para dar continuidade à crítica dos fundamentos dos
povos ocidentais, difundindo técnicas de desconstrução e destacando teses sobre os
preconceitos europeu, oriental e o desenvolvimento após o colonialismo (CLAVAL, 2011).
Claval (2011, p. 11) denominao período pré-virada cultural a partir de um contexto
sem interconexão dentro da própria ciência geográfica:
58
A disciplina aprecia, como um conjunto de disciplinas: a geografia
econômica, geografia política, geografia social, geografia urbana,
geografia rural, geografia cultural etc. As fronteiras entre disciplinas
eram fortes e rígidas. As fronteiras entre a geografia, as outras
ciências sociais (salvo história) e as humanidades eram ainda mais
altas e rígidas.
Quando a virada cultural surge, tem o propósito de não permitir fronteiras no
interior da geografia, nem a relação dela com os demais campos científicos. A finalidade
é enxergar a cultura não apenas nas entrelinhas, mas em níveis anteriormente
desconhecidos, naqueles que revelam poder, crença e cotidiano, por exemplo.
Não existe uma fronteira rígida entre a geografia cultural e a geografia
econômica: a oferta e a procura nunca são categorias econômicas
puras. A oferta vem de empresas, que têm culturas próprias; a
procura não se exprime em categorias abstratas. No Brasil, a procura
de alimentos é uma procura de feijões pretos, de farinha, de carne de
sol, ou camarões; na França, é uma procura de pão, vinho, de batatas,
de fígado gordo (CLAVAL, 2011, p. 11).
A virada cultural ocorrida no Brasil, em meados de 1990, descreveu um
movimento de dimensões compactas, mas com uma preocupação evidente: o zelo pela
solidez das bases teóricas. O ato de traduzir, para a língua portuguesa, textos clássicos,
materiais teóricos de diversos autores e em diferentes períodos de evolução geográfica
funcionou como estratégia, livrando a geografia cultural de um possível caminho com
superficialidade e efemeridade. A absorção cultural na geografia não poderia se tornar
um mero modismo que, a curto prazo, fosse substituída por outros ventos de doutrinas.
A partir de então, iniciou-se o processo de plantação acerca do interesse cultural
e, a comunidade de geógrafos no Brasil, aos poucos, se deu conta da diversidade e das
características ricas, enérgicas e vivas da cultura presente no território e povo brasileiro.
A cultura é comum, existe em todos os lugares e se manifesta rotineiramente
no espaço e tempo. No caso do Brasil, é possível que ela tenha dimensões maiores, por
apresentar características distintas entre as complexas e diferentes regiões.
Ao chegar em 1990, a geografia cultural passa a romper com aquela fase de
nulidade e silenciamento do ramo. Um novo ciclo se inicia, abrindo portas para um
processo de expansão que significa muito mais pela qualidade da pesquisa de uma
geografia brasileira.
Houve uma adesão de um novo público, conforme diagnosticaram Corrêa
e Rosendahl (2005). Apontam que os congressos rendiam números cada vez mais
expressivos, entre 2000 a 3000 geógrafos originários do Brasil, Europa e América do
Norte. Eram estudantes e profissionais, além de simpatizantes de áreas afins, todos
interessados em estimular a importância pela dimensão cultural do espaço.
59
Após a década, o bloco de estudos culturais que surgiu abordou “[...] a natureza
da experiência religiosa e, particularmente, as formas que assumem no espaço”, ou
seja, uma nova perspectiva que se distinguiu daquela em que a paisagem refletia,
materialmente, o impacto da religião (ROSENDAHL, 2003).
A geografia cultural, apesar de uma essência tradicional firmada nos estudos
vidalianos e, posteriormente, sauariana, somou possibilidades com a nova versão da
dimensão espacial da cultura, além das significações democratizadas.
5 PRINCIPAIS DIFUSORES: A EXPANSÃO E O INTERESSE
DA GEOGRAFIA CULTURAL
Sobre a expansão do estudo da geografia cultural, Corrêa e Rosendahl (2005)
afirmam que o esforço em estimular a área cultural no Brasil vem de várias frentes,
a princípio, da heterogeneidade cultural do país, da vitalidade, da criatividade dos
geógrafos brasileiros e, por fim, das relações entre profissionais estadunidenses e
europeus que incentivaram o estudo.
[...] Surgem periódicos especializados, como o Géographie et Cultures,
na França, criado por Paul Claval, em 1992, e o Ecumene, na Inglaterra
e nos Estados Unidos, em 1994, posteriormente redenominado
de Cultural Geographies. Ambos se juntam ao Journal of Cultural
Geography, criado nos Estados Unidos. A criação posterior do Social
and Cultural Geography ampliou as possibilidades de publicação de
textos relacionados à geografia cultural (CORRÊA, 2009, p. 2).
O fim do Século XX e início do Século XXI, no Brasil, mostraram ser períodos
significativos por alguns motivos, como a seguridade da virada cultural. Em 1990, núcleos
de pesquisa, a exemplo do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Espaço e Cultura
(NEPEC), do Núcleo Paranaense de Pesquisa em Religião (NUPPER), Núcleo Estudo
em Espaços e Representações (NEER), revistas, congressos e encontros, ganharam
notoriedade e expressividade com a disseminação dos aspectos culturais da geografia.
Nos dias atuais, já se sabe que houve mais disseminação de núcleos de estudos
culturais. Nos primórdios de 1993, o primeiro deles e de maior expressividade nacional
foi criado em novembro daquele ano, e coordenado pela professora doutora Zeny
Rosendahl e Roberto Lobato Corrêa, no Departamento de Geografia da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro. A fonte de inspiração para a introdução pioneira do “Espaço
e Cultura” no Brasil originou-se de uma unidade semelhante criada por Claval em Paris,
em 1980.
Certamente, você deve estar se perguntado: Do que se trata o NEPEC? Corrêa
e Rosendahl (2005, p. 99) respondem que “[...] trata-se de um pequeno, porém, ativo
centro de produção e difusão no Brasil da geografia cultural. Suas pesquisas têm três
60
direções: relações entre espaço e religião, espaço e simbolismo e cultura popular. A
ênfase fixou-se na primeira das três temáticas”, porque Zeny estava concluindo a tese
de doutorado, cujo tema foi acerca do centro de peregrinação do Porto das Caixas, na
Baixada Fluminense. Os dois outros eixos passavam a ser sustentados pelo interesse
do professor geógrafo Roberto Lobato Corrêa, meios auxiliares para o entendimento da
ação humana (ROSENDAHL, 2003).
De acordo com Rosendahl (2010), os anos 1990 se constituíram como divisores
de águas, marcados por algumas investidas na produção bibliográfica e ousadas
propostas de estudo: religião como uma construção cultural, paisagem cultural,
espaços públicos, literatura e música, percepção e significado, cinema, espaço de
festas populares, território, imaginário espacial, imagens, história e biografia, grupos
étnicos, gênero e sexualidade e identidade territorial (ROSENDAHL, 2010). Todas essas
temáticas se fortaleceram ao decorrer do desenvolvimento da pesquisa da geografia
cultural frente aos anos 2000.
A disseminação ocorre por várias frentes. A primeira delas refere-se ao periódico
espaço e cultura criado desde 1995. Geógrafos, colaboradores do núcleo, como demais
geógrafos com interesse em apresentar os resultados de suas pesquisas. Outro
instrumento lançado em 1996 foram as séries de livros “Geografia e Cultura”, o simpósio
internacional sobre espaço e cultura, NEPEC textos etc.
O segundo núcleo foi fundado pelo professor Sylvio Fausto Gil Filho, em 2003,
na Universidade Federal do Paraná. O NUPPER surge como um grupo de investigação
científica baseado nas humanidades, incluindo a geografia cultural. São analisados
fenômenos religiosos frente ao dualismo da singularidade e pluralismo.
O NUPPER iniciou com o objetivo central de disseminar a tendência de cres-
cimento sobre as pesquisas referentes à religião, religiosidade e instituições religio-
sas. Por meio de publicações de artigosna plataforma digital, e com o fomento dos
eventos de maior e menor proporção, como os congressos, encontros e seminários, há
facilitação do processo de conhecimento sobre parte do ramo cultural. Inúmeros pes-
quisadores e estudiosos apresentam, discutem cientificamente temáticas sobre novas
metodologias, técnicas ou outras formas de comunicação envolvendo diversos temas.
O NEER foi gestado a partir do movimento da “virada cultural”, na década de
1990, sendo concebido somente no dia 19 de outubro de 2004. Seu pleito maior se
caracteriza pela institucionalização da abordagem cultural da geografia praticada
no Brasil. Para conquistar seus objetivos, o NEER tornou-se um núcleo articulador,
agregando conhecimento a partir de projetos e grupos de pesquisas nas “universidades
periféricas” (Salvador, Porto Alegre, Curitiba e Porto Velho), ecoando a voz daqueles
cursos que, por vezes, tiveram uma pequena representatividade, por não estarem nos
grandes centros, como São Paulo e Rio de Janeiro (CLAVAL, 2012).
61
Reflexo de um processo evolutivo, o núcleo cresceu em números, dinâmica
e qualidade. Em 2019, são vinte instituições nacionais de ensino superior que cobrem
todas as regiões do país e, colaborativamente, produzem conhecimento nas áreas de
nova geografia cultural, geografia humanista, estudos de percepção e cognição em
geografia, geografia das representações e ensino de geografia no Brasil.
O resultado dessas ações vem representar o êxito, a boa aceitação da abordagem
cultural na década de 2000, constituindo outros centros e pesquisadores responsáveis
pela difusão da disciplina, além do NEPEC, NUPPER e NEER.
6 A PRODUÇÃO DA GEOGRAFIA CULTURAL NO BRASIL
A produção acadêmica, na área da geografia cultural, iniciou-se, pioneiramente,
desde os anos de 1972, com a pesquisa da vanguarda no âmbito geográfico religioso:
“Pequenos centros paulistas de função religiosa”, por Maria Cecília França, apresentada
para título de doutoramento na USP. Com um tema inédito nas cátedras brasileiras,
França foi influenciada pela perspectiva do impacto religioso sobre a paisagem nas
cidades de Iguape, Bom Jesus dos Perdões e Pirapora do Bom Jesus.
Contudo, a partir de 1990, seu crescimento se deu de forma criativa, e temas
como paisagem cultural, percepção e significados, religião como construção cultural,
espaço geográfico e literatura, cinema, espaço de festas populares, território, imaginário
e identidade passaram a fazer parte da diversa produção acadêmica no e do Brasil
(CORRÊA; ROSENDAHL, 2005).
Zeny Rosendahl é um dos grandes nomes que, com Roberto Lobato Azevedo
Corrêa, contribuiu para o desenvolvimento da produção cultural na geografia.
São gerados conceitos e princípios dentro do campo da geografia da religião.
O primeiro é do espaço sagrado, explicado pela inter-relação entre ponto fixo e entorno.
Com outros conceitos geográficos, é lançada a concepção de espaço profano. Os demais
temas propostos foram: fé, espaço, tempo-difusão e área de abrangência; os centros de
convergência e irradiação religiosa; território e territorialidade; e lugar sagrado, vivência,
percepção e simbolismo.
Destaca-se que a análise do estudo sobre espaço e religião traz a concepção
ontológica do filósofo das religiões, historiador e sociólogo Mircea Eliade, o qual trouxe,
para a geografia da religião, a compreensão e a distinção conceitual sobre o sagrado e
o profano.
62
A geografia da religião, como um campo da geografia cultural, passa a ser
interpretada segundo processos dinâmicos que ocorrem entre os grupos sociais em
espaços diversos. Portanto, seu estudo representa inúmeras possibilidades de enxergar
as influências religiosas no espaço.
Na geografia da religião brasileira, também se destaca um grande nome,
o do professor Sylvio Fausto Gil Filho, com diversas publicações. Em obras, são
explicados conceitos de poder, representações e o sagrado. Na geografia, espaços de
representações e da territorialidade do sagrado. À luz da teoria, foram colocadas três
realidades religiosas diferentes: o estudo do cristianismo católico romano, do islã shi’i e
da peregrinação bahá’í, nas cidades de Haifa e Akká.
Shi’i refere-se à frase “seguidores de Ali”. É um termo corriqueiramente
escrito como xiita na língua portuguesa, referindo-se àquele grupo
que tem, como crença, uma sucessão espiritual e temporal do profeta,
o qual segue uma linhagem de descendentes mediante o genro do
profeta Ali (GIL, 2012).
A fé bahá’í refere-se à religião que teve origem em 1844, na antiga
Pérsia, onde se localiza, atualmente, o Irã. Seu fundador foi Mírzá
Husayn ‘Ali Nurí. Após sua trajetória, a fé bahá’í destinou-se a defender
uma mensagem da unidade mundial. A destinação da peregrinação
para Akká tem correspondência com a história da religião. O lugar é
considerado uma Terra Santa para os devotos (GIL, 2012).
NOTA
Esses são os principais nomes de influência e pesquisa atuantes na área
da geografia cultural no Brasil, a qual abrange temas culturais para além da religião.
Assim, teoria e conhecimento vêm sendo disseminados, fomentando o despertar das
novas possibilidades de compreender o espaço, além do acréscimo da produtividade
acadêmica segundo o olhar heterogêneo das temáticas encontradas pelos geógrafos
brasileiros.
63
LEITURA
COMPLEMENTAR
A GEOGRAFIA CULTURAL NO BRASIL
Roberto Lobato Corrêa
Zeny Rosendahl
Negligência e gênese da Geografia Cultural
A geografia brasileira de cunho acadêmico nasce em 1934, com a criação do
departamento de geografia (e história) na Universidade de São Paulo. Em 1936, aparece
na cidade do Rio de Janeiro o segundo curso, na atual Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Atualmente, há mais de 150 cursos de geografia, dos quais 25 oferecem
cursos em nível de mestrado. Rapidamente, o número de cursos oferecendo o nível de
doutorado aumenta, ultrapassando meia dezena.
A despeito do elevado número de cursos de geografia, a grande maioria
dedicados quase que, exclusivamente, à formação de professores do ensino
secundário, e a despeito da heterogeneidade cultural do Brasil, a geografia cultural foi,
até ao fim da década de 1980, negligenciada, mesmo desconhecida pelos geógrafos
brasileiros. Aspectos da cultura, no entanto, eram tratados nos estudos regionais, mas
não eram priorizados, nem se tinha a consciência de que a cultura, em suas múltiplas
manifestações, poderia ser tema central nas pesquisas.
A escola francesa de geografia, a mais importante matriz da geografia brasileira,
priorizava os estudos regionais e a cultura se constituía em mais um elemento da
complexa combinação de elementos que forneciam a identidade regional. A geografia
saueriana, a despeito dos esforços do geógrafo brasileiro Hilgard Sternberg, professor
no Rio de Janeiro até meados da década de 1960, depois transferindo-se para Berkeley,
não repercutiu no país. Durante as décadas de 1970 e 1980, a geografia brasileira
dividia-se em três linhas, de acordo com a tradição francesa, segundo a visão teorético-
quantitativa e de acordo, após 1980, com a perspectiva crítica, calcada no materialismo
histórico e dialético.
A heterogeneidade cultural do Brasil, assim como o seu dinamismo, a escala
dos praticantes da geografia (os congressos de geografia reúnem entre 2,000 e 3,000
pessoas) e as inúmeras redes estabelecidas com geógrafos europeus e norte-americanos
contribuíram para que fosse despertado o interesse pela dimensão cultural do espaço.
Afinal, parafraseando Denis Cosgrove, a cultura está em toda parte, manifestando-se
no espaço e no tempo, especialmente se o espaço for amplo, diversificado e mutável,
como é o Brasil.
64
A geografia cultural está implantada no Brasil. Como tal, entende-se aquelas
geografias de matriz saueriana, influenciada pela denominadanova geografia cultural e
pelo approche culturel de Claval. A sua implantação gerou polêmicas pois, afinal, o que
é visto como novo pode desafiar o establishment geográfico. No entanto, os adeptos da
geografia cultural brasileira são, por definição, adeptos de uma heterotopia geográfica,
sem a ascendência de nenhum grupo.
A expansão da Geografia Cultural: o NEPEC
Em 1993, foi criado, no Departamento de Geografia da UERJ (Universidade do
Estado do Rio de Janeiro), o NEPEC (Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Espaço e
Cultura). Criado e coordenado por Zeny Rosendahl, trata-se de um pequeno, porém ativo
centro de produção e difusão no Brasil da geografia cultural. Suas pesquisas direcionar-
se-iam em três direções: relações entre espaço e religião, espaço e simbolismo e cultura
popular. A ênfase, contudo, fixou-se na primeira das três temáticas.
Em 1995, foi lançado, pelo NEPEC, o periódico Espaço e Cultura, com dois números
por ano. Em seu Conselho Consultivo fazem parte, entre outros, Marvin Mikesell, Denis
Cosgrove, Paul Claval, representantes, respectivamente, da perspectiva saueriana, da
denominada nova geografia cultural e da visão francesa em geografia cultural. O teólogo
Leonardo Boff (Teologia da Libertação) também é membro do Conselho. No fim de 2003,
quinze números foram publicados.
Em 1996, aparece a série de livros intitulada Geografia Cultural, que tem uma
difusão mais ampla do que o periódico. Trabalhos completos de um geógrafo brasileiro
e coletâneas de importantes textos publicados originalmente em outra língua são
publicados na coleção que já possui dez livros publicados.
Três simpósios de âmbito nacional foram realizados, em 1998, 2000 e 2002,
cada um 16-20 “papers” e participação de 120-200 pessoas, estudantes, pesquisadores
e professores universitários.
Em 2003, dez anos de existência, o NEPEC lança outra publicação, NEPEC
TEXTOS, de produção artesanal e destinada à divulgação de suas próprias pesquisas, as
quais estão fortemente focalizadas nas relações entre espaço e religião.
Contudo, é preciso ressaltar e existência de outros focos autônomos, nos
quais a geografia cultural constitui-se em prática por parte de alguns geógrafos. São
universidades públicas que têm um programa de pós-graduação em geografia, entre
elas as de Goiânia, Fortaleza, Uberlândia e outras universidades na cidade do Rio de
Janeiro. A produção desses focos é significativa e serão comentados, mais adiante, os
livros de Almeida e Ratts, Haesbaert e Monteiro.
65
A expansão da geografia cultural no Brasil fez com que, em 2003, a International
Geographical Union (IGU) organizasse, por intermédio do Working Group of Cultural
Approach in Geography, presidido por Paul Claval, uma Conferência Regional sobre a
Dimensão Histórica da Cultura. Realizada na cidade do Rio de Janeiro, reuniu cerca de
100 “papers”, 60 de brasileiros.
As traduções como estratégia de difusão
Os organizadores do periódico Espaço e Cultura e da série de livros intitulada
Geografia Cultural têm tido, como uma de suas preocupações, contribuir para
estabelecer uma sólida base teórica na geografia cultural brasileira. O cultural turn que,
no Brasil, ocorreu, ainda que de modo restrito, a partir do início da década de 1990,
poderia correr o risco de uma apropriação superficial e efêmera, transformando-se
em moda a ser substituída em breve por outra. A apropriação superficial e efêmera já
ocorrera na geografia brasileira, primeiramente, com a denominada geografia teorético-
quantitativa, por volta de 1970 e, em segundo lugar, com a geografia radical, de matriz
marxista, por volta de 1980. Com a geografia humanista, a difusão e adoção foram
mais efêmeras e limitadas ainda, e os seus poucos adeptos foram incorporados à
geografia cultural na década de 1990. A tradução, para a língua portuguesa, de textos
clássicos, que representam posições teóricas nitidamente identificáveis, e de debates
no âmbito da geografia cultural, foi uma solução encontrada. Solução condizente com
as necessidades e vicissitudes da geografia brasileira.
Dos textos traduzidos e publicados, citam-se os de Carl Sauer (1998, 2000a,
2000b), incluindo o clássico The Morphology of Landscape, de 1925. A geografia cultural
da Escola de Berkeley está ainda representada com a introdução de Readings in Cultural
Geography, de Wagner e Mikesell (2000). A denominada nova geografia cultural, por sua
vez, está presente com textos referentes às críticas à Escola de Berkeley, como Duncan
(2002) e Cosgrove (1997). Cosgrove e Jackson (2000), Cosgrove (1998, 2000) e Duncan
(2000) apresentam os aspectos fundamentais da geografia cultural renovada. Meinig
(2002) foi incorporado à língua portuguesa pelo seu texto sobre as dez versões de uma
mesma paisagem.
A contribuição a uma perspectiva marxista da geografia cultural levou à tradução
do texto de Williams (2002) sobre base e superestrutura, assim como ao polêmico artigo
de Mitchell (1999), seguido das réplicas de Cosgrove, Duncans e Jackson e da tréplica
do próprio Mitchell.
A geografia francesa, de forte influência na geografia brasileira, teve traduzidos,
entre outros, textos de Sorre (2002), sobre os “genres de vie”, Gallais (2002), a respeito
do “espace vécu” nos países tropicais, de Bonnemaison (2002), sobre o conceito de
território, assim como pequenos textos extraídos do debate, publicado em 1981, na
revista L’Espace Géographique. Paul Claval, fundador do periódico Géographie et
Cultures, tem exercido forte e fértil influência na geografia cultural brasileira. Além de
66
seu Géographie Culturelle, traduzido e publicado pela EDUSC (CLAVAL, 1999b), há,
em língua portuguesa, uma avaliação da geografia cultural brasileira (CLAVAL, 1999a)
e dois outros textos sobre a natureza da geografia cultural (CLAVAL, 2002) e sobre a
contribuição da geografia francesa à geografia cultural (CLAVAL, 2003).
Os textos indicados estão, sobretudo, na série de livros Geografia Cultural
(CORRÊA; ROSENDAHL, 1998, 2000a, 2000b, 2002 e 2003).
A produção brasileira: uma seleção
Parcialmente influenciada pelas traduções, mas dotada de forte criatividade,
a produção brasileira, em geografia cultural, tem crescido muito a partir da década
de 1990. Paisagem cultural, percepção e significados, religião como uma construção
cultural, espaço geográfico e literatura, cinema e espaço de festas populares, tanto o
carnaval do Rio de Janeiro como festas de origem rural, território, imaginário e identidade
são alguns dos temas abordados e publicados (ROSENDAHL; CORRÊA, 1999, 2001a,
2001b, 2001c).
Pela importância que apresentam, foram destacados os textos sobre religião e
espaço de Rosendahl (1996, 1997, 1999), de Haesbaert (1997), Monteiro (2002) e Almeida
e Ratts (2003).
Espaço e religião têm, em Rosendahl, grande ênfase. A partir das ideias de Mircea
Eliade, o sagrado e o profano têm sido vistos numa perspectiva geográfica. A autora
propõe, inicialmente (ROSENDAHL, 1996), os temas (a) fé, espaço e tempo: difusão e
área de abrangência; (b) os centros da convergência e irradiação; (c) religião, território
e territorialidade; e (d) espaço e lugar sagrado: percepção, vivência e simbolismo. Esses
temas foram, posteriormente, ampliados e agrupados em três dimensões de análise,
econômica, política e do lugar (ROSENDAHL, 2003). As hierópolis têm sido também um
foco de interesse da autora (ROSENDAHL, 1999), que analisou centros de peregrinação
na periferia da metrópole do Rio de Janeiro, no Nordeste e na região Centro-Oeste. Seus
interesses estendem-se a centros religiosos latino-americanos e europeus.
A contribuição de Haesbaert (1997) situa-se nas confluências da geografia
cultural e geografia regional. Ao Oeste do Estado da Bahia, analisa e interpreta as
profundas transformaçõesregionais envolvendo mudanças econômicas, sociais,
políticas e culturais, com a substituição da cultura tradicional do Nordeste, associada à
pecuária extensiva, por uma cultura moderna, de imigrantes oriundos do Sul do Brasil
e associada à agricultura especulativa da soja. A paisagem cultural é transformada
radicalmente.
Espaço geográfico e literatura constitui-se em tema que, nos últimos 30 anos,
tem atraído o crescente interesse dos geógrafos. Douglas Pocock e Marc Brossseau, por
exemplo, têm grandes contribuições a respeito. No Brasil, onde o interesse pela temática
tem as origens no começo dos anos 90, destaca-se o livro de Monteiro (2002), O mapa
67
e a trama. Geógrafo oriundo da climatologia, área na qual tornou-se um expoente,
interessou-se, recentemente, pela geografia cultural, particularmente, pelas relações
entre espaço e literatura.
Em seu livro, romances de seis consagrados autores brasileiros são
geograficamente interpretados. Três – Machado de Assis, Aluísio Azevedo e Lima Barreto
– retratam, cada um a seu modo, a cidade do Rio de Janeiro do Século XIX, quando
a cidade passa por grandes transformações socioespaciais. Os três outros autores –
Graça Aranha, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa –, do Século XX, retratam o mundo
rural, a colonização alemã no estado do Espírito Santo, o drama da seca no Sertão do
Nordeste e a vida na região do cerrado em Minas Gerais.
O mapa e a trama representa um esforço ampliado e sistemático de fortalecer
a geografia cultural por meio da interpretação geográfica de textos literários. Artigos,
dissertações de mestrado e teses de doutorado também contribuíram para o avanço da
geografia cultural, mas ainda há muito a ser feito. Afinal, a heterogeneidade cultural do
Brasil suscitou, de um lado, uma rica literatura de cunho urbano e regional e, de outro,
uma rica produção geográfica. O diálogo entre ambos, como sugere Brosseau (1996),
está apenas iniciado no Brasil.
Geografia e Leitura Culturais, coletânea organizada por Almeida e Ratts (2003),
constitui-se em outra significativa expressão da produção brasileira em geografia
cultural. Reúne doze textos de geógrafos, dos quais dez são brasileiros. O conjunto de
textos revela uma visão ampla do que se entende por cultura e geografia cultural. A
influência francesa, cuja matriz reside na Escola Vidaliana e é mantida graças à forte
e fértil influência de Paul Claval, está presente na maior parte dos textos. A influência
da Escola de Berkeley e da denominada nova geografia cultural é praticamente nula,
refletindo, sem dúvida, a matriz francesa na formação dos geógrafos brasileiros,
iniciada com a criação do primeiro departamento de geografia (e história) em 1934, na
Universidade de São Paulo.
Os textos incluem uma variedade de temas, paisagem cultural, percepção e
imaginário, os territórios indígena e de ex-escravos (quilombos), sistema de cidades,
cemitérios, festa popular e cartografia cultural. Agricultores, ciganos, índios e citadinos
de diferentes classes sociais são os atores sociais que os textos abordam. O presente,
por sua vez, entendido como uma seção atual do tempo, dotado de longa espessura, é
privilegiado nos textos da coletânea organizada por Almeida e Ratts. A região Nordeste,
em cujas universidades leciona grande parte dos autores, é o foco principal de interesse.
Regiões como a Amazônica e o Sul estão ausentes da coletânea.
Apesar de muitos dos doze artigos não revelarem uma explícita base teórica,
caracterizando-se como descrições ou interpretações superficiais, trata-se de um
grande esforço que representa um grande passo no processo de construção de uma
sólida e rica geografia cultural brasileira.
68
Os geógrafos brasileiros iniciaram apreciação da obra de expoentes da geografia
cultural e humanista. Sauer, Schluter, Tuan, Dardel e Berque já foram apreciados
(ROSENDAHL; CORRÊA, 2001a).
Perspectivas para a pesquisa
Com uma superfície de 8,5 milhões de km2 e uma população superior a 170
milhões de habitantes, a geografia cultural tem muito mais a fazer. Especialmente porque
rápidos e intensos processos de transformações econômica, social e cultural alteram a
distribuição espacial da população, valores, hábitos e crenças, a paisagem cultural e
os significados atribuídos à natureza e às formas socialmente produzidas. Ainda, há
áreas para povoamento. País industrializado e urbanizado, com moderna atividade
agropecuária e áreas de fronteira de povoamento, o Brasil oferece contrastes que
incluem desde a região metropolitana de São Paulo, com 18 milhões de habitantes, até
selvagens vales da bacia amazônica, áreas de colonização alemã e áreas de decadentes
plantações canavieiras. Ainda, áreas com fortes conflitos pela terra.
As perspectivas para a pesquisa em geografia cultural são imensas. Admite-se
que pesquisas empíricas em um contexto policultural como o Brasil podem alimentar
novos conceitos e ampliar a base teórica da geografia cultural. Hipotetiza-se, a partir
da produção brasileira em geografia cultural, que conceitos como regiões culturais
emergentes, regiões culturais residuais, paisagem poligenética e simulacros espaços-
temporais (disneyfi cation) possam ser enriquecidos a partir do Brasil, país de contrastes
culturais e de forte dinamismo espacial.
FONTE: CORRÊA, R. L.; ROSENDAHL, Z. A geografia cultural no Brasil. Rio de Janeiro: Universidade
Federal do Rio de Janeiro, 2005.
69
Neste tópico, você aprendeu:
• Por traz dos resultados de uma geografia cultural sólida no Brasil, houve um processo
de formação da subdisciplina que iniciou academicamente no decorrer da década de
1930, com a criação de órgãos e cursos de geografia. A influência francesa predominou
com perspectivas regionais de Deffontaines e demais geógrafos. Quanto à introdução
cultural na geografia, esta restringiu-se a aparições sutis como partes dos estudos
regionais, evidenciadas pelas construções de templos de igrejas e manifestações
culturais visíveis.
• A geografia cultural passou por algumas fases em âmbito global e no Brasil. Uma
reflete a negligência pelo interesse da dimensão cultural encontrado no espaço,
principalmente pelos modos vidaliano, o teorético quantitativo e o materialismo
histórico e dialético. Todos apontavam secundariamente os aspectos culturais,
embora o período de 1980 fosse favorável em virtude da alta renovação cultural
ocorrida na Europa. No Brasil, ainda havia retração, não sendo aceitas, de imediato,
as perspectivas da virada cultural.
• A virada cultural tornou-se efetiva no Brasil em 1990, período em que se desenvolveu
uma efetiva preocupação pela dimensão cultural do espaço. Houvre busca de
conhecimento evidenciada por traduções de textos clássicos para língua portuguesa,
além do cuidado com as bases teóricas escritas por autores diversos e com diferentes
linhas de pensamentos.
• Quando tratamos das pesquisas de ordem cultural na geografia, ao invés de excluir,
trata-se de agregar, além de repensar conceitos, modelos teóricos e crenças. Torna-
se um ato de reflexão o estudo da espacialização da cultura. A exemplo da paisagem,
ela torna-se além de um reflexo social do passado/presente, são adicionados o
sentimento, a emoção entre o observador e a paisagem.
