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336 Unidade III Unidade III 7 TOXICOLOGIA DOS ALIMENTOS E DOS METAIS Nesta unidade, semearemos o conhecimento da toxicologia dos alimentos. Teremos a oportunidade de conhecer ainda melhor como podemos nos expor a substâncias potencialmente tóxicas que estão presentes nos alimentos, identificaremos os principais riscos e saberemos como prevenir a intoxicação causada por essas substâncias presentes nos alimentos. Para que estejamos preparados para a colheita dos frutos da informação, também teremos a oportunidade de compreender como os praguicidas, intensamente utilizados na agricultura e na pecuária, podem trazer riscos de intoxicação a humanos e animais. Teremos, também, a oportunidade de caracterizar algumas classes de praguicidas e verificaremos como é possível diagnosticar e tratar as intoxicações causadas por essas substâncias. 7.1 Toxicologia dos alimentos 7.1.1 Classificação dos agentes tóxicos presentes nos alimentos Vamos iniciar agora a parte da toxicologia que estuda os possíveis danos causados ao organismo quando se expõe a substâncias químicas presentes nos alimentos: a toxicologia dos alimentos. Para que tenhamos um visão holística dos contaminantes presentes nos alimentos, alguns autores, como Mídio e Martins (2000), classificam os agentes tóxicos da seguinte forma, quando presentes nos alimentos: agentes tóxicos naturalmente presentes nos alimentos, contaminantes diretos de alimentos e contaminantes indiretos de alimentos. A forma de categorização e denominação que a literatura e as esferas governamentais utilizam para se referir aos contaminantes de alimentos não é uníssona. Neste material, a classificação e definição de contaminantes dos alimentos são fundamentadas por Mídio e Martins (2000), que nos parece uma forma bastante didática de expressar as informações, ainda que seja apenas uma das diferentes formas de apresentá-las. Com relação aos agentes tóxicos naturalmente presentes nos alimentos, como a própria nomenclatura propõe, a substância química que pode causar dano no organismo faz parte da constituição do alimento. Entretanto, quando uma substância química não faz parte do alimento, mas em algum momento se torna parte dele durante o processamento, armazenamento, transporte, distribuição ou produção, esse agente tóxico é considerado um contaminante direto do alimento. 337 TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS A substância química que não é naturalmente presente e também não é aplicada diretamente no alimento, mas que é utilizada ou aplicada no vegetal ou animal que dá origem ao alimento e que consequentemente esteja presente nesse alimento, é denominada de contaminante indireto. Também são consideradas contaminantes indiretos do alimento as substâncias químicas que a legislação não permite que sejam usadas nas fontes produtoras de alimentos. Existem situações em que a utilização de substâncias químicas é permitida, desde que sua presença ou de seus produtos de biotransformação esteja no alimento na forma de traços ou resíduos e não ultrapasse o limite máximo permitidido (LMP). São exemplos de contaminantes indiretos de alimentos os promotores do crescimento animal, os antibióticos e os praguicidas. Após essa visão geral de uma das maneiras de classificar os agentes tóxicos presentes nos alimentos, faz-se necessário conversarmos um pouco sobre a segurança dos alimentos. 7.1.2 Segurança dos alimentos O Codex Alimentarius, ou o Código Alimentar, é uma das principais referências utilizadas pelas autoridades brasileiras para a aprovação da comercialização de produtos alimentícios. Trata-se de um conjunto de diretrizes, padrões e códigos criado para que haja a proteção da saúde do consumidor. Ele auxilia na promoção de práticas adequadas na comercialização de alimentos e compõe o ponto principal do Programa Conjunto de Normas Alimentares da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) e da OMS. Sua primeira reunião ocorreu em 1963 e suas diretrizes nos trazem alguns importantes conceitos, como veremos agora. 7.1.2.1 Aditivos geralmente reconhecidos como seguros (Gras) Neste tópico, estudaremos os Gras, ou seja, os aditivos geralmente reconhecidos como seguros. Exemplo de aplicação Quando se prepara alguma refeição em sua casa, ao adicionar cloreto de sódio (sal de cozinha) na salada, a pessoa que está cozinhando usa luvas especiais para poder pegar o cloreto de sódio e temperar a salada? Pesa na balança analítica com quatro casas decimais a quantidade exata de cloreto de sódio para adicionar ao alimento? Imaginamos que não! Mas, nessa linha de raciocínio, vamos a mais uma reflexão. Exemplo de aplicação Quais são os danos causados a humanos quando se coloca um pouco de canela no arroz doce ou um pouco de cravo no doce de abóbora? 338 Unidade III Não há dano no organismo humano quando se expõe a esses aditivos alimentares em baixas quantidades. Existem alimentos que sabemos que não causam danos ao organismo nas condições em que normalmente as pessoas se expõem. Assim, quando se adiciona uma substância no alimento (aditivo alimentar) e essa substância é adequadamente segura nas condições de uso, ela é conhecida como “segura” e se utiliza o acrônimo Gras (generally recognized as safe) para identificá-la. As condições seguras de exposição são fundamentadas na experiência do uso comum das substâncias ou caracterizadas por métodos científicos. O sal de cozinha, o cravo-da-índia e a canela são alguns exemplos de aditivos classificados como Gras, e para eles não existe ingestão diária aceitável (IDA), ou seja, não há quantidade máxima que possa ser utilizada no alimento, diferentemente dos edulcorantes artificiais (ABDALLAH, 2002). 7.1.2.2 Ingestão diária aceitável (IDA) Segundo o programa conjunto FAO/OMS para padrões alimentares, a IDA é uma estimativa da quantidade de uma substância química na água potável ou nos alimentos que pode ser ingerida diariamente, ao longo da vida, sem considerável risco de intoxicação, sendo expressa com base no peso corporal, cujo padrão humano é de 60 kg e é listado em unidades de miligrama (mg) da substância química por quilo (kg) de peso corpóreo (mg.kg-1) (JOINT FAO/WHO EXPERT COMMITTEE ON FOOD ADDITIVES, 2016). 7.1.2.3 Limite máximo de resíduos (LMR) Há outros parâmetros importantes na toxicologia de alimentos que devem ser observados, como o limite máximo de resíduos (LMR). Segundo a Anvisa (2016), “limite máximo de resíduos é a quantidade máxima de resíduos de agrotóxicos ou afins – oficialmente permitida no alimento – em decorrência da aplicação em uma cultura agrícola, expresso em miligramas do agrotóxico por quilo do alimento (mg.kg-1)”. Feita a apresentação sobre alguns importantes conceitos utilizados na segurança dos alimentos, vamos conhecer um pouco mais sobre os riscos da exposição às substâncias químicas naturalmente presentes neles. 7.1.3 Agentes tóxicos naturalmente presentes nos alimentos 7.1.3.1 Introdução Em vários momentos neste material, tivemos a oportunidade de reconhecer que humanos e animais se intoxicaram pela exposição aos vegetais. De forma sucinta, recordamos que havia um imperador que tinha um jardim botânico com plantas tóxicas, que beber suco de plantas tóxicas era a forma de execução na antiga Grécia, que reis, rainhas e celebridades foram mortos por substâncias químicas extraídas de plantas e que essas mesmas substâncias também eram colocadas na ponta de flechas para caçar. 339 TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS O significado maior dessas informações se associa ao fato de que pode haver substâncias químicas presentes nos vegetais que podem causar danos ao referencial biológico, dependendo das condições de exposição. Lembrete Toda substância química pode ser considerada um agente tóxico, dependendo das condições de exposição. Você já parou para pensar que grande parte de nosso alimento é de origem vegetal e que alguns desses alimentos também podem causar intoxicação em humanos ouanimais? Sim, é verdade! Imaginamos que você já tenha ouvido falar que a mandioca brava ou amarga é “venenosa”, não é? É isso mesmo! Dependendo das condições de exposição (iremos contextualizar posteriormente, neste tópico), a exposição à mandioca amarga pode, sim, romper a homeostase e causar danos a animais ou a humanos. Mas já parou para pensar na composição dos alimentos como um todo? Vamos analisar a seguir, de forma geral, como pode ser constituído um alimento de origem vegetal. Ao nos expor a alimentos, esperamos obter nutrientes que sejam fundamentais para o funcionamento do nosso organismo. Você também parou para pensar que o vegetal, ou seja, o alimento, não é constituído apenas por nutrientes? Segundo Mídio e Martins (2000), o alimento de origem vegetal é constituído de substâncias que apresentam propriedades nutrientes, não nutrientes e até mesmo antinutrientes. Há substâncias químicas presentes no alimento vegetal que são aproveitadas apenas pelo vegetal, sem representar alguma funcionalidade para humanos ou animais. São substâncias responsáveis, por exemplo, pela sustentação ou vascularização do vegetal e não nos apresentam finalidade alguma. Na verdade, essas substâncias são as prevalentes no vegetal. Um exemplo de substância antinutriente é a tripsina, encontrada na soja e no feijão. Começamos assim a observar que, em alimentos, pode haver centenas de diferentes substâncias químicas (veja a tabela a seguir), com diferentes funções para o vegetal, os humanos e animais. Tabela 11 – Quantidade de não nutrientes no alimento Alimento Número de substâncias não nutrientes no alimento Queijo cheddar 160 Suco de laranja 250 Banana 325 340 Unidade III Alimento Número de substâncias não nutrientes no alimento Tomate 350 Vinho 475 Café 625 Adaptada de: Klaassen et al. (2001). Também pode haver substâncias presentes nos alimentos que, dependendo das condições de exposição, podem causar danos ao referencial biológico, e, nesse momento, essas substâncias compõem o cerne de nosso estudo: os agentes tóxicos naturalmente presentes nos alimentos. 