• No Brasil, os estudos de geografia cultural tomaram forma com a criação de núcleos
de pesquisas, a exemplo do NEPEC, NEER e NUPPER. Eles tiveram um papel
fundamental, incentivaram a comunidade de geógrafos por meio da diversidade e
com características ricas e enérgicas da cultura presente no território e povo.
RESUMO DO TÓPICO 3
70
AUTOATIVIDADE
1 Analisamos que, desde a formação da geografia acadêmica na década de 1930, até
meados de 1980, a geografia cultural foi negligenciadapor vários motivos. Assim,
assinale a alternativa CORRETA:
a) ( ) A geografia, no Brasil, por ter influência francesa, atribuiu os aspectos culturais
aos estudos regionais. A associação aprisionou e limitou a consciência de cultura
e sua manifestação no espaço.
b) ( ) A escola francesa de geografia constituiu uma matriz importante na geografia
brasileira. Ela se caracterizou pela priorização da cultura nos estudos regionais.
c) ( ) A geografia cultural brasileira, assegurada pelas influências suariana e vidaliana,
motivou a prática reprimida dos estudos de cultura na geografia.
d) ( ) Os geógrafos brasileiros defendiam a perspectiva da geografia cultural como
subdisciplina da geografia.
2 O Brasil possui uma extensão territorial acima dos 8,5 milhões de quilômetros
quadrados, número que o eleva à categoria de quinto maior país em dimensões
territoriais da terra. Além disso, a estimativa populacional, para 2019, segundo o
IBGE, ultrapassa a casa dos 210 milhões de habitantes entre estados e municípios.
Assim, compreendemos a combinação de fatores dimensionados em números, como
aqueles de origem qualitativa, que produzem efeitos dinâmicos na sociedade, que
podem ser observados pela espacialização da cultura na geografia cultural. Corrêa e
Rosendahl (2005, p. 101) afirmaram que a geografia cultural tem uma missão ampla,
direcionada pela força dinâmica das “transformações econômicas, sociais e culturais.
Estas alteram a distribuição espacial da população, valores, hábitos e crenças, a
paisagem cultural e os significados atribuídos à natureza e às formas socialmente
produzidas”. A partir das informações, o que querem dizer Correia e Rosendahl (2005)
sobre as perspectivas de estudo no âmbito da geografia cultural?
FONTE: CORRÊA, R. L.; ROSENDAHL, Z. A geografia cultural no Brasil. Rio de Janeiro: Universidade
Federal do Rio de Janeiro, 2005. p. 97-102.
a) ( ) O estudo da geografia cultural encontra-se saturado, pois seu campo de atuação
já compreendeu todo universo policultural do Brasil.
b) ( ) A geografia cultural possui um perfil de pesquisa dinâmico. Assuntos de
interesse são paisagem cultural, espaço geográfico e literatura, religião, território,
identidade, exceto festas populares.
c) ( ) As perspectivas para a pesquisa no âmbito da geografia cultural são inúmeras,
visto o amplo campo de pesquisa, além de o Brasil possuir fortes contrastes
culturais e intensa dinâmica espacial.
d) ( ) Nenhuma das alternativas está correta.
71
3 O período da construção da geografia cultural no Brasil foi marcado por uma escala
temporal e, a partir de 1990, a dimensão espacial da cultura passou por um processo de
expansão, ou seja, de um relativo desconhecimento do subcampo ao conhecimento e
aceitação. De acordo com a afirmativa, é correto afirmar que:
a) ( ) Ao chegar na década de 1990, a geografia cultural, apesar de ter crescido em
pesquisa e prática, aos poucos, a subcampo, sofreu um processo de estagnação.
b) ( ) A década de 1990 corresponde a um processo de renovação e efetivação da
geografia cultural brasileira. A preocupação estava em receber as influências da
virada cultural e aderir a análises fenomenológicas, vislumbrando as dimensões
afetivas e sensoriais.
c) ( ) A década de 1990 representou um divisor de águas para a geografia cultural. Com
a virada cultural aceita, novos materiais foram traduzidos para língua portuguesa,
alguns núcleos de pesquisa cultural foram abertos, periódicos criados, eventos
da área disseminados e estratégias vieram a favorecer a expansão da geografia
cultural.
d) ( ) Todas as alternativas estão corretas.
72
73
ESPAÇO E CULTURA: UM BALANÇO
FUNDAMENTAL, UM CAMINHO
PARA A CONTEMPORANEIDADE
UNIDADE 2 —
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
PLANO DE ESTUDOS
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:
• compreender o conhecimento geográfico como meio introdutório à elevação siste-
matizada da geografia, percebendo as influências de elementos culturais no seu de-
senvolvimento, e, como meio extensivo, entender os rumos tomados pela geografia
cultural em meio às escolas e matrizes epistemológicas do pensamento geográfico;
• conhecer algumas das contribuições propostas pelo francês Paul Claval, que geraram
o desenvolvimento da geografia cultural de maneira ampla e democrática;
• discutir algumas reflexões a respeito da concepção das formas simbólicas espaciais,
desde a conceituação aos exemplos de dispersões ou materialização na superfície
terrestre e paisagens;
• relacionar os aspectos conceituais da paisagem, identidade, território e territorialidade,
como fenômenos de ordem da geografia cultural;
• compreender os estudos da geografia cultural segundo as dimensões: música,
literatura e imagem, como representantes da categoria das expressões culturais;
• apresentar algumas possibilidades de introduzir reflexões da geografia cultural na
matéria escolar da geografia, como a extensão de assuntos vistos no âmbito uni-
versitário para o entendimento e discussões em sala de aula, à luz da Base Nacional
Comum Curricular.
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de
reforçar o conteúdo apresentado.
TÓPICO 1 – APROFUNDAMENTO DAS PERSPECTIVAS E APLICAÇÕES DO
CONHECIMENTO GEOGRÁFICO FRENTE À INTERPRETAÇÃO DA GEOGRAFIA
CULTURAL
TÓPICO 2 – APOIOS, DINAMISMO E RESISTÊNCIA DA COMPOSIÇÃO DA GEOGRAFIA
CULTURAL
TÓPICO 3 – POSSIBILIDADES DE ESTUDO A PARTIR DA COMPREENSÃO DAS
DIMENSÕES CULTURAIS DO ESPAÇO
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.
CHAMADA
74
CONFIRA
A TRILHA DA
UNIDADE 2!
Acesse o
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75
TÓPICO 1 —
APROFUNDAMENTO DAS PERSPECTIVAS
E APLICAÇÕES DO CONHECIMENTO
GEOGRÁFICO FRENTE À INTERPRETAÇÃO
DA GEOGRAFIA CULTURAL
UNIDADE 2
1 INTRODUÇÃO
Acadêmico, seja bem-vindo à Unidade 2. A partir deste momento,
convidamos você a aprofundarem os seus conhecimentos a respeito da
disciplina da geografia, a Geografia Cultural. A proposta permite que cada
um entenda que a cronologia dos fatos representados pela dimensão
tempo – espaço não se passou rapidamente, como vem sendo contada
em parágrafos curtos, mas ela cruza séculos até o presente momento. A geografia
absorveu, verdadeiramente, cada transformação social, cultural, econômica, natural,
compreensões objetivas, subjetivas, materiais e imateriais, até se elevar à categoria
de ciência, mesmo quando se tornou um conhecimento sistematizado. A inquietação
por métodos e novas possibilidades de pesquisa fez ela se arriscar e meandrar por
discussões diversas e heterotópicas.
Neste tópico, serão desenvolvidos, além da introdução às temáticas, três
assuntos complementares: geografia: o conhecimento que está em toda parte?; notas:
do nascimento da geografia escolar a uma geografia universitária; os primeiros estudos
contemporâneos da geografia cultural: uma breve compreensão. Ao fim das leituras,
serão introduzidos, de maneira complementar, o resumo referente ao tópico e as
autoatividades.
A temática “geografia: o conhecimento que está em toda parte?” buscou, através
de um diálogo, compreender, em períodos anteriores, a formação da sistematização da
ciência geográfica e sua relação e alinhamento com assuntos encontrados nos estudos
da geografia cultural. Alguns materiais dispensam a história dos desenvolvimentos
humano e espacial, por entenderem que assuntos que vieram antes da ciência não
fazem parte dela, porém, enquanto geógrafos da ordem cultural, a abordagem de
outrora possui significado e contribuições para a compreensão dos processos.
As “notas: do nascimento da geografia escolar a umageografia universitária”
propõem ser a continuidade, prolongando as discussões acerca do processo da
escolarização e a introdução da disciplina da geografia em anos iniciais de escolas
europeias, até chegarmos à evolução discursiva da geografia enquanto conhecimento
sistematizado.
76
Por fim, abordaremos as discussões dos rumos que a geografia cultural tomou,
segundo as escolas estadunidense, inglesa e francesa, e matrizes epistemológicas de
pesquisas disseminadas, a exemplo dos materialismos histórico e dialético, fenome-
nologia e a hermenêutica. Nomes como Denis Cosgrove, Petter Jakcson, Yi – Fu Tuan,
Armand Frémont, Augustin Berque, Pierre Raison, Joël Bonnemaison, Robert Pitte, De-
barbieux e Michel Lussault nortearam a discussão contemporânea da geografia cultural.
Caro acadêmico, a palavra heterotopia (aglutinação de hetero = outro
+ topia = espaço) é um conceito da geografia humana, elaborado
pelo filósofo Michel Foucault, que descreve lugares e espaços que
funcionam em condições não hegemônicas. Foucault usa o termo
heterotopia para descrever espaços que têm múltiplas camadas de
significação ou de relações a outros lugares, cuja complexidade não
pode ser vista imediatamente.
FONTE: FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia
das ciências humanas. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
NOTA
2 GEOGRAFIA: O CONHECIMENTO QUE ESTÁ EM TODA
PARTE?
Acadêmico, se voltarmos ao entendimento do caminho que a geografia fez
enquanto ciência, vamos nos deparar com uma longa, antiga e ativa trajetória que
se fez e refez, tornando, sempre possível, optar entre as clássicas ou atuais linhas de
pesquisa. As novidades ou novas respostas às discussões antigas são intrínsecas,
pois a sua dinâmica propicia novas interpretações aos fenômenos, mesmo àqueles
de outrora existentes. As relações socioespaciais não são fixas, elas estão sempre em
movimento. As paisagens, as distribuições espaciais, as relações interculturais, todas
variam, as regras mudam, e, por vezes, tornam-se exceções. É, dentro desse processo,
que a geografia pode ser percebida e analisada, independente, nas dimensões coletivas
ou individuais.
Então, é viável dizer, metaforicamente, que a geografia pode ser encontrada nos
quatro cantos da Terra? Em tempos pretéritos? Sim, com isso, levamos em consideração
não apenas os quesitos naturais, aqueles estabelecidos pela geografia física, mas a
humanização, na prática da expressão “quatro cantos da Terra”. Generosamente, a
interpretação da geografia cultural propõe a compreensão de que a relação homem e
espaço demonstra uma versatilidade conteudística.
77
A expressão “quatro quantos da Terra” pode ser considerada uma
metáfora. Esse sentido figurado se reporta à orientação geográfica
dos principais pontos cardeais, norte, sul, leste e oeste, e não à
forma geométrica, a exemplo do quadrado equivalente à formação
das medidas do ângulo reto.
NOTA
FIGURA 1 – ROSA DOS VENTOS
FONTE: O autor
A geografia é uma ciência que pode ser analisada por prismas diferentes,
mas sempre atenuando as relações com o espaço e as dinâmicas da sociedade.
Embora muitos não saibam, o conhecimento da geografia se inicia com a apreensão,
experiência e descoberta, através do senso comum. Possivelmente, esse conhecimento
geográfico acompanha o homem desde a sua existência, atravessando séculos, até o
estabelecimento como ciência.
Esta parte busca trazer tais informações, visando estabelecer uma linha crono-
lógica de fatos, portanto, será notório o resgate histórico da dinâmica do conhecimento
geográfico. Possivelmente, vocês também perceberão trechos que sinalizarão as forças
espiritual e religiosa na formação da sociedade e construção dos seus espaços.
Na sua interpretação, Lencioni (2003) indica que, antes do conhecimento
sistematizado elevado à categoria científica, o homem obteve o conhecimento da
geografia por meio de conexões com o espaço, gerando, então, a interpretação de mundo
desde as civilizações passadas, ou seja, essas perspectivas podem ser apontadas.
78
FIGURA 2 – PLACA DA CONCEITUAÇÃO
FONTE: Adaptado de Lencioni (2003)
Uma se refere à era pré-histórica do pensamento geográfico, permeando a
linha da curiosidade e as experiências coletivas despretensiosas, sem vínculo científico
comprovado por meio de métodos. Esse primeiro contato com os elementos geográficos
se torna intrínseco à vivência humana, cujo ciclo remete à produção de interpretações
socioespaciais expressas.
Uma segunda perspectiva reflete o lema característico da ciência, que gera
o aprofundamento do conhecimento de algo ou algum fenômeno. Para tal proposta,
existem meios que levam à sapiência de determinados assuntos, geralmente, com a
organização sistematizada do conteúdo. Embarcando com a proposta de se tornar
ciência com respectiva autonomia, a geografia se apresentou como conhecimento
científico, aproximadamente, no fim do século XIX.
Apesar de considerarmos, atualmente, que o saber geográfico evoluiu em
relação a épocas passadas, admitimos, claramente, que os conhecimentos dos
aspectos geográficos às luzes cartográficas registraram o modo de vida de inúmeras
comunidades.
Quando tratamos dos povos pré-históricos, ressaltamos que a sabedoria dos
deslocamentos não obteve registros a partir da escrita, para validação científica da
precisão, mas, com uma característica rudimentar e inteligente, a comunicação ocorreu
por meio das inscrições rupestres, e passou a ser uma aliada estratégica para povos se
desenvolverem. Esses desenhos descritivos eram projetados nas rochas por meio de
pinturas, ou entalhados/esculpidos, com os próprios artefatos rochosos.
79
Todo esse perfil de conhecimento teve, como objetivo, a capacidade de
compreensão da terra a partir de uma visão de mundo particular, por meio da
autoidentificação dos povos, da catalogação das espécies selvagens, caça e coleta,
das constelações, eventos naturais de dimensões astronômicas, primeiras noções de
representação cartográfica, todos encontrados nas inscrições rupestres, que tiveram
início com os povos pré-históricos, auxiliando-os a catalogarem territórios, rotas e
localizações. Por motivos migratórios, tudo isso se fazia necessário.
Como meio auxiliar, trouxemos algumas imagens, entre inúmeros acervos, que
representam a evolução da percepção do homem a respeito do espaço. Destacamos as
figuras referentes à caverna de Altamira, na Espanha, o mapa remanecente da região
de Gar – Sur, e uma das figuras das pedras itaquatiara do Ingá, localizado na Paraíba.
Esses desenhos são datados da era paleolítica, e se distribuem nas rochas em
formas abstratas, animais e outros seres míticos.
FIGURA 3 – ARTE RUPESTRE EM ALTAMIRA – ESPANHA
FONTE: <https://i.pinimg.com/originals/d0/41/e6/d041e6b2b19c8875740372447a6ca1be.jpg>.
Acesso em: 2 set. 2020.
O exposto a seguir é uma pequena representação geográfica, em argila, do
espaço de Gar – Sur, um dos mapas mais antigos referentes à vivência dos grupos
primitivos que habitavam a Mesopotâmia. São encontrados pontos de referência
naturais, a exemplo da cadeia montanhosa e do rio Eufrades.
80
FIGURA 4 – MAPA REMANESCENTE DA REGIÃO DE GAR - SUR
FONTE: <https://3.bp.blogspot.com/-0WF8aZDAdvY/VOM4bJVYuKI/AAAAAAAAADQ/9Y07QInb6P8/
s1600/2.jpg>. Acesso em: 4 set. 2020.
A seguir, um monumento arqueológico com inscrições rupestres localizado
no estado da Paraíba, mais precisamente, na cidade de Ingá, onde as figuras expostas
nas rochas gnaisse são compreensíveis constelações, como a de Órion, animais,
representações humanas etc.
FIGURA 5 – PEDRA ITAQUATIARA DO INGÁ – PARAÍBA
FONTE: <https://www.destinoparaiba.pb.gov.br/wp-content/uploads/2019/08/agreste-N00000181-Itacoatiara-Ing%C3%A1-PB-www.caciomurilo.com_.jpg>. Acesso em: 2 set. 2020.
81
Com todo esse aparato icnográfico, pode-se entender que o senso de repre-
sentação do espaço geográfico, assim como uma prévia organização espacial, estabe-
leceu-se desde períodos passados. Entende-se, também, como o desenvolvimento da
ciência cartográfica e da geografia se tornou instrumento de análise para fenômenos
naturais que ocorrem no espaço, além das interações socioculturais compreendidas
nas mesmas zonas espaciais.
O livro Espaço e religião: uma abordagem geográfica (1996), de Zeny Rosendahl,
possui um tópico a respeito da origem das cidades e do papel do sagrado. Permeando
duas linhas de abordagem, a primeira com o papel ativo da religião e, o segundo, com os
aspectos técnicos e econômicos do nascimento da vida e a estrutura urbana, Rosendahl
(1996) discute, principalmente, a relação dos antigos santuários paleolíticos como forma
de evolução. Como tudo isso existiu? Segundo a criação e desenvolvimento das cidades
à luz da religião, tais insinuações não partem apenas da autora, mas de um elenco de
profissionais, pesquisadores, como Eliade, Coulanges, Mumford, Tuan etc.
Para a geografia da religião, a era paleolítica estava além das inscrições rupestres
e localizações espaciais, pois as cavernas eram compreendidas como santuários, os
homens as reconheciam a partir de um significado, cada gruta se referenciava, também,
pelo elo sobrenatural, divino e místico. Em virtude das práticas de fé, esse lugar ou
lugares atraíam homens e famílias inteiras para praticar e compartilhar as experiências
vividas pelo viés espiritual.
As cavernas, por exemplo, não representavam apenas abrigo e lugar
de expressão artística. Exerciam, também, um poder de atração para
homens vindos de muito longe, atraídos pelo estímulo espiritual,
para compartilhar as mesmas práticas mágicas ou crenças religiosas
(ROSENDAHL, 1996, p. 40).
A evolução e a percepção da ciência, da geografia cultural e da religião estiveram
ligadas, intrinsicamente, à evolução das sociedades humana e urbana, assim como
foi exposto desde a era paleolítica. “As famílias viviam em seu próprio lar, possuíam
seu próprio deus, seu próprio oratório, seu próprio cemitério, falando a mesma língua
e participando de um modo de vida semelhante” (ROSENDALH, 1996, p. 40-41). Essa
afirmativa não quer dizer que os paleolíticos eram urbanizados, mas foram semeadores
desse modo de vida.
Quando os povos são retratados, fica evidenciado que, apesar deles serem
singulares, tendo em vista que, individualmente, eles se apresentavam cada um com seus
hábitos, costumes e cultura, entende-se que tal formação demonstra o início de uma
futura vida urbana que pode se tornar real a partir do momento em que comunidades ou
povos específicos passam a não hostilizar, mas a respeitar culturas diversas, incluindo,
principalmente, a união e reverência a deuses. No caso, é perceptível a importância
dada ao universo religioso frente à criação das primeiras cidades.
82
Prosseguindo, a respeito do sagrado, Rosendahl (1996) expõe que a força
do desenvolvimento das comunidades, no período neolítico, não anulou a presença
do sagrado na paisagem, pois os santuários tribais, pirâmides e centro cerimonial
continuaram a existir, com um adendo, que agregou, ao seu então valor, o sentido de
elementos de referência cultural.
A tendência do tema religião continua com o desenvolvimento socioespacial.
Ela passou a ser interpretada, com frequência, com o surgimento de cidades e suas
autoridades outorgadas: “a cidade foi erguida pela vontade de Deus, e o ‘sacerdote-rei’
era o símbolo do todo poderoso, era um ser semidivino, um intermediário entre o céu e
a terra. O cocriador do cosmo” (ROSENDAHL, 1996, p. 42).
Concordamos que esse processo de desenvolvimento socioespacial comungou
com a evolução da ciência geográfica. Segundo Sodré (1982), a geografia apresenta
uma história anterior a muitas outras ciências, podendo ser considerada a mais antiga,
tendo em vista que suas evidências históricas advêm de tempos de outrora.
Porém, desde o início, esse conhecimento se apresenta dividido
entre duas tendências oposta ou complementares. De um lado, os
geômetras e os astrônomos; do outro, os políticos, que, sensíveis
aos aspectos do quadro natural, das produções, dos povos, e dos
seus costumes, refletem a respeito das relações entre os diferentes
territórios e as várias sociedades humanas. Os périplos, as conquistas,
os contatos com o mundo bárbaro vão, paulatinamente, alargando o
horizonte geográfico (PEREIRA, 1999, p. 83).
Em uma linha cronológica, pode-se perceber que a evolução organizada dos
conhecimentos e técnicas contribuiu para a aprendizagem dos elementos geográficos,
que acompanharam a rotina dos povos e, principalmente, para o desenvolvimento da
futura ciência geográfica.
O período da antiguidade clássica foi representado, sobretudo, pela Grécia
antiga. Foi ela que, praticamente, embalou o nascimento da civilização do ocidente,
com a preconização e o fortalecimento das ciências, principalmente, a filosofia,
considerada a mãe do conhecimento científico, do saber racionalizado, das artes e da
estética expressa pela percepção humana (IBGE, 2020). Como afirma Martonne (1953),
outros povos e civilizações experimentaram o conhecimento geográfico, mas os gregos
tiveram uma participação decisiva na base da construção e sistematização da geografia
enquanto ciência.
Algumas personalidades se destacaram pela busca de comprovações de
métodos que se aproximassem da representação terrestre. Como precursor, tem-se o
filósofo, geógrafo e matemático Eratóstenes, nascido em 276 a.C., na cidade de Cirene,
colônia da Grécia. Foi, no século III a.C., que ele apresentou a primeira classificação da
palavra geografia como o estudo da descrição da Terra, e a definiu como: Geo = Terra |
Grafia = Descrição.
83
FIGURA 6 – GEÓGRAFO ERATÓSTENES DE CIRENE
FONTE: <https://blog.kakaocdn.net/dn/T008G/btqEq72pwnC/o1LqkzZhc8LPk6JIvaxiE0/img.jpg>.
Acesso em: 2 set. 2020.
No século VI a.C., na Grécia, Anaximandro de Mileto desenvolve o primeiro
esboço do “mundo”, chamado de carta (PEREIRA, 1999). As necessidades de conquistas
além-mar de navegações e missões militares, no século VI a.C., geraram, mais tarde,
o fortalecimento das ciências, por meio da compreensão de métodos na astronomia,
matemática e, principalmente, através do campo de estudo da cosmografia e sua
compreensão descritiva do universo. O alinhamento dessas áreas explorou meios
que reproduzissem a superfície terrestre. Ainda, foram responsáveis pelo cálculo
da circunferência da Terra, pelo primeiro atlas universal, coordenadas de latitude e
longitude, e projeções cônicas (IBGE, 2020).
No período da antiguidade clássica, foram iniciados os estudos dos assuntos
relacionados à geografia. Estes possuíam um caráter de descobrimento, pois pouco se
sabia da superfície terrestre e do universo. Então, o conhecimento ligado ao planeta
Terra e os elementos naturais, em relação aos aspectos dimensionais, como o formato,
tamanho, extensão, proporções entre superfícies cobertas por águas e demais frações,
descrição dos povos, lugarejos e reproduções das zonas costeiras, foram surgindo,
assim como as pesquisas, na área da astronomia, a respeito do universo, órbita, estrelas
etc. (CARVALHO, 2006).
O mundo clássico apresentou seu grau de relevância com as descobertas
da geografia através de pensadores, como Tales de Mileto, Pitágoras, Aristóteles,
Erastóstenes de Cirene, Claúdio Ptolomeu, Estrabão, Hiparco, Heródoto etc. Eles
substantivaram o conhecimento da época e, consequentemente, influenciaram osdemais períodos, porém, ainda se tinha uma longa jornada de descobertas a respeito
do planeta Terra e do universo, além de alguns métodos serem julgados como pouco
precisos, por representarem a linha empírica ou factual.
84
A fase de transição da Idade Antiga ou Clássica para a Idade Média, e, depois,
para a Idade Moderna renascentista, foi marcada pela forte influência da religião sobre
a produção, conquistas da ciência e derrocada do império romano, além da tomada de
Constantinopla pelos turcos. Acadêmico, o que isso significa para a geografia? Podemos
afirmar que significa, a princípio, a maneira de representação ou de mapeamento de
continentes através da influência da religião na construção socioespacial, da paisagem,
além do que se refere à conquista territorial.
Tem-se, por exemplo, o mapa “Die Ganze Welt In Einem Kleberbat” T- 0,
conhecido por sua semelhança com o trevo ou cruz. Foi uma versão representativa
criada por Isodoro, o bispo de Sevilha, que, a partir da sua visão religiosa e simbólica de
mundo, transferiu, para a representação gráfica, um modelo com tais características. O
sacerdote apresentou, em primeiro plano, os três continentes, a Europa, Ásia e África, e,
ao centro, a cidade símbolo do cristianismo, Jerusalém; secundariamente, a América, a
grande área geográfica considerada pouco habitada. A interpretação religiosa afirmou
que, após o grande dilúvio, Noé e seus descendentes realizaram a divisão das áreas
geográficas habitáveis (IBGE, 2020).
FIGURA 7 – DIE GANZE WELT IN EINEM KLEBERBAT
FONTE: <https://atlasescolar.ibge.gov.br/images/atlas/historia/hist_cart_6.jpg>.
Acesso em: 2 set. 2020.
A unicidade do Império Romano permaneceu até meados de 395 d.C., quando
o imperador Constantino se estabeleceu na capital Bizâncio. A priori, deu-se a partir do
ato de renomear a cidade, caracterizando-a, identitariamente, segundo o poder exercido
por grupos do oriente sobre aquele território. Constantinopla, assim chamada pelo
então comando, apresentou-se, na história, por sofrer as insistentes invasões. A tomada
daquele território, por povos diversos, justificou-se pela sua importância territorial, sua
localização favorável e riquezas adquiridas, que fizeram dela a cidade mais desenvolvida
da época.
85
A posição geográfica da rebatizada Constantinopla, ligando o
Ocidente e o Oriente, as suas defesas naturais (Bósforo, mar de
Mármara, Corno de Ouro) e a sua privilegiada articulação com as
grandes rotas comerciais terrestres e marítimas (Europa-Ásia e
mar Negro-mar Egeu) justificam, plenamente, a escolha do primeiro
imperador cristão (MONTEIRO, 2016, p. 18).
Após a queda do Império Romano, os graus de formação dos novos Estados
estavam se estabelecendo, já fazendo sentido uma reorganização territorial, inclusive,
com a tomada de Constantinopla pelo Império Turco Otomano, por exemplo, a paisagem
transmitiu mudanças, como o nome da cidade, a religião oficial, transformações de
elementos simbólicos da paisagem, transição de catedrais para mesquitas etc. Istambul
ficou conhecida e se tornou, oficialmente, a capital do império otomano.
A Era Moderna assume conflitos e transições, desde a derrocada do Império
Bizantino, pelos turcos, até a crise do sistema feudal. Ainda, há a sucessão do modelo
econômico feudal para o capitalismo, a Revolução Francesa, o Iluminismo, a ascensão
da burguesia, os fenômenos modernos do Renascentismo, as reformas protestantes, a
configuração do Estado absolutista e a expansão ultramarina.
O período de descobrimentos e conquistas (do século XV-XVIII) adentrou na
Era do Iluminismo. As grandes navegações contavam com registros de descrições,
orientações geográficas, distâncias, desenhos, tudo para clarificar o desconhecido.
Antes, como ferramentas das elites, os mapas passaram a ser disseminados em
línguas diferentes do latim, a fim de possibilitar o conhecimento. Primeiramente, com
Ortelius, criador do mapa “Theatrum Orbis Terrarum”, depois, no ano de 1569, o mapa
convencionado por Mercator “Americae Sive Novi Orbis” (IBGE, 2020).
O que se pode entender, parcialmente, do século das luzes, foi sua democratização
em relação ao acesso ao conhecimento. O ideal iluminista, assentado na crença do
poder e da razão humana, é que passa a defender a ampliação da formação cultural
para todos, como forma capaz de transformar o homem e, por meio dele, a sociedade
(PEREIRA, 1999).
Anteriormente, na sociedade antiga, os privilegiados faziam parte da alta cúpula
conhecida como a nobreza e clero. Eles justificavam sua boa vida e benefícios sociais
alcançados, incluindo o do letramento, em Deus e nos direitos “concedidos” por Ele
através da igreja. Após o movimento revolucionário iluminista, “[...] pode-se dizer que a
maioridade se alcança pela capacidade do homem de se tornar autônomo, senhor de si
pela razão. A antiga sociedade, formada por senhores e servos, deve ser substituída por
uma sociedade mais justa, mais igualitária”, reflete Pereira (1999, p. 21), a respeito dos
ensinamentos deixados por Kant, em 1783.
86
Para quem desconhece a geografia de Kant na Era das Luzes, vale ressaltar que
ele assume um papel preponderante, pois realizou o entendimento de uma geografia
física que valorizava para além das rochas, valorizava os seres vivos, incluindo o homem.
Ele criou uma forma de enxergar o planeta Terra em uma maior dimensão, vislumbrando
as relações constantes entre seres humanos e natureza. Os seus ensinamentos
foram influenciados pelas reflexões dos geógrafos anteriores: Eratóstenes, Ptolomeu,
Estrabão e Varenius. Os estudos da terra foram realizados pelas experiências de campo
que ele tomava dos relatos vivenciados por Foster e Humboltd. Essa trajetória provocou
o desenvolvimento da obra kantiana, um material com uma identidade original, para a
fase da geografia, próxima à sistematização científica.
Com relação à participação de Kant nos estudos geográficos, sugerimos uma seleção de
quatro vídeos: Kant e a Geografia I/Pensamentos Geográficos, e, de forma complementar,
Kant e a Geografia II/Influências Geográficas. O terceiro: Kant e a Geografia III/A Geografia
de Kant, e, por fim, a quarta entrevista, intitulada de Kant e a Geografia IV/Implicações na
Atualidade.
Todo o material diz respeito a edições do Canal Descomplicando, com o professor Douglas
Sathler – UFVJM e o entrevistado, o professor Oswaldo Bueno Amorim Filho, da PUCMINAS.
O vídeo 1 possui, aproximadamente, 7’:33’’ de duração e pode ser encontrado na plataforma
digital do youtube no endereço: https://www.youtube.com/watch?v=yHZLfX5teac.
O vídeo 2 possui, aproximadamente, 5’:22’’ de duração e pode
ser encontrado na plataforma digital do youtube no endereço:
https://www.youtube.com/watch?v=Q0Lw1N9NY_k.
O vídeo 3 possui, aproximadamente, 12’:10’’ de duração e pode
ser encontrado na plataforma digital do youtube no endereço:
https://www.youtube.com/watch?v=ws_yfuCXm8U.
O vídeo 4 possui, aproximadamente, 9’:15’’ de duração e pode
ser encontrado na plataforma digital do youtube no endereço:
https://www.youtube.com/watch?v=9k3WnYvSxFo.
DICA
A compreensão, no tempo do iluminismo, estava para desatar os homens dos
dogmas e intolerâncias. Ela não estava, diretamente, contra a religião, mas contra os
privilégios escondidos por trás dela. A Era do Discernimento antropocêntrico, do direito
ao conhecimento concedido amplamente a todos os homens, foi iniciada na França,
em 1782, com o ato da Revolução Francesa, depois, com o Marquês de Condorcet, e,
em 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tornando-se um dever, do
Estado, fornecer, sem exceção, o direito ao conhecimento. Leia-se educação pública
para todos de forma obrigatória e laica (PEREIRA, 1999).
87
Em um estudo mais aprofundado, Pereira (1999) aborda como se deu o
nascimentoda geografia com o ensino. Alerta que a prática de educar todos, sem
exclusão, iniciou pelos germânicos e demais países, onde houve a reforma protestante.
O objetivo da educação pública religiosa estendeu o conhecimento e proporcionou, aos
fiéis cristãos, a alfabetização, com a leitura das sagradas escrituras, a “Bíblia”, para o
livre esclarecimento da salvação da alma. Porém, aponta, também, que a possibilidade
de um ensino baseado na liberdade e laicidade se iniciou a partir das conquistas da
Revolução Francesa.
O que foi a Reforma Protestante? Um movimento do século XVI
liderado por Martinho Lutero, em 31 de outubro de 1517, na
Alemanha, com os intuitos de esclarecer e romper com práticas
da Igreja Católica Apostólica Romana, acerca do comércio de
indulgências. Lutero fixou 95 teses na porta da igreja do castelo
de Wittenberg. Tal ato provocou uma revolução religiosa, na
qual muitos países, governos e religiosos apoiaram o feito,
fazendo parte a Inglaterra, Suíça, França, Escandinávia, Hungria
e países bálticos. Contudo, foram feitos atos repreensivos, como
o movimento da contrarreforma e a divisão entre católicos
romanos e os reformados protestantes.
NOTA
Alguns fatos históricos mundiais estão no texto, mas parecem fora do contexto,
será que você pensou dessa forma? Visto todo esse ciclo, pedimos para que não se
percam, pois podemos realizar um link desses fatos contextualizados com a geografia
enquanto ciência.
É possível que você lembre da placa de conceituação, certo?! Esta contém
uma divisão entre o conhecimento a respeito dos saberes da geografia e a geografia
enquanto ciência sistematizada. Pois bem, até o presente momento, trouxemos
fatos e argumentos que, juntos, encaminham-se para uma compreensão anterior ao
nascimento da ciência geográfica.
2.1 NOTAS: DO NASCIMENTO DA GEOGRAFIA ESCOLAR A
UMA GEOGRAFIA UNIVERSITÁRIA
Temos, como objetivo, prolongar a discussão acerca do processo da escolari-
zação e a introdução da disciplina da geografia nos anos iniciais das escolas europeias,
principalmente, entre Alemanha e França. Apesar do assunto já ter sido levemente pon-
tuado, propomos uma evolução discursiva, até chegarmos à geografia enquanto conhe-
cimento sistematizado.
88
A pergunta que não quer calar é: onde, de fato, a escola e o processo de
escolarização se encontram com a geografia? É, exatamente, no período do século XIX
que ambos são oficializados: “as interligações entre a escola e a geografia se situam
no contexto do século passado, em que diferentes interesses políticos, econômicos e
sociais estão em jogo” (PEREIRA, 1999, p. 29).
O século XIX se destacou pelo ideal da Revolução Francesa para a constituição
das mudanças políticas e sociais, além da revolução inglesa, que se traduz na
emblemática transformação econômica representada pelo capitalismo e as criações
técnicas e científicas.
A escola e a escolarização se firmam ao longo do século XIX, no mesmo
momento em que se dá a consolidação do Estado e do capitalismo,
sob a hegemonia da burguesia. Detentora do poder político, ela
percebe que sua dominação pode ser mantida não apenas através
do poder repressivo, mas também da disseminação de seus valores
de classe apresentados como universais (PEREIRA, 1999, p. 26-27).
Tendo uma França unificada e uma Inglaterra, também, com ideais de nação
bem formados, ambos os países priorizaram a utilização da geografia para viabilizar
a permanência da burguesia no poder e a distinção de classes em detrimento do
crescimento do capitalismo.
Em um primeiro momento, a geografia francesa apontou para um norte
específico, o que custou demandas e reformulações mais tarde, no entanto, a França,
por ser considerada uma nação bem estruturada, sem necessidade de unificação
territorial, optou por seguir com a geografia como assistente da história, que era uma
disciplina de maior vulto.
Já a Alemanha esbarra em uma realidade diferente, começando pela alta
sociedade então estabelecida, a aristocracia rural e a não unificação territorial em pleno
século XIX.
Segundo Pereira (1999, p. 98-99), “no início do século XIX, a Alemanha ainda
não havia se constituído como uma nação, ainda era como um Estado nacional. Ela se
acha dividida em números de feudos (principados, ducados, reinos, terras eclesiásticas,
cidades livres), unidos, apenas, por alguns traços culturais comuns”.
A escola alemã entra como um instrumento de construção da unificação
nacional, propiciando a propagação das ideologias patrióticas e nacionalistas, e, como
parte do currículo escolar, as disciplinas de geografia, história e língua nacional auxiliaram
no processo. Basicamente, a classe favorecida buscou a perpetuação da hegemonia e,
com o poder do capital, viabilizou-se a consolidação do Estado. O papel da geografia se
estende pela apresentação do território a ser delimitado em limites e fronteiras frente
ao capital, cultura e língua.
89
O esforço comum para edificar essa nacionalidade e criar uma identidade coesa
teve, como base, a anulação das diferenças:
A divisão social precisa ser ocultada para que se crie uma comunhão
entre os que nascem num mesmo lugar, falam a mesma língua e
respeitam as mesmas tradições. A língua encarna a possibilidade de
uma unidade cultural, unidade intricadamente ligada a um tempo
(história) e a um espaço (geografia) (PEREIRA, 1999, p. 27-28).
Nas linhas e entre linhas, falava-se em domínio territorial, ou seja, numa
geopolítica estratégica dentro dessa geografia escolar nada amistosa. A geografia,
enquanto disciplina escolar, tinha uma missão objetiva. Com uma análise mais distante,
é possível perceber que esse estudo nasce com um intuito da criação do Estado, para
fortalecê-lo. “A geografia analisa o físico, mas o estudo do físico, em si mesmo, não tem
sentido. Ele só terá ser for considerado como dominado pelo homem e ligado à ideia de
um espaço em que exerce uma determinada cidadania” (PEREIRA, 1999, p. 39).
O desenvolvimento da disciplina geográfica, além do pioneirismo na formação
de geógrafos, pode se justificar pelo desenvolvimento e nascimento retardatário do
Estado alemão. Há uma corrida contra o tempo, a fim de encontrar meios concretos
para unificar e tornar a Alemanha uma grande nação.
A geografia dos professores tomou corpo intimamente relacionado
ao esforço da escolarização desenvolvido pela Alemanha durante o
século XIX e, ligada a esse desenvolvimento da geografia nos ensinos
primário e secundário, cresce, também, a produção editorial de
caráter geográfico e cartográfico (PEREIRA, 1999, p. 41).
Acadêmico, lembre-se de que os primeiros assuntos dos conhecimentos
geográficos chegaram no momento em que os homens atentaram para as necessidades
de descrever e se localizar no espaço geográfico.
Príncipes, comandantes de guerra/embarcações e influentes do Estado maior
previram o desenvolvimento de cartas e futuros mapas geográficos para se beneficiar
com tais informações privilegiadas.
Estrategicamente, no século XIX, um processo inverso acontece: o conheci-
mento centralizado dos elementos geográficos deixa de ser elitizado e passa a ser des-
centralizado. A geografia se torna propagada entre crianças e jovens, e esse jogo dialé-
tico, ao longo da criação da ciência geográfica, tornou-se meio de conquista e poder,
como veremos nos parágrafos a seguir.
Segundo Pereira (1999), as motivações, para a organização do sistema escolar
alemão, também podem ter encontrado suas raízes na expansão territorial dos franceses,
com Napoleão Bonaparte, vista a unicidade da nação francesa em relação à fragilidade
dos estados germânicos.
90
Para a autora supracitada, o governo alemão, intuitivamente, atentou para a
elevação de esforços na educação e elevaçãoda formação de jovens, uma preparação
dupla: mental/intelectual e física. Como diversas matérias apresentadas, a geografia
se destacava pelo estudo dos continentes da Alemanha e estados prussianos, além
da geografia comercial e das relações internacionais. Já a preparação física do jovem,
incluída no currículo, estava baseada nos modelos gregos, como se exercitar ao ar livre.
Consequentemente, todo esse apoio vislumbrou respostas futuras.
Como os alemães conseguiram os resultados positivos frente à elevação
categórica da geografia escolar para o auge científico? Com base nos estudos de Pereira
(1999), foram através de uma série de medidas, que se iniciou no século XVIII.
Medidas
• No ano de 1763, o ensino primário foi instituído como obrigatório para o sexo masculino.
• No século XIX, no ano de 1839, apenas seriam empregadas crianças a partir dos nove
anos que, minimamente, tivessem três anos concluídos de estudo.
• O ano de 1860 foi marcado pela escolarização obrigatória para todos os prussianos
dos seis aos quinze anos.
Respostas
• Desenvolvimento da geografia universitária.
• Elevação exponencial do número de docentes.
• Queda das taxas de analfabetismo.
• Presença da disciplina de geografia em toda ampla rede de ensino, nos níveis
fundamentais e médio (referentes aos dias atuais).
• Em 1870, a Alemanha vence a França na guerra franco-prussiana, tendo, como álibi,
o ensino da austeridade, objetividade e reconhecimento espacial.
• Superioridade do modelo de ensino alemão.
Chegamos ao ponto crucial, o início da história do pensamento geográfico
quando se centralizam as duas escolas principais: a francesa e a alemã. É possível que
vocês tenham em mente o desenrolar dessa perspectiva da geografia, mas, de todo
modo, propomos um breve resgate, um resumo epistemológico.
Até a concretização e formulação das vertentes humanística e cultural, a busca
por um objeto de análise e método de pesquisa na geografia percorreu décadas e
entrou em séculos, portanto, apresentaremos o início dos pontos de partida da escola
alemã e, posteriormente, da francesa, contudo, não será objetivo, aqui, aprofundar tais
acontecimentos.
91
O exposto a seguir apresentará três geógrafos representantes do primeiro ciclo
científico da geografia alemã: Kant, Alexander Von Humboldt e Karl Ritter. Eles trabalharam
pela concretude geográfica nos âmbitos acadêmico e pedagógico. O primeiro, no período
do século XVIII, e, os outros dois, foram contemporâneos do seguinte século.
FIGURA 8 – GEOGRAFIA ALEMÃ - KANT, ALEXANDER VON HUMBOLDT E KARL RITTER
Kant
O primeiro professor a
ensinar geografia física
nos anos 1756-1796
na Universidade de
Königsberg
Humboldt (1769-1859)
Prussia.
Naturalista/Comparativo.
Geográfo explorador.
Dominio natural: composições
geológica e mineralógica.
Fundador da geografia
moderna.
Perfil de natureza científica.
Alto escalão do Estado alemão.
Participante dos processos
de unificação alemã e
desenvolvimento capitalista.
Karl Ritter (1779-1859)
Saxônia alemã.
Idealista/Histórico.
Geógrafo de gabinete.
Dominio das ciências humanas:
filosofia e história.
Fundador da geografia
moderna.
Perfil de natureza pedagógica.
Alto escalão do Estado alemão.
Participante dos processos
de unificação alemã e
desenvolvimento capitalista.
FONTE: Adaptado de Pereira (1999)
Como um quebra-cabeça, que possui inúmeras peças e precisa ser montado, a
geografia do final do século XVIII sinalizava para uma possível ação conjunta que unisse
os vários elementos, que se alinhasse ao campo de conhecimento para a sistematização.
Muitos dos elementos estudados pela geografia também eram objetos de análise de
outras ciências, situação que gerou a intencionalidade de personalizá-la como o ato da
descrição da superfície terrestre (SODRÉ, 1982).
Diante de uma longa busca por um objeto de análise, e com a terra já
dimensionada, a pergunta seria: o que será da geografia enquanto ciência, já que foram
concluídas as tarefas de conhecer e descrever a superfície da Terra? Então, surge a
necessidade de saber o que existe em cada lugar da Terra, passando a se preocupar
com os assuntos da diferenciação dos espaços, além das interações entre o homem e
o meio (FERREIRA; SIMÕES, 1994).
92
Apesar de eles serem considerados os fundadores da ciência geográfica,
manterem certa proximidade, e trabalharem na mesma linha de frente, Humboltd e
Ritter apresentaram dicotomias entre si:
Humboldt era um grande naturalista e explorador. Seus escritos são
resumos de viagens, anotações resultantes da observação direta.
Além da estrutura descritiva, há uma intenção deliberada de verificar
as relações de interdependência entre os fenômenos e as leis que
determinam a distribuição espacial. A um certo privilegiamento do
enfoque natural, associa-se a utilização do método comparativo.
A geografia, para ele, aparece como uma disciplina sintética que,
através da articulação entre os diversos elementos, busca a
causalidade existente na natureza (PEREIRA, 1999, p. 125).
Humboldt apresentou, claramente, nas suas pesquisas, dois princípios para a
geografia, os quais a diferenciavam das demais ciências. O primeiro é o da causalidade,
ou seja, um único fato não era o bastante para fazer a relação de causa e consequência,
era apenas um fato isolado. O segundo é o princípio da geografia geral, cujo objetivo
está em assegurar que nada no globo terrestre pode ser analisado ou visto de maneira
independente do todo. Essa integração proporciona um conhecimento rico e denso.
Para fortalecer a aprendizagem, sugerimos um curto vídeo acerca do
naturalista, diplomata e geógrafo Alexander Von Humboldt. O pequeno
documentário aborda quem foi o cientista Alexander Von Humboltd,
além dos seus importantes relatos de expedições pela América Latina
e suas perspectivas de pesquisas no século XIX: https://www.dw.com/
pt-br/alexander-von-humboldt-o-pesquisador-que-redescobriu-a-
américa-latina/av-36680466.
DICA
Com um perfil de conhecimento pedagógico e normativo, Ritter complementou
o meio geográfico, segundo suas experiências enquanto professor da Universidade de
Berlim, com uma geografia comparada.
Ritter, ao contrário, opta pelo enfoque histórico, e vê o espaço
terrestre como o teatro da história, considerando que a maior
harmonia entre o homem e a natureza se produz nos momentos de
maior desenvolvimento cultural. Ritter é, sobretudo, um geógrafo
de gabinete que produz suas obras a partir da leitura de uma vasta
literatura geográfica (PEREIRA, 1999, p. 125).
O saxônico apresenta uma geografia baseada em relações entre dois universos
anteriormente separados: o ambiente natural e o homem. Basicamente, Ritter descreveu
lugares e sua interação entre o físico e a apropriação humana, e cada área descrita
93
possuía sua singularidade, pois apenas nela ocorriam combinações de fenômenos
únicos. O empenho pela compreensão do desenvolvimento humano, atrelado à relação
do homem e meio ambiente, fortalece a discussão da totalidade implantada na sua obra.
Humboldt e Ritter chegaram, juntos, à compreensão científica da visão
geográfica pela totalidade, visando romper com a implantação dualista, mesmo que seus
meios de pesquisas fossem distintos. A representação da igualdade colocou o universo
físico, referente à geografia geral, e o outro, representante da geografia regional, como
duplamente essenciais. A união marcou o fim da perseguição pela divisão da antiguidade
clássica, mas datou um novo momento para a separação e submissão entre geografia
humana e física. Tal marco foi referenciado pelo positivismo.
A partir de então, a geografia ganhou um novo capítulo, baseado, não apenas,
no saber superficial, mas na perspectiva sistematizada da ciência. Pode-se dizer que
chegou aera da geografia moderna. Com novas participações, o fim do século XIX
apresenta o geógrafo alemão Friedrich Ratzel e o francês Paul Vidal de La Blache, dois
novos nomes que se destacaram na elaboração da geografia científica dos séculos
XIX e XX.
Em linhas gerais, trouxemos uma exposição breve de fatos de outrora.
Certamente, a partir de agora, você pode fazer a ligação entre as Unidades 1 e 2, quando
abordamos, introdutoriamente, a criação da geografia cultural e as influências das
escolas alemã e francesa.
Acadêmico, a partir de agora, iremos para um novo ciclo científico da geografia
contemporânea.
3 ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS DA GEOGRAFIA
CULTURAL: UMA BREVE COMPREENSÃO
A princípio, gostaríamos de perguntar: o que significa a palavra contemporâneo?
Você saberia explicar dentro do contexto geográfico? Sim, vamos construir o raciocínio a
partir do ponto de vista da idade e do mundo contemporâneo. A idade contemporânea
reflete a passagem do século XVIII, da idade moderna para o século atual, XXI, que se
refere à idade contemporânea.
O mundo contemporâneo não marginaliza a discussão a respeito do tempo, ao
contrário, um complementa o outro. Podemos dizer que existe uma relação alinhada de
tempo, sociedade e espaço na configuração dos estudos contemporâneos da geografia
em questão.
94
O percurso dessas transformações espaciais atravessou séculos, e cada uma
marcou as relações socioespaciais de forma contínua e complementar. A princípio,
tivemos uma forte revolução política e social e, posteriormente, um impacto com a
revolução econômica, trocando em miúdos.
A primeira discursou acerca da igualdade, divisões de terras, com a aplicação
da reforma agrária e a liberdade governativa; a segunda se baseou nas transformações
econômicas e comerciais em virtude das revoluções industriais, com um ritmo
de produção acelerado. O mundo capitalista analisou suas criações e inovações e
aprofundou as divisões de classes. Toda essa formatação do mundo influenciou,
diretamente, com o desenvolver das geografias.
No artigo New directions in cultural geography, em português Novos rumos da
geografia cultural, publicado, originalmente, nos anos de 1987, e traduzido por Márcia
Trigueiro, em 2011, Denis E. Cosgrove e Petter Jackson reafirmam que as diversas
perspectivas das análises da geografia cultural passaram a ser renovadas.
Como já apresentado, havia um contexto de renovação e inquietação da
ciência geográfica no fim de 1960 e início de 1970, pelas tantas possibilidades e novas
perspectivas em relação às matrizes epistemológicas, principalmente, com a inclusão
dos materialismos histórico e dialético no âmbito das academias inglesas (CORRÊA,
2011). Segundo Cosgrove e Jackson (2011, p. 135), “os progressos da geografia cultural
radical foram focalizados numa edição recente da revista Antípode”.
Como outras matrizes epistemológicas antagônicas aos materialismos histórico
e dialético se desenvolviam colateralmente, a exemplo da fenomenologia e da herme-
nêutica, uma se dedicou à geografia humanística, com o Yi-Fu Tuan, e, a outra, mais
fortemente à nova geografia cultural, mas não se nega que, basicamente, essa tríade
inspirou a nova geografia cultural (CORRÊA, 2011).
O processo de renovação, de maneira incisiva, iniciou na escola sauariana, nos
Estados Unidos, com a crítica de Duncan diante da perspectiva da visão da cultura
supraorgânica de Sauer e seus discípulos.
Na Inglaterra, Peter Jackson, no ano de 1980, tentava um elo entre a geografia
cultural e a geografia social, com base e método da antropologia social (COSGROVE,
2011), portanto, foi criada, semelhantemente à geografia norte-americana, a geografia
cultural inglesa (CORRÊA, 2011).
Segundo Cosgrove (2011), nas produções da geografia cultura radical,
inicialmente, foi trabalhada a perspectiva teórica, com produções literárias culturais,
política relacionada ao lugar, culturas dominantes e subordinadas, especificidades
e tensões culturais demonstradas nas paisagens políticas e próprias daquele lugar
(vernacular).
95
Essa geografia cultural inglesa foi profundamente influenciada
pelas ideias desenvolvidas no Entre for Contemporary Cultural
Studies, da Universidade de Birmingham, liderado por Stuart Hall. Foi
influenciada, também, por Raymond Williams, professor em Oxford.
Williams critica a visão de cultura como superestrutura, admitindo-a
como, simultaneamente, reflexo, meio e condição. Por outro lado,
distingue as culturas dominante, residual e emergente, resgatando,
ainda, a ideia gramsciana da hegemonia cultural (CORRÊA, 2011, p. 8).
Partiu-se do princípio de que essa “nova geografia” foi formada por uma
alquimia de combinações distintas, então, pode-se reconhecer o “[...] legado saueriano,
a contribuição da tradição inglesa da geografia social, assim como os aportes da
fenomenologia, hermenêutica, materialismos histórico e dialético, ciências sociais,
como a antropologia interpretativa, linguística, história da arte e a semiótica” (CORRÊA,
2011, p. 8).
Percebe-se que o caminho rumo ao futuro são os olhares diversos que
contribuem e ampliam conhecimentos frente às discussões com outras áreas, para
que o debate seja enriquecido. A geografia cultural tende a buscar, desde 1980, a
democratização dos debates entre perspectivas da linha sauariana, não sauarianas e
dos representantes da “nova” geografia cultural.
Caso você tenha interesse em conhecer, um pouco mais, a respeito da geografia cultural,
indicamos o artigo Não existe aquilo que chamamos de cultura: para uma reconceitualização
para a ideia de cultura para a geografia, de Don Mitchell. Acesse: https://www.e-publicacoes.
uerj.br/index.php/espacoecultura/article/view/7074/5009.
A segunda leitura congrega quatro artigos compostos por Peter Jackson, Denis Cosgrove,
James Duncan e Nancy Duncan.
1 – A ideia de cultura: uma resposta a Don Mitchell.
2 – Ideias e cultura: uma resposta a Don Mitchell.
3 – Reconceitualizando a ideia de cultura em geografia: uma resposta a
Don Mitchell.
4 – Explicação em geografia cultural: uma resposta a Cosgrove, Jackson
e aos Duncans.
Acesse: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/espacoecultura/
article/view/7075/5010.
DICA
96
Frente a essa inquietação, a geografia francesa também buscou encontrar um
caminho rumo à nova perspectiva da geografia cultural.
De acordo com Claval (2011), esse momento foi separado em duas etapas:
primeiramente, deu-se a fase do conhecimento, com um caráter curioso e principiante
de descobertas acerca das novas possibilidades dessa nova geografia; depois, houve
a utilização da compreensão da geografia cultural para transformar a perspectiva até
então estabelecida pela geografia humana em detrimento das ciências naturais.
As possibilidades de descobertas pelos geógrafos franceses pairaram os
domínios estabelecidos pela cultura que, de fato, fazia frente com um entendimento
da geografia humana, ou seja, a geografia humana discutindo fatos relacionados à
cultura, a exemplo da cultura como espaço vivido, a função dos sentidos e corpo na
geografia cultural, as dimensões das representações, imagens mentais e discurso como
abordagem cultural na geografia.
A crítica estabelecida por Armand Frémont, contra as análises neopositivistas
atenuadas nos anos “entas”, contribui para formalizar o novo momento em que a
geografia renascia. Ele afirmou que não era possível analisar as singularidades das
paisagens, nem dos habitantes, a partir de uma narrativa sintética ou natural, mas
“a geografia tinha que falar das formas, das cores, dos cheiros, dos sons, dos ruídos”
(CLAVAL, 2011, p. 158).
O modo Frémontde fazer geografia pelos olhos da cultura, como espaço vivido,
contagiou seus pares franceses, que, por sua vez, descobriram, em pesquisas, que
parte da sociedade não conseguia expressar suas identidades sem se relacionar com o
espaço vivido, onde reside e constrói suas vidas. Dentre os estudiosos, há Jean Pierre
Raison, que identificou a sociedade do espaço vivido como “sociedade geográfica”; Joël
Bonnemaison, que, a partir da sua pesquisa na ilha de Vanuantu, localizada ao norte
do território francês, apontou para uma geografia concebida e vivenciada por essa
população; Augustin Berque, um exemplo de pesquisador e geógrafo que trabalhou para
compreender o espaço vivido dos japoneses e a sociedade oriental, com a obra “Vivre L
espace au Japon”; e Robert Pitter, com uma temática até então pouco discutida, porém
curiosa, a respeito dos espaços da morte e dos mortos (CLAVAL, 2011).
Um dos principais gatilhos para a compreensão de outras dimensões estudadas
pela geografia humana, de cunho cultural, foi, sem dúvida, o estudo dos espaços vividos,
além de outras possibilidades de análise, a exemplo do papel dos “sentidos” e do “corpo”.
Apesar de interessante, a geografia de gênero foi um dos assuntos pouco
explorados, no entanto, os estudos dos sentidos, na geografia, reinventaram-se em
tantas outras versões, como a geografia dos sons, dos cheiros e, inclusive, dos gostos
(CLAVAL, 2011).
97
Caro acadêmico, seria possível você compreender, a partir de fatos pessoais,
algumas dessas dimensões estudadas pela geografia? Existem estímulos que lhe
aproximarão dos aspectos subjetivos da análise da geografia cultural. Imaginamos que,
em algum momento da sua vida, lugares ou paisagens trazem, à memória, sensações,
cheiros, sabores e o enraizamento cultural que te faz, em instantes, conectar-se,
sensorialmente, a uma experiência vivida.
Na geografia francesa, dentre todos os sentidos, o mais aplicado às análises
culturais foi a visão. O tema em questão, a paisagem, anteriormente, era lidada como
funcionalista ou arqueológica, e, a partir das novas perspectivas, uma dimensão objetiva
e subjetiva, o olhar e a relação entre a paisagem como marcas da cultura e a paisagem
como matriz da cultura foram assinalados como via de mão dupla na década de 1990, por
Augustin Berque. A obra Lá médiance compreendeu as relações homem/meio ambiente,
segundo o entendimento da influência recíproca, (CLAVAL, 2011).
Para a compreensão da natureza da geografia humana, Berque produziu o L’
ecumène, e entende-se que “[...] o ecumène está presente na mente dos indivíduos, e as
paisagens são marcadas pelos sonhos e planos dos indivíduos: as pessoas necessitam
ancorar as suas identidades na realidade circundante” (CLAVAL, 2011, p. 162).
Outros domínios foram as representações, imagens mentais e discursos. Um
exemplo de estudo foi conduzido por Debarbieux. Com relação a algumas representações
mentais, teve, como objetivo, analisar áreas naturais frias, com a imagem dos alpes,
neve, população local e turistas, além de nomes estabelecidos para alguns maciços
montanhosos. Michel Lussault, por exemplo, analisou discursos políticos, com o poder
de persuasão para investimentos econômicos, relacionados à implantação da indústria
e serviços.
98
Neste tópico, você aprendeu:
• Existe uma diferença entre o conhecimento geográfico e a ciência geográfica.
Segundo uma linha cronológica ou temporal estipulada desde a pré-história até
parte da Idade Moderna, o conhecimento geográfico foi alinhado à transformação
que ocorria com a sociedade, a princípio, com as breves noções e conexões que o
homem sem vínculo científico tinha com o espaço e os elementos geográficos via
curiosidade e experiências despretensiosas.
• Uma conexão entre elementos da ordem cultural era muito comum, a exemplo da
influência religiosa na formação social e do conhecimento. Existia, sempre, uma
relação muito forte em torno da relação homem, espaço e religião, o que contribuía
para a formação do conhecimento, embora, ainda, não tenha caráter científico.
A princípio, as cavernas eram compreendidas como santuários; a formação da
localização espacial através dos primeiros mapas, a exemplo do T-0; o mapa que
priorizou Jerusalém numa posição central, e com um desenho semelhante à cruz,
símbolo cristão; e, até mesmo, as escolhas de autoridades que regiam a sociedade,
pois elas tinham que apresentar uma premissa religiosa, que pode ser compreendida
culturalmente.
• Um novo momento surge com a Idade Moderna e todos os movimentos insurgentes,
a exemplo do iluminismo, quando ouve a democratização do conhecimento com os
novos preceitos econômicos e políticos que constituíram esse período. Um nome que
se destacou para a geografia foi o de Kant. Sua trajetória provocou o desenvolvimento
de um material com uma identidade original para a fase da geografia próxima à
sistematização científica.
• O ensino da geografia e a ciência geográfica nasceram, a princípio, no século XIX.
A sistematização ocorreu entre as duas principais escolas, a francesa e alemã, em
contextos diferenciados, porém, ambas contribuíram para as “novas” perspectivas da
geografia.
• Os novos rumos da geografia cultural não negaram as contribuições da escola
sauariana e da geografia social. Contudo, foi reconduzida e inspirada a partir do
desenvolvimento de matrizes epistemológicas referentes aos materialismos histórico
e dialético, fenomenologia e hermenêutica, além das ciências colaboradoras, a
exemplo da antropologia.
RESUMO DO TÓPICO 1
99
• A renovação da geografia ocorreu, intensamente, nos Estados Unidos, por críticas
realizadas à escola sauariana e ao conceito do supraorgânico, por James S. Duncan,
em 1980. Na Inglaterra, um elo foi proposto entre a geografia cultural e a social, por
Peter Jackson. Com relação às primeiras temáticas da geografia cultural radical
(referentes aos materialismos histórico e dialético), trabalhou-se com a perspectiva
de produzir materiais culturais e políticos para explicar categorias da geografia.
• A geografia francesa também se atentou aos novos rumos, e se dedicou a trabalhar em
busca de uma base cultural para a geografia humana, a exemplo do estudo do espaço
vivido, além das funções dos sentidos e corpo, as dimensões das representações,
imagens mentais e discursos e outros domínios. Destacamos Armand Frémont, Jean
– Pierre Raison, Joël Bonnemaison, Augustin Berque, Jean – Robert Pitte e Bernard
Debarbieux.
100
AUTOATIVIDADE
1 Os elementos e fenômenos geográficos são encontrados na superfície terrestre desde
épocas pré-históricas, portanto, naquele momento, eles podiam ser considerados
conhecimento geográfico ou ciência geográfica? Assinale a alternativa CORRETA:
a) ( ) O homem obteve os primeiros conhecimentos da geografia por meio de
conexões com o espaço, gerando a interpretação de mundo desde as civilizações
passadas, porém, esses aspectos geográficos não eram regidos por métodos e
procedimentos científicos, mas por fatos superficiais, ou seja, não científicos.
b) ( ) A sistematização da geografia não tem vínculo com o “conhecimento geográfico”,
pois são definidos em tempos distintos.
c) ( ) O homem obteve os primeiros conhecimentos da geografia por meio de conexões
com o espaço, gerando a interpretação de mundo desde as civilizações passadas,
portanto, tais aspectos vivenciados são de origem científica.
d) ( ) Tanto o conhecimento geográfico quanto a ciência geográfica podem ser
considerados iguais, pois um complementa o outro.