7.1.3.2 Glicosídeos cianogênicos Vamos entender como podemos estar expostos a esse grupo de substâncias tóxicas. Um produto conhecido por multimistura (MM) é utilizado em algumas regiões do Brasil, estimulado pela Pastoral da Criança, uma organização não governamental (ONG), para que sejam disponibilizados nutrientes para crianças carentes. Esse preparado é feito a partir de folhas verdes escuras, como couve, mandioca, batata-doce e espinafre, e de sementes como a da abóbora, da soja e do girassol, e o preparo desse suplemento alimentar é transformado em pó (HELBIG; BUCHWEITZ; GIGANTE, 2008). Sabe aonde queremos chegar ao trazer a você a MM? Essa composição pode ser uma importante fonte de substâncias antinutricionais, como oxalatos e fitatos, com consequente comprometimento na absorção de nutrientes, a despeito de ser um preparado com o objetivo de enriquecer a alimentação de pessoas socialmente desfavorecidas, e ainda pode conter o ácido cianídrico (HCN), proveniente do processamento incorreto da folha de mandioca-amarga. Observação Pessoas que apresentam dieta pobre em vitamina B12 e em aminoácidos com grande quantidade de enxofre são mais vulneráveis à contaminação pelo ácido cianídrico. Animais também são passivos à exposição a alimentos contendo glicosídeos cianogênicos e, dependendo das condições de exposição, podem se intoxicar. Bovinos podem se intoxicar por Piptadenia macrocarpa, que contém glicosídeos cianogênicos em suas folhas, com teores mais elevados durante sua fase de brotação, a qual ocorre em outubro, em comparação com suas folhas maduras, que ocorre em março. Assim, a fase de desenvolvimento do vegetal interfere diretamente nas concentrações presentes de glicosídeos cianogênicos, fato que se observa com outros agentes tóxicos naturalmente presentes nos 341 TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS alimentos, como a α-solanina, glicoalcaloide presente em maiores concentrações em partes da batata com elevada atividade metabólica. Outras espécies de vegetais também podem concentrar glicosídeo cianogênico e consequentemente podem intoxicar de forma aguda bovinos, como folhas de Holocalyx glaziovii, Manihot glaziovii, Piptadenia spp., Piptadenia viridiflora e Piptadenia macrocarpa (TOKARNIA et al., 2012). Exemplo de aplicação Gostaríamos que refletisse um pouco e nos trouxesse o que você entende por glicosídeo e glicosídeo cianogênico e a sua relação com o ácido cianídrico. Observação Glicosídeos são substâncias que apresentam em sua estrutura química um açúcar e uma porção não açúcar, denominado de aglicona ou genina. A aglicona, nos glicosídeos cianogênicos, pode dar origem ao HCN, caso sejam hidrolisados. Caso não haja a hidrólise do glicosídeo cianogênico, não há a liberação da aglicona e, consequentemente, não há a formação do ácido cianídrico. Cerca de 2.000 espécies vegetais contêm glicosídeos cianogênicos. Um exemplo é o angico preto, distribuído na região Nordeste do país. Temporais podem derrubar seus galhos, e essas árvores também podem ser derrubadas pelo homem. Depois disso, o gado ingere as folhas quentes e murchas dessa planta e se intoxica com o HCN (AMORIM; MEDEIROS; RIET-CORREA, 2006). Condições de hidrólise dos glicosídeos cianogênicos Para que haja intoxicação pelos glicosídeos cianogênicos, há a necessidade de hidrólise. Apenas após a efetiva hidrólise é que ocorre a liberação da aglicona e ela se transforma em HCN. Observação Sem a hidrólise do glicosídeo cianogênico, não há intoxicação. O HCN é popularmente chamado de cianeto ou cianureto. Entretanto, ressalta-se que para que haja intoxicação o cianeto deve estar na forma molecular. Assim, ainda que não se fale da forma correta, sobretudo quando há informações trocadas por leigos, deve-se entender que a substância que age no organismo, inibe a fosforilação oxidativa e causa o dano é o ácido cianídrico em sua forma molecular, ou seja, o HCN. 342 Unidade III A hidrólise dos glicosídeos cianogênicos pode ocorrer em três diferentes situações, segundo Mídio e Martins (2000). • Meio com baixo pH: quando há a exposição pelo trato digestório, em função do baixo pH do suco gástrico, ocorre a hidrólise do glicosídeo cianogênico, com a liberação da aglicona e consequente formação do HCN. Dentro desse contexto, entendemos que, caso não haja a exposição por essa via, não há a interação entre o glicosídeo cianogênio e o suco gástrico; consequentemente, não ocorre a hidrólise do glicosídeo cianogênico condicionada ao baixo pH do meio. • β-glicosidases: essas enzimas são produzidas pela microbiota. Assim, caso o glicosídeo cianogênico não seja hidrolisado pelo suco gástrico, possivelmente será no intestino. • Glicosidases específicas: dependendo do alimento, pode haver a presença de enzimas no próprio vegetal que normalmente não interagem diretamente com os glicosídeos cianogênicos. Entretanto, caso haja essa interação, são capazes de catalisar a hidrólise dos glicosídeos cianogênicos, liberar a aglicona e levar à formação do HCN. Exemplo de aplicação Gostaríamos que fizesse mais uma reflexão: se as glicosidases específicas estão presentes no alimento, por que não interagem com os glicosídeos cianogênicos e, consequentemente, não liberam o ácido cianídrico normalmente? Como exposto, as glicosidases específicas são enzimas capazes de hidrolisar os glicosídeos cianogênicos, que podem estar em tecidos diferentes daqueles onde os glicosídeos se localizam, podem estar em compartimentos diferentes dentro do mesmo tecido ou, ainda, podem estar presentes na mesma célula e no mesmo compartimento intracelular, mas não atuam por ação de inibidores endógenos. Entretanto, caso seja feito um suco de maçã e se triture a polpa do fruto com suas sementes, provavelmente haverá a interação entre os glicosídeos cianogênicos presentes nas sementes das maçãs e as glicosidases específicas,que os hidrolisará, e haverá a liberação da cianidrina, como a aglicona, que formará o HCN. Observação A quantidade de HCN liberado pelas sementes de algumas maçãs é insuficiente para causar efeito agudo em humanos adultos. Ainda assim, merece cuidado a criança de alguns meses de vida, que eventualmente se exponha a esse suco preparado dessa forma, ou a exposição crônica por adultos 343 TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS Observe que há situações em que ocorre a ruptura da estrutura celular da raiz do vegetal, como da Manihot glaziovii, e ocorre a liberação da linamarase, uma das enzimas capazes de hidrolisar os glicosídeos cianogênicos. Com isso, ocorre a hidrólise, a liberação do HCN, cuja exposição por via oral, ou até mesmo pela inalação, pode levar a casos de intoxicação aguda. Toxicodinâmica do ácido cianídrico Como visto em detalhe anteriormente, o HCN inibe o processo de fosforilação oxidativa e leva o organismo ao colapso, por não produzir energia (ATP). A asfixia tissular resultante da anóxia histotóxica faz com que o sangue apresente uma coloração vermelho-brilhante, uma vez que a oxihemoglobina (HbO2) não libera o oxigênio para a transferência eletrônica mitocondrial. Sinais e sintomas de intoxicação pela exposição aos glicosídeos cianogênicos Os sinais e sintomas de intoxicação se instalam rapidamente em humanos e mesmo em animais de grande porte (veja a figura a seguir) após a exposição a alimentos ou plantas que contêm glicosídeos cianogênicos (AMORIM; MEDEIROS; RIET-CORREA, 2005). Figura 145 – Marcante dificuldade respiratória e membros abertos de caprino intoxicado pelo HCN Mesmo durante a ingestão do vegetal, o organismo começa a apresentar sialorreia e dificuldade respiratória, com respiração rápida e curta, as mucosas tornam-se cianóticas com aumento da frequência cardíaca e opistótono, e o animal ou humano chega a cair. Em um segundo momento, mas pouco tempo após a apresentação da sintomatologia da intoxicação, a dispneia acentuada precede o coma. A morte pode ocorrer minutos após o início da exposição e ocorre pela parada respiratória (AMORIM; MEDEIROS; RIET-CORREA, 2006). 