2 A geografia, enquanto ciência, apresentou resistência ao tratar dos fenômenos
geográficos com base cultural, com algumas exceções. Essa falta foi parcialmentesanada no momento de renovação, quando novas matrizes epistemológicas, teóricas
e metodológicas vieram a ser discutidas. Quais dessas filosofias podem ser elencadas?
a) ( ) Fenomenologia, hermenêutica, materialismos histórico e dialético.
b) ( ) Positivismo, materialismos histórico e dialético e fenomenologia.
c) ( ) Neopositivismo, positivismo e estruturalismo.
d) ( ) Teorético, quantitativa, fenomenologia e historicismo.
3 Com relação aos autores contemporâneos, qual foi referência por criticar a geografia
sauariana no ano de 1980?
a) ( ) Roberto Lobato Corrêa, pois Sauer adotou uma política antiurbana.
b) ( ) Marvin W. Mikesell, pois, apesar de discípulo de Sauer, eles não concordavam
com a teoria supraorgânica.
c) ( ) Yi-Fu Tuan, pois, enquanto representante da perspectiva radical, realizou uma
crítica fundamentada nos materialismos histórico e dialético, indicando que a
teoria supraorgânica não legitimava a geografia cultural.
d) ( ) James Duncan, pois realizou uma crítica severa a respeito da geografia
cultural sauariana e sua visão de cultura com entidade supraorgânica, pois não
considerava a cultura como autônoma, acima da sociedade e detentora dos
poderes explicativos.
101
APOIOS, DINAMISMO E RESISTÊNCIA DA
COMPOSIÇÃO DA GEOGRAFIA CULTURAL
UNIDADE 2 TÓPICO 2 —
1 INTRODUÇÃO
Acadêmico, esta fase compreende uma singela parte do processo
de renovação da geografia cultural, que se distribuiu em pesquisas bases
com nomes de referência para a ciência, ressignificação de conceitos,
persistência e desafios para a produção do conhecimento, na área da
geografia, para além das influências econômicas, políticas e relações de
classe sociais. Esse momento sinaliza as novas dimensões dos estudos a respeito da
evolução das discussões e narrativas ancoradas no espaço frente às dinâmicas culturais.
A interpretação dimensiona a cultura, espaço e tempo, mediante suas ocorrências nos
caráteres material e imaterial.
Seja bem-vindo ao Tópico 2 da Unidade 2! A partir de agora, convidamos você
a aprofundar os estudos. Neste tópico, serão desenvolvidos, além da introdução às
temáticas, dois assuntos complementares: Paul Claval e os estudos culturais e formas
simbólicas espaciais. Ao fim das leituras, serão introduzidos o resumo referente ao
tópico e as autoatividades.
Introduziremos as contribuições do autor francês Paul Claval e seu dinamismo
na geografia cultural a respeito da relação do homem x espaço e cultura. A proposta de
apresentar o geógrafo como referência está pelo seu papel de destaque na atualidade,
que, de maneira generosa, busca interpretar a história ou natureza das relações sociais
e culturais. Claval apresenta, com muita destreza, simplicidade e leveza, desde os temas
acirrados do pensamento histórico geográfico aos temas vivenciados, diariamente, por
geógrafos e não geógrafos, mas, que outrora, foram impedidos de ser chamados de
trabalhos científicos. Ele, a partir de uma base teórica interdisciplinar, sai do óbvio e
objetivo e propõe significar os conceitos por hora enrijecidos, propondo discussões das
expressões culturais, espaços e grupos sociais.
Ainda, haverá a discussão de um assunto pertinente às novas concepções da
geografia cultural após 1970: as formas simbólicas e suas espacialidades. Essa relação
opta por um caminho crítico, humano e simbólico, material e imaterial, a respeito das
perspectivas tradicionais da geografia.
102
Confiamos a introdução do estudo em questão ao autor Roberto Lobato Corrêa,
geógrafo brasileiro que trabalha com as áreas da geografia urbana e da geografia
cultural, ou seja, os estudos urbanos no âmbito da geografia cultural renovada. A partir
da exposição de Corrêa, traremos alguns exemplos de alguns dos assuntos relacionados
às formas simbólicas espaciais construídas pela sociedade, além da dinâmica da vida
mediante o poder, simbolismo/memorialização, tempo (passado, presente e futuro),
forças opostas entre concordâncias, contradições, diferenças, igualdade, celebração e
altercação.
2 PAUL CLAVAL E OS ESTUDOS CULTURAIS
O século XX foi marcado por inúmeros acontecimentos, principalmente, nos
âmbitos tecnológico e científico, os quais, juntos, favoreceram a cientificidade da
geografia. Claramente, a ótica de ler o espaço deixou de ser uma via única, mas tornou-
se democrática e dinâmica, ao final da segunda metade do século XX (assunto que
pode ser compreendido na Unidade 1). Para tal evolução na ciência geográfica, nomes
conhecidos entre os acadêmicos da geografia representaram esse quadro de mudanças,
sendo, um deles, o francês Paul Claval.
Nascido no ano de 1932, na comuna de Meudon, um dos vilarejos da Idade
Medieval, considerada a menor e mais antiga subdivisão administrativa da França,
Claval partiu vinte e três anos mais tarde, no ano de 1955, e iniciou seus primeiros
passos da sua longa jornada na geografia, primeiramente, como professor em escolas
secundárias (1955-1960), depois, como conferencista e professor da Universidade de
Besançon (FRA), professor na Universidade de Paris XIII – Nord, conquistando, enfim,
a vaga de catedrático, na Universidade de Paris IV – Sorbonne (1973-1998), e Emérito,
em 1998.
Com uma característica versátil, ele não se apegou a um fenômeno específico,
mas permitiu, na sua vida acadêmica, gostar de aprender, ser um observador
entusiasmado em descobrir o novo, motivo pelo qual percorreu os cinco continentes
até então definidos. Tal ato o aproximou dos exímios geógrafos anteriores a ele, pois sua
percepção dos continentes, países e capitais do mundo o gabaritou para desenvolver ricas
produções nas geografias cultural, regional, econômica e epistemologia da geografia.
Com um trato singular, suas observações aglutinaram traços da escola francesa, além
do movimento de renovação, que cercou transformações para a compreensão das
categorias da geografia.
Pode-se dizer que Claval foi um dos precursores da renovação geográfica do
século XX. Da França para o mundo, o catedrático fomentou, nas suas obras, a criação
dos ramos da geografia e gerou a importância dos outros campos geográficos outrora
menosprezados, motivo que o tornou um referencial para a academia.
103
As suas obras, para além das fronteiras francesas, foram reconhecidas e
traduzidas para inúmeros idiomas. Temos, por exemplo, o Espaço e poder, a Geografia
cultural, os Princípios de geografia social, a Geografia econômica e A lógica das cidades.
Ao todo, Claval publicou 40 livros e uma média acima dos 700 artigos científicos.
Marcante na sua trajetória, Claval conquista reconhecimentos e prêmios
internacionais. Assim, listaremos alguns títulos encontrados no seu currículo: em
1992, tornou-se fundador da revista Géographie et cultures, doutor honoris causa das
Universidades de Genebra (1980), Trieste (1997), Trento (1998), Buenos Aires (1999),
Tsukuba (1999), Roma (2001) e Montreal (2008). No ano de 1996, recebeu o prêmio
internacional Vautrin Lud, e, em 2004, o prêmio de prestígio da União Geográfica
Internacional (IGU) – Lauréat d'honneur.
O que significa o prêmio Vautrin Lud?
Criado pelo festival internacional de geografia em Saint-Dié-des-Vosges. Para os geógrafos,
o Vautrin Lud é um prêmio notável, consagrado como o “Nobel da Geografia”. Ele foi um
meio que a comunidade científica encontrou para reconhecer geógrafos autores de
contribuições significativas para a ciência da geografia, já que o prêmio Nobel não abrange
essa categoria científica. No ano de 2020, o prêmio completa 29 anos de existência, e vem
sendo um canal de propagação de nomes internacionais.
Anualmente, desde 1991, aqueles que fazem a diferença com suas obras e meio de
pesquisa são selecionados, e, assim como toda seleção, existeum tramite a ser seguido,
com o Vautrin Lud não é diferente. Em etapa eliminatória, 240 profissionais da geografia
escolhem alguns nomes para ser levados ao júri final, que é composto por cinco geógrafos
de distintas nacionalidades, e, a partir das análises minuciosas das obras é que sairá o
geógrafo coroado do ano. No Brasil, apenas Milton Santos teve esse reconhecimento,
datado no ano de 1994.
Por traz da escolha da cidade e do nome do prêmio, existem algumas curiosidades e
simbolismos para a geografia. Foi, na pequena Saint-Dié-des-Vosges, nordeste da França,
que a “América” teve seu nome consagrado por Martin Waldseemüller, o criador do mapa
mundi, em 1507 (o primeiro mapa que apresentou o mundo em quatro partes: a Europa,
a América do Sul, a América do Norte e a América), diferente do mapa da Figura 7. Essa
nomenclatura, curiosamente, teve, como influência, o nome do navegador e
cartógrafo “Américo Vespúcio”, aquele que afirmou ter primeiro encontrado
o continente da América nas suas navegações.
Vautrin Lud foi um cônego, líder religioso e estudioso da cosmografia.
Ele dirigia uma equipe dos trabalhos referentes aos mapas e, a partir
da conciliação das informações das expedições marítimas, elaborava
representações dos continentes. Uma das imagens mais
esperadas e emblemática foi o mapa do novo mundo,
que teve, como parceiro, o integrante acadêmico Martin
Waldseemüller.
NOTA
104
Prêmio IGU – Lauréat d'honneur
O prêmio Lauréat d'honneur é oferecido pela união geográfica
internacional desde 1976, e destina-se a um público que se
destaca com pesquisas, obras emblemáticas ou com trabalhos
prestados à união geográfica internacional, no campo da geografia
ou meio ambiente. Para mais informações, acesse: https://igu-
online.org/about-us/roll-of-honour/.
DICA
Na geografia brasileira, Claval tem genuína contribuição, principalmente,
quanto à inclusão dos estudos da geografia cultural. Segundo Almeida e Arrais (2013),
os elos formados por Claval provêm da sua primeira visita ao país, no ano de 1986, e,
posteriormente, quando um dos seus livros foi traduzido para a língua portuguesa, em
1999, motivo pelo qual houve uma aproximação entre os acadêmicos brasileiros e o
francês estudioso da geografia cultural. Em parceria com Kozel e Sousa, em 2007, Claval
participou de uma expedição chamada “Amazônica”, pois se distribuiu nos territórios
de Roraima e Amazonas. O objetivo era percorrer cidades, comunidades ribeirinhas
com pouca terra e muito água. Referimo-nos aos rios, para pesquisar as manifestações
culturais dos lugares visitados, como a festa do boi-bumbá, os povos ribeirinhos,
lançando, como resultado, a interpretação do sujeito a partir da sua história, vivências e
percepções do lugar (KOZEL; SOUSA, 2013).
Claval (2012) discorre a respeito das influências das escolas do pensamento
geográfico na geografia brasileira e toda sua história. Ainda, aborda a seara das
diversidades étnica e religiosa da cultura brasileira, apresentando conteúdos riquíssimos
pesquisados. Claval entende que o país é uma fonte abundante para os geógrafos da
geografia cultural. Os assuntos podem e são explorados a partir das raízes ameríndias
da cultura nacional, extensivos aos hábitos e modo de vida dos sujeitos (atividades
agrícolas, formas alimentares). Ainda, há influências da cultura africana pelo sincretismo
religioso das religiões afro-brasileiras, como a umbanda e o candomblé, assim como os
neoafricanos, caracterizados pelas comunidades quilombolas. Outro perfil trazido pela
colonização europeia, que também pode ser tema, são os cristãos novos “marranos”,
ciganos que estão distribuídos pelo território nacional e trazem seus hábitos, costumes
e fé. Uma outra perspectiva são as abordagens que versam a respeito das contradições
sociais e as ingerências provocadas.
A população brasileira está cada vez mais urbanizada. A abordagem cultural se
interessa pelas diversas formas de segregação das cidades brasileiras, por suas favelas
e seus condomínios fechados. Os problemas que assolam as cidades, a prostituição, a
criminalidade, o tráfico de drogas são objetos de pesquisas sérias (CLAVAL, 2012, p. 19).
105
Em uma conferência, Claval discorreu a respeito da contribuição francesa ao de-
senvolvimento da abordagem cultural na geografia, e, como parte da discussão, ele se
declarou que faz parte de uma classe de geógrafos que entende que todos os fatos geo-
gráficos também possuem uma origem cultural, e que boa parte dos geógrafos franceses
investe em reconstruir a geografia humana sobre as bases da cultura (CLAVAL, 2011).
Na geografia francesa, Claval também possui uma extensa contribuição,
trazendo os ensinamentos de geógrafos, como Vidal de La Blache (1845-1918) e seus
herdeiros vidalianos, Albert Demangeon (1872-1940), Jean Gottmann (1917-1995), Jean
Brunhes (1869-1930), Pierre Deffontaines (1894-1978), Roger Dion (1896-1981), Xavier
de Planhol (1926-2016) e Eric Dardel (1900-1968). Ainda, há outros autores, como
referências da nova fase da geografia cultural: Armand Frémont, Jean Pierre Raison,
Joël Bonnemaison, Augustin Berque, Jean Robert Pitte, Bernard Debarbieux, Antoine
Bailly, Vincent Berdoulay, Michel Lussault e outros que não foram mencionados.
3 FORMAS SIMBÓLICAS ESPACIAIS: BREVES
APONTAMENTOS
Temos, como objetivo, apontar determinadas reflexões acerca das formas
simbólicas no campo da dimensão do espaço, as quais são muito presentes no estudo
da geografia cultural da segunda metade de 1970. Cuidadosamente, são introduzidos,
com criticidade, os moldes de análises tradicionais, as máximas filosóficas referentes ao
marxismo, humanidades e significados.
Para a discussão das formas simbólicas e espaciais, tratamos de convidar, ao
texto, o geógrafo Roberto Lobato Corrêa, autor brasileiro que mais traduz conceitos e
estudos da temática. Nas suas leituras, é possível enxergar que as formas simbólicas
espaciais podem ser materiais, imateriais e podem aparecer em diferentes domínios.
É possível que alguns, ou todos vocês, conheçam shopping centers, templos,
monumentos, parques temáticos, procissões e paradas, cemitérios, palácios etc. Todas
essas esferas em discussão são passíveis de se tornarem um meio de pesquisa na
geografia cultural, cuja finalidade representa a análise entre as relações das formas
simbólicas, identidade e a variável tempo, com a reinterpretação do passado e as vistas
das novas possibilidades do futuro.
O grande teórico cultural, sociólogo e estudioso da identidade, Stuart Hall (2006),
afirma que, em um grupo cultural, as trocas podem ser tão intensas e complexas entre os
entes que as comunidades passam a ser capazes de produzir e difundir significados dos
elementos materiais ou não. A partir deles que existirão as representações da realidade,
que, consequentemente, projetam-se nas formas simbólicas. Assim, fica entendido que
as formas simbólicas, automaticamente, são as representantes da realidade.
106
Segundo Corrêa (2007), as formas simbólicas, materiais e não materiais, formam
signos, e estes, por sua vez, passam por um processo de criação, a partir da conexão
entre formas, significantes, conceitos e significados. Então, pode-se entender que
essas relações ou conexões são homônimas, apresentam, aparentemente, uma mesma
estrutura para a elaboração dos significados, porém, são de livres interpretações, pois
são diversas, tendo em vista as possibilidades e variabilidade de significados pelos
diferentes grupos culturais.
Na contramão de um pensamento generalizado, baseado na hegemonia cultural,
a polivocalidade (pluralidade e liberdade dos significados) adentrou no campo geográfico,
fortalecendo-se com uma gama de novas possibilidades de analisar os espaços que
foram rotulados como lugares marginalizados, não hegemônicos e de alteridades.As
formas simbólicas se tratam de um alargamento do espectro da ciência geográfica, o
que dá voz aos diversos significados, sujeitos, tempos e espacialidades. “A geografia
cultural se beneficiou com aportes do marxismo, da fenomenologia, da hermenêutica,
das ciências sociais e humanidades, como a crítica literária e a linguística, e das ciências
naturais” (CORRÊA; ROSENDAHL, 2012, p. 90).
Propomos apresentar a construção da espacialidade, pela ação humana, como
um reflexo simbólico não apenas pela perspectiva econômica, mas associado, ou seja,
o simbolismo e o econômico juntos, com suas cargas de influências com as dimensões
espaciais.
A corrente que caracteriza a essência da interpretação do signo, na perspectiva
de Corrêa, é a construcionista. Hall (2006) denomina como sendo uma corrente em
que os significados são criados/construídos segundo o raciocínio de comunidades e
pessoas que significam e interpretam as formas simbólicas. Todavia, nessa via de mão
dupla, é possível que não haja a unicidade de significado, mas interpretações diversas
que, apesar do valor adquirido, venham gerar instabilidade de significados por essa
pluralidade.
Existe uma relação muito direta entre as formas simbólicas com o espaço, pois
essa conexão transforma as formas simbólicas em formas simbólicas espaciais, a partir
do momento em que os fixos e fluxos são incluídos no processo de compreensão. Assim,
todo o conjunto passa a fazer sentido.
Relembrando fixos e fluxos em poucas linhas: os fixos possuem formas, são
elementos fixados na materialidade, em algum lugar e espaço (localização),
como algumas construções civis, usinas, prédios, casas e imóveis em geral.
Os fluxos são caracterizados pela imaterialidade, fluidez e dinamicidade
(itinerários); eles vivificam os fixos, e podem ser entendidos por serem rotas
de produtos, serviços, informações e culturas.
NOTA
107
São considerados correntes de formas simbólicas espaciais “palácios, templos,
cemitérios, memoriais, obeliscos, estátuas, monumentos em geral, shopping centers,
nomes de logradouros públicos, cidades e elementos da natureza, procissões, desfiles,
paradas etc.” (CORRÊA, 2007, p. 9).
No parágrafo anterior, com Corrêa (2007), foram apresentadas, nominalmente,
algumas formas simbólicas espaciais, portanto, para não fique no campo imaginário,
trouxemos, através de imagens capturadas da internet, uma pequena, diante do vasto
campo de estudo. Propomos que vocês façam um exercício para compreensão visual, e
entendam, a partir de alguns exemplos, do que se tratam as formas simbólicas espaciais,
que estão distribuídas em territórios nacionais e em internacionais. Certamente, a partir
dessa experiência, você analisará a sua cidade, e também identificará algum ponto com
formas simbólicas espaciais.
A primeira figura é o palácio de Buckingham, localizado em Londres. Ele foi
erguido pelo duque Buckingham, mas se tornou residência oficial da monarquia britânica
em meados dos anos 1763, quando comprado pelo Rei George III. Apesar do palácio ser
fortificado por ferro, bronze forjado, ao longo das guerras, esse complexo sofreu ataques
e bombardeios, fomentando reformas e melhorias arquitetônicas. O palácio se tornou
o símbolo da pujança da nobreza do Reino Unido, atrai desde a população britânica a
turistas de todo o mundo. Esse lugar possui uma atmosfera de significados.
FIGURA 9 – PALÁCIO DE BUCKINGHAM – LONDRES
FONTE: <https://cdn.civitatis.com/reino-unido/londres/galeria/palacio-buckingham-cambio-guardia.jpg>.
Acesso em: 2 set. 2020.
A basílica de São Pedro, localizada no Vaticano e sua construção suntuosa,
trata-se do maior complexo religioso referente ao catolicismo, constituindo uma unidade
política e espacial. De acordo com Rosendahl (2003), o sagrado dispõe de uma gestão
hierárquica. No caso do Vaticano, ele representa uma sede oficial e se caracteriza por ser
um território religioso administrativo.
108
Segundo Corrêa (2005, p. 12), “as instituições religiosas, por outro lado, ao
construírem seus templos e outras formas simbólicas, materializam o local do culto e
exibem o poder da instituição ao comunicar a mensagem religiosa proclamada, que une
e identifica a comunidade dos seus fiéis”.
FIGURA 10 – BASÍLICA DE SÃO PEDRO – VATICANO
FONTE: <https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn%3AANd9GcRJ827IYsnRfhJnfZfkHqUVpSK2SD
JV3Z-i4A&usqp=CAU>. Acesso em: 2 set. 2020.
Com relação aos monumentos que vêm a ser apresentados: o Cristo Redentor e
o do Dr. Blumenau. Cada um possui um significado particular: o primeiro reflete, nacional
e internacionalmente, o símbolo do Rio de Janeiro e a identidade católica da população
brasileira, estimada como o país de maior número de católicos do mundo. Em proporção
menor, tem-se o monumento e mausoléu de Hermann Bruno Otto Blumenau, fundador
da colônia e, hoje, cidade de Santa Catarina, localizada no Vale do Itajaí, que leva o seu
sobrenome, Blumenau. Esse lugar foi edificado com o objetivo de homenagear o fundador
da cidade, e, para manter a conexão com a população, a fundação da cultura da cidade,
regularmente, abre espaço para exposições das artes.
FIGURA 11 – MONUMENTO DO CRISTO REDENTOR – RIO DE JANEIRO
FONTE: <https://pbs.twimg.com/media/CEhLqt9WIAA5GCF.jpg>. Acesso em: 2 set. 2020.
109
FIGURA 12 – MONUMENTO E MAUSOLÉU DR. BLUMENAU – BLUMENAU
FONTE: <https://mapio.net/images-p/19401243.jpg>. Acesso em: 2 set. 2020.
Os nomes dos lugares podem significar, além da linguística e da base etimo-
lógica, aspectos geográficos, históricos, sociais, econômicos e antropoculturais. Um
exemplo foi a renomeação das ruas em Paris, Lisboa e no Brasil, com o nome da então
vereadora assassinada Marielle Franco. O acontecimento ganhou força política, por ela
ser representante das classes minoritárias enquanto mulher.
FIGURA 13 – NOME DO LOGRADOURO MARIELLE FRANCO - RIO DE JANEIRO
FONTE: <https://www.culturamix.com/wp-content/uploads/2020/06/Rua-Marielle-Franco.jpg>.
Acesso em: 2 set. 2020.
Os cemitérios também faz parte de uma temática estudada pela geografia
cultural. Esses lugares podem falar muito dos acontecimentos históricos, como
veremos adiante. Em alguns casos, cemitérios podem explicar as relações das classe
sociais, mas, no caso do cemitério judeu em Praga, no bairro de Josefov, em particular,
a religião, identidade cultural, tradição e seus simbolismos são as marcas fortes a serem
discutidas, além dos temas relacionados ao antissemitismo, e os pogroms, considerados
os atos violentos contra os judeus.
110
FIGURA 14 – ANTIGO CEMITÉRIO JUDAICO DE PRAGA
FONTE: <https://mundovastomundo.com.br/wp-content/uploads/2018/12/Cemit%C3%A9rio-
judaico2-e1545506694980.jpg>. Acesso em: 2 set. 2020.
O exposto a seguir representará o movimento da Marcha para Jesus, na cidade
de São Paulo, lugar onde nasceu a primeira MPJ no Brasil. Esse movimento denota a
força da religião evangélica de ocupar espaços públicos, difundindo-se, espacialmente,
com atos populares religiosos e ideais políticos, visando fortalecer, promover sua
identidade religiosa. Essa ocupação funcional dos espaços públicos por grupos sociais
pode se caracterizar como forma simbólica.
FIGURA 15 – MARCHA PARA JESUS – SÃO PAULO
FONTE: <https://noticias.r7.com/fotos/marcha-para-jesus-leva-milhares-de-fieis-as-ruas-de-sao-paulo-
veja-fotos-20062019#!/foto/1>. Acesso em: 4 set. 2020.
A procissão do Círio de Nazaré pode render análises dos muitos aspectos para a
geografia cultural. Segundo Rosendahl (2003), a marca do ano de 1800 representou o
fechamento de três séculos de conquista das colônias e dos processos de missões e
evangelização do catolicismo. Esse poder, vinculado à religião, disseminou-se por nove
unidade territoriais do Brasil, e uma dessas foi Belém, região norte do país. A paroquia
de Nossa Senhora de Nazaré foi criada em 1861, e todas as assimilaçõesde milagres
designadas à santa contribuíram para o crescimento dos devotos, por conseguinte, da
procissão, tornando aquele espaço uma área de grande influência política e religiosa,
pois o catolicismo, face aos festejos, utiliza-se dos espaços e vias públicas para expor
sua fé e afirmar a sua identidade religiosa.
111
FIGURA 16 – PROCISSÃO DO CÍRIO DE NAZARÉ – BELÉM DO PARÁ
FONTE: <https://pbs.twimg.com/media/EXdVkDwXsAIXwlF.jpg:large>. Acesso em: 2 set. 2020.
Acadêmico, para as todas as formas simbólicas, existem políticas que as
regem, a exemplo da política locacional e de escala. Segundo Corrêa (2007), a
política locacional se divide em localização absoluta, localização relativa e localização
relacional, e a política de escala em dimensão absoluta e dimensão relacional.
• Absoluta
É possível que, do ponto de vista histórico, você se lembre de algum lugar da sua
cidade que tenha uma história marcante, lembrou? Certo, então, a localização absoluta
pode partir desse princípio ou, simplesmente, a partir da criação de um significado para
uma localização absoluta qualquer, quando se deseja transformá-la em um local de
destaque.
“Uma forma simbólica tem uma localização absoluta, um sítio onde ocorreu um
dado evento considerado significativo ou que se deseja transformar em um local de
celebração, contestação ou memorialização, por apresentar um potencial positivo para
esse fim” (CORRÊA, 2007, p. 9).
Alguns exemplos das formas simbólicas são evidenciados em literaturas
anteriores aos anos 2000, e podem ser datados desde o século XIX. Cidades americanas
e europeias são exemplos da criação de monumentos de grande porte, como estátuas,
memoriais e templos. O intuito vai além da aparência estética, mas contém um conteúdo
político, econômico, social.
Corrêa (2005) apresenta alguns exemplos de formas simbólicas de dimensões
maiores que, quando construídas com o intuito de permanecerem na memória, geraram
conflitos ou contestação, como a estátua erguida em Londres, do Sir Arthur “Bomber”,
marechal da real força aérea que comandou o bombardeio de cidades alemãs. Outra
112
manifestação foi da manutenção do monumento do exército vermelho, em Budapeste.
Outros exemplos citados por Corrêa (2005), dotado de conotação política e de identidade,
foram a construção das basílicas católicas Sacré Coeur de Montmartre (França) e a
Catedral Cristo Salvador (Rússia).
Além da identificação de grandes formas simbólicas e seus contextos históricos
ancorados a guerras e eventos mundiais, outras formas simbólicas menores foram
inspiradas e, consequentemente, construídas. Com essa ideologia, acreditamos que
seja possível reduzir esse espectro de acordo com a realidade individual. Vamos ao
exemplo: na cidade de Campina Grande-PB, às margens do açude velho (reservatório
hídrico urbanizado que, hoje, é um ponto turístico na cidade paraibana), foi inaugurado
o monumento chamado “Os Pioneiros da Borborema”, em 1964. Representa a
materialização, memorialização e homenagem a três figuras importantes dos processos
de criação e crescimento da cidade: os nativos, representados pelo índio, como símbolo
da resistência e luta; a colhedora de algodão, figura feminina que representou a força
com a economia do ouro branco, quando o município se tornou o segundo maior
exportador de fibra no mundo; e o terceiro personifica o homem colaborador comercial,
caracterizado pelo tropeiro, aquele que conduziu tropas de Equus asinus, popularmente
conhecido como “burro”. Todos transportavam cargas de algodão e cereais (milho, arroz,
feijão) do litoral ao sertão do estado.
FIGURA 17 – OS PIONEIROS DA BORBOREMA – CAMPINA GRANDE
FONTE: <https://www.paraibacriativa.com.br/artista/os-pioneiros-da-borborema/>. Acesso em: 4 set. 2020.
Outro aspecto curioso foi a localização escolhida, em posição nascente, para
que todos que olhem vejam o brilhar do sol no monumento, uma mensagem sutil,
quanto às perspectivas de progresso e esperança em relação ao futuro. Além disso,
como fator real, esse perímetro circundou a história da criação da cidade, um eixo
de relações econômicas, comerciais, religiosas, de rota geográfica e de todo início do
grande processo de urbanização.
113
Outro exemplo pode ser o Riacho do Ipiranga – São Paulo, local que detém um
significado do dia da Independência do Brasil, em 7 de setembro de 1822. O fato foi
narrado em uma cena iconográfica, pelo artista plástico Pedro Américo, em sua obra de
arte “Independência ou Morte”, de 1888, sessenta e seis anos após o ocorrido.
A construção da imagem, a distribuição dos personagens na tela e suas
posturas apontam para a elevação de D. Pedro I ao status de herói nacional e à ideia
de construção da identidade e do patriotismo por meio do passado glorioso e suas
representações épicas (ITAMARATY, 2020).
FIGURA 18 – INDEPENDÊNCIA OU MORTE – O GRITO DO IPIRANGA
FONTE: <https://culturanerdegeek.com.br/wp-content/uploads/2016/09/Independence_of_Brazil_1888.jpg>.
Acesso em: 2 set. 2020.
O hino nacional também apresenta o Riacho Ipiranga como uma referência
física geográfica, um espaço absoluto para o ato de “separação” entre a colônia e
os colonizadores. Conta-se que a submissão do Brasil foi finalmente findada com a
declaração da independência, por Dom Pedro I, ao império português, naquele ponto.
Ouviram do Ipiranga às margens plácidas de um povo heroico o brado
retumbante, e o sol da liberdade, em raios fúlgidos brilhou no céu
da pátria nesse instante, se o penhor dessa igualdade conseguimos
conquistar com braço forte, em teu seio, ó liberdade, desafia o nosso
peito a própria morte [...] (JOAQUIM; SILVA, 1922, s.p.).
Em virtude da importância da identidade histórica do país, na Avenida Nazaré,
no bairro Ipiranga, em São Paulo, no final de 1980, foi criado um complexo ou sítio, con-
siderado patrimônio histórico cultural: o conjunto do Ipiranga abrange uma área de 161,3
mil m2. Foram agregados o museu paulista, a casa do grito, o monumento à indepen-
dência e o parque da independência, todos espaços identificados e georreferenciados.
114
Para conhecer um pouco mais do complexo do Ipiranga, podemos
indicar um vídeo, “Marco da Independência, Rio Ipiranga nasce
na Zona Sul de São Paulo”. Em 1’ e 30’’, você, brevemente, viajará
para esse ponto turístico brasileiro, e conhecerá um pouco mais
de uma página contada acerca da independência do país: https://
www.youtube.com/watch?v=A8xmNlKxVJY.
DICA
Tivemos dois recortes espaciais, um de ordem local e, o outro, de ordem nacional.
• Relativa
A localização relativa se vincula a dois fatores: visibilidade e, principalmente,
acessibilidade. Tomando os exemplos, de nada adiantaria se os dois locais citados
(tropeiro e Riacho do Ipiranga) não fossem visíveis e, especialmente, acessíveis. Trocando
por miúdos, pode-se dizer que se não fossem acessíveis, as pessoas não poderiam nem
alcançar aquele ponto, muito menos visualizar aquelas formas simbólicas. A seguir, será
possível notar que o posicionamento do monumento foi erguido em um percurso de
fácil acesso e de grande visibilidade, numa área que se tornou ponto turístico e rota de
passagem de viajantes etc.
As formas simbólicas, por outro lado, têm uma localização relativa,
associada à visibilidade, mas, sobretudo, à acessibilidade, face a toda
a cidade ou espaço regional ou nacional. Essa acessibilidade é um
dos meios mais importantes para que as formas simbólicas possam
transmitir as mensagens que delas se esperam (CORRÊA, 2007, p. 9).
FIGURA 19 – LOCALIZAÇÃO DO MONUMENTO OS PIONEIROS DA BORBOREMA
FONTE: O autor
115
• Relacional
Segundo Corrêa (2007, p. 9), “são localizadas em relação a outras formas simbó-
licas que denotam interesses divergentes: as localizações delasenfatizam um conjunto
de valores que é referenciado a um dado espaço, o qual se opõe ao outro espaço”.
Vamos entendendo o conceito, primeiramente, pelo significado da palavra
em um dos gêneros. A palavra relacional diz que há relação ou que envolve um tipo
de relação, ou seja, tudo que é relacional pode gerar algum tipo de relação, ou tem
algum ponto de contato. Quando trazemos para a área das formas simbólicas espaciais,
entendemos que os locais se expressam, individualmente, pelas suas diferenças em
termos de significado e intenções, mas compartilham uma função genérica entre si, que
é de se comunicar.
Vamos ao Rio de Janeiro, e tomamos dois casos: o monumento do Cristo
Redentor (1931) e o Museu do Amanhã (2015). É capaz que você tenha conhecimento da
imagem do Cristo. Considera-se um símbolo religioso marcante onde pessoas pagam
suas promessas, fazem preces, batizam filhos, inclusive, realizam cerimônia religiosa de
casamento aos pés do Cristo. Além da chama religiosa, existem aquelas pessoas que
visitam para conhecer e desfrutar da paisagem. Com o peso simbólico representativo
dessa imagem, o Rio de Janeiro, década após década, adquiriu fama nacional e
internacional. Já o Museu do Amanhã nasceu de uma revitalização da zona portuária.
Como construção mais recente, o objetivo indica outras perspectivas, principalmente,
a de apresentar a ciência para a comunidade visitante, com intuito provocativo: as
exposições do museu geram reflexão de quem somos? onde estamos? de onde
viemos? para onde vamos? como desejamos chegar ao futuro? qual cenário de futuro
pretendemos encontrar? É possível perceber um apelo voltado ao antropocêntrico, no
qual se eleva a categoria do homem ao centro das discussões a respeito do mundo.
Portanto, ambos foram construídos, criados para vestir uma identidade, porém,
apresentam finalidades distintas.
FIGURA 20 – MUSEU DO AMANHÃ – RIO DE JANEIRO
FONTE: <https://i1.wp.com/becodaspalavras.com/wp-content/uploads/2018/09/museu-do-amanha.
jpg?fit=1280%2C720&ssl=1>. Acesso em: 2 set. 2020.
116
Os dimensionamentos atribuídos, neste momento, são aqueles garantidos pela
escala, que pode se dividir em absoluta ou relacional. A escala, no âmbito abrangente
da geografia, apresenta-se como um instrumento de medida, no caso de extensão
territorial, de área, a partir de recortes espaciais, propriedades urbanas/rurais. No
domínio local, no regional, podem ser identificados estados, e, no nacional e no global,
os países, por exemplo.
O absoluto, segundo Corrêa (2007, p. 9), “[...] diz respeito ao fato de a forma
simbólica apresentar uma certa dimensão física, expressa em área, volume e altura, a
qual se associa à magnitude do evento ou personagem a ser celebrado, contestado ou
memorializado, e aos recursos disponíveis”.
Enquanto a dimensão relacional das formas simbólicas propõe uma análise
comparativa entre uma e demais formas simbólicas, consequentemente, essa compa-
ração abarca as dimensões físicas grandiosas e todas outras possíveis características,
de anfitrião de eventos, representante de uma identidade criada ou posicionado como
frente de dissensão e conflitos (CORRÊA, 2007).
Por trás da perspectiva física, as formas simbólicas espaciais abrangem outras
conotações que, na maioria das vezes, são originadas a partir das transformações da
sociedade associadas às interferências de ordem política/social.
Para Corrêa (2007), na interpretação das formas simbólicas, é agregada a
dimensão espacial, além dos significados políticos, de identidade, da reconstrução do
passado e o anúncio do futuro.
O significado político tem uma importante presença na construção das formas
simbólicas espaciais, pois agregam o que Rowntree e Conley (1980 apud CORRÊA, 2007,
p. 10) chamam de “mecanismos regulatórios de informações que controlam significado”.
Ou seja, os grupos políticos criam funções com o intuito claro de regular, no sentido de
regulamentar os meios simbólicos espaciais por meio de regras, leis e orientações que
dirijam, com significância, o valor simbólico dado pelos seus criadores.
Para contextualizar, Corrêa (2007) elege alguns exemplos de estudos clássicos
apresentados em seis pontos que, geralmente, são identificados nas formas simbólicas
espaciais e significado político. Traremos essas informações reunidas a seguir.
Propomos que vocês conheçam as perspectivas do Museu do
Amanhã. Assim, no vídeo a seguir, o curador Luiz Oliveira explica
o porquê de um Museu do Amanhã: https://www.youtube.com/
watch?time_continue=17&v=fbIRDSzZbrQ&feature=emb_logo.
DICA
117
QUADRO 1 – FUNÇÕES POLÍTICAS ACERCA DAS FORMAS SIMBÓLICAS ESPACIAIS
FONTE: Adaptado de Corrêa (2007)
Algumas funções políticas das formas simbólicas espaciais
Estabelece a prorrogativa do tempo, enaltece o
passado, porém, reforça concepções pertinentes
do presente em detrimento do futuro.
Unificação dos valores de um dado grupo
específico sem respeitar as particularidades dos
demais (relação de poder).
Recria o passado, concedendo significados
recentes. As tradições conferidas a um lugar
podem ser uma mera criação humana para
apresentar uma verdade, que muitos vão
comprar como sendo absoluta.
A segmentação da sociedade em grupos, os
quais afirmam e reafirmam as suas identidades
(religioso, étnico, racial ou social).
Construir lugares de reminiscência, aqueles
que sempre são guardados nas lembranças,
pois vêm definir e conservar a coesão social por
meio do passado compartilhado (NORA, 1989
apud CORRÊA, 2007)
Insinuações do tempo futuro (a linha tênue
entre a constância de estar e a frenética marcha
do seguir) em algum momento do tempo
presente, e anunciação dos fatores favoráveis.
A partir do momento em que foram apresentados os significados políticos, é
possível que os demais assuntos associados às formas simbólicas espaciais transitem
livremente pelo quadro de referência, como as formas simbólicas espaciais e identidade,
formas simbólicas espaciais e reconstrução do passado e formas simbólicas espaciais
e o anúncio do futuro.
Com relação à identidade e geossímbolos, Corrêa (2007) buscou as devidas
correlações entre as formas simbólicas espaciais e o elemento da “identidade”.
A primeira ocorrência identifica que as formas simbólicas espaciais vão dando
sentido ao andamento, desenvolvimento e permanência das identidades. Significa dizer
que a característica do que é idêntico ou semelhante entre os mais diversos grupos
(religioso, étnico, racial) e espaços (lugares, geossímbolos, toponímia) é alimentada pela
criação das formas.
Para Corrêa (2007, p. 11), “toponímia constitui uma forma simbólica que
identifica um logradouro público, bairro, cidade, país ou forma da natureza, atribuindo
um significado que pode valorizar ou estigmatizar o próprio objeto”.
Acadêmico, não será tão difícil você perceber, em uma escala micro, no seu
estado, município, ruas comerciais ou residenciais, as influências da toponímia. Ainda,
pode ser visto, em escalas macro, nas realidades internacionais, que os lugares passam
a ser renomeados em virtude de decisões políticas, identitárias, influenciadas pela
relação de poder territorial e outros fatores.
A relação da toponímia no Brasil se deu por meio dos modos de ocupação
territorial, desde o período da colonização. Só puderam ser compreendidos pela união
do entendimento da geografia e ciências, como história e arqueologia. A combinação
propiciou o desenvolvimento do estudo.
118
A toponímia, enquanto formas simbólicas com conotação político-
territorial e identitária, foi um dos meios pelos quais a Companhia
Geral do Grão-Pará e Maranhão, entre 1755 e 1778, estabeleceu
marcas do domínio português na Amazônia. As antigas aldeias
indígenas,transformadas em aldeias missiónarias, tiveram seus
nomes indígenas alterados, exibindo nomes de povoações
portuguesas: Alenquer, Almeirim, Barcelos, Borba, Breves, Ega, Faro,
Óbidos, Ourém, Santarém e Soure etc. (CORRÊA, 2007, p. 11).
Como exemplo, traremos a história contada pela prefeitura da cidade paraense a
respeito da origem do nome de Santarém. A lenda tem origem na Europa, em Escalabis,
cidade portuguesa. Segundo a história reproduzida, as afirmações colaboram com o
entendimento das formas simbólicas espaciais, além da identidade do lugar, conforme
o relato a seguir.
Em uma cidade portuguesa, uma jovem virgem, chamada Irene, educada no
convento, despertou a paixão de um jovem fidalgo, porém sem pretensões amorosas,
a moça o desprezou, o que gerou uma trágica morte. Telbaldo a matou e arremessou
aquele corpo às correntezas do rio Tejo, chegando à praia de Escalabis, porém, anjos
a retiraram das águas, e, com misericórdia, construíram uma lápide de mármore, e
guardaram o corpo da religiosa.
O fato é que tal criação do lugar e da história se tornou tradição, e a cidade
passou a ser reconhecida por Mártir Irene. O número expressivo de visitantes projetou
Escalabis como a cidade da Santa, o que veio se confirmar com o novo batismo. A cidade
foi rebatizada pelos portugueses de Sant” Irene. Sua locução original lusófona sofreu
alterações até se tornar Santarém, assim, permaneceu até os dias de hoje.
A ligação da nomenclatura da cidade paraense adveio através de Mendonça
Furtado (que foi governador geral do Estado do Grão-Pará e Maranhão), em referência à
cidade de Santarém, em Portugal, em 1758, quando ele renomeou a Aldeia dos Tapajós
para Santarém. A aldeia passava à categoria de vila.
Outros elementos que devem ser rememorados, frente às formas simbólicas
espaciais e identidades, são os espaços novos do geossímbolos. Para Bonnemaison
(2012, p. 292), “um geossímbolo pode ser definido como um lugar, um itinerário, uma
extensão que, por razões religiosas, políticas ou culturais, aos olhos de certas pessoas e
grupos étnicos, assume uma dimensão simbólica que fortalece a sua identidade”.
Existem lugares que apresentam valores simbólicos tão fortes que se enquadram
na categoria de geossímbolos, principalmente, no Brasil, um país diverso em religião,
festas e grupos étnicos. São “representados por pontos fixos, como construções,
caminhos, formas do relevo, rios, árvores, estradas e itinerários reconhecidos, traçando,
na superfície, uma semiografia engendrada por símbolos, figuras e sistemas espaciais”
(BONNEMAISON, 2012, p. 105).
119
Para preservar a sua memória, tem-se, como exemplo, de geossímbolo, além
do Cristo Redentor, do Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida e outros, a
procissão católica da Nossa Senhora de Nazaré, ou o Círio de Nazaré. Com sentido
religioso de ordem cristã, possui o objetivo de devoção, certo?! Contudo, além do perfil
religioso, esse ato também passa a ser um objeto de análise da geografia cultural, um
geossímbolo, pois compõe elementos suficientes. Descritivamente, a arquidiocese de
Belém, baseada no Círio de Nazaré, apresenta o caminho/itinerário a ser percorrido pelos
romeiros, discriminando pontos fixos, caminhos, itinerários, rios e outros elementos de
grande identidade cultural:
Para o povo cristão, se os locais consagrados a Deus, como igrejas
e capelas, apresentam-se como especiais por si mesmos, mais
especiais, ainda, são os que apresentam a característica de terem sido
escolhidos por Ele para a realização de acontecimentos importantes,
como os locais sagrados da Terra Santa, os das aparições de Nossa
Senhora ou de manifestações prodigiosas, como é o caso do achado
da imagem de Nossa Senhora de Nazaré em Belém, que colocou esse
lugar em um patamar importante, que exige especial consagração
por conta dos acontecimentos. Em 1861, foi criada a Paróquia
Nossa Senhora de Nazaré [...]. Em 1908, chegou, ao Pará, o padre
Luiz Zóia, que considerou matriz acanhada e sem estilo [...]. Era
necessário erguer um novo templo [...]. Sua proposta foi erguer uma
réplica reduzida da Basílica de São Paulo entre muros, de Roma [...].
Praticamente, todo o templo foi erguido com partes pré-moldadas
por diversas empresas da França, Itália e, também, do Brasil [...].
Foram trazidas milimetricamente nos seus lugares, fazendo parte
dos elementos que compõem o Círio de Nazaré. A Basílica integra o
conjunto da declaração da festa como patrimônio cultural imaterial
da humanidade pela Organização das Nações Unidas (Unesco), em
2013 (COLENY, 2020 apud DUBOIS, 1953, s.p.).
Torna-se possível absorver, claramente, o entendimento de Corrêa (2007),
quando ele explica que os geossímbolos aparecem em meio ao espaço de formas
simbólicas culturais. Os intuitos são reconhecer e trazer, de forma aparente, a identidade
de um grupo ou comunidade, associada a uma dada paisagem. A constituição desse
percurso e a paisagem do Círio de Nazaré “apresentam geossímbolos fixos, que, por
serem dotados de significados identitários, fortalecem a identidade cultural dos grupos”
(CORRÊA, 2008, p. 12).
Os exemplos mencionados acerca dos geossímbolos produzem uma forte
identidade nacional voltada para a Igreja Católica Apostólica Romana no Brasil.
Consequentemente, surge a retórica de fortalecimento e poder dessa instituição.
Associadas à criação da identidade dos espaços através dos geossímbolos, as
formas simbólicas espaciais e a reconstrução do passado refletem, intrinsecamente,
as possibilidades de criar e recriar um passado de acordo com as necessidades da
identidade, quer seja ela social, de lugar, de outros elementos. “O passado pode ser visto
como um texto incompleto, cuja leitura permite, mais do que o presente, interpretações
diversas, possibilitando reconstruções adequadas às vicissitudes de cada momento e
de cada grupo social” (CORRÊA, 2007, p. 15).
120
Você saberia identificar ou interpretar as reconstruções do passado no espaço?
Segundo Corrêa (2007, p. 15), “as interpretações do passado e suas reconstruções podem
ser expressas de diversos modos, como as formas simbólicas espaciais como estátuas,
memoriais e prédios”. Não é difícil encontrar, nas mais diversas realidades, a reconstrução
do passado. Andando pela cidade, basta explorar, ser observador e buscar identificar,
na história, as alterações ocorridas no espaço. Corrêa (2007) apresenta exemplos no
seu texto, como o palácio de Neue Wache. Contudo, dentro da sua realidade, é possível
encontrar essas alterações ou reconstrução do passado percebendo sua cidade, estado
ou país de origem. Às vezes, os significados não são tão intensos quanto o de Neue
Wache, mas, certamente, há um valor singular.
A fachada e o interior de um prédio podem ser remodelados,
alterando-se a sua iconografia de acordo com a intenção de quem
pretende reciclar significados do passado, “apagando” a iconografia,
cuja intenção era gerar outra interpretação. Mais que uma estátua
ou um memorial, um prédio apresenta uma flexibilidade que permite
uma refuncionalização simbólica. Um prédio pode, assim, tornar-se
um meio útil para uma política de significados (CORRÊA, 2007, p. 15).
Mais uma vez, reduziremos o espectro do entendimento a partir de um exemplo
local, na cidade de Campina Grande-PB. Através dos olhares dissertativos de Queiroz
(2010) e Rossi (2010), trazemos a acelerada expansão, além de transformações
arquitetônicas dessa cidade no século XX, mais precisamente, entre 1930 e 1940, além
dos seus desdobramentos.
Precisamente, no ano de 1936, o então prefeito Vergniaud Wanderley deu início às
reformas nas estruturas do centro urbanístico tradicional, amparado pelas leis sanitarista
e urbanística. “Pouquíssimos prédios ecléticossobreviveram a esse choque de ordem
que, em menos de 15 anos, muda totalmente a feição da cidade” (ROSSI, 2010, p. 30).
Campina Grande, na época, passava por um profundo processo
reformador de coisas e pessoas, em consonância com todos os
esforços para anexar o Brasil à rede do capitalismo internacional,
para torná-lo civilizado, urbano, industrial e moderno. O lema
higienizar, circular e embelezar guiou intervenções da estrutura
física do município, com o intuito de distanciá-lo do aspecto colonial
que dominava a cena urbana até as primeiras décadas do século XX
(QUEIROZ, 2010, p. 35-36).
121
FIGURA 21 – CROQUI DA RUA MACIEL PINHEIRO EM ART DÉCO/ BIBLIOTECA MUNICIPAL
E SOBRADOS COMERCIAIS
FONTE: Rossi (2010, p. 30)
Em Campina Grande, as “formas escalonadas, aerodinâmicas e os baixos e altos
relevos de figuras geométricas na fachada foram o comum da produção, associado a,
praticamente, todos os programas arquitetônicos da época, das igrejas aos cabarés”
(QUEIROZ, 2010, p. 36).
No ano de 2014, foi realizada uma exposição da artista plástica Margarete
Aurélio Colaço Agra, na Secretaria de Cultura de Campina Grande, com o intuito de
apresentar as transformações arquitetônicas que a cidade havia passado. O exposto
a seguir representará o auge das construções modernas nas áreas centrais da cidade
paraibana. Do lado esquerdo, tem-se a casa noturna “Casino Eldorado”, e, ao lado direito,
o residencial “Abdallah”, edifício considerado de alto padrão da época, um projeto que
trouxe, no seu conceito de criação, uma praça privativa na cobertura, com direito à
iluminação noturna, bancos e uma espécie de coreto.
FIGURA 22 – CAMPINA GRANDE ART DÉCO - PINTURA DO CASINO ELDORADO E RESIDENCIAL ABDALLAH
FONTE: O autor
122
Segundo Queiroz (2010), a representação arquitetônica em art déco decorou
prédios e fachadas em Campina Grande e em outras cidades do Brasil, com um intuito de
apresentar a chegada da modernidade, civilidade e prosperidade econômica municipal.
Portanto, com a política de fomento pelas autoridades políticas e econômicas
(senhores do algodão), a construção e a reformulação das fachadas da cidade paraiba-
na agregaram um número expressivo de imóveis, atendendo às características da mo-
dernidade. Em contrapartida, houve a perda de uma parcela significativa da sua história,
estabelecida nos séculos XVIII e XIX, com as demolições das estruturas físicas.
Esse complexo arquitetônico, visto em uma cidade do interior da Paraíba,
transmite informações históricas das influências políticas e econômicas, nacionais e
internacionais, a partir de uma leitura material ou física do espaço. De acordo com o
assunto exposto, podemos compreender que os escopos de percepção acerca das
reconstruções do passado, por meio das formas simbólicas, podem ser encontrados
próximos da realidade e experiência de vida.
A partir desse novo parágrafo, traremos as formas simbólicas espaciais e o
anúncio do futuro. Segundo Corrêa (2007, p. 14), “o futuro é, assim, marcado por uma
tensão entre permanência e mudança. As formas simbólicas espaciais constituem um
importante veículo por meio do qual o futuro pode ter a sua concepção comunicada,
aprovada ou contestada”.
Para uma melhor compreensão, Corrêa (2007) elege exemplos de estudos
clássicos, e um deles é de André Breton, que discute, amplamente, o anúncio de futuro
a partir da Feira Mundial de Paris, em 1937.
“A Feira Universal de Paris, realizada dois anos antes da Segunda Guerra
Mundial, anunciava dois aspectos cruciais do capitalismo da década de 1930: o começo
da expansão da publicidade e do consumo de massa e a devastadora guerra” (CORRÊA,
2007, p. 15). A feira tinha uma característica peculiar, que rendeu exposições das
O vídeo a seguir, realizado pelo canal de televisão Itararé, exibido no
programa “Diversidade”, apresenta Campina Grande Art Déco. É uma
breve explicação do estilo arquitetônico. Em linhas gerais, contempla
algumas perguntas, a exemplo de onde surgiu, quais as referências
de influência, o que a substantivou e a sua relação com a cidade
paraibana: https://www.youtube.com/watch?v=3QM60bdP6GM.
DICA
123
grandes atualidades industriais da época, portanto, aquele lugar reverenciava as últimas
novidades e, assim, apontou o caminho que estava seguindo o futuro. Certamente, a
chave para a compreensão era que as ideias e a materialização do futuro ocorreram
naquele espaço designado de formas simbólicas espaciais.
Outro aspecto importante da feira foi, sem dúvida, o sentido político que ela
compartilhou. Colocava, frente a frente, “as formas simbólicas associadas à Alemanha
nazista, à Itália fascista, à Espanha republicana e à União Soviética” (CORRÊA, 2005, p. 15).
Trouxemos uma pequena parcela de um vasto campo de estudo. As formas
simbólicas espaciais atuam na superfície terrestre em escalas micro e macro.
Intencionalmente, elas colaboram, deixando, aparentes, as representações edificadas
por grupos da sociedade. Ainda, apresentam as diversas identidades da dinâmica
sociedade-cultura-espaço-tempo, ou seja, apresentam o presente, o passado e o
futuro, o que Corrêa (2007, p. 15) chama de “as diferenças e a igualdade e o poder, a
celebração e a contestação e a memorialização”.
124
Neste tópico, você aprendeu:
• O francês Paul Claval se tornou um dos grandes geógrafos precursores da renovação
geográfica do século XX. Ele fomentou, nas suas obras, a criação de ramos da geografia,
como a importância de outros campos geográficos outrora menosprezados. Sua
percepção dos continentes, países e capitais do mundo o gabaritou para desenvolver
ricas produções nas geografias cultural, regional, econômica e epistemologia da
geografia.
• Claval denomina que todos os fatos geográficos também possuem uma origem
cultural, e que boa parte dos geógrafos franceses investe em reconstruir a geografia
humana a partir das bases da cultura.
• Na geografia brasileira, Claval tem uma contribuição, principalmente, para a inclusão
dos estudos da geografia cultural. Ele propõe uma fortificação dessa área, mediante
os conteúdos das diversidades étnica e religiosa da cultura brasileira. Ele referencia
as raízes ameríndias na cultura nacional, as influências da cultura africana e
neoafricanos, a colonização europeia, ciganos, inúmeros representantes de grupos
com hábitos, costumes e fé, algumas das consoantes que podem ser expressas e
analisadas no espaço.
• As formas simbólicas espaciais ocorrem por toda superfície terrestre, não apenas
através de uma perspectiva econômica, mas também por um simbolismo. Podem
ser materiais e imateriais, e, através da identidade, reconectam-se com o passado,
reconstruindo. Com os nortes do futuro, buscam a permanência ou as transformações.
• As formas simbólicas são consideradas representantes da realidade. Elas passam
por um processo de criação e, a partir disso, os grupos sociais/culturais semelhantes
imputam seus significados. Em virtude da descontinuidade do pensamento entre
grupos culturais, as formas simbólicas também ficam sujeitas a interpretações
variadas, pelos diferentes significados designados.
• São exemplos de formas simbólicas espaciais identificados por localização e itinerários:
palácios, templos, cemitérios, memoriais, obeliscos, estátuas, monumentos em geral,
shoppings centers, nomes de logradouros públicos, cidades e elementos da natureza,
procissões, desfiles, paradas etc.
• Para todas as formas simbólicas espaciais, existem políticas que as regem, como
a política locacional, que compreende localização absoluta, localização relativa e
localização relacional, e a política de escala, que se divide em dimensão absolutae
dimensão relacional.
RESUMO DO TÓPICO 2
125
AUTOATIVIDADE
1 Paul Claval, autor francês, congregou e apresentou, no artigo A geografia cultural no
Brasil (2012), alguns assuntos que fornecem, à geografia cultural do Brasil, estudos-
base da diversidade étnica, tradições religiosas da cultura brasileira. A partir do
enunciado, assinale a alternativa CORRETA:
a) ( ) Desses temas são incluídos gênero, a introdução do conceito de cultura supra-
orgânico e toponímia.
b) ( ) Raízes ameríndias, as influências da cultura africana e os neoafricanos, a coloniza-
ção europeia e inúmeros representantes dos grupos com hábitos, costumes e fé.
c) ( ) Raízes ameríndias, as influências da cultura norte-americana, inglesa e neoafri-
canos, a colonização europeia e inúmeros representantes dos grupos com hábi-
tos, costumes e fé.
d) ( ) Desses temas, são incluídos gênero, a introdução do conceito de cultura supra-
orgânico, toponímia e identidade.
2 Para todas as formas simbólicas espaciais, existem políticas que as regem, como
a política locacional, que compreende localização absoluta, localização relativa e
localização relacional, e a política de escala, que se divide em dimensão absoluta e
dimensão relacional. Essa estrutura se encontra em Corrêa (2007). Assim, relacione:
1- Localização absoluta.
2- Localização relativa.
3- Localização relacional.
4- Dimensão absoluta.
5- Dimensão relacional.
( ) Está associada à visibilidade, mas, especialmente, à acessibilidade, pois o acesso
facilitado permite que as formas simbólicas transmitam as mensagens que elas se
propõem, na cidade ou espaço regional ou nacional.
( ) Considera-se que uma forma simbólica possui uma localização absoluta, ou seja,
um lugar onde tenha acontecido um evento importante ou um local que deva se
tornar um importante meio de celebração, contestação ou memorialização, por
apresentar um potencial positivo.
( ) Esta se localiza em relação a uma outra, mas possui interesses opostos.
( ) Quando as formas simbólicas apresentam uma característica física demonstrada em
área, volume e altura, as quais se associam à magnitude do evento ou personagem
a ser celebrado, contestado ou memorializado, e aos recursos disponíveis.
( ) Compreende uma análise comparativa entre uma e demais formas simbólicas, as
dimensões físicas e todas as outras características, anfitrião de eventos, represen-
tante de uma identidade criada ou frente de dissensão e conflitos.
126
Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:
a) ( ) 1 - 2 - 3 - 4 - 5.
b) ( ) 2 - 1 - 3 - 4 - 5.
c) ( ) 2 - 1 - 3 - 5 - 4.
d) ( ) 1 - 2 - 3 - 5 - 4.
3 De acordo com a abordagem cultural de Bonnemaison, como é definido um
geossímbolo?
127
TÓPICO 3 —
POSSIBILIDADES DE ESTUDO A PARTIR
DA COMPREENSÃO DAS DIMENSÕES
CULTURAIS DO ESPAÇO
UNIDADE 2
1 INTRODUÇÃO
Acadêmico, chegamos ao fim da Unidade 2. Temos, como objetivo
principal, trazer o conhecimento de alguns temas que enobrecem e
evidenciam a riqueza da interpretação cultural da geografia. Como
um subcampo, a geografia cultural se apresenta calcada na tradição
do século XIX, porém, com novas feições adquiridas no final do século XX, mudanças
aparentes e importantes que incluem novos temas, além das novas dimensões que não
se limitam a estudar a materialidade cultural, mas a imaterialidade.
Questões, como paisagem cultural, continuam assumindo uma grande respon-
sabilidade nos estudos, mas a inserção de representações fílmicas e imagem, música e
literatura, e tantos outros temas, passou a ser objeto de interesse dos geógrafos cultu-
rais. Ainda sobre esse novo caminho da geografia cultural, espaços podem se tornar um
território, principalmente, quando são públicos; temas, como toponímia e associações
identitárias; e festa, gênero e religião, indicando interferências econômicas, políticas de
um dado lugar, com a legitimação da linha de possibilidades. Consideramos como te-
mas populares, possíveis e reais, tendo em vista que cada indivíduo vivencia, em algum
espaço, combinações que tornam esses fenômenos um alvo da pesquisa geográfica.
Neste tópico, serão desenvolvidas, além desta introdução, as temáticas
paisagem cultural, território, territorialidade e identidade: compostos na geografia
cultural; dimensão espacial: literatura, música popular e imagem; e introdução da
geografia cultural em sala de aula. Ainda, resumos individualizados referentes ao tópico,
e, ao fim, autoatividades, visando auxiliar o processo de aprendizagem.
Apresentaremos conceitos que são bases da geografia, direcionados para a
aplicação no âmbito da geografia cultural; novas possibilidades de pesquisa, segundo
algumas expressões culturais que podem ser comprovadas e dimensionadas no espaço
geográfico mediante um contexto das relações tempo-espaço; por fim, as possibilidades
de temas culturais na educação básica com amparo da Base Nacional Comum Curricular.
Apresentaremos os fenômenos geográficos segundo a natureza cultural que
eles carregam, com a finalidade de complementar a interpretação um do outro. Bons
estudos!
128
2 PAISAGEM CULTURAL, TERRITÓRIO,
TERRITORIALIDADE E IDENTIDADE: COMPOSTOS NA
GEOGRAFIA CULTURAL
A função de trazer algumas dimensões estudadas da geografia permite que
você, enquanto aluno, pesquisador e futuro professor da ciência geográfica, possa
identificar possibilidades mensuráveis de estudo, a materialização e combinações dos
elementos: paisagem cultural, identidade, território e territorialidade se tornam fenôme-
nos de ordem da geografia cultural, quando distribuídos, ocupam e manifestam suas
devidas porções no espaço.
O espaço, paisagem, cultura, identidade, território e territorialidade possuem
conceitos distintos, porém, um não nega o outro, ao contrário, dialogam perfeitamente
entre si, basicamente, um é complementar ao entendimento do outro.
Em uma breve compreensão, iniciamos pela base da geografia, o espaço.
Entende-se que o espaço se forma através de processos dinâmicos de construção e
reconstrução, por meio de ações humanas, segundo uma substituição de elementos
naturais por aqueles criados pelo homem, tornando-os artificiais, ou seja, vive-se um
ciclo dinâmico de transformação das formas naturais e artificiais do espaço (SANTOS,
2006). “[...] A sociedade evolui no tempo e no espaço. O espaço é o resultado dessa
associação que se desfaz e se renova continuamente, entre uma sociedade em
movimento permanente e uma paisagem em evolução permanente” (SANTOS, 1979, p.
42). É importante entendermos que toda essa formação e transformações do espaço
se refletem nas paisagens, por meio das formas, função, estrutura e processo. São
fundamentais as análises espaciais por meio dessas categorias e descrições expostas
a seguir.
FIGURA 23 – CATEGORIAS E DESCRIÇÕES DO ESPAÇO GEOGRÁFICO
FONTE: Adaptado de Corrêa (2009)
Forma
Materializa-se no visível.
Exemplos: Shopping,
Casas, Praças.
Estrutura- sociedade
Sustentáculos das formas.
Exemplo: Econômico,
Social, Cultural,
Politico.
Função
Aplica a função das formas
Exemplo: Trabalho,
Residência, Lazer.
Processo
Ações de dinamicidade
e transformação sobre a
estrutura.
129
Corrêa (2009, p. 1) elabora uma análise das quatro categorias compreendidas
por Santos (1997):
Milton Santos define, brevemente, as quatro categorias, considerando,
como estrutura, a própria sociedade, com suas características
econômicas, sociais, políticas e culturais. Processo é considerado
como o conjunto de mecanismos e ações a partir dos quais a
estrutura se movimenta, alterando as suas características. Função,
por sua vez, diz respeito às atividades da sociedade, redefinidas a
cada momento, que permitem a existência e reproduçãosocial.
Forma, finalmente, é definida como as criações humanas, materiais
ou não, por meio das quais as diversas atividades se realizam [...]. A
forma se manifesta em várias escalas, tendo uma localização e um
arranjo espacial. Trata-se, sem dúvida, da forma espacial.
O espaço geográfico se torna a base dos acontecimentos, congregando os
indivíduos e, por conseguinte, as paisagens natural e artificial (SANTOS, 1988). A paisagem,
como pode ser conceituada? Adiante, apresentaremos essa resposta, mas desde já
salientamos que são dois conceitos distintos, mas complementares, principalmente,
quando postos para analisar as efervescências e transformações sociais.
Segundo Corrêa (2011), no continente Europeu, e depois nos Estados Unidos,
que se iniciaram as pesquisas a respeito da paisagem. Datam-se, aproximadamente, da
década de 1940, quando foram detectadas as primeiras reflexões teóricas dos estudos
empíricos. “A paisagem cultural se constitui, desde o final do século XIX, quando da
institucionalização da geografia como disciplina acadêmica, em um dos seus mais
importantes conceitos” (CORRÊA, 2011, p. 14).
Os autores que trouxeram, para a geografia cultural, a definição de paisagem
cultural, no Brasil, foram Zeny Rosendahl e Roberto Lobato Corrêa, através de
transcrições e seleções bibliográficas de autores que publicaram ao longo do século
XX. A obra Paisagem, tempo e cultura, de 1998, torna-se um exemplo de trabalho que
conglomera a evolução, adaptação ou moldagem do conceito de paisagem cultural
mediante as transformações socioespaciais em intervalos temporais diferentes. O
norte principal da apresentação dos textos é, sem dúvida, a conceituação de paisagem.
A distribuição da obra percorre escritos desde 1925 a 1989. São divididos em quatro
capítulos e cinco autores. Possivelmente, vocês conhecem, parcialmente, o primeiro
autor da Unidade 1, Carl O. Sauer. Como todos sabem, foi a partir desse momento que
a geografia cultural passa a tomar forma. Só então, no final de 1940, que Fians Bobek e
Josef Schmithúsen, ambos representantes da escola alemã, apresentam A paisagem e
o sistema lógico da geografia, frente a uma relação homem e natureza, uma perspectiva
da paisagem cultural baseada na descrição e observação, porém, a obra não se restringiu
a, apenas, essa discussão, deu-se conta de uma inter-relação maior entre os homens
distribuídos em sociedade e os fenômenos espaciais-temporais, contribuindo para a
formação da paisagem cultural. Ainda, Paisagem – marca, paisagem matriz: elementos
de uma problemática para uma geografia cultural, de Augustin Berque. Em 1984, o
geógrafo francês e orientalista interpretou que a paisagem representa um sentido
130
maior quando ela manifesta as relações da sociedade, espaço e natureza. Indica que a
paisagem reflete os movimentos que a sociedade produz, inclusive, os traços culturais,
e a paisagem é o lugar-matriz onde essas transformações são geradas mediante as
ações, percepções e concepções. Esse é um estudo orientado pela geografia humanista
e com raízes fenomenológicas. A última produção bibliográfica foi realizada por Denis
Cosgrove, em 1989, com característica crítica dos materialismos histórico e dialético e o
simbolismo. Cosgrove iniciou sua percepção para dar respostas às reflexões de ordem
interrogativa, a respeito das interferências das análises quantitativas com o texto. A
geografia está em toda parte: cultura e simbolismo nas paisagens humanas, ou seja,
a tríade paisagem, cultura e simbolismo rege o pensamento do autor, explicando as
paisagens geográficas a partir das culturas dominantes e aquelas versões e variações
de paisagens alternativas, como as residuais, emergentes e excluídas. Tais explicações
seguem com Corrêa (1995) em compreensões futuras.
A contribuição para o estudo da paisagem não surge para informar uma
abordagem geográfica específica entre o certo e errado, mas para abrir possibilidade,
mostrando que, dentro de uma complexidade da temática paisagem, existem correntes
que propõem suportes clássicos e meios alternativos, mas científicos, que buscam
contemplar, mais profundamente, apontamentos multidisciplinares.
Na ciência geográfica, e em inúmeras áreas, a noção de paisagem é objeto
de análise, porém, é importante lembrar que as aplicações de uso e interpretação são
diferentes, portanto, não podemos debitar um valor unitário da paisagem para as artes,
incluindo a fotografia e as músicas, nem para as ciências, como arquitetura, urbanismo,
geografia, turismo e biologia, pois cada um possui sua percepção e seu nível científico.
Se, por acaso, você apresentar dúvida do significado da palavra “paisagem”,
e procurar um dicionário comum da língua portuguesa para auxiliar, possivelmente,
características de ordem natural vão se sobrepor. Segundo o dicionário online de
português, a paisagem significa “a extensão do território que o olhar alcança num lance”.
Também quer dizer “vista” ou conjunto de componentes naturais, ou não”; “natureza,
tipo ou característica de um espaço geográfico: paisagem repleta de montanha”, ainda,
outro significado imputado paira a partir da expressão artística referente a pinturas,
desenhos, fotografias e gravuras”.
Segundo Domingues (2001), numa esfera não geográfica, a utilização da
palavra paisagem faz parte do vocabulário comum, e o seu sentido se aproxima de duas
perspectivas: uma naturalista e, a outra, culturalista. A primeira fazer alusão a elementos
de referenciação e, a segunda, ao estilo literário. Maximiano (2004, p. 84) se aprofunda
ainda mais, quando afirma que as inscrições rupestres “são os registros mais antigos
que se conhece da observação humana da paisagem”.
Para Alves (2001), a aplicação da nomenclatura paisagem é datada do século
XVIII, com as expressões artísticas conforme expressa o dicionário supracitado. A
utilização do termo expressava, a princípio, obras representadas pela pintura artística
131
de cenários naturais, ou relatos de viajantes, a exemplo de Von Humboldt, o geógrafo
que realizava expedições com o intuito de descrever as características naturais dos
continentes encontrados.
Em seu desenvolvimento, na ciência geográfica, no século XIX, o conceito de
paisagem passa, ao longo do tempo, por adequações, frente aos posicionamentos das
escolas predominantes (Alemanha, França, Estados Unidos). Seus métodos são seguidos
pelos respectivos pesquisadores, considerados as vozes do século XIX, como Humboldt,
Ritter, Ratzel e Vidal de la Blache. Ainda, outros do século XX, como Hettner, Siegfried
Passarge e Otto Schlüter (Passarge e Schlüter buscavam a compreensão de quanto aos
meios que tornavam a paisagem hierarquizada e como ocorria a mudança da paisagem
natural para cultural). Sauer, o geógrafo da morfologia da paisagem, estudou a temática
relacionada a paisagens agrárias (CORRÊA, 1995).
Com naturalidade, o conceito de paisagem adquiriu uma característica
polissêmica, migrando entre a realidade do que a vista enxergava para o modo como a
vista percebia a realidade (SALGUEIRO, 2001).
Ainda, o autor supracitado afirma que, quase numa totalidade absoluta, a
academia geográfica se dedicava a estudar a paisagem segundo métodos descritivos
da virtude de catalogar as formas físicas naturais da superfície terrestre. Contudo, era
preciso buscar compreensões reais, introduzindo as atividades humanas, a princípio,
como gatilhos, e, depois, como fontes fundamentais para a transformação paisagística.
A escola germânica, as compreensões enrijecidas, a escola francesa e o
posicionamento mais fluido e dinâmico convergiram para o entendimento da paisagem
por meio da materialidade estratificada no espaço mediante as atividades antrópicas.
Nas bases filosóficasneopositivista e materialista, foi proposto redirecionar a abordagem
da paisagem para dentro das conotações da região, ou seja, surgiram conceitos
congêneres, dois em um, porém, com a importante ressalva: seus nortes filosóficos são
distintos, um faz algumas sinapses frente ao sistema econômico capitalista, enxergando
a paisagem ou região como produto territorial do capital e, o outro, realiza abstrações,
isola um elemento ou aspecto natural contido naquela paisagem ou região e aplica um
método quantitativo para tentar obter explicações. A busca, para além da compreensão
visual da paisagem, gerou observações de outros métodos (SALGUEIRO, 2001).
A partir de 1970, com a humanização da ciência geográfica, tornavam-se
possíveis novas possibilidades para estudar a paisagem, porém, não elegeram, de
forma unificada, a conceituação de paisagem, mas trouxeram reflexos paradigmáticos
diversos, como a supressão do estudo da paisagem a partir das perspectivas positivistas
e neopositivistas, a catalogação de apoio a discussões a respeito da visão simbólica
da paisagem e a ampliação do conceito denotativo pela geografia física, segundo
elementos humanos e civilizatórios.
132
A paisagem não é objeto autônomo em si, face do qual o sujeito
poderia se situar em uma relação de exterioridade. Ela se revela
numa experiência em que o sujeito e objeto são inseparáveis, não
somente porque o objeto espacial é constituído pelo sujeito, mas
também porque o sujeito, por sua vez, aí se acha envolvido pelo
espaço (COLLOT, 1990, p. 22).
No início da discussão do assunto, foi proposto não apresentar uma fórmula
mágica para a noção de paisagem, pois ela não é limitável. Respeitosamente, existem
pesquisadores que, ainda, nos dias atuais, conseguem realizar um link com a perspectiva
naturalista do século XIX, entre a paisagem e a ecologia, sinalizando uma conexão com
a interpretação do lado físico da geografia.
Outros descobriram a dinâmica humana da paisagem, vislumbrando análises
de pontos sensíveis da percepção e experiência de vida do sujeito, além do eixo de
atribuições críticas e culturais, o qual introduz o conceito de paisagem e o peso dos
aspectos econômicos e fenômenos culturais.
Embora a paisagem tenha uma conotação física, a validade das relações sociais
e culturais interfere, com seus signos e significados subjetivos, incluindo o afetivo. “A
paisagem não se refere à essência, ao que é visto, mas representa a inserção do homem
no mundo, a manifestação do seu ser, base do seu ser social” (DARDEL, 1990, p. 54).
O entendimento da paisagem permeia todos os campos sensoriais do ser
humano, desde a visão ao tato. A proposta está, de fato, em experienciar o lugar, numa
relação de afeto, emoção e, até mesmo, paixão. “O mundo percebido pelos olhos é mais
abstrato do que o conhecido por nós, por meio dos outros sentidos” (TUAN, 2012, p. 28).
Ele propõe que você, enquanto ser humano, permita-se relacionar com o meio
utilizando aspectos despercebidos, os subjetivos. Entende-se que estes se caracterizam
por todas as suas sensações, sentimentos e ideias, por um determinado lugar e sua
paisagem.
Os sentidos do olfato e do tato são educados mentalmente? Tendemos
a negligenciar o poder cognitivo desses sentidos. No entanto, o verbo
francês savoir (‘saber’) está intimamente relacionado com o inglês
savor. O paladar, o olfato e o tato podem atingir um extraordinário
refinamento. Eles discriminam, em meio à riqueza de sensações, e
articulam os mundos gustativo, olfativo e textural (TUAN, 1983, p. 11).
Imagine um ambiente físico que esteja no seu universo e no imaginário social.
Pois bem, ele representa exatamente aquilo que se encontra no seu imaginário e
em todos os imaginários coletivos? Possivelmente, não! Você saberia explicar? Sim,
isso mesmo, cada indivíduo possui uma interpretação de mundo variada mediante a
subjetividade individual. Dentro das relações de proximidades (individuais ou coletivas),
existem, ao menos, três campos que chamamos de flutuantes: paisagem, memória e
cultura. São variáveis importantes, porém, condicionantes, que decidem a respeito das
relações e percepções entre o homem e o espaço.
133
Existem as dinamicidades temporal, social (coletiva e individual), cultural e
histórica, que interferem diretamente nas percepções dos grupos culturais. Segundo
Tuan (2012, p. 139), “o prazer visual da natureza varia em tipo e intensidade, podendo ser
um pouco mais do que a aceitação de uma convenção social”.
Essa importante abordagem realizada é a apresentação dos grupos culturais
diferentes (indígenas, indonésios, chineses), de como eles ocupam e compreendem o
espaço em diferentes situações. Como resposta, tem-se que cada grupo apresentou
seus costumes, sua identidade, que se distanciava das culturas homogeneizadoras,
indicando uma sensação de pertencimento, superioridade e manutenção da cultura.
Milton Santos possui, na obra Metamorfoses do espaço habitado, questões que
ratificam a conceituação e apreensão da paisagem ensinada por Tuan. Em uma das suas
exposições, apresentou a perspectiva de utilização dos sentidos para ler a paisagem.
Santos (1997, p. 61) afirma que “tudo aquilo que nós vemos, o que nossa visão alcança, é
a paisagem [...]. Não é formada apenas de volumes, mas também de cores, movimentos,
odores, sons etc.”.
Semelhantemente, mais uma vez, Santos (1997, p. 62) aplica a percepção de
paisagem como um meio seletivo captado pelos sentidos, pelas diferentes sociedades,
sujeitos e cultura.
A dimensão da paisagem é a dimensão da percepção, o que chega
aos sentidos. Por isso, o aparelho cognitivo tem importância crucial
nessa apreensão, pelo fato de que toda nossa educação, formal ou
informal, é feita de forma seletiva, pessoas diferentes apresentam
diferentes versões do mesmo fato [...]. Se a realidade é apenas uma,
cada pessoa a vê de forma diferenciada. Dessa forma, a visão, pelo
homem, das coisas materiais, é sempre deformada [...].
Caso você se interesse pela temática, indicamos a leitura do livro
Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente.
Uma das principais obras do autor Yi-fu Tuan, publicada, originalmente,
em 1974, e traduzida para a língua portuguesa pela Dra Lívia de Oliveira,
em 1980. Essa é uma referência atemporal para os geógrafos. Ainda,
em uma entrevista a respeito da Serra da Mantiqueira, a geógrafa Lívia
explica alguns dos conceitos, como topofilia, topofobia, topocídio e
topo reabilitação, conteúdos encontrados no livro de Yi-Fu Tuan. Tal
conteúdo pode ser encontrado em: http://g1.globo.com/economia/
agronegocios/noticia/2015/09/globo-rural-apresenta-formacao-da-
serra-da-mantiqueira-desde-o-inicio.html.
DICA
134
Segundo Meininig (2002), a paisagem possui possibilidades inesgotáveis para
ser interpretada. O autor tem, como objetivo, apresentar uma diversidade de propostas
e significados da paisagem. Ele percorre sua análise segundo as cenas nomeadas por:
paisagem como natureza, paisagem como habitat, paisagem como artefato, paisagem
como sistema, paisagem como problema, paisagem como riqueza, paisagem como
ideologia, paisagem como história, paisagem como lugar e paisagem como estética.
Diante das nuances da perspectiva da paisagem, Corrêa (1995) se dedica a
explicar a paisagem cultural. No momento, chama atenção para a compreensão dessa
paisagem. Segundo Corrêa (1995, p. 4), “trata-se de paisagem cultural um conjunto
de formas materiais dispostas e articuladas entre si no espaço, como campos, cercas
vivas, os caminhos, a casa, a igreja etc., com seus estilos e cores resultantes da ação
transformadora do homem sobre a natureza”.
Retomando uma breve discussão, ele coloca algumas disposições iniciais para
os estudos da paisagem cultural sob aspectossimbólicos e funcionais, a exemplo da
análise do cemitério, temática outrora despercebida.
Ele mapeia, descritivamente, boa parte da estruturação dos cemitérios
brasileiros nas ruas principais, adjacentes e periferias, relacionando com a formação de
centros urbanos e a realidade capitalista da sociedade em classes, com seus privilégios
ou desfavorecimentos.
A paisagem dos cemitérios das grandes cidades brasileiras é
exemplar. Na frente, juntos à rua ou à praça, estão os túmulos das
pessoas ricas e de prestígio, de mármore ou granito, e ornamentados
com imponentes símbolos. Em torno, como que formando um
semicírculo, estão os túmulos dos indivíduos de classe média, mais
simples e baratos, porém, duradouros. Na periferia do cemitério,
de acessibilidade mais difícil, estão enterrados, sem nenhum
jazigo, os indivíduos das camadas populares. Essa paisagem é,
simultaneamente, funcional e simbólica, reproduzindo o status
social que os indivíduos tiveram em vida, assim como a localização
residencial no espaço urbano (CORRÊA, 1995, p. 5).
Segundo a análise realizada por Corrêa (1995), as paisagens culturais podem ser
encontradas em lugares onde não existem tantas buscas por compressão. Ele trouxe
uma realidade de muitos cemitérios brasileiros.
Indagamos você frente à análise realizada: é possível que o conceito
arquitetônico das construções fúnebres, em 2020, tenha mudado? Sim, é possível,
mas continua sendo um campo de paisagem cultural que indica mudanças no universo
social. Implacavelmente, cemitérios luxuosos passam a ser construídos por diversas
regiões, e apresentam uma narrativa oposta daquela que muitos anos sustentavam,
135
começando pela desconstrução da identidade sóbria para dar espaço à narrativa de que
o cemitério é um lugar de paz ou, até mesmo, de lindas histórias. Essa tendência começa
pelos nomes: em um determinado período, apenas aos nomes dos cemitérios era
acrescentado o país, cidade ou o bairro do qual fazia parte. Também apareciam nomes
relacionados a alguma figura sagrada, mas, na atualidade, ganham outros nomes, como
bosque da esperança, campo santo parque da paz, parque da colina, além de serviços de
velório (salas de velórios com salas de repouso, banheiro privativo, floricultura, cafeteria,
lanchonete) e missas, cultos ou, até mesmo, palestras ecumênicas, no dia de finados.
Possivelmente, adentrássemos nessa discussão, encontraríamos uma relação
de classe um pouco mais aprofundada. Se, antes, o que separava o indivíduo pobre
do rico eram as ruas dentro de um mesmo cemitério, hoje, podemos compreender
complexos funerários que excluem, definitivamente, classes sociais menos favorecidas.
Em concordância, Cosgrove e Jackson (2011) e Corrêa (2011) entendem que
a paisagem advém de uma forma de enxergar ou ver, formas ou cenas ajustadas em
processos de transformações e diferenças econômicas, sociais, políticas, culturais,
incluindo tradições, credos e moral. “A paisagem urbana permite múltiplas leituras a
partir de diversos contextos históricos e culturais, envolvendo diferenças sociais, poder,
crenças e valores” (CORRÊA, 2011, p. 179).
Um dos grandes nomes da geografia, Cosgrove, trabalhou em prol da união
do marxismo e da geografia cultural. Era preciso obter uma pesquisa com resultados
reais em virtude das relações entre o homem e o espaço, utilizando os materialismos
histórico e dialético e as realidades sensorial e simbólica. A perspectiva da paisagem
tem, como objetivo, analisar relações objetivas e subjetivas frente à organização social,
modo de produção e ocupação do espaço. Para Cosgrove (2011, p. 103), “os seres
humanos experienciam e transformam o mundo natural em mundo humano, através
do seu engajamento direto enquanto seres pensantes, com suas realidades sensorial e
material”.
A produção e reprodução da vida material são, necessariamente,
uma arte coletiva, mediada na consciência e sustentada através
de códigos de comunicação. Essa última é produção simbólica. Tais
códigos incluem não apenas a linguagem em seu sentido formal,
mas também o gesto, o vestuário, as condutas pessoal e social, a
música, a pintura, a dança, o ritual, as cerimônias e as construções
(COSGROVE, 2011, p. 103).
Segundo Santos (1997a), geógrafo que segue uma linha crítica, a paisagem
carrega pontos que a designam como artefatos e sistemas. Por ser uma produção
humana associada a elementos invisíveis que se interligam, também pode sustentar a
riqueza, por motivar crenças e ideias com o intuito de formar ideologias.
136
A paisagem nada tem de fixo, de imóvel. Cada vez que a sociedade
passa por um processo de mudança, a economia, as relações sociais
e políticas também mudam, em ritmos e intensidades variados. A
mesma coisa acontece em relação ao espaço e à paisagem, que se
transformam para se adaptar às novas necessidades da sociedade
(SANTOS, 1997a, p. 37).
Entende-se que a paisagem possui um caráter cultural diretamente relacionado
a ela. Afeta, diretamente, a transmissão da verdade passada por meio dos grupos,
símbolos, identidades culturais e linguagens.
Corrêa (1995) apresenta o estudo das paisagens culturais. Em uma perspectiva
crítica dos materialismos histórico e dialético, ele identifica duas grandes categorias de
paisagens: a primeira se refere às paisagens dominantes, elencando as características
de imposição e maior visibilidade das classes de poder; a segunda reflete as paisagens
alternativas que, contrariamente, possuem uma linha de ínfima visibilidade e poder, e
são desenvolvidas por grupos não dominantes.
Continuando as identificações da paisagem, são desenvolvidas as perspectivas
ou tipos: (a) paisagens residuais, (b) paisagens emergentes; e (c) paisagens excluídas.
Para cada, existe uma explicação, assim, começaremos pela (a): as paisagens residuais
são aquelas que existem, porém, possuem poucas expressões, como as áreas rurais e
de alguns pontos encontrados nas grandes cidades; (b) paisagens emergentes estão
diretamente ligadas aos lugares que precisam transmitir um recado de um grupo que
emerge de uma sociedade de classes, porém, sua característica é a transitoriedade,
assim, foi dado o exemplo das comunidades hippies de 1960 nos Estados Unidos da
América, além dos acampamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST); por fim, (c) as paisagens excluídas, pois, assim como o próprio nome afirma, esse
tipo de paisagem compreende grupos que sofrem exclusão, referidos como minorias,
como ciganos, religiosos e raciais. As minorias, apesar de possuírem traços históricos
e culturais fortes e resistentes, contendo símbolo e significado, são diminuídas pela
cultura dominante, com a consequência da invisibilidade.
Os aspectos da cultura são considerados interpretativos, por apresentarem
variáveis mutáveis entre as experiências subjetivas dos indivíduos quanto às leituras
dos elementos da paisagem.
Na prática, entende-se que, em uma gama de grupos sociais, possivelmente,
todos apresentam características que os diferem dos outros, como atividades particu-
lares, linguagens, formações culturais etc.
Como base estruturante da pesquisa, foram buscadas, nos conceitos geográ-
ficos de território e territorialidade, suas aplicabilidades no campo da geografia cultural.
137
A terminologia territorium tem suas bases no latim clássico, mas o uso conceitual
da palavra tem um histórico mais moderno, referente à geografia tradicional, que,
erroneamente, algumas vezes, foi atrelada, apenas, a concepções de uso delimitado
para uma vertente política. O território subsistia à luz do material, visível, tangível
ou palpável, passando a ser entendido como um perímetrocontrolado por alguma
representatividade social.
Haesbaert (2010) e Souza (2015) afirmam que, mesmo havendo um norteamento
político do território, suas discussões geram um ciclo vicioso da simplificação, caso
não se recorra a uma compreensão mais abrangente, como as dimensões simbólicas.
Tomamos, como exemplo, o caso de um dos mais tradicionalistas, Friedrich Ratzel,
que tratou, em um dos seus estudos mais recentes, da correlação entre os vínculos de
aproximação do indivíduo e do solo (unidade conceitual que outrora era apenas tratada
enquanto sinônimo de território), por meio de questões religiosas, espiritualizadas e
psicológicas (HAESBAERT, 2010).
Souza (2015) aponta que a definição de território se conecta, muitas vezes, às
relações de poder, tornando, consequentemente, um discurso aproximado da dimensão
política. Tal fato, todavia, não é capaz de tornar ilegítima a concepção de território
sob a ótica cultural, uma vez que as relações simbólicas, as teias de significados e as
identidades são vertentes e meios para tratar e conceituar o território.
Após apresentar uma primeira vertente do território, Souza (1995, p. 87) expõe
uma segunda aproximação conceitual, dizendo que “territórios são, no fundo, antes
relações sociais projetadas no espaço que espaços concretos”, indicando que a base
concreta se minimiza a “substratos materiais”, ocorrendo as intensas relações de
territorialidade.
Apesar das práticas reducionistas circundarem o campo geográfico como hábito
durante séculos, Souza (2015, p. 56) alerta para uma adequação quanto à interligação
dos modos de compreensão conceitual:
As razões e motivações para conquistar ou defender um território
podem ser fortemente ou primariamente de cunho cultural ou
econômico; é óbvio que não são, sempre, de ordem “estritamente”
política. Aliás, a própria separação entre político, cultural e econômico,
da maneira como amiúde é feita, tem muito de cartesiana.
Artificialmente, é preocupada em separar aquilo que é distinguível,
mas não propriamente separável.
Para Souza (1995, p. 81), os territórios podem surgir em gradientes maiores e
menores, entre os extremos dos países às ruas. Podem ser construídos e descontruídos,
contudo, sempre imbuídos pela dimensão temporal: “territórios podem ter um caráter
permanente, mas também podem ter experiência periódica, cíclica”.
138
Segundo Haesbaert (1999; 2010), o conceito pode ultrapassar a interpretação
constante de dominação, alcançando a consciência de que a perspectiva simbólica
aponta para o espaço-território como um canalizador da produção das identidades,
dadas as interações por grupos sociais.
Em concordância com a temática, Santos (2000, p. 96) afirma que o território,
antes de ser um recorte apenas material, representa uma identidade simbólica, uma
vinculação entre as relações pessoais e o material:
O território não é apenas o resultado da superposição de um
conjunto de sistemas naturais e um conjunto de sistemas de coisas
criadas pelo homem. O território é o chão e mais população, isto é,
uma identidade, o fato e o sentimento de pertencer àquilo que nos
pertence. O território é a base do trabalho, da residência, das trocas
materiais e espirituais e da vida. Quando se fala de território, deve-se,
logo, entender que se está falando de território usado, utilizado por
uma dada população.
Em conformidade, Raffestin (1993) salienta que o território é o local onde
se firmam e acontecem as relações de poder, por meio das ações dos atores da
sociedade. Para Foucault (1979), o poder está inserido em todas as relações humanas
e, principalmente, dentro do escopo religioso.
Sob o olhar da geografia cultural, discutir território é se apropriar dos espaços
imaterial e material substanciados das dimensões simbólicas em que identidades são
afirmadas e reafirmadas.
Rosendahl (2002, p. 59) menciona que os “espaços apropriados, efetiva ou
afetivamente, são denominados territórios”, sendo, as territorialidades, parte das
relações estabelecidas por grupos e agentes sociais no escopo espacial.
Conforme Fernandes (2015, p. 208), existem ordens de categorização de
territórios diferentes, além da construção de um território imaterial que solidifica a
reprodução material, “relacionado com o controle, o domínio do processo de construção
do conhecimento e suas interpretações”. Inseridas no contexto, encontram-se, ao
menos, cinco variáveis: a teoria, o conceito, o método, a metodologia e a ideologia.
Toda perspectiva que venha determinar, parcialmente ou completamente, uma
informação, visando nortear, persuadir e/ou induzir. Deve haver a intenção de cooptar o
indivíduo, a princípio, a um território imaterial.
Com a perspectiva de território, outra categoria se torna parceira das discussões
da geografia, a territorialização. De acordo com Haesbaert (2007), a territorialidade,
além de incorporar uma dimensão mais política, amplia-se, também, nas discussões
das relações econômicas e culturais, pois está intrinsecamente ligada ao modo como
as pessoas se relacionam com a terra, em forma de organização espacial e como o
significado é dado ao lugar.
139
Segundo Haesbaert (2007, p. 26):
[...] Devemos, primeiramente, distinguir os territórios de acordo com
aqueles que os constroem, sejam eles indivíduos, grupos sociais/
culturais, o Estado, empresas, instituições, como igreja etc. Os
objetivos do controle social, através da sua territorialização, variam
conforme a sua sociedade ou cultura, o grupo e, muitas vezes, o
próprio indivíduo.
Rosendahl (2002, p. 59) considera que a territorialidade se apresenta como uma
condição estratégica e influente no “controle de coisas e pessoas, ampliando, muitas
vezes, o domínio sobre espaços que a religião se estrutura enquanto instituição, criando
territórios seus”.
Conforme Rosendahl (2002), a territorialidade pode ser fortalecida pelas
experiências religiosas coletivas ou individuais que os grupos podem manter em um
lugar considerado sagrado ou nos itinerários, que constituem o território.
A territorialidade, enquanto conceito, pode ser identificada como um
componente de poder que vai além do objetivo de apenas manter a
ordem num território. Ela pode ser entendida como uma estratégia
para criar e manter grande parte do contexto geográfico através
do qual se pode experimentar o mundo, dotando-o de significado.
A territorialidade pode ter uma dimensão imaterial, no sentido
ontológico de que, enquanto imagem ou símbolo de um território,
existe e pode se inserir como uma estratégia político-cultural,
mesmo que o território ao qual se refira não esteja concretamente
manifestado (VANDERLINDE, 2012, p. 11).
Introdutoriamente, a perspectiva da geografia da religião, segundo Rosendahl
(1996, p. 59), é “uma organização complexa, como a Igreja Católica Romana, que
desenvolveu exemplos notáveis do uso da territorialidade religiosa em diferentes
espaços, durante o longo tempo de história”, tendo em vista a representação de uma
ordem e um poder que paira além da esfera religiosa.
Na geografia da religião, é possível destacar grandes produções que atuaram na
perspectiva da confluência entre território, territorialidade e religião. Assim, apresentamos
Sack e Sopher como autores. As duas possuem semelhanças, no sentido de que a Igreja
controla muitos tipos de territórios, mas, principalmente, dois grandes tipos: os lugares
sagrados e a estrutura administrativa ou episcopal. Essa estrutura é, também, uma
forma de administrar uma instituição que tem poderes políticos e econômicos.
As obras desses autores são precursoras paraemergir a tríade território,
territorialidade e religião na realidade da estrutura administrativa, principalmente, da
Igreja Católica Romana. As dioceses eram territórios de propósitos múltiplos, sendo, a
religião, apenas mais uma das suas funções (ROSENDAHL, 1996).
140
Rosendahl (1996) diz que os estudos de Sack apontam que a Igreja Católica
Romana possui duas características principais: uma se refere às questões tangíveis,
como as imponentes estruturações físicas, hierarquia eclesiástica, propriedades de
terras e a ampla membresia; a outra é a representação intangível, referente às ordens
espiritual, religiosa e aos princípios desenvolvidos.
Sopher (1967), conforme citado por Rosendahl (2002), destaca que o sistema
microgeográfico da religião, por meio do qual são fornecidos modelos de interação
entre os sistemas religiosos, traça que a territorialidade pode ser advinda de três tipos
comportamentais: por coexistência pacífica, por instabilidade e competição e por
intolerância e exclusão.
Os comportamentos analisados devem deixar de ser atribuídos, apenas, à esfera
conceitual religiosa, pois tais atitudes podem não ser fruto dela. “Algumas vezes, esses
comportamentos são produtos de longa experiência histórica que subsiste à tradição das
comunidades envolvidas, mesmo quando a fé e a prática religiosa estejam diminuindo”
(ROSENDAHL, 2002, p. 207). Essas práticas comportamentais mais exclusivistas, de
acordo com a autora, são características de religiões antigas que buscam reivindicar
posse de únicas verdades religiosas, cujos resultados são, em alguns casos, reações
hostis entre adeptos de sistemas religiosos antagônicos.
Em estudos mais recentes, entretanto, ainda numa vertente do cristianismo,
a respeito do estabelecimento da relação entre território, territorialidade e religião,
Machado (1992 apud ROSENDAHL, 1996, p. 63) declara que, após o advento do
pentecostalismo, diferentemente da Igreja Católica, “a territorialidade é informal e fugaz,
não se limitando a uma estrutura territorial formal e perene, expressa pelas paróquias e
dioceses católicas, que são delimitadas e permanentes”.
Em conformidade, no âmbito da geografia cultural, Dias (2016) analisa as estra-
tégias de difusão espacial do protestantismo, através do estudo de caso da Igreja Projeto
Vida Nova, no Rio de Janeiro. Nesse estudo, foram elencadas algumas estratégias que
levam esse grupo a crescer, em quantidades de templos, nacional e internacionalmente.
Destaca-se a periodicidade da ocupação dos espaços públicos, no período do
carnaval, para aplicação da ação evangelizadora, que gera práticas de territorialização
pelo grupo neopentecostal. Numa linha semelhante, porém, guardando a singularidade
da temática, Sampaio (2018) trata da compreensão dos processos que influenciam as
(re)construções identitárias frente ao fenômeno dos eventos religiosos na cidade de
Campina Grande, Paraíba, no período momesco de 2017.
A composição material dos territórios organizados pelas igrejas evangélicas vem
crescendo, mas se diferenciando dos formatos estabelecidos pelas igrejas católicas. Por
exemplo, o campo territorial católico se estrutura dentro de uma hierarquia rígida, perene,
enquanto as igrejas evangélicas apresentam diferentes partições, não pactuando com a
uma mesma composição territorial formal.
141
Com uma visão geográfica, Rosendahl (2003) ressalta que os geógrafos devem
desvendar as territorialidades visíveis e invisíveis, no caso específico dos diferentes
grupos religiosos. Pode-se observar, nessa afirmação, dois pontos importantes que
devem ser levados em consideração quando se pretende analisar alguma problemática
sob a ótica da geografia da religião: os territórios e as territorialidades religiosas,
sobretudo, nos dias atuais.
Com relação ao primeiro ponto, devemos focar no espaço em si e em como a
religião é capaz de unir ou separar um povo e, ao mesmo tempo, delimitar um território.
Já com relação ao segundo ponto, deve-se considerar as múltiplas faces religiosas
existentes na sociedade e qual a capacidade que elas possuem de interferir em porções
espaciais por meio de ações estratégicas de dominação, tendo em vista que a religião é
um dos fatores influenciadores do processo de territorialidade, vistos o protecionismo e
a manutenção da identidade dos grupos religiosos.
A temática da geografia cultural, referente à geografia da religião, apresenta-se,
nesse primeiro instante, pontualmente, tendo em vista que a Unidade 3 aborda, com
mais detalhes, os assuntos relacionados aos caminhos que esse campo percorreu e até
onde ele pretende chegar como uma geografia possível, popular, referente às questões
vivenciadas dia a dia por pessoas no espaço considerado geográfico.
A compreensão da identidade pode invadir vários campos, inclusive, o da
geografia cultural, com festas, religião, literatura, música e tantas outras vertentes. Claval
(1997) afirma que a cultura forma a identidade dos membros de uma sociedade através
de um esquema de acumulação de conhecimento, estruturação das informações,
significação e ressignificação das informações ao longo da vida.
Para Claval (1997, p. 97), a cultura tem um papel substantivo na aquisição de
valores identitários individuais, que reflete três pilares em três fases distintas da vida:
a infantil, a juvenil e a adulta. “O primeiro pilar trata de guiar a ação, escrevendo-a em
um quadro normativo; o segundo trata de sublinhar a especificidade de tudo que é
social, alcançando a dignidade e passando pelo procedimento da institucionalização; e
o terceiro pilar dá um sentido à vida social”. Cada pilar se estrutura da seguinte forma:
primeiramente, os sujeitos absorvem valores que os encaminham para um destino
coletivo; posteriormente, com maturidade, adquirem uma identidade; logo, conquistam
o status de pertencer a um grupo. Consequentemente, projetam-se para as demais
coletividades.
Aprofundando a discussão do assunto, Goffman (1988) conduz uma pauta
das possibilidades do ser enquanto sujeito no sentido de atentar para as identidades
contidas em si. Para ele, o ser humano, na sua essência, possui dois tipos de identidades:
a virtual e a real. Na primeira, são consideradas as qualidades normais e aceitas pelos
ditames da sociedade, já a segunda trata da sua realidade enquanto indivíduo, baseado
nas possibilidades do psíquico, das naturezas biológica e cultural, rompendo com as
relações da identidade virtual.
142
Em contrapartida, Hall (2006) apresenta três concepções de identidade para
o indivíduo, seguindo a nomenclatura do sujeito do iluminismo, sociológico e pós-
moderno.
A primeira se refere a uma pessoa com uma identidade centrada na autossufici-
ência do ser desde o nascimento, com uma existência quase intocada pelas influências
externas; a segunda já traz a unificação entre o mundo interior do sujeito e a identidade
adquirida fora; e, a terceira, retrata um processo de mudança na estrutura social e influ-
ências culturais, caracterizando-se por não dispor de uma identidade estável, por não ser
definida por processos biológicos, e se mostra como uma construção errante de si.
A interpretação para a afirmativa tem, como base, que a identidade é um
processo dinâmico, cíclico, reflexivo e contraditório, uma vez que se estrutura por meio
das relações interpessoais e interculturais diariamente.
Hall (2006) aponta que os atores sociais adotam inúmeras identidades, de ordem
étnica, religiosa, política ou, até mesmo, de gênero, existindo, dentro de mim, identidades
contraditórias, levando-nos a diferentes direções, de tal modo que nossas identificações
estão sendo continuamente deslocadas. Se o indivíduo sentir que tem uma identidade
unificadadesde o nascimento até a sua morte, é porque foi construída uma cômoda e
confortadora narrativa de si. O sujeito está, continuamente, nos processos de aquisição
de informações, associação e mudança, a partir do que constitui como identificações.
Como um alerta a respeito das construções identitária e dialética da cultura,
Claval (1997, p. 105) afirma:
Como fundamento das identidades, a cultura reúne os homens ou
os separa. Quando as pessoas aderem às mesmas crenças, dividem
os mesmos valores e associam sua existência a objetivos próximos.
Desde que saem do grupo no qual se sentem solidárias, suas atitudes
mudam: a desconfiança se instala, as trocas se tornam uma fonte
ameaçada na medida em que elas podem questionar a estrutura
sob a qual foram construídas a personalidade dos indivíduos e a
identidade dos grupos.
Ortiz (1980) aborda a pluralidade de identidades, e afirma que não existe uma
identidade autêntica, porque é construída por diferentes grupos sociais em diferentes
momentos históricos. Tratando-se de uma base da construção cultural latina,
Canclini (2006) conclui que é híbrida, pelo processo de influência que foi recebido dos
colonizadores europeus, escravos africanos e dos remanescentes indígenas. Ou seja, a
formação étnica e as representações culturais latinas não podem ser adjetivadas pela
pureza, mas pela diversidade.
Com a fluidez da temática, são desenvolvidos campos da geografia cultural
que abrangem uma infinidade de associações com a diversidade, tornando-se, cada
vez mais interessante, discutir a respeito do território, territorialidade, identidade no
contexto da geografia cultural da literatura, música, cinema, religião etc.
143
Pode-se dizer que é desafiador, mas necessário entender as dinâmicas espaciais
à luz do poder influenciador da geografia cultural na organização do espaço. Apensar de
ser considerada uma abordagem nova, a geografia cultural só veio ser discutida, no
Brasil, a partir de 1990.
3 DIMENSÕES ESPACIAIS ATRAVÉS DA LITERATURA,
MÚSICA POPULAR E IMAGEM
A partir deste momento, convidamos você a compreender os estudos da
geografia cultural, que enquadra as dimensões: música, literatura e imagem. Como
representantes da categoria expressões culturais, têm, como objetivo, disseminar a
identidade de conhecimentos de bases culturais simbólicas mediante manifestações
artísticas no espaço.
Segundo Corrêa (1998), a literatura e a música podem surgir em circunstâncias
e contextos distintos, mas, por qualidades socioespaciais, disseminam-se no espaço e
tempo, na maioria das vezes. As músicas e literaturas são um fio condutor que comunica
através de letras, de sentimentos, simbolismo, por meio da relação de identidade, pela
sensação de pertencer a lugares e pela paisagem simbólica. Ainda, são feitas denúncias
socioespaciais, as quais distinguem os sujeitos por meio das suas regiões.
Esse processo se configura como uma linguagem artística, longe da cientificida-
de quantitativa, porém, possui uma natureza pedagógica que auxilia com instrumentos
culturais de reflexão acerca das relações homem-espaço-tempo. As expressões asse-
guram uma linguagem popular, que se faz presente no cotidiano das pessoas. No caso
da música, podem ser encontradas pelos aplicativos de música, no convencional rádio
ou televisão. Ainda, nas igrejas, cinemas, algo completamente inserido na sociedade.
Apesar de serem campos muito ricos e disseminados nos estudos contempo-
râneos, dentro da perspectiva da geografia escolar, geopolítica, e, especificamente, da
geografia cultural, a música e a literatura foram desconsideradas por décadas, motivo
pelo qual deixaram uma lacuna nas pesquisas geográficas brasileiras. Enxergando pos-
sibilidades, cientistas das áreas sociais investiram no campo da investigação somente
a partir de 1990, com o movimento de adesão dos geógrafos brasileiros quanto ao uso
da literatura (CORRÊA, 1998).
De forma convidativa, Corrêa (1998) ressalta uma vasta literatura brasileira
correspondente ao estudo de interesse no espaço, paisagem, religião, lugar, território,
numa rápida série de nomes específicos, mas altamente gabaritada da literatura
nacional: Ferreira de Castro, Raquel de Queiroz, José Lins do Rego, Graciliano Ramos,
Jorge Amado, Guimarães Rosa, Mário Palmério, Bernardo Elis, Machado de Assis, Lima
Barreto e Érico Veríssimo são alguns dos autores cujas obras têm interesse geográfico.
144
Retrospectivamente, Corrêa (1995) registra a origem dos estudos à luz da
ciência geográfica. Assim como todo movimento de renovação da geografia adveio do
continente europeu e norte-americano, consequentemente, essas possibilidades foram
geradas em vários países, como Estados Unidos, Inglaterra e França, embora o Brasil
tenha apresentado grande potencial cultural a ser desvendado. Os geógrafos do século
XIX e XX analisaram incontáveis obras romancistas com o intuito de destilar temáticas
plurais referentes às paisagens rurais, formação do espaço urbano, e questões sociais,
políticas, econômicas e culturais ganharam espaço. “Dentre os romancistas, citam-se
Thomas Hardy, Walter Scott, Marcel Proust, Jules Verne, Julian Gracq, William Faulkner
e John dos Passos. Dante e Shakespeare foram, também, analisados pelos geógrafos”
(CORRÊA, 1998, p. 59).
Não apenas as literaturas representaram a força na perspectiva da geografia
cultural naquele momento, mas as músicas também, através dos inúmeros gêneros,
como a popular música country, o rock, a música cultural world music e o jazz. Com
relação aos geógrafos que abriram caminho frente à percepção da paisagem (geografia)
e literatura, encontram-se os estudos de Meinig, Pocock, Salter, Tuan, e as obras de
Simpson, Housley e MaIlory, a partir de uma perspectiva, e as de Brosseau e Chevalier, a
partir de outra. A princípio, eles são as bases para o estudo para fundamentar a geografia
e a literatura. Já no campo da música popular e geografia, são referências “os estudos
de Nash e aqueles contidos nas coletâneas organizadas por Carney, assim como as
análises de Kong” (CORRÊA, 1998, p. 59).
Caro acadêmico, caso você se interesse pela temática, indicamos a leitura do material
Educação e música: diálogos, organizado por Alessandro Dozena: https://repositorio.ufrn.
br/jspui/bitstream/123456789/21381/1/Geografia%20e%20Música%20%28livro%20
digital%29.pdf.
Uma segunda indicação é o artigo Geografia, literatura e música
popular uma bibliografia, escrito por Roberto Lobato Corrêa. O que
consideramos o mais rico desse texto, além das colocações rápidas,
acertadas e oportunas do autor, são as bibliografias. Elas estão
contidas como parte do artigo, a partir de uma vasta seleção da
produção-base da literatura e música: https://www.e-publicacoes.
uerj.br/index.php/espacoecultura/article/view/3583/2503.
DICA
145
Igualmente, as temáticas literárias ou musicais, com a inserção da imagem em
análises geográficas como expressão artística, chegaram com mais fervor do período de
renovação da nova geografia, assim explica Gomes (2008).
Certamente, é preciso refletir que os estudos a respeito das imagens na geografia
parecem algo comum, pois existem relatos de que, antes de se tornar ciência, já se
apresentavam análises através do campo visual, como os estudos das representações
cartográficas, como exposto nas seções anteriores, porém, para o campo da geografia
cultural, existem algumas diferenças relacionadas às perspectivas de análise que não
podem ser confundidas. A geografia clássica usa a representação cartográfica para
se localizar, determinar territórios ou observar os horizontes do solo numa dinâmica
sintética. O outro se enquadra na perspectiva de captura das diversas expressões
culturais que ocorrem nos espaços, por meio de cenas filmadas dinamicamente ou
estaticamentecom a fotografia. Assim, são expostas as manifestações culturais de um
grupo folclórico, religioso ou, até mesmo, uma paisagem associada pela identidade de
um povo. Entenda que uma perspectiva não nega a outra, mas se complementam, em
um cenário plural de entendimento.
Sabe-se que, desde o início, a ciência geográfica indicou que adicionaria
a disciplina às representações, os mapas, os diários de viagens de geógrafos com
desenhos da fauna e flora e os globos terrestres. Atualmente, existem os aplicativos
(APP), como o Google Earth, Maps e outros, que fazem você entrar em cidades, bairros,
ruas, parques e, virtualmente, conhecê-los.
A notoriedade das imagens fez Yi-Fu Tuan (1979), em um dos seus escritos, comparar
o estudo médico da anatomia e a ciência geográfica. O princípio subsiste em que ambas
necessitam de representações para serem ensinadas: a primeira constrói conhecimento
através do estudo do corpo humano e suas estruturas representadas pelo esqueleto, e, a
segunda, por meio das representações das imagens, por meio das câmeras.
Com uma abordagem interessante para a prática de ensino, Moreira e Sene
(2000, p. 15) apresentam que as imagens são mais que a representação de um único
parâmetro da paisagem, pois elas “podem representar a paisagem de modos totalmente
diferentes, porque cada um tem seu ponto de vista, destacando uns aspectos e não
outros”. Basicamente, entende-se que o registro da imagem, muitas vezes, serve
apenas para endossar o processo de construção de um conhecimento literal, no caso
da ciência geográfica, mas é importante ressaltar que essa imagem não precisa apenas
ser afirmada a partir de um conhecimento enraizado ou estereotipado, mas é importante
que a construção do conhecimento, através da imagem, seja livre, e se preciso for, que
seja reconstruída ou descontruída.
Para a compreensão do campo das imagens na geografia cultural, Rosendahl
(2010, p. 2) apresenta e indica os autores: “Barbosa e Corrêa A. (2001); Costa, M. H.
(2002; 2005); Daou (2001); Myaneki (2008); Novaes (2008); Santos, A. (2008)” como
base para o desenvolvimento das pesquisas na área.
146
Como indicação de leitura, apresentamos o artigo Outsiders na caatinga:
representações cinematográficas do semiárido nordestino através do “olhar
estrangeiro”, de Pedro P. P. M. Filho: https://www.e-publicacoes.uerj.br/
index.php/espacoecultura/article/view/8468/6278.
DICA
4 INTRODUÇÃO DA GEOGRAFIA CULTURAL EM SALA DE
AULA
Acadêmico, o texto em questão tem, como objetivo, apresentar algumas pos-
sibilidades de introduzir, complementarmente, reflexões da geografia cultural à matéria
escolar geografia. Assim, propomos uma extensão de assuntos vistos no âmbito univer-
sitário para a aplicação do entendimento e discussões em sala de aula.
Como propõe a missão dada, a disciplina, após a sua renovação, indica que as
discussões não devem ocorrer apenas na esfera acadêmica, mas, sobretudo, entre os
professores da base escolar referente ao ensino básico (BRASIL, 1991).
Esse fio norteador se ampara na trajetória da formalização do ensino da
geografia e demais disciplinas, até a criação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC),
homologada em dezembro de 2018.
O que, de fato, é a Base Comum Curricular? Resume-se a um documento que
rege, normativamente, a educação do país, fruto de muita pesquisa e discussões entre
a comunidade de gestores, professores e técnicos na área da educação. Essas normas
apresentam uma combinação de aprendizagens essenciais nas etapas escolares.
Qual o motivo da criação da Base Nacional Comum? O ensino brasileiro
precisava encontrar um equilíbrio da qualidade da aprendizagem entre as regiões e seus
municípios. Assim, a base vem com esse caráter, o de estabelecer esse padrão mínimo
de desenvolvimento do ensino e aprendizagem.
A BNCC não surge do acaso, mas do alinhamento e afunilamento de diretrizes,
incluindo as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) e os Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCNs). O primeiro, com aspecto geral da educação, representando uma força
de lei, já o segundo defende a aplicação dos temas transversais.
A BNCC gera o aprimoramento dos objetos de aprendizagem essenciais e
competências por ano, ou seja, gradativamente, durante a educação básica, o aluno se
aprofunda mediante as unidades temáticas em conceitos, conteúdo e desenvolvendo
habilidades.
147
A aplicação da técnica se apresenta, no currículo, em espiral, dos primeiros
anos aos anos finais. Esse modelo funciona da seguinte forma: os conteúdos, nas
primeiras unidades, passam a ser aplicados de maneira mais ampla, retornando nos
anos vindouros com perspectivas mais instigantes, integrativas e complexas.
As aprendizagens essenciais, dispostas na BNCC, e as competências gerais
e por disciplinas também devem ser cobradas na educação básica nos níveis infantil,
fundamental e médio. As competências apresentadas focam na mobilização de
conhecimentos, referindo-se aos conceitos e procedimentos. As habilidades se referem
às práticas cognitivas e socioemocionais, e as atitudes e valores se enquadram no
princípio da resolução de problemas da vida, inserção cidadã e mundo do trabalho.
Ao todo, são elencadas dez competências gerais a serem trabalhadas em to-
das as áreas de conhecimento em maior ou menor grau. Descritivamente, elas são re-
conhecidas como: conhecimento; pensamentos científico, crítico e criativo; repertório
cultural; comunicação; cultura digital; trabalho e projeto de vida; argumentação; auto-
conhecimento e autocuidado; empatia e cooperação; e responsabilidade e cidadania.
Quanto à disciplina, engloba as discussões da BNCC inserida em uma das cinco
grandes áreas da educação básica.
FIGURA 24 – ÁREA DE INSERÇÃO DA GEOGRAFIA, SEGUNDO A BNCC, PARA O ENSINO FUNDAMENTAL
FONTE: Adaptado de Brasil (2018)
Competência
Desenvolvimento do
raciocínio articulado
espacial e temporal.
Geografia + História
Grande área
Ciências Humanas
{
Para compreensão da Base Comum Curricular, o site http://
basenacional comum.mec.gov.br/implementacao/pro-bncc/
material-de-apoio disponibiliza material de apoio, que pode
ser visto em um vídeo de 6’ 10’’ de duração.
DICA
148
A geografia, com o seu foco principal voltado para o espaço geográfico e a
perspectiva do espaço vivido, ocupado e transformado pelo homem, proporciona, no
ensinar dessa disciplina, um meio para apresentar compreensões do mundo e sua
dinâmica. Quando ela é combinada aos auxílios científicos plurais, sua discussão e
aprendizagem são ampliadas, tornando-a mais rica, como as trocas de informações
com as áreas de humanas, como história, literatura, sociologia, artes, antropologia
e demais campos, como a matemática e ciências biológicas, que, organicamente,
ajudam a compreender a paisagem, formação e organização de arranjos socioespaciais,
identidade cultural e tantos outros temas.
A BNCC solicita que os professores desenvolvam, com os alunos, dois aspectos
importantes: o pensamento espacial e o raciocínio geográfico.
O primeiro permite uma abertura da geografia com outras áreas, porém, sem que
a geografia perca sua identidade espacial; o segundo requer o exercício dos princípios
do raciocínio geográfico compreendidos em: analogia, conexão, distribuição, ordem,
localização, diferenciação e extensão.
As competências gerais que mais se aproximam das discussões das ciências
humanas são: repertório cultural, cultura digital, comunicação, trabalho e projeto de
vida, argumentação, autoconhecimento e autocuidado, empatia e cooperação e
responsabilidade e cidadania.
A organização da disciplina no ensino fundamental passou a ser estruturada
por unidades temáticas, objetos de conhecimento e habilidades.Todos devem atender
aos propósitos das cinco unidades, compostas por: o sujeito e seu lugar no mundo,
conexões e escalas, mundo do trabalho, formas de representação e pensamento
espacial e natureza, ambiente e qualidade de vida.
Ainda, respeitando os diferentes patamares de complexidade por unidades
e construindo elos de diálogo, a BNCC introduziu, na sua essência, os conceitos que
regem a geografia contemporânea, passando pelo entendimento do espaço geográfico
e suas demandas distintas, território, lugar, região, meio ambiente e paisagem.
Fazendo um contraponto, é possível que você se lembre de que a geografia
cultural, obrigatoriamente, alinha-se à grande disciplina, mediante o seu contexto de
análise e as dimensões que contribuem com a explicação do objeto da geografia, o
“espaço”, além das categorias “território, lugar, região e paisagem”. Toda essa dinâmica
pode contribuir para a abordagem do conteúdo exigido.
Em uma perspectiva explicativa, traremos um quadro da estrutura da BNCC
apontando, descritivamente, como se estruturam o primeiro e quarto ano de geografia
do ensino fundamental em suas unidades temáticas, objetos de conhecimento e
habilidades. O intuito é apresentar as evoluções e aprofundamento do objeto da
geografia e suas categorias ao longo dos avanços anuais.
149
QUADRO 2 – ESTRUTURA DE CONTEÚDO DO PRIMEIRO ANO DOS ANOS INICIAIS MEDIANTE A BNCC
Unidades
temáticas
Objetos de
conhecimento
Habilidades
O sujeito e o
seu lugar no
mundo
O modo de vida
das crianças
em diferentes
lugares
(EF01GE01) Descrever características observadas de seus
lugares de vivência (moradia, escola etc.) e identificar
semelhanças e diferenças entre esses lugares.
(EF01GE02) Identificar semelhanças e diferenças entre
jogos e brincadeiras de diferentes épocas e lugares.
Situações de
convívio em
diferentes
lugares
(EF01GE03) Identificar e relatar semelhanças e diferenças
de usos do espaço público (praças, parques) para o lazer
e diferentes manifestações.
(EF01GE04) Discutir e elaborar, coletivamente, regras de
convívio em diferentes espaços (sala de aula, escola etc.).
Conexões e
escalas
Ciclos naturais
e a vida
cotidiana
(EF01GE05) Observar e descrever ritmos naturais (dia
e noite, variação de temperatura e umidade etc.) em
diferentes escalas espaciais e temporais, comparando a
sua realidade com outras.
Mundo do
trabalho
Diferentes tipos
de trabalho
existentes no
seu dia a dia
(EF01GE06) Descrever e comparar diferentes tipos de
moradia ou objetos de uso cotidiano (brinquedos, roupas,
mobiliários), considerando técnicas e materiais utilizados
na sua produção.
(EF01GE07) Descrever atividades de trabalho relacionadas
com o dia a dia da sua comunidade.
Formas de
representação
e pensamento
espacial
Pontos de
referência
(EF01GE08) Criar mapas mentais e desenhos com base
em itinerários, contos literários, histórias inventadas e
brincadeiras.
(EF01GE09) Elaborar e utilizar mapas simples para
localizar elementos do local de vivência, considerando
referenciais espaciais (frente e atrás, esquerda e direita,
em cima e embaixo, dentro e fora) e tendo o corpo
como referência.
Natureza,
ambientes e
qualidade de
vida
Condições
de vida nos
lugares de
vivência
(EF01GE10) Descrever características dos seus lugares
de vivência relacionadas aos ritmos da natureza (chuva,
vento, calor etc.).
(EF01GE11) Associar mudanças do vestuário e hábitos
alimentares na sua comunidade ao longo do ano,
decorrentes da variação da temperatura e umidade
no ambiente.
FONTE: Adaptado de Brasil (2018)
150
Observando o quadro de compreensão de ensino e aprendizagem do primeiro
ano, percebe-se que a formação intelectual geográfica se forma sob o ponto de vista da
relação da criança com sua vivência, algo voltado ao seu contato com o entorno.
Nessa fase, é fundamental que os alunos consigam saber e responder
algumas questões a respeito de si, das pessoas e dos objetos:
Onde se localiza? Por que se localiza? Como se distribui? Quais são
as características socioespaciais? Essas perguntas mobilizam as
crianças a pensarem a respeito da localização dos objetos e das
pessoas no mundo, permitindo que compreendam seu lugar no
mundo (BRASIL, 2018, p. 365).
Tornou-se uma proposta voltada para o despertar das primeiras noções, direcio-
nadas a partir da condução entre professor e aluno, de quatro pontos que se interligam
e contemplam as seguintes perguntas: Onde? Por quê? Como? Quais? Referenciadas, a
primeira dá a identificação de pertença, a segunda reflete o entendimento da localiza-
ção, a terceira conduz o indivíduo a partir do aspecto da orientação, e a quarta traduz a
relação compreendida no espaço referente à organização e vivência socioespacial.
Esses primeiros contatos com o cronograma de conhecimento geográfico geram
uma predominância do ensino para a alfabetização cartográfica, relação do meio natural
com o homem, e sua manifestação em frentes como paisagem, território e lugar, porém,
o viés humano está atrelado às discussões, e precisa ser delicadamente discutido na
composição e formação cidadã dos alunos pela relação que o indivíduo possui com o
espaço em que ele vive e constrói.
Partindo dos exemplos da unidade temática “O sujeito e o seu lugar no
mundo”, podem ser vistas percepções claras, discutidas à luz da geografia cultural.
Veja habilidades que devem ser desenvolvidas no aluno: “a identificação, semelhança e
diferença do uso dos espaços públicos”, uma visão amplamente pesquisada no âmbito
cultural da geografia, apresentando grupos e suas relações de territorialidade com os
lugares; e “as semelhanças e diferenças entre jogos e brincadeiras de diferentes épocas
e lugares”, apresentando, ao aluno, a heterogeneidade dos povos, culturas e lugares.
O Brasil, por exemplo, é um país continental, dividido por regiões distintas em fauna,
flora, colonização e, por conseguinte, a distinção cultural reflete no modo de vida, na
produção da paisagem, e, inclusive, no desenvolvimento das brincadeiras. A partir do
fomento dessas habilidades, inicia-se a valorização da cultura do outro, respeitando,
democraticamente, a história de cada povo, as pluralidades étnica e cultural em que o
Brasil se apresenta.
O quadro a seguir, assim como o anterior, segue um padrão das unidades
temáticas, porém, com um tom de aprofundamento, podendo ser visto nos novos
objetos de conhecimento e nas habilidades a serem desenvolvidas.
151
Abordando a Unidade 1, “O sujeito e o seu lugar no mundo”, com o objetivo de
conhecimento do território e da diversidade cultural, o professor tem, como objetivo,
desenvolver habilidades no campo da representatividade cultural inserida no território.
Referente à unidade, vamos fazer uma breve retrospectiva das habilidades?
É preciso direcionar o foco às palavras descrever e identificar. Esses verbos que
os alunos precisam utilizar para iniciar o desenvolvimento da aprendizagem no campo
da geografia. As crianças, com a perspectiva de descobrir, precisam fazer um exercício
de reconhecimento, nesse caso, descrevendo, com riqueza de detalhes, o que compõe
os lugares onde vivenciam. Depois, identificar as semelhanças e dessemelhanças
entre o seu lugar de residência com os outros lugares da cidade, como a vizinhança da
escola. Nesse passo, surge o “jogo dos sete erros”, pois a criança passa a reconhecer o
modo de vida e as dinâmicas dessas vivências. A interpretação dos diversos lugares as
encaminha para a compreensão de categorias importantes para a geografia.
Na temática do quarto ano, o conhecimento geográfico atravessa as barreiras
do pertencimento e vivências, de forma respeitosa e pactual, vislumbrando um universo
maior, agora, também, representado por regiões. É relevante que o ensino ganhe força
teórica dos conceitossistematizados, como paisagem, região e território, para que o
espectro da disciplina consiga tomar forma.
Convidamos, a quem se interessar, a saber da importância da
brincadeira para alunos de séries iniciais. Leia o artigo chamado
Os mais variados jeitos de brincar: https://novaescola.org.br/
conteudo/6926/os-mais-variados-jeitos-de-brincar.
Para se inspirar em brincadeiras que possam ser aplicadas com
os alunos, convidamos você a acompanhar uma playlist com
diversas brincadeiras que identificam e diferenciam as cinco
regiões do país: http://twixar.me/4ssm.
DICA
152
QUADRO 3 – ESTRUTURA DO CONTEÚDO DO QUARTO ANO DOS ANOS INICIAIS MEDIANTE A BNCC
Unidades
temáticas
Objetos de
conhecimento
Habilidades
O sujeito e o
seu lugar no
mundo
Território e
diversidade
cultural
(EF04GE01) Selecionar, em seus lugares de vivência e em
suas histórias familiares e/ou da comunidade, elementos
de distintas culturas (indígenas, de outras regiões do país,
latino-americanas, europeias, asiáticas etc.), valorizando o
que é próprio em cada uma delas e sua contribuição para a
formação das culturas local, regional e brasileira.
Processos
migratórios no
Brasil
(EF04GE02) Descrever processos migratórios e suas
contribuições para a formação da sociedade brasileira.
Instâncias do
poder público
e canais de
participação
social
(EF04GE03) Distinguir funções e papéis dos órgãos do
poder público municipal e canais de participação social na
gestão do município, incluindo a Câmara de Vereadores e
Conselhos Municipais.
Conexões e
escalas
Relação campo
e cidade
(EF04GE04) Reconhecer especificidades e analisar a
interdependência do campo e da cidade, considerando
fluxos econômicos, de informações, de ideias e de pessoas.
Unidades
político-
administrativas
do Brasil
(EF04GE05) Distinguir unidades político-administrativas
oficiais nacionais (Distrito, Município, Unidade da Federação
e grande região), suas fronteiras e sua hierarquia,
localizando seus lugares de vivência.
Territórios
étnico-culturais
(EF04GE06) Identificar e descrever territórios étnico-
culturais existentes no Brasil, como terras indígenas e de
comunidades remanescentes de quilombos, reconhecendo
a legitimidade da demarcação desses territórios.
Mundo do
trabalho
Trabalho no
campo e na
cidade
(EF04GE07) Comparar as características do trabalho no
campo e na cidade.
Produção,
circulação e
consumo
(EF04GE08) Descrever e discutir o processo de produção
(transformação de matérias-primas), circulação e consumo
de diferentes produtos.
Formas de
representação
e pensamento
espacial
Sistema de
orientação
(EF04GE09) Utilizar as direções cardeais na localização de
componentes físicos e humanos nas paisagens rurais e
urbanas.
Elementos
constitutivos
dos mapas
(EF04GE10) Comparar tipos variados de mapas,
identificando suas características, elaboradores,
finalidades, diferenças e semelhanças.
Natureza,
ambientes e
qualidade de
vida
Conservação e
degradação da
natureza
(EF04GE11) Identificar as características das paisagens
naturais e antrópicas (relevo, cobertura vegetal, rios
etc.) no ambiente em que vive, além da ação humana na
conservação ou degradação dessas áreas.
FONTE: Adaptado de Brasil (2018)
153
Não é abandonando o conhecimento prévio desse aluno, mas associados esses
conhecimentos de maneira integrativa, para que ele consiga sair da alfabetização
geográfica para iniciar as interligações e análises dos fenômenos e dinâmicas (ambiental,
política, econômica, social). É preciso partir do município onde reside para outros e,
assim, englobar uma escala de entendimento macro, a exemplo da complexidade do
seu país de origem.
A premissa básica é possibilitar que os alunos absorvam e compreendam, a partir
das variáveis espaço-tempo, as feições referentes aos aspectos naturais e culturais de
distintas sociedades, paisagens e lugares.
Enquanto professor, proponha o reconhecimento da diversidade nos âmbitos
social e local, pois o aluno, consequentemente, identificará o universo dinâmico e
heterogêneo que ele e outros atuam. Neste momento, a geografia cultural pode ser
uma fonte de busca e um meio de interpretação das relações da sociodiversidade, das
culturas, das ações de territorialidades, formação de paisagens e demais adendos,
compreendendo os povos tradicionais: índios, afro-brasileiros, quilombolas, ciganos etc.
No momento, a manifestação da natureza, visualizada a partir da paisagem
local, indica uma explicação geral das trocas entre homem/sociedade e natureza. Assim,
podem ser identificadas interferências políticas, atividades econômicas, tradições
culturais e tantos outros elementos que contribuem para a transformação do lugar e,
consequentemente, da paisagem da qual esse aluno faz parte.
Embora as perspectivas naturais sejam intensificadas nas unidades, as
influências sociais também participam com as representações materiais e não materiais,
como a arquitetura dos lugares, dos costumes alimentares e das técnicas implantadas
no trabalho e no lazer. Esses e outros aspectos podem ser explorados e trabalhados em
sala de aula.
A partir de uma leitura rápida das unidades, percebe-se a possibilidade de
introduzir temáticas viáveis ao viés cultural, e, como meio propagador da aplicação da
diversidade sociocultural, propomos, também, a introdução de competências gerais.
O repertório cultural, nas ciências humanas, tem, como objetivo, abordar as
identidades que os alunos possuem enquanto brasileiros pertencentes das diversas
regiões do país. Ainda, apresentar, a partir da divisão regional, o desenvolvimento das
características culturais próprias, além do movimento de absorção cultural, quando
também assimilam as influências em maior ou menor grau das outras culturas. Neste
instante, a geografia visa à valorização da diversidade cultural.
154
Mediante a competência 3, “repertórios culturais”, espera-se, pela estrutura
desenvolvida pela BNCC, que o aluno desenvolva seis pontos diretos, representados
pela fruição, expressão, investigação e identidade cultural, consciência multicultural,
respeito à diversidade cultural e mediação da diversidade cultural.
QUADRO 4 – META DE DESENVOLVIMENTO DO ALUNO ATÉ O TÉRMINO DO ENSINO FUNDAMENTAL
META DE DESENVOLVIMENTO DOS ALUNOS
Fruição
Vivenciar sua identidade, comunidade e cultura e demonstrar sentimento
de pertencimento, por meio de experiências artísticas e explorando
relações entre culturas, sociedades e as artes.
Expressão
Expressar sentimentos, ideias, histórias e experiências por meio das artes.
Documentar, compartilhar e analisar obras criativas.
Investigação
e identidade
cultural
Reconhecer e discutir o significado de eventos e manifestações culturais
e da influência da cultura na formação dos grupos e identidades.
Consciência
multicultural
Desenvolver senso das identidades individual e cultural, e demonstrar
curiosidade, compreensão e respeito com diferentes culturas e visões
de mundo.
Respeito à
diversidade
cultural
Experimentar diferentes vivências culturais e compreender a importância
de valorizar identidades, tradições, manifestações, trocas e colaborações
culturais diversas.
Mediação da
diversidade
cultural
Reconhecer os desafios e benefícios de se viver e trabalhar em sociedades
culturalmente diversas e explorar novas formas de reconciliar valores e
perspectivas culturais diferentes ao abordar desafios em comum.
FONTE: <https://novaescola.org.br/bncc/conteudo/7/competencia-3-repertorio-cultural>.
Acesso em: 26 ago. 2020.
Anteriores à validação da BNCC, nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs),
os temas transversais, através do item pluralidade cultural, firmavam relações estreitas
com a geografia e suas abordagens conteudísticas, pois substantivavam a disciplina
mediante projetosde interpretação humanista, compartilhando visões colaborativas
com áreas próximas.
Apesar de ter sido aglutinada e reformulada pela BNCC, a compreensão
apresentada pelos PCNs continua sendo uma narrativa atualizada em virtude dos seus
objetivos de existência em relação à pluralidade cultural:
Para viver democraticamente em uma sociedade plural, é preciso
respeitar e valorizar as diversidades étnica e cultural. Por sua formação
histórica, a sociedade brasileira é marcada pela presença de diferentes
etnias, grupos culturais, descendentes de imigrantes de diversas
nacionalidades, religiões e línguas. No que se refere à composição
populacional, as regiões brasileiras apresentam diferenças entre si;
cada região é marcada por características culturais próprias, assim
155
como pela convivência interna dos grupos diferenciados. Essa
diversidade etnocultural, frequentemente, é alvo de preconceito e
discriminação, atingindo a escola e se reproduzindo no seu interior. A
desigualdade, que não se confunde com a diversidade, também está
presente em nosso país como resultado da injustiça social. Ambas as
posturas exigem ações efetivas de superação. Nesse sentido, a escola
deve ser local de aprendizagem, para que as regras do espaço público
democrático garantam a igualdade, do ponto de vista da cidadania,
e, ao mesmo tempo, a diversidade, como direito. O trabalho com a
pluralidade cultural se dá, assim, a cada instante, propiciando que a
escola coopere na formação e consolidação de uma cultura da paz,
baseada na tolerância, no respeito aos direitos humanos universais
e cidadania compartilhada por todos os brasileiros. Esse aprendizado
exige, sobretudo, a vivência de princípios democráticos no interior
de cada escola, no trabalho cotidiano de buscar a superação de
qualquer tipo de discriminação e exclusão social, valorizando cada
indivíduo e todos os grupos que compõem a sociedade brasileira
(BRASIL, 1998a, p. 69).
Vislumbrando uma análise cultural, seguimos afirmando que, ao passar
das unidades e complexidades dos anos fundamentais para o ensino médio, alguns
temas podem ser dimensionados pelo aspecto da geografia cultural, como a formação
socioespacial campo e cidade, conteúdo relacionado a monumentos (formas simbólicas
espaciais), os museus como referência histórica na leitura e compreensão das
transformações do espaço, o dinamismo e diversidade dos conjuntos arquitetônicos
urbanos de monumentos históricos, a evolução das formas e estruturas urbanas,
temas relacionados às festas e às tradições do folclore brasileiro, como resistências e
permanências dos traços de identidades regionais.
Conteúdos que tratam das paisagens e diversidade territorial no Brasil, um
assunto que desperta a interpretação dos vários “brasis”, a partir da diversidade das
regiões, além das suas singularidades, seus aspectos sociais, culturais e ambientais
refletidos nas passagens da sua heterogeneidade.
156
LEITURA
COMPLEMENTAR
As regiões brasileiras possuem identidades que podem ser estudadas
por espectros maiores e mais complexos do que as anteriores divisões territoriais
administrativas. Em uma região, existem rede urbana, atividades agrícolas, manifestações
culturais, enfim, tantos prismas que formam grandes teias de análises.
Um exemplo muito corriqueiro se refere ao bioma caatinga. Por muito tempo,
apenas se empregou, ao estudo da caatinga, um estereótipo formado a partir do
conhecimento alheio ao lugar, ou a partir da perspectiva de desenvolvimento regional,
tendo em vista os aspectos políticos e econômicos, esquecendo-se de identificar toda
historicidade e cultura regional, além da naturalidade da heterogeneidade, que deixa de
qualificar, competitivamente, regiões/paisagens entre melhores ou piores, mas resgata
e compreende as identidades e suas dissemelhanças, que também são essenciais ao
processo de ensino e aprendizagem.
Por exemplo, algumas das grandes produções cinematográficas brasileiras
acerca da região nordeste, principalmente, no cenário do semiárido, onde se encontra o
bioma da caatinga. Há, como objetivo, retratar uma narrativa do sofrimento, seca, fome,
desprezo, pois são algumas das realidades, mas se alargam como estereótipos únicos
e gigantes, formados para retratar aquela região, as paisagens e comunidades. Então,
vamos aos questionamentos: como será o semiárido visto pelo olhar dos nordestinos?
Será que aquelas paisagens apenas expressam sentimentos negativos? Será que a po-
pulação representa uma figura tosca, com um vocabulário raso? Portanto, o olhar do ou-
tro acerca da região nem sempre contém uma característica plural ou endêmica, prin-
cipalmente, quando este não pertence ao lugar ou não possui vínculos afetivos a ele.
Uma paisagem árida, com rochas aparentes, além do sol, seca e calor, trans-
mite, dentre tantas sensações, um sentimento único de pertencimento, de que ser um
indivíduo forte é uma decisão da vida, superar-se mediante as adversidades naturais e
sociais se torna uma obrigação, e não uma possibilidade de escolha.
Além de tudo, existe uma questão entre os sertanejos nordestinos: entre viver
e sobreviver se escolhe, sabiamente, saber viver entre a fartura ou a falta dela.
Como exemplo correspondente ao assunto, uma música que representa o olhar
próximo e de experiência com o lugar, de um compositor nordestino, paraibano, Ton
Oliveira, que apresenta Paraíba Joia Rara (2011), uma Paraíba para além da escassez,
mas repleta de encantos.
157
Engloba um sentido de identidade para os conterrâneos dessa terra, elegendo,
positivamente, as paisagens, os elementos históricos, personalidades da literatura e a
cultura regional. A canção representa, para alguns, o hino da Paraíba, pela importância
de destacar o lado positivo do estado. Tal música foi elevada à categoria de patrimônio
imaterial desde 2017.
Aqui, o sol nasce primeiro e tão desinibido, e a lua exibe um estrelado
com tanta beleza que até o algodão se empolga e já vem colorindo
exibições inexplicáveis da mãe-natureza. Aqui, até os dinossauros
fizeram morada e a gente pode, ao som de Jackson, pandeirear, ouvir
a voz que, na bandeira, ficou estampada, dar frutos que o tempo e a
história não vão apagar. Eu sou da Paraíba, é meu esse lugar, a cara
desse povo tem a minha cara, encanto da beleza que me faz sonhar,
lugar tão lindo assim pra mim é joia rara, que bom estar no ponto mais
oriental astrologicamente, ser um ariano, rimar como um augusto tão
angelical, eu sou muito feliz, eu sou paraibano (OLIVEIRA, 2011, s.p.).
Numa visão menos romantizada e mais politizada acerca da luta de classes e
formação do proletariado, Graciliano Ramos, em Vidas secas, escrita em 1938, aponta
para a perspectiva do materialismo histórico dialético. Nas suas entrelinhas, numa relação
de sofrimento em meio ao histórico das condições naturais de seca que o nordeste
vinha enfrentando, ele discorre a respeito das relações social e de trabalho injustas em
que os personagens viviam. Realizou uma forte crítica social através da literatura, frente
à falta de escolarização, indiferença política, fome, escassez dos recursos hídricos e de
todos os recursos básicos da sobrevivência humana.
A respeito da diversidade da população brasileira, tem-se, ainda, a perspectiva
cultural, com o fragmento literário atribuído à obra de Guimarães Rosa. Na visão sensível
do autor, há a diversidade religiosa e a relação desta com os sujeitos de “origem cultural
mestiça”. Ainda, como a prática dialogal religiosa pode ocorrer de maneira espontânea.
O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor,
eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece, principalmente, de
religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara loucura.
No geral. Issoé que é a salvação-da-alma... muita religião, seu moço!
Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água
de todo rio... Uma só, para mim, é pouca, talvez não me chegue. Rezo
cristão, católico, embrenho a certo, e aceito as preces de compadre
meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas, quando posso, vou
no Mondubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acusa
de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos, belos deles. Tudo
me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca. Mas é
só muito provisório. Eu queria rezar - o tempo todo. Muita gente não
me aprova, acham que lei de Deus é privilégio, invariável [...] (ROSA,
2006, p. 16).
158
Esse trecho aponta para um sujeito que enxerga, nas preces religiosas, um
acalento, um refúgio que ameniza os caminhos árduos da vida. Ele se interessa pelo
diverso, pela dicotomia da sua formação cultural, advogando as diferentes dimensões
identitárias por meio da religião, e nos apresentando uma ideia de como o pluralismo
religioso é aplicado ao mais simples dos homens e como tal ato interfere na sua
formação identitária.
Segundo Steil (2008), a pluralidade e a fragmentação religiosa são frutos
da própria dinâmica social contemporânea. A globalização multiplica e aproxima as
tradições e os universos religiosos de forma que sua diversidade pode ser vista como
interna e estrutural ao processo social.
As leituras das paisagens regionais, território, lugar, diversidades populacional,
cultural e demais assuntos podem ser percebidas, geograficamente, mediante trechos
musicais e referências literárias. As músicas também se consagram como elementos de
interpretação do espaço geográfico, como a compreensão de lugar, com “Asa Branca”,
música de Luís Gonzaga e Humberto Teixeira. Quanto à paisagem e território brasileiro,
às diversidades regional e cultural, tem-se a música de Silas de Oliveira, “Aquarela
brasileira”, e inúmeras outras que permitem as abordagens natural e humana.
Foi apresentado um pouco do extenso conteúdo da BNCC frente à disciplina,
além da possibilidade da introdução da perspectiva do subcampo da geografia cultural
como um breve exemplo da análise da estrutura dos anos iniciais. Complementarmente,
um avanço das temáticas possíveis em anos vindouros.
Como inspiração para a elaboração de planos de aula alinhados
à BNCC, a plataforma online da Nova Escola aborda temáticas
da geografia e facilita os processos de criação e estruturação
da aula: https://novaescola.org.br/plano-de-aula/sequencia/as-
paisagens-se-transformam-de-acordo-com-seus-processos-e-
historia-locais/952.
DICA
159
Neste tópico, você aprendeu:
• Os conceitos da geografia, como paisagem, território e territorialidade, aliam-se a dis-
cussões culturais e de identidade direcionadas para a aplicação da geografia cultural.
• Apesar do respeito ao entendimento e interpretação de Carl Sauer em 1925, a
respeito da paisagem cultural, novos horizontes foram escritos, com Fians Bobek e
Josef Schmithúsen. Ainda, Augustin Berque, segundo a filosofia da fenomenologia,
destacando as paisagens mediante as ações, percepções e concepções das relações
humanas com a natureza e espaço. Ele refletiu que até os sonhos e planos contribuíam
para marcar a paisagem.
• Denis Cosgrove, em 1989, a partir dos materialismos histórico e dialético e do
simbolismo, iniciou sua percepção, explicando as paisagens geográficas a partir das
culturas dominantes, e aquelas versões e variações das paisagens alternativas, com
as residuais, emergentes e excluídas.
• Na geografia cultural contemporânea, foram abertas novas possibilidades de
pesquisar fenômenos culturais que podem ser comprovadas e dimensionadas no
espaço geográfico em diferentes tempos.
RESUMO DO TÓPICO 3
160
AUTOATIVIDADE
1 Com relação à paisagem, assinale V para as alternativas verdadeiras e F para as
alternativas falsas:
( ) O conceito de paisagem tem origem, apenas, na geografia, após 1970, com a
geografia crítica.
( ) O conceito de paisagem vem sendo concebido por diferentes perspectivas e cor-
rentes geográficas, mas o enfoque renovado na geografia cultural veio após 1970.
( ) A paisagem é apenas uma referência espacial ou um objeto observação.
( ) A paisagem, embora apresente uma conotação física, representa a validade das
relações sociais e culturais com seus signos e significados subjetivos, incluindo o
afetivo.
Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:
a) ( ) F, F, F, V.
b) ( ) F, V, F, F.
c) ( ) F, V, F, V.
d) ( ) V, F, F, V.
2 Na geografia cultural contemporânea, foram abertas novas possibilidades de
pesquisar fenômenos geográficos que podem ser comprovadas e dimensionadas no
espaço geográfico em diferentes tempos. Assinale a alternativa CORRETA:
a) ( ) A geografia cultural contemporânea brasileira apresentou ínfimas mudanças
quanto à produção e análises dos novos conteúdos.
b) ( ) Apesar do grande potencial da evolução da geografia cultural no Brasil, temas,
como religião e festas, foram desprezados pelos pesquisadores.
c) ( ) A inserção da análise das representações, a partir de filmes, imagens, música,
literatura etc., passou a ser objeto de interesse dos geógrafos culturais.
d) ( ) Todas as afirmativas estão corretas.
3 Dentro da geografia escolar, é possível aplicar os preceitos da geografia cultural. Em
sala de aula, de maneira abrangente. Quais premissas são importantes para elencar
aos alunos?
a) ( ) Apresentar as regiões brasileiras, alegando discrepâncias sociais e econômicas,
pois essa visão apresenta a única realidade do país.
b) ( ) Negar a prática de narrativas preconceituosas referentes às intolerâncias étnica,
religiosa e regional, mas defender a coexistência de grupos distintos, apresentar
as pluralidades social e cultural formadas por etnias variadas e respeitar os
diversos grupos que compõem a sociedade.
c) ( ) Defender a coexistência de grupos distintos, mas gerar competitividade,
elegendo a melhor e pior cultura por região.
d) ( ) Todas as alternativas estão erradas, exceto a Letra b.
161
ESPAÇO E RELIGIÃO: UMA
ABORDAGEM GEOGRÁFICA
UNIDADE 3 —
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
PLANO DE ESTUDOS
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:
• compreender, através da geografia cultural pós-1980, as novas relações existentes
entre geografia e religião;
• identificar como os estudos da religião, na academia, podem ser de interesse ao
geógrafo e sua pesquisa;
• entender como o geógrafo estuda, analisa, interpreta e espacializa as ações e transfor-
mações geradas por uma determinada religião e seus devotos no espaço geográfico;
• diferenciar a análise dos estudos geográficos da religião com as demais ciências
sociais e ciências humanas – sociologia, antropologia e história;
• compreender que os estudos apresentados ao longo desta terceira unidade refletem
o interesse geográfico pelo estudo da cultura em suas diferentes esferas de
interpretação através dos estudos da religião;
• discutir, a partir do estado da arte, uma vertente dos estudos sobre a gênese das cidades,
através dos primeiros grupos sociais humanos e sua relação com o fogo sagrado;
• conhecer as principais referências e estudiosos da geografia da religião no Brasil e no
mundo;
• visualizar as principais categorias, conceitos e teorias que norteiam os estudos da
religião;
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de
reforçar o conteúdo apresentado.
TÓPICO 1 – ESPAÇO E RELIGIÃO: UMA ABORDAGEM GEOGRÁFICA
TÓPICO 2 – O SAGRADO E A CIDADE: OLHARES SIMBÓLICOS RELIGIOSOS
TÓPICO 3 – NOVAS DINÂMICAS DO SÉCULO XXI – RELIGIÃO E HIPERMODERNIDADE
Preparado para ampliar seus conhecimentos?Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.
CHAMADA
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A TRILHA DA
UNIDADE 3!
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163
TÓPICO 1 —
ESPAÇO E RELIGIÃO:
UMA ABORDAGEM GEOGRÁFICA
UNIDADE 3
1 INTRODUÇÃO
Olá, estudante! Seja bem-vindo a terceira e última unidade de
Geografia Cultural! Ao longo das Unidades 1 e 2, apresentamos, a vocês,
um dos campos geográficos que mais cresce e se difunde na geografia.
Essa ocorrência pode ser observada não apenas no Brasil, mas na
América Latina, Estados Unidos, Europa e Ásia. Isso é perceptível, graças
ao número crescente de referências e estudos publicados nos últimos anos. É muito
comum, hoje, ao acessarmos plataformas educacionais e periódicos, encontrarmos
diversos artigos e trabalhos de pesquisadores que possuem interesse pela dinâmica
espacial da cultura.
Nas Unidades 1 e 2, viemos traçando um paralelo desde a gênese (quando
falamos em gênese, estamos falando sobre o início/sobre o interesse inicial) até a fase
atual da geografia cultural como um importante campo do saber na ciência geográfica.
Como vimos, a geografia cultural não surgiu no fim da década de 80, ou início da década
de 90, pelo contrário, sua gênese na geografia remonta ao início do século passado –
século XX. Em especial, os estudos da cultura na geografia tinham uma percepção mais
calcada no materialismo, no concreto.
Na obra Sobre Carl Sauer (2011), o Professor Roberto Lobato Corrêa – UFRJ
(muito conhecido em seus trabalhos sobre geografia urbana, o meio urbano e seus
diferentes agentes e atores sociais) apresenta, aos geógrafos e interessados nos
estudos da cultura, um estudo que tinha interesse em dialogar com outras ciências,
como a antropologia, a história e a sociologia. Os estudos de Sauer foram de suma
importância para o desenvolvimento de uma geografia cultural da primeira metade do
século XX.
Seu legado é seguido ainda por muitos apreciadores de seus estudos. Sauer
terminou seu doutorado em 1914 sob orientações do geomorfólogo norte-americano
Rollin Salisbury. Em 1923, passou a ser professor da Universidade de Berkeley, tornando-
se professor emérito em 1957.
164
FIGURA 1 – COLEÇÃO GEOGRAFIA CULTURAL E CARL SAUER
FONTE: O autor
Sauer trabalha com uma perspectiva mais aprofundada das relações entre
sociedade e natureza, ou seja, das relações entre o homem e o ambiente, rompendo
a barreira de apenas uma diferenciação das paisagens. A paisagem passa a ser vista
como um habitat, como um ambiente onde o homem é o agente transformador. Dessa
maneira, a geografia cultural deveria buscar um interesse na compreensão e na análise
das ações e intervenções humanos sobre o espaço e suas impressões. O mundo vivido,
o espaço vivenciado e compreendido por diferentes pessoas através de suas influências
culturais era importante para a Geografia (HOLZER, 2000). Cada visão, cada percepção,
cada vivência se torna importante, dadas as diferentes visões de mundo realizadas por
cada indivíduo (Tempo 1).
Em um segundo momento, foram apresentados a importância dos estudos da
cultura para a geografia, a cultura vista como um processo de diferentes somas, de
diferentes culturas, povos, línguas, saberes, e a cultura como uma teia de significados.
O entendimento da cultura e sua interpretação podem ser aprofundados na leitura do
artigo do antropólogo estadunidense Clifford James Geertz, de 1973. O autor destaca
que a cultura é uma teia de significados construída, alicerçada pelo homem. Essa
teia, produzida por ele, é o que orienta a existência humana, ou seja, é um sistema de
símbolos que possui interações com outros sistemas de símbolos que cada indivíduo
possui, gerando, assim, uma interação recíproca (GEERTZ, 2008).
Depois de um período após a Segunda Guerra Mundial, com processos de
reconstruções, novos planos econômicos e sociais, cresceu, na geografia, a demanda
de estudos voltados para métodos quantitativos e métodos lógicos. No período,
os estudos da cultura (Tempo 2) passaram a entrar em declínio/hiato – período da
geografia quantitativa, período pós-guerra e de inúmeros conflitos e crises econômicas.
O interesse da geografia acaba sendo mais direcionado ao suporte econômico. Com
o surgimento de uma geografia crítica, e em períodos de inúmeras contestações
socioculturais, como os manifestados no ano de 1968 – revoluções feministas na
165
França; movimentos hippies; Revolução Cultural Chinesa – Mao Tsé Tung; Wood Stock
etc., houve, na sociedade, no início da década de 70, um novo olhar, uma nova dinâmica.
A religião também acompanhou essas mudanças e transformações – Recrudescimento
Religioso e Concílio Vaticano II.
A partir da última fase, observamos um retorno dos geógrafos para os estudos
culturais, com novo vigor e inéditos interesses até antes não estudados (Tempo 3).
Agora, não apenas os bens materiais concretos e os estudos apresentados por Sauer
retornam com uma nova análise, mas os estudos imateriais – a percepção humana, o
interpretar das músicas e suas diferentes espacialidades, o estudo do gênero, o estudo
das literaturas e a fé através dos estudos da religião. Todos ganharam mais força e
interesse na geografia. Assim, a partir da década de 1970 e no fim da década de 1980, no
Brasil, os estudos da nova geografia cultural, ou geografia cultural renovada, floresceram
como um novo campo repleto de frentes e possibilidades. A seguir, temos um resumo
dessa periodização da geografia cultural em suas diferentes trajetórias.
FIGURA 2 – GEOGRAFIA CULTURAL - TEMPORALIDADES
FONTE: O autor
GEOGRAFIA CULTURAL – TEMPORALIDADES
1890 / 1940 Escola de Berkeley – Carl Sauer
1940 / 1970 Período de Hiato
1970 – Dias atuais Transformações na sociedade pós-1968
Para o geógrafo inglês Denis Cosgrove (1998 [1989]), a geografia passa a estar
em toda parte, e cabe, a nós, geógrafos, espacializarmos os diferentes elementos que
compõem e constituem a sociedade humana. Dessa maneira, a inteligibilidade de
diversos caminhos e objetos podem ser estudada pelo geógrafo. Nesse sentido, ocorreu
um interesse por parte dos geógrafos, além de um recrudescimento de suas pesquisas
nos estudos sobre a música, a arte, a literatura e a religião, principalmente.
Um bom aprofundamento teórico sobre esses diferentes meandros e caminhos,
pelos quais a geografia veio perpassando ao longo dos estudos da geografia cultural em
seus diferentes períodos, é o livro Introdução à Geografia Cultural, lançado, em 2003,
pelos geógrafos Roberto Lobato Corrêa e Zeny Rosendahl. No livro, os autores trazem
as diferentes abordagens metodológicas e históricas do da geografia cultural, além das
diferentes temporalidades.
166
Através dos novos estudos, oriundos a partir da década de 1970, não somente a
geografia cultural passa a ser influenciada pelas filosofias do significado. Esta favoreceu
o florescimento de diversas pesquisas, favorecendo, hoje, os estudos geográficos,
campos que mais crescem.
O interessante da disciplina é apresentar, para os geógrafos, estudos
relativamente desconhecidos ao campo disciplinar e que, de certa maneira, enriquecem
nossos estudos e nos permitem vislumbrar novas ideias e pensamentos até então
considerados não geográficos. Dessa maneira, neste livro, desbravaremos, juntos, o
campo da geografia da religião e, a partir deste, vamos procurar entender quais seriam
essas relações. Poderemos verificar que, apesar de ser um tema curioso, se pararmos
para pensar, observaremos que a religião, como fenômeno cultural presente no espaço,
está repleta de elementos simbólicos e espacialidades inteligíveis aos nossos estudos.
Seguiremos juntos na construção.
FIGURA 3 – INTRODUÇÃO À GEOGRAFIA CULTURAL (2003)