344 Unidade III Tratamento da intoxicação pelo ácido cianídrico O tratamento da intoxicação pelo HCN que apresentaremos a seguir é utilizado independentemente da fonte de exposição desse agente tóxico: alimento, vazamento de um container, inalação acidental do gás, entre outros. Há alguns protocolos de tratamento quando ocorre a intoxicação pelo ácido cianídrico. Observação Sugerimos que revise a toxicodinâmica do ácido cianídrico em detalhes para que compreenda com maior facilidade a informação a seguir. Alguns minutos após a exposição a alimentos contendo glicosídeos cianogênicos já são suficientes para que haja a manifestação dos sinais e sintomas de intoxicação, e o tratamento precisa ser rápido, dependendo da quantidade de glicosídeo cianogênico ao qual o organismo se expôs. Observação O tratamento da intoxicação pelo ácido cianídrico demonstra uma incrível dicotomia. Preste atenção na explicação a seguir. Uma das formas de tratamento é a administração de nitrito de sódio (NaNO2) (EV). Como vimos anteriormente, essa substância química é um agente metemoglobinizante. Em um primeiro momento, parece um contrassenso administrar essa substância em uma circunstância como essa, uma vez que a fosforilação oxidativa está sendo inibida, ou seja, com esse tratamento, chegará uma quantidade ainda menor de oxigênio às células, já que a metemoglobina (MeHb) é incapaz de carrear oxigênio para tecidos remotos. Entretanto, o recorte que se faz nesse momento é que o HCN possui mais afinidade à MeHb que o HCN em relação à citocromo oxidase que está sendo inibida pelo HCN na mitocôndria. Dessa forma, quando se metemoglobiniza o paciente, a MeHb retira o cianeto que está inibindo o processo de fosforilação oxidativa mitocondrial. Resolve-se um problema e cria-se outro: a inibição enzimática é revertida e restaura-se a transferência eletrônica mitocondrial, mas a fosforilação oxidativa ainda não é restaurada, por não haver oxigênio nas células, ou por que seus teores estão baixos, uma vez que o transporte de oxigênio molecular que seria realizado pela hemoglobina não ocorre, por esta se encontrar metemoglobinizada. Nesse momento, o sangue do paciente ou do animal apresenta um pigmento denominado cianometemoglobina (CNMeHb). Esse procedimento, realmente, não é fácil de ser compreendido e 345 TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS muito menos de ser realizado. Vamos seguir em frente, ou melhor, vamos dar um passo para trás, para retomar uma passagem, e já vamos evoluir no raciocínio. Por que o organismo está metemoglobinizado? Porque se administrou o nitrito de sódio. Por que se administrou o nitrito de sódio? Para metemoglobinizar. Para que se metemoglobiniza o organismo? Volte alguns parágrafos e releia com calma: a MeHb tem afinidade com o cianeto e o retira da inibição enzimática que está acontecendo na mitocôndria. Agora, a MeHb interage com o HCN que estava na mitocôndria e forma esse pigmento denominado de CNMeHb. Observe a continuidade do tratamento da intoxicação. Se a MeHb é um problema importante para o organismo, caso a MeHb esteja ligada ao cianeto (CNMeHb), a situação fica ainda mais crítica, uma vez que o oxigênio precisa ser transportado para tecidos remotos, distantes do local de absorção do oxigênio, mas não conseguirá dessa forma. Temos um importante problema toxicológico para equacionar. O que fazer agora? Para resolver esse problema, administra-se o tiossulfato de sódio (EV). Essa substância doará enxofre para a CNMeHb e, por consequência, dará origem ao tiocianeto (SCN) e à MeHb. O SCN possui importância na exposição crônica, como veremos a seguir, mas não na exposição aguda. Assim, prioriza-se o tratamento da intoxicação pela MeHb. Vamos fazer uma breve recapitulação antes de prosseguirmos com o tratamento? Exemplo de aplicação Problema inicial: o HCN bloqueia a transferência de elétrons na mitocôndria. Resolução do problema: administra-se NaNO2 (EV), que irá metemoglobinizar o organismo e a MeHb formada, assim como remover o ácido cianídrico que está bloqueando o sistema enzimático. Problema gerado: forma-se a CNMeHb (HCN que foi retirado + MeHb formada). Resolução do problema: administra-se tiossulfato de sódio (EV). Problema gerado: a CNMeHb se transforma em metemoglobina. 346 Unidade III Acompanhou o raciocínio? Lembre-se: o paciente precisa de cuidado urgente. O que se faz agora? Lembrete Você se recorda da diaforase II? É agora que ela entra em ação. Administra-se o azul de metileno (EV), que é um carreador exógeno de elétrons. O azul de metileno, ao doar elétrons, induz redução da MeHb a HbO2, ou seja, o ferro férrico (Fe 3+) presente nos anéis pirrólicos do grupamento heme ganha elétron e é reduzido a ferro ferroso (Fe2+). Assim, a MeHb se transforma em HbO2, restaurando a fosforilação oxidativa e o aporte de oxigênio aos tecidos remotos. Uma vez que a citocromo oxidase não mais estará inibida, haverá oxigênio para receber elétrons na mitocôndria, levando à formação do ATP com subsequente produção de energia para o organismo. Você percebeu como o tratamento desse tipo de intoxicação é bastante complexo? O cuidado não para por aí: preste atenção no parágrafo a seguir. Sabemos que o azul de metileno é um agente redutor para a MeHb. Entretanto, seu excesso atua como agente metemoglobinizante. Caso o tratamento da intoxicação aguda pelo HCN seja realizado por profissionais sem a expertise necessária, a dose administrada de azul de metileno pode ser o agente responsável pela metemoglonização do paciente e levá-lo à morte. 7.1.3.3 Glicosídeos tiocianogênicos Os glicosídeos tiocianogênicos também são conhecidos como glicosinolatos ou tioglicosídeos. São compostos que conferem o sabor mais “picante” do alimento, principalmente de condimentos como a mostarda, e que também estãopresentes no nabo, couve-flor, couve, brócolis e repolho. Brassicaceae é uma das principais famílias de alimentos que contêm os glicosinolatos, os quais podem estar em praticamente todas as partes da planta, como folhas, caule, sementes e raiz. A mirosinase ou tioglicosidase são diferentes nomes para a mesma enzima presente no citosol de células vegetais e no intestino de ratos e humanos, que é capaz de hidrolisar os glicosinolatos. Os glicosídeos tiocianogênicos estão localizados nos vacúolos. Dessa forma, não há a hidrólise dos glicosinolatos caso o vegetal esteja íntegro, diferentemente de sementes em estado de germinação, quando ocorre a pronta hidrólise desse glicosídeo (MÍDIO; MARTINS, 2000). 347 TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS Observação Sem a hidrólise dos glicosinolatos, não há a manifestação dos efeitos tóxicos. Dessa forma, quando o vegetal é submetido à trituração, à maceração ou ao cozimento, há o contato entre o glicosídeo tiocianogênico e as enzimas, e ocorre a hidrólise enzimática, com consequente liberação do açúcar e da aglicona, que é instável. Nesse momento, já houve a hidrólise do glicosídeo tiocianogênio, e o que nos importa agora é a aglicona liberada pela hidrólise. Observação Gostaríamos que você se atentasse à origem do tiocianato: essa substância é responsável pela atividade goitrogênica. Quando presente em um meio alcalino ou neutro, a aglicona se decompõe a isotiocianato, e, na presença de ferro ferroso ou em meio ácido, a aglicona formada pela hidrólise do glicosídeo tiocianogênico dá origem a sulfato inorgânico, enxofre elementar e nitrila. Observação Os produtos de hidrólise dos glicosídeos tiocianogênicos, como o isotiocianato e as nitrilas, são responsáveis pelo sabor e aroma de algumas Brassicaceae. Como o isotiocianato é instável em pH alcalino ou neutro, quando se encontra em meios com essa faixa de pH, origina os tiocianatos orgânicos. Agora, providos dessas informações, temos condição de compreender que, a partir da hidrólise dos glicosídeos tiocianogênicos, são liberadas substâncias químicas denominadas goitrogênicas ou bociogênicas, descritas a seguir. • Isotiocianato: substâncias químicas como o aliltiocianato, presente em alimentos como o azeite de mostarda, e o isotiocianato são transformadas em tiocianato e apresentam propriedades bociogênicas, sobretudo em dietas pobres em iodo (MÍDIO; MARTINS, 2000). • Tiocianato: o tiocianato, em uma exposição aguda, não apresenta muita importância toxicológica. Entretanto, na exposição crônica, o tiocianato é relevante, à medida que inibe a incorporação de iodo pelos hormônios tireoidianos e leva ao bócio, em última instância. 348 Unidade III Para que você tenha dimensão de como essas informações impactam no dia a dia das pessoas e podem efetivamente causar danos ao organismo humano e de animais, há algumas regiões da Europa, como na Eslováquia e na República Tcheca, em que há significativa prevalência de bócio pela exposição crônica a elevados teores de tiocianato presentes em Brassicaceae, popularmente chamadas de vegetais florais, como brócolis, couve, rabanete, rúcula, agrião, acelga, couve-flor e repolho. Lembrete Toda substância pode ser considerada um agente tóxico, dependendo das condições de exposição. (s)-5-vinil oxazolidina-2-tiona (S-5-vinil OZT) A substância química 2-hidroxi-3-butenilglicosinolato, também conhecida por pró-goitrina quando hidrolisada, dá origem à (s)-5-vinil oxazolidina-2-tiona, denominada de goitrina (MÍDIO; MARTINS, 2000). Observação O termo “goitrina” advém de “goiter”, que significa bócio, ou seja, é uma substância goitrogênica ou bociogênica. A goitrina impede a incorporação do iodo pelos hormônios tireoidianos e, consequentemente, esses hormônios não são formados. Nessa perspectiva, por feedback negativo, há a informação para que haja maior produção e liberação de hormônio tireoestimulante (TSH) pela adenohipófise, para estimular a produção de tiroxina (T4) e tri-iodotironina (T3). Como esses hormônios não são formados por conta do iodo não ser incorporado a eles, a tireoide fica sempre sendo estimulada, mas sem efetividade. Esse fenômeno leva ao bócio. 7.1.3.4 Glicoalcaloides A batata (Solanun tuberosum L.) contém glicoalcaloides como solanidina, solanidona, espirosolanos, α-chaconina e α-solanina. Esses dois últimos representam cerca de 95% de todos os glicoalcaloides presentes nesse tubérculo, possivelmente para conferir ao vegetal proteção contra microrganismos e insetos. A maior quantidade de α-solanina e α-chaconina é encontrada em locais de elevada atividade metabólica, como brotos, e imediatamente abaixo da casca (quando ainda verde) do tubérculo. Quando há um estresse na batata, como um dano por ter batido em alguma superfície, por exemplo, há grande depósito desses glicoalcaloides (MÍDIO; MARTINS, 2000). Você já teve a oportunidade de comer casca frita de batata ou batata frita com casca? Quem teve a oportunidade sabe que tem um sabor mais “picante” ou amargo e que pode gerar uma sensação de ardor na boca ou garganta: são os glicoalcaloides que dão essa sensação. 349 TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS Observação Viu como a toxicologia também nos auxilia na compreensão de alguns fenômenos até então incompreensíveis? É a construção do conhecimento. A quantidade de glicoalcaloides no alimento pode variar significativamente em função da umidade, do tipo de solo, da variação genética, da forma como é armazenada e dos praguicidas que são utilizados no cultivo, além da poluição atmosférica. Ainda que raro de acontecer, mas não impossível, a exposição a teor de 380 mg/kg a 450 mg/kg de α-solanina na batata pode ser fatal para humanos, e a α-chaconina é teratogênica para hamsters e camundongos. Será que submeter a batata a elevadas temperaturas reduz a toxicidade dos glicoalcaloides presentes nesses tubérculos? Submeter o alimento a elevadas temperaturas pode, efetivamente, prevenir possíveis danos ao organismo humano, mas também há situações em que fazer isso parece ser um procedimento sem efeito, uma vez que o cozimento das batatas não é capaz de reduzir a concentração dos glicoalcaloides no alimento. Não adianta levar o alimento ao micro-ondas, assá-lo, fervê-lo ou submetê-lo à fritura porque os teores de glicoalcaloides não serão reduzidos: essas substâncias são termoresistentes. Há situações em que submeter o alimento a elevadas temperaturas pode, inclusive, aumentar o risco de intoxicação, como veremos adiante. 7.1.3.5 Oxalatos O ácido oxálico está presente em raízes como a beterraba, sementes e grãos de cereais, castanhas, leguminosas como o feijão, alface, cenoura, chá e cacau e atua na proteção desses vegetais. A ingesta de oxalato é praticamente inevitável, uma vez que está naturalmente presente nos alimentos. Nos alimentos, o ácido oxálico pode formar oxalatos insolúveis, como o oxalato de cálcio, ou solúveis, como os de sódio e de potássio, dependendo da interação com íons presentes nos alimentos (GORDIANO et al., 2014). Observação Observe a influência da temperatura na toxicidade das substâncias químicas presentes nos alimentos novamente. 350 Unidade III A elevada temperatura elimina os oxalatos solúveis dos alimentos, mas não os insolúveis, que permanecem no vegetal praticamente íntegros. A exposição crônica aos oxalatos pode levar a algumas situações importantes do ponto de vista toxicológico. O pH intestinal parece favorecer a ligação dos oxalatos com o cálcio e, consequentemente, a absorção do cálcio pode ser comprometida e levar à hipocalcemia, tendo como consequência um quadro de acentuação da osteoporose, do raquitismo e da hipocalcemia. A hipocalcemia também pode levar a parestesia de extremidade dos membros, espasmos musculares, câimbras intensas, náusea, vômito, sudorese, cólicas abdominais, asma, dificuldade de realização de movimentos pela musculatura esquelética, irritabilidade do SNC, fibrilação e convulsão. Os oxalatosde cálcio formados podem gerar supressão da urina, hematúria e cálculos renais, caso sejam depositados na bexiga urinária e ureteres. A intoxicação aguda ocorre pela exposição de ao menos 1 g de oxalato por dia e é caracterizada por náusea, vômito, dor, queimação e irritação gástricas. 7.1.3.6 Alcaloides pirrolizidínicos Os alcaloides pirrolizidínicos podem intoxicar humanos e herbívoros e estão presentes em mais de 6.000 diferentes espécies vegetais, sendo que espécies dos gêneros Crotalaria, Echium, Senecio e Heliotropium são as maiores responsáveis por essas intoxicações. Quadro 23 – Algumas espécies de vegetais comuns no Brasil, que contêm alcaloides pirrolizidínicos Espécie Nome popular Senecio brasiliensis (Spreng.) Less. (Asteraceae) Maria-mole, flor-das-almas Eupatorium laevigatum Lam. (Asteraceae) Mata-pasto Heliotropium indicum L. (Boraginaceae) Crista-de-galo Heliotropium transalpinum Vell. (Boraginaceae) Bico-de-corvo Symphytum officinale L. (Boraginaceae) Confrei Adaptado de: Bieski et al. (2015) e Lucena et al. (2010). Algumas pessoas utilizam espécies de Crotalaria para revestir e proteger o solo contra a erosão, mas suas sementes podem germinar e competir pelo espaço com plantas ou até mesmo durante a colheita, quando sementes de Crotalaria spp. podem ser coletadas juntamente a outros grãos e a pessoa ou animal pode se contaminar ao ingerir esses grãos. Lucena et al. (2010) demonstraram que a exposição crônica a Senecio sp. e a C. retusa, espécies que contêm alcaloides pirrolizidínicos, é a principal causa da morte de bovinos e equinos nos estados do Rio Grande do Sul e no semiárido brasileiro, respectivamente. 351 TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS Saiba mais Sugerimos que você leia o artigo: LUCENA, R. B. et al. Intoxicação por alcaloides pirrolizidínicos em ruminantes e equinos no Brasil. Pesquisa Veterinária Brasileira, v. 30, n. 5, p. 447-452, 2010. As plantas tóxicas que mais frequentemente produzem agravos à saúde de humanos, do gado e de animais selvagens são, provavelmente, aquelas que contêm alcaloides pirrolizidínicos. Segundo Honório Júnior et al. (2010), os alcaloides pirrolizidínicos podem causar danos ao pulmão, rins e coração e são potencialmente carcinogênicos. A biotransformação da monocrotalina, principal alcaloide pirrolizidínico, pela ação da oxidase de função mista presente no fígado gera metabólitos ativos tipo pirrólicos, extremamente reativos e capazes de interagir covalentemente com macromoléculas nucleofílicas (HONÓRIO JÚNIOR et al., 2010). Agora que vimos alguns agentes tóxicos naturalmente presentes nos alimentos, vamos avançar na matéria e entrar em um novo assunto: os contaminantes diretos de alimentos. 7.1.3.7 Nitratos e nitritos No ambiente, o nitrato (NO3 -) é formado por meio de uma sequência de reações de oxidação, em que o amônio (NH4 +) é oxidado a nitrito (NO2 -) pelas bactérias nitrosomonas e as nitrobactérias oxidam o NO2 - a NO3 -, segundo as equações a seguir (MÍDIO; MARTINS, 2000): 2NH4 + + 2OH- + 3O2 - ↔ 2NO2 - + 2H+ + 4H2O 2NO2 - + O2 ↔ 2NO3 - Dependendo de algumas condições como a temperatura, os alimentos de origem vegetal podem concentrar NO2 - e NO3 -. Em uma perspectiva maior, o organismo humano apresenta dois riscos pela exposição aos NO2 - e NO3 -. O primeiro associa-se aos riscos de intoxicação aguda em crianças de até seis meses de idade, e o segundo está associado à exposição crônica de adultos. Nesse momento, você já possui elementos para compreender por que as crianças de até seis meses de vida são vulneráveis a agentes metemoglonizantes, não é? 352 Unidade III Riscos toxicológicos na exposição aguda aos nitratos e nitritos A exposição a alimentos que tenham significativo teor de NO2 - e NO3 - naturalmente presentes no alimento, adicionados intencionalmente ou até mesmo presentes na água, pode metemoglobinizar crianças nessa faixa etária. Observação O raciocínio utilizado para os mecanismos de ação dos nitritos e nitratos é o mesmo, independentemente de estarem naturalmente presentes nos alimentos ou se adicionados intencionalmente a eles. Uma situação que pode acontecer, sobretudo na zona rural das cidades, é que, ao chover, fertilizantes podem ser lixiviados do solo para a água de poço, e o nitrogênio presente nesses fertilizantes pode ser oxidado, ficando disponível na água. Ao preparar um chá com água de poço ou mesmo servir água à criança, pode haver exposição a elevados teores de NO2 - e NO3 - e, consequentemente, a criança pode ser metemoglobinizada. Lembrete Como vimos anteriormente, as crianças de até seis meses de idade produzem baixos teores de um dos principais sistemas redutores humanos, a diaforase I. Adultos, diferentemente das crianças de zero a seis meses de idade, conseguem produzir quantidade de diaforase I suficiente para que não sejam metemoglonizados, normalmente. Um dos maiores cuidados que se deve ter para a metemoglobinização de adultos é na exposição ocupacional, quando se trabalha com agentes metemoglobinizantes como anilina, dapsona, nitrobenzeno e trinitrotolueno ou quando o organismo apresenta deficiência hereditária da glicose-6-fosfato desidrogenase (G6PD). 7.1.4 Contaminantes diretos de alimentos Vimos até agora que o agente tóxico pode fazer parte do vegetal, ou seja, estar naturalmente presente. Entretanto, durante o armazenamento de um alimento pode ocorrer uma contaminação fúngica, e, caso esse fungo produza uma toxina como produto de metabolismo secundário, o fungo e a toxina são considerados contaminantes diretos dos alimentos. O aditivos intencionais, metais, compostos N-nitrosos e micotoxinas também podem ser classificados dessa forma. 353 TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS Lembrete Além do processo de armazenamento, durante a produção, a distribuição, o transporte ou o processamento pode haver a contaminação do alimento. 7.1.4.1 Compostos N-nitrosos Vimos os aspectos toxicológicos da exposição aguda aos nitritos e nitratos na parte da matéria que envolvia os agentes tóxicos naturalmente presentes nos alimentos. Agora, iremos trabalhar as mesmas substâncias químicas, mas com abordagem na exposição crônica para adultos, principalmente porque são substâncias químicas adicionadas nos alimentos intencionalmente. Entretanto, o raciocínio geral sobre o mecanismo de ação para os NO2 - e NO3 - na exposição aguda ou crônica independe se estão presentes naturalmente nos alimentos ou se foram adicionados intencionalmente. Vamos agora ver quais são os danos que o NO3 - e o NO2, naturalmente presentes ou adicionados intencionalmente nos alimentos, podem causar no organismo humano, na exposição crônica. Riscos toxicológicos na exposição crônica aos NO2 - e NO3 - Adultos se expõem cronicamente aos sais de NO2 - e NO3 - presentes na água e em alimentos naturais ou processados: é impossível não nos expormos cronicamente a eles. Observação Você se recorda da influência da temperatura na toxicidade das substâncias químicas presentes nos alimentos? Preste atenção: teremos novidade! Meios de baixo pH ou elevadas temperaturas podem oxidar esses sais a anidrido nitroso (N2O3), considerado um agente nitrosante. Mas em quais momentos pode ocorrer essa oxidação? Vamos ver uma dessas situações agora. Observe: quando uma pessoa come um cachorro-quente, por exemplo, pode acontecer de um resíduo da salsicha ficar retido no espaço interdental e, eventualmente, essa pessoa não conseguir realizar a higienização oral imediatamente após a refeição. Você normalmente come um cachorro-quente sem beber nada ou tomando algo, como um suco ou refrigerante? A indústria de alimentos utiliza amplamente NO3 - e NO2 - com os objetivos de conservar os alimentos e realçar suas propriedades organolépticas. A conservação dos alimentos está fundamentada na adição intencional de sais de potássio (K+) e de Na+ para prevenir a proliferação de microrganismos, sobretudo 354 Unidade IIIdo Clostridium botulinum, bactéria produtora da toxina botulínica, e de propriedades organolépticas. Esses sais melhoram o aspecto visual do alimento, realçam o sabor, conferem textura e cores interessantes aos alimentos e evitam o estufamento de queijos. Quer pelo refrigerante ou pelo suco, o pH do meio (boca) será reduzido, e os sais de nitrogênio presentes no alimento que eventualmente ficarem retidos entre os dentes, próximo à gengiva, poderão dar origem ao anidrido nitroso ou trióxido de dinitrogênio (N2O3). Essa substância é capaz de interagir com proteínas ou aminoácidos presentes na carne da salsicha, linguiça ou outros alimentos processados, amidas e aminas secundárias ou terciárias presentes em peixes e formar um grupo de substâncias químicas denominado de compostos N-nitrosos (MÍDIO; MARTINS, 2000). Os compostos N-nitrosos são um conjunto de diferentes substâncias químicas, das mais simples às mais complexas, e têm as nitrosaminas e nitrosamidas como exemplos. As nitrosaminas são mais estáveis em relação às nitrosamidas, cuja meia vida em pH 7,0 é de minutos. Como o pH do suco gástrico é baixo, o estômago é um órgão em que as reações químicas que levam à formação do N2O3 são intensas, e os compostos N-nitrosos nele formados estão associados ao câncer nesse órgão. O relativo baixo pH natural da urina faz com que também haja a formação de compostos N-nitrosos nesse órgão, tornando a bexiga urinária mais um dos órgãos-alvo dessas substâncias. Você se lembra de que falaríamos ainda mais sobre a influência da temperatura no alimento? Vamos lá! Se por um lado ferver o alimento pode reduzir a contaminação bacteriana, o aquecimento de alimentos embutidos pode aumentar a produção das nitrosaminas. Observação Quanto maiores o tempo e a temperatura de aquecimento a que o alimento contendo NO2 - e NO3 - é submetido, maior será a formação do N2O3 e, consequentemente, dos compostos N-nitrosos. Toxicodinâmica dos compostos N-nitrosos A biotransformação dos compostos N-nitrosos ocorre pela oxidase de função mista, isoenzima CYP2E1, por α-hidroxilação, que ocorre principalmente (mas não apenas) no fígado. Após a biotransformação, há a formação da hidroximetilmetilnitrosamina, biotransformada em hidróxido de metildiazônio, que produz o íon carbônio (CH3 +). Esse íon formado possui elevada afinidade com macromoléculas nucleofílicas, atua como agente alquilante do DNA e, consequentemente, induz à carcinogenicidade (MÍDIO; MARTINS, 2000). Devido à exposição pelo trato digestório, os compostos N-nitrosos podem levar ao câncer de bexiga, boca, estômago e fígado. O fígado é bastante afetado por conta do metabolismo: as reações 355 TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS de biotransformação ocorrem intensamente nesse órgão, com consequente formação de CH3 +, que atua como agente carcinogênico hepático. A bexiga e o estômago são órgãos afetados porque possuem meio com baixo pH e, consequentemente, há formação do N2O3. O câncer de boca pode ocorrer pela precária higienização oral: na presença do resíduo de alimento contendo sais de NO2 - ou de NO3 -, forma o N2O3, que induz a formação dos compostos N-nitrosos nesse local e aumenta o risco de carcinogenicidade da cavidade oral. Observação Faz-se necessário estabelecer correlação entre compostos nitrogenados no alimento e no ar atmosférico. Convidamos você a acompanhar o seguinte raciocínio: quando estudamos que os poluentes atmosféricos são responsáveis por milhares de mortes no mundo e que parte dessas mortes precoces ocorre por conta do câncer do pulmão, significa que na atmosfera, além da presença de substâncias químicas carcinogênicas propriamente ditas, pode haver a presença de outras substâncias químicas, como os óxidos de nitrogênio, que podem ser oxidados a anidrido nitroso e, consequentemente, formar os compostos N-nitrosos, potencialmente carcinogênicos. A liberação de óxidos de nitrogênio (NOx) na atmosfera pode ocorrer por fontes móveis ou estacionárias, como vimos anteriormente. Essas substâncias são oxidadas na atmosfera a N2O3, e as pessoas e os animais inalam o ar contendo esse agente nitrosante, que poderá interagir com proteínas ou aminoácidos presentes nos pulmões e formar compostos N-nitrosos. O pulmão também biotransforma, ou seja, toda reação de biotransformação com consequente alquilação de macromoléculas nucleofílicas vista anteriormente no trato digestório também pode ocorrer no trato respiratório. Essa é uma das explicações da elevada prevalência de câncer de pulmão em grandes centros urbanos. Assim, a mesma toxicodinâmica que ocorre quando o organismo se expõe ao NO3 - e NO2 - pelo trato digestório também ocorre pelo trato respiratório. Está mais clara a relação poluição atmosférica versus câncer pulmonar? Estamos falando apenas de NOx, sem levar em consideração substâncias químicas carcinogênicas propriamente ditas, como o benzo[a]pireno. 7.1.4.2 Botulismo Você já ouviu falar que, quando uma criança está gripada, a melhor coisa a ser feita é dar mel a ela? Pois bem! Vamos substanciá-lo de informações, e em breve você conseguirá concluir se essa é uma recomendação plausível ou se deve ser revista. 356 Unidade III Clostridium botulinum é uma bactéria Gram-positiva formadora de esporos que produzem, por via anaeróbica, um dos mais potentes xenobióticos: a toxina botulínica (CHERINGTON, 2004). Muito nos impressionam os contrastes entre toxina botulínica e seu organismo produtor. Se por um lado a toxina é termolábil, os esporos apresentam relativa resistência ao calor. Temperatura de 85 ºC é capaz de inativar a toxina, enquanto os esporos toleram temperaturas de até 119 ºC. Quando presente no solo, essa bactéria se prolifera mais intensamente em meio alcalino e em condição de anaerobiose. Observação Para vários autores, a toxina botulínica é a mais poderosa toxina: em humanos, a morte pode ocorrer com a impressionante dose baixa de 0,05 μg a 0,1 μg. A exposição a essa toxina leva ao botulismo, uma doença paralisante. O organismo pode se intoxicar ao ingerir a toxina em alimentos contaminados: é a forma clássica de contaminação, quando o alimento foi inadequadamente preparado ou conservado. Os esporos podem se fixar e multiplicar no trato digestório, sobretudo no intestino, onde ocorrerá a produção da toxina. A alteração da microbiota pela exposição a antibióticos, doença de Crohn e cirurgias intestinais são condições que favorecem o botulismo intestinal. Observação Preste atenção agora para compreender a relação entre as crianças e o mel. Crianças também podem se intoxicar ao ingerir os esporos de C. Botulinum, os quais, ao germinar no trato digestório, podem produzir a toxina. O botulismo infantil é causado pela toxina botulínica produzida pelo bacilo Clostridium botulinum, que coloniza o trato intestinal de crianças com duas semanas a seis meses de idade (KOLUMAN et al., 2013) e frequentemente ocorre quando a criança ingere o mel contendo o bacilo (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2002). A imatura microbiota intestinal da criança permite a germinação e multiplicação dos esporos do Clostridium botulinum e a consequente produção da toxina botulínica no lúmen intestinal (KOLUMAN et al., 2013). Na criança com botulismo, a constipação é geralmente o primeiro sinal clínico da intoxicação, e o organismo apresenta fraqueza progressiva simétrica e descendente (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2002), redução da capacidade de sucção, choro fraco, redução da resposta motora aos estímulos externos com subsequente hipotonia, letargia e apatia, perda do controle da força muscular de sustentação da cabeça (KOLUMAN et al., 2013) e redução da motilidade gastrintestinal. O tratamento pode exigir até seis meses de internação da criança (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2002). 357 TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS Observação Até 5% dos casos de morte súbita de crianças de até 24 meses de idade podem ser associados à toxina botulínica. Você entendeu agorapor que lactentes não podem se expor ao mel? Ainda há o botulismo, em que ferimentos são portas de entrada para a contaminação por C. botulinum. Há sete diferentes formas de toxina botulínica, que são denominadas por tipos de A a G. As toxinas botulínicas tipos A, B, E e raramente a F são capazes de causar botulismo em humanos. A doença é causada em mamíferos, peixes e pássaros pelos tipos C, D e E. A recuperação da intoxicação pela toxina tipo A é mais lenta em relação à intoxicação pela toxina tipo E, demonstrando que o tempo de remissão dos efeitos depende do tipo de toxina botulínica à qual o organismo se expôs (CHERRY et al., 2013). Toxicodinâmica da toxina botulínica Para que haja a manifestação do efeito tóxico, a toxina botulínica deve ser internalizada na célula. Para isso, nos terminais pré-sinápticos, ocorre o rompimento da ligação dissulfeto que une as duas cadeias da toxina botulínica, e a cadeia leve é internalizada na célula por vesículas de endocitose (CHERINGTON, 2004). Você se recorda de que, para que haja o potencial de ação, há a necessidade da exocitose da acetilcolina que está localizada em vesículas de armazenamento? Pois bem: a toxina botulínica cliva enzimaticamente as proteínas necessárias para a exocitose do neurotransmissor. Agora, você consegue inferir o que acontece. O resultado dessas interações químicas é a paralisia da musculatura, uma vez que o neurotransmissor, ACh, não é liberado, pois as proteínas que atuavam sobre as vesículas de armazenamento desse neurotransmissor foram inibidas pela toxina botulínica (CHERINGTON, 2004). Os sinais e sintomas da intoxicação aparecem com mais frequência entre 12 e 36 horas, embora possa haver uma variação de quatro horas a oito dias após a exposição (CHERRY et al., 2013). Lembrete A intoxicação acontece pela toxina botulínica e não pelo Clostridium botulinum, ou seja, pela toxina e não pela bactéria. 358 Unidade III Fraqueza, vertigem e acentuda fadiga precedem boca seca, visão turva, dificuldade para falar e engolir. Também pode ocorrer inchaço abdominal, vômito, diarreia e obstipação, e a redução da sudorese e a boca seca são consequências do bloqueio da ACh no sistema nervoso autônomo (CHERINGTON, 2004). Não há perda da consciência, nem febre, mas pode evoluir para fraqueza no pescoço e braços, e em seguida são afetados os músculos da parte inferior do corpo e as vias respiratórias, levando a uma insuficiência respiratória (CHERRY et al., 2013). Se por um lado registram-se poucos casos de intoxicação aguda no Brasil e no mundo; por outro, a letalidade é alta (5% a 10% dos casos), e o diagnóstico e tratamento devem ser adequados e imediatos, com a administração de soro antitoxina botulínica e cuidados respiratórios intensivos. É importante adicionar substâncias químicas nos alimentos para que se previna sua contaminação? Podemos adicionar qualquer quantidade do aditivo no alimento? Para evitar contaminação bacteriana, adicionam-se intencionalmente nos alimentos substâncias químicas que têm uma quantidade máxima no alimento, chamada de limite de tolerância (LT). Assim, para prevenir a intoxicação, deve-se respeitar o LT e a IDA. Agora, vamos dedicar parte de nosso material aos adoçantes de alimentos, denominados de edulcorantes artificiais, adicionados intencionalmente nos alimentos. 7.1.4.3 Edulcorantes artificiais A guerra contra a obesidade, assim como contra o aspartame, é onipresente. Observamos que cada vez mais as pessoas clamam por alimentos menos calóricos. Ao recebermos café ou chá em uma padaria, também nos são disponibilizados edulcorantes como o aspartame, a sacarina ou o ciclamato de sódio, e, preocupados com a saúde, os utilizamos em substituição ao açúcar refinado (NILL, 2000). É cada vez mais comum o uso de edulcorantes artificiais nas dietas para os que apresentam sobrepeso ou obesidade. Entretanto, existe um aspecto paradoxal nesse contexto. Se, por um lado, as pessoas estão se preocupando mais com sua saúde e aspecto físico, por outro, também há a preocupação sobre a segurança dos edulcorantes e há, inclusive, os que criticam a Administração de Alimentos e Medicamentos estadunidense (Food and Drug Administration – FDA) sob a alegação de que não esteja atenta a possíveis danos à saúde causados pelos edulcorantes artificiais. Dessa forma, está montado um cenário no qual há um consumidor que anseia por alimentos de baixa caloria, e na outra ponta há a presença de uma indústria pujante que conduz o roteiro dos edulcorantes. Para que você tenha uma dimensão temporal, há mais de cem anos despontaram os polos dessa batalha entre os que enaltecem a descoberta dos substituintes do açúcar refinado e os que questionam a segurança desses substituintes. Segundo Nill (2000), a FDA como agente reguladora, aparentemente, permaneceu de forma relativamente neutra dentro de sua esfera de atuação, a despeito de calorosos protestos a favor e contra a aprovação dos edulcorantes. 359 TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS O início da história dos edulcorantes artificiais aconteceu acidentalmente, em 1879, quando dois pesquisadores da Universidade Johns Hopkins, na tentativa de sintetizar um medicamento, obtiveram a sacarina, que é um derivado não nutritivo do alcatrão do carvão, com capacidade adoçante cerca de 300 vezes superior ao do açúcar refinado (NILL, 2000). Observação Atente-se às “entradas” e “saídas” dos edulcorantes no mercado de alimentos. Em 1907, a sacarina já era amplamente utilizada como edulcorante em alimentos enlatados; cinco anos depois, foi proibida sua utilização como aditivo alimentar. Entretanto, com a escassez de alimentos, inclusive do açúcar, durante a Primeira Guerra Mundial, a sacarina voltou a ser comercializada sob o status de um edulcorante “seguro”, quando foi consumida até a década de 1950. Observação Observe que inicialmente utilizam a sacarina, depois seu uso é proibido por conta de possíveis riscos à saúde e, poucos anos depois, é comercializada como “segura”! Os edulcorantes, ao longo do tempo, trouxeram mais preocupação com a segurança de seu uso do que benefícios para a dieta da população, ainda que se deva considerar que, sob condições de algumas doenças como diabetes mellitus, deva haver restrição da exposição ao açúcar refinado. Os críticos ao uso dos edulcorantes artificiais alegam que a indústria de alimentos tenta associar um corpo esguio com a exposição a adoçantes e que corpos esculturais são cultuados como padrão de beleza. Na década de 1950, com a comercialização do ciclamato de sódio, produzido a partir de 1937 pelo laboratório Abbot, a preocupação com os adoçantes tomou fôlego. Em 1951, o ciclamato foi aprovado pela FDA e, em 1953, foi produzido o primeiro refrigerante diet (NILL, 2000). O ciclamato, frequentemente utilizado em combinação com a sacarina, foi o adoçante mais popular dos Estados Unidos em 1963. Para que você tenha dimensão da intensidade de seu uso, na época, foi utilizado no bacon, creme dental, produtos de panificação, enlatados, batom, cereais, enxaguante bucal, além das bebidas. Até hoje não se sabe o motivo do fenômeno de vendas/utilização do ciclamato, se pelo seu potencial adoçante, baixo teor calórico ou pelo preço, pois era comercializado por um décimo do preço do açúcar refinado. A partir de 1963, com a comercialização vertiginosa do ciclamato (quintuplicou-se a comercialização do produto nos vinte anos subsequentes à sua aprovação), o FDA recomendou que os adultos não ultrapassassem o limite de exposição de 3500 mg de ciclamato por dia (quantidade presente em cerca de dez latas de refrigerante diet) (NILL, 2000). 360 Unidade III Observação Cada refrigerante tem sua característica. Há edulcorantes presentes em refrigerantes diet que em poucas latas podem ultrapassar a IDA. Atente-se a como os parâmetros legais são fugazes, ou seja, aparecem, desaparecem e reaparecem rapidamente. É nesse contexto que alguns pesquisadores expõem que a FDA mudade orientação com uma incrível fluidez. Em 1977, houve um caos na indústria de alimentos. Sabe por quê? A FDA obteve a informação de que pesquisadores canadenses trouxeram à luz a relação direta entre o câncer de bexiga em ratos de laboratório e a exposição à sacarina. Opostamente, em Nova York, um estudo realizado no Albany Medical College demonstrou que a sacarina era inócua quanto ao risco de carcinogenicidade, ou seja, era isenta de riscos para o câncer em animais. Mas, imaginemos o cenário dos que se expõem cronicamente ao adoçante, como os diabéticos: como ficaria o “psicológico” dessas pessoas, sabendo que houve um estudo demonstrando a carcinogenicidade da sacarina em animais, com a exposição crônica ao edulcorante? (NILL, 2000). A legislação de um país se fundamenta em pesquisas para que seja publicada e aplicada. É a “roda do conhecimento” girando em benefício da sociedade. Consegue perceber como é tudo muito dinâmico? Voltando ao histórico dos edulcorantes artificiais, porém com mais um desafio: imaginemos que você é o(a) presidente da Anvisa. Dentro desse cenário envolvendo a sacarina, após a publicação dos pesquisadores canadenses sobre o câncer de bexiga causado pelo edulcorante, você liberaria a utilização da sacarina ou não permitiria sua utilização até que fossem realizados mais estudos que comprovem sua segurança? Você teria tomado a medida mais sensata: proibiria a comercialização desse produto. Foi exatamente isto que a FDA fez: baniu a sacarina. O que entrou em ação nesse momento? O congresso norte-americano, que permitiu a venda da sacarina, a despeito do posicionamento da FDA. Mas, nesse momento, a reputação do edulcorante já não mais podia ser reparada. Em 1965, o químico James Schlatter estava trabalhando em um medicamento antiúlcera que utilizava o ácido aspártico e fenilalanina e, durante o processo de produção, colocou o dedo na mistura (literalmente falando), sentiu o sabor e constatou que o gosto era agradável. Foi assim que nasceu o aspartame, edulcorante de baixa caloria que também provou muitos obstáculos e controvérsias ao longo de sua doce trajetória. 361 TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS Observação Não se faz o que o químico fez: colocar a mão em uma matéria-prima ou em um produto durante seu preparo! Em 1973, após terem sido feitos testes e ter-se obtido respostas em termos de pesquisa científica com maior sucesso em relação à sacarina, a empresa Searle solicitou a petição como aditivo alimentar para o aspartame. Após alguns anos, houve sua aprovação. Como exposto, os adoçantes artificiais são amplamente utilizados como aditivos alimentares e substitutos do açúcar refinado na alimentação, com o objetivo de reduzir a ingesta calórica. Efetivamente, há estudos que demonstram que a exposição a adoçantes artificiais pode auxiliar na perda de peso corpóreo e também trazer benefícios aos que têm diabetes mellitus (BIAN et al., 2017). Outros estudos também sugerem que o consumo de adoçante artificial pode levar à intolerância à glicose e, inclusive, à síndrome metabólica associada ao ganho de peso corporal. Consequentemente, poderia aumentar o risco de obesidade, ainda que o mecanismo envolvido nesse desequilíbrio do organismo ainda seja desconhecido. Atualmente, tem havido muita atenção da comunidade científica sobre o desequilíbrio da microbiota intestinal, denominado de disbiose, que pode estar associado a doença inflamatória intestinal, diabetes e obesidade. Os efeitos específicos produzidos na microbiota intestinal pela exposição a adoçantes artificiais são pouco conhecidos. Entretanto, Bian et al. (2017) demonstraram que ratos que se expuseram a sucralose a 1% apresentaram prejuízo no crescimento de enterobactérias e que ensaios realizados com a mesma espécie sugerem que a exposição a adoçantes artificiais não calóricos como a sacarina leva à redução da tolerância à glicose e altera a composição das bactérias intestinais. Você consegue observar quanta informação está agregada apenas à parte de edulcorantes? Após essa apresentação dos aspectos históricos, legais e toxicológicos envolvendo os edulcorantes artificiais, convidamos você a conhecer com mais especificidade os principais adoçantes artificiais utilizados no Brasil. Acessulfame de potássio O acessulfame de potássio (veja a figura a seguir) é um dos adoçantes artificiais atuais mais utilizados na dieta em todo o mundo. Possui poder adoçante cerca de 200 vezes superior à sacarose e longa vida útil e apresenta poder adoçante sinérgico quando associado a outros edulcorantes (KLUG; LIPINSKI; NABORS, 2011). 362 Unidade III O O H3C O OS N-K+ Figura 146 – Propriedades físico-químicas do acessulfame de potássio Após a exposição oral em cães, ratos e humanos, a absorção do acessulfame de potássio é rápida e completa, e ele é rapidamente excretado. Em ratos, após a exposição oral, o pico do edulcorante na circulação sanguínea é de 30 minutos, com meia vida biológica (t½) de 4,8 horas. Em humanos, a concentração plasmática máxima do acessulfame de potássio é atingida entre 1 e 1,5 hora após exposição de 30 mg do edulcorante, e os teores mais elevados do edulcorante foram encontrados no trato digestório, bile, rins e bexiga urinária, com t½ de 2,5 horas. Após a absorção, o edulcorante é rapidamente distribuído e excretado, sem que haja evidência de que seja bioacumulado em algum órgão ou tecido específico. Sabe-se que 97,5% do acessulfame de potássio marcado com carbono-14 (C-14) administrado em ratos, por via oral, são excretados em 24 horas, pela urina. Em humanos, esse teor foi de 98,4% na mesma unidade de tempo e amostra biológica (KLUG; LIPINSKI; NABORS, 2011). Vamos entender melhor o quão importante é o conhecimento da natureza da substância química? Quimicamente, o acessulfame de potássio pertence ao grupo das sulfonamidas e, assim como o ciclamato de sódio e a sacarina, apresenta atividade antimicrobiana (BIAN et al., 2017). Estudos trazem à luz que, além de inibir a fermentação da glicose pelas enterobactérias, o acessulfame de potássio também é genotóxico (BIAN et al., 2017). Um estudo recente demonstrou que há diferenças entre a microbiota intestinal de estadunidenses adultos saudáveis que se expõem e a dos que não se expõem aos adoçantes artificiais, incluindo o aspartame e o acessulfame de potássio. Em animais, Bian et al. (2017) investigaram os efeitos do acessulfame de potássio em camundongos CD-1 e concluíram que após a exposição por quatro semanas há alteração da microbiota intestinal desses animais e ganho de peso corporal em machos, mas não em fêmeas (BIAN et al., 2017). Observação Há marcante diferença nos efeitos sobre o padrão da microbiota intestinal entre animais fêmeas e machos que se expõem aos edulcorantes artificiais. 363 TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS A explicação para essa diferença de resposta, levando-se em consideração o gênero, é em função de gênes funcionais associados ao metabolismo energético que são inibidos em fêmeas e ativados em machos. Também há alterações diferenciais em ambos os gêneros no que se refere ao perfil da microbiota intestinal. Experimentos demonstram que, no sangue periférico de camundongos machos e fêmeas hemizigóticos Tg.AC que se expuseram à ração com 0,3% a 3% de acessulfame de potássio, não há aumento da frequência de eritrócitos micronucleados; e estudos envolvendo as mesmas concentrações do edulcorante em rações para camundongos p53 haploinsuficientes apresentaram significativo aumento de eritrócitos micronucleados em machos, mas não em fêmeas (KLUG; LIPINSKI; NABORS, 2011). Observação Os estudos relatados aqui são mais um achado científico demonstrando que o gênero influencia nos efeitos de uma substância química. O que poderímos concluir com esses resultados? Primeiramente, como já vimos, há marcante alteração de efeitos no organismo dos que se expõem ao acessulfame de potássio em relação ao gênero. Em seguida, entendemosque, ao avaliar os adoçantes, é possível estabelecer uma estreita correlação entre a exposição a edulcorantes artificiais, a alteração da microbiota intestinal de animais decorrente dessa exposição e o aparecimento de processo inflamatório crônico do intestino (BIAN et al., 2017). Ratas Wistar tiveram maior incidência de fibroadenoma e adenocarcinoma em comparação com machos de mesma espécie que se expuseram ao acessulfame de potássio. Observação Precisamos ser bastante críticos ao interagirmos com esses dados. A literatura nos mostra que, mesmo que os experimentos sejam realizados com o maior rigor científico, os resultados podem ser questionados. Não existe uma verdade absoluta sobre os resultados; por isso, nem sempre a conclusão é facilmente obtida. Continue acompanhando o raciocínio! O dado anterior sobre fibroadenoma e adenocarcinoma quase nos faz concluir que o acessulfame de potássio induz o aparecimento de adenocarcinoma em ratas, não é? Mas não! Sabe por quê? A taxa de controle histórica de adenocarcinomas da glândula mamária é de 5%, e eles são comuns para a espécie. A incidência dessa doença foi relativamente baixa em comparação aos dados históricos (KLUG; LIPINSKI; NABORS, 2011). 364 Unidade III Mesmo quando temos números fidedignos, precisamos de muita cautela para concluirmos um experimento ou um achado científico. Essa é a visão que precisamos desenvolver ao longo de nossa trajetória acadêmica para que, no ambiente profissional ou científico, sejamos bastante ponderados nas colocações e conclusões de resultados. É exatamente este o contexto envolvendo os edulcorantes: um pesquisador obtém um resultado e outro pesquisador o questiona. É assim que se faz ciência! Há estudos de casos relatando reação alérgica ao edulcorante, ainda que o acessulfame de potássio não esteja normalmente associado a esse tipo de reação. Há estudos in vitro que sugerem que a exposição crônica do edulcorante compromete a estrutura da HDL e apoA-I e, consequentemente, tende a acelerar o processo de senescência e aterosclerose. Também não apresenta atividade carcinogênica em ratos ou camundongos em estudos de genotoxicidade in vivo e in vitro, incluindo o S. typhimurium TA98, que testou negativo para o teste de Ames e é considerado um contaminante emergente para o ecossistema, em função de sua ampla ocorrência (uso) e persistência ambiental. Observação Tudo é muito dinâmico: o organismo se expõe ao edulcorante, o excreta e contamina o meio ambiente. A presença de edulcorante pode trazer algum dado à flora e fauna? O acessulfame de potássio pode causar danos em peixes, como alteração da frequência cardíaca, redução das taxas de sobrevivência durante a vida embrionária e de eclosão e descolamento de cauda. Sugerimos, nesse momento, que façamos juntos uma reflexão. Observe como a literatura nos traz à luz inúmeras informações, e paulatinamente concluímos que estamos construindo um significativo repertório de informações e de conhecimento. Para isso, vamos agora fazer um quiz. Exemplos de aplicação Pergunta: o acessulfame de potássio é biotransformado? Para chegar a essa resposta, você se lembrou de que 97,5% do acessulfame de potássio é excretado inalterado na urina de ratos? E que em humanos, esse edulcorante é 98,4% excretado inalterado, na urina? Se é excretado praticamente inalterado na urina, significa que não é biotransformado ou há uma ínfima biotransformação. Paraa próxima pergunta, vamos nos reportar aos ensaios de avaliação de toxicidade. Nessa parte da matéria, vimos que as substâncias químicas podem ser persistentes no ambiente e, também, podem causar danos à flora e à fauna. 365 TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS Pergunta: dentro desse contexto, o acessulfame de potássio poderia causar danos à flora e à fauna? Vimos há pouco possíveis danos que o edulcorante pode causar a peixes. Assim, caso rejeitos humanos (esgoto) não sejam tratados e sejam lançados diretamente em corpos d’água, o que acontece muito no Brasil, os peixes podem ser afetados por essa substância. Parece que o universo toxicológico é mais amplo do que poderíamos imaginar, não é verdade? Aspartame Em algum momento alguém já lhe falou (ou você já recebeu uma mensagem no seu celular ou e-mail sobre o assunto) que o aspartame pode cegar? Você acredita que essas informações fazem sentido sob a óptica toxicológica ou são mais algumas das fake news? Vamos estudar um pouco mais e descobrir a veracidade dessas mensagens. O aspartame é um adoçante artificial (veja a figura a seguir) com poder adoçante 180 a 200 vezes superior à sacarose e constituído de três componentes: ácido aspártico, fenilalanina e metanol. A população europeia consome cerca de 2 mil toneladas desse edulcorante por ano. NH2 Metanol Fenilalanina Ácido aspártico OH OCH3 O O O N H Figura 147 – Estrutura química do aspartame Agências europeias que regulam os alimentos e medicamentos têm como responsabilidade monitorar as relações envolvendo os alimentos e a saúde e, quando pairar dúvida, proceder experimentos que as dirimam. À luz do conhecimento atual, o aspartame não está associado à queda de cabelo, à depressão ou ao câncer, como alguns sites ou redes sociais apresentam (PUBCHEM, s.d.). Ainda que, em 1988, a EFSA tenha declarado que o aspartame é considerado seguro, por pressão dos setores públicos foi conduzida uma revisão com mais de 500 relatórios, e no ano de 2002 concluiu-se que a IDA do aspartame deveria ser de 40 mg/kg/dia, exceto para fenilcetonúricos (PUBCHEM, s.d.). Lembrete IDA, ou ingestão diária aceitável, é a máxima quantidade de uma substância química adicionada ao alimento a que a pessoa pode se expor diariamente, por toda a vida, sem risco de intoxicação. 366 Unidade III Observação Em países ocidentais, cerca de 10% do total de calorias diárias advêm do açúcar (200 kcal), o que equivale a aproximadamente 50 g de açúcar por dia. Calcular a quantidade de aspartame a que a pessoa pode se expor diariamente é uma tarefa inglória aos que não têm muito conhecimento na área da saúde, até porque fabricantes de alimentos utilizam coquetéis adoçantes, tornando ainda mais difícil o cálculo da exposição diária do edulcorante (LEAN; HANKEY, 2004). Para que se ultrapasse a IDA do aspartame, faz-se necessária a exposição a dez latas de refrigerante por dia, em média. Observação Ingestão superior a 1 g de aspartame por dia pode provocar convulsões em macacos. O aspartame é biotransformado a ácido aspártico, fenilalanina e metanol. O ácido aspártico, também conhecido por aspartato, é um aminoácido não essencial de ocorrência natural e um componente das proteínas, importante na síntese de DNA, da ureia e dos neurotransmissores encefálicos. A fenilalanina, diferentemente do ácido aspártico, é um aminoácido essencial, ou seja, humanos precisam obtê-lo a partir da dieta. É um precursor para a síntese de tirosina e outros neurotransmissores (WALTERS, 2001). Nesse momento, entramos em uma seara das mais relevantes envolvendo os edulcorantes. Você já ouviu falar do teste do pezinho para recém-nascidos? Um dos objetivos desse teste é identificar se a criança é fenilcetonúrica. Você poderia dizer o que significa ser fenilcetonúrico e qual é a importância sob a óptica toxicológica? Vamos, então, compreender ainda melhor o que significa uma pessoa fenilcetonúrica. Em condições normais, a fenilalanina em excesso é hidrolisada a acetoacetato e fumarato por meio da enzima fenilalanina hidroxilase. Entretanto, há pessoas que não produzem quantidades adequadas dessa enzima e, consequentemente, não conseguem metabolizar a fenilalanina normalmente (WALTERS, 2001). Observação A fenilalanina não hidrolisada é neurotóxica. 367 TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS O organismo que não é capaz de hidrolisar a fenilalanina é denominado fenilcetonúrico porque o excesso de fenilalanina é convertido em fenilcetona, excretada na urina e que confere um odor característicoa ela. Assim, o teste do pezinho é um exame que identifica essa doença genética, uma vez que, como exposto, a fenilalanina é neurotóxica para os fenilcetonúricos. O que aconteceria então a um fenilcetonúrico que se expusesse a um alimento que contenha esse aminoácido? Haveria uma grande quantidade de fenilalanina no organismo e possivelmente danos neurológicos. Saiba mais Sugerimos que você leia o material a seguir: AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA (ANVISA). Informe técnico n. 49, de 11 de abril de 2012. Brasília, 2012. Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/alimentos/fenilalanina/ arquivos/4712json-file-1/@@download/file/4712json-file-1.pdf. Acesso em: 15 dez. 2020. Vimos bastante informação sobre o aspartame, mas ainda está faltando o metanol. Esse álcool pode, efetivamente, levar à cegueira. Para que tenha dimensão dos possíveis danos que o metanol possa causar no organismo humano, trazemos um caso que aconteceu em 2016, quando a jovem Hannah Powell, de 23 anos, tomou uma vodka falsificada, contendo metanol. Sabe qual foi o resultado? Perdeu a visão e os rins! É por isso que alguns escrevem que o metanol gerado pela biotransformação do aspartame cega (WILSON, 2019). Os que não dominam a toxicologia podem, mesmo que sem esse objetivo, causar pânico na população ou levar a uma informação falsa. E é exatamente isso que acontece nesse contexto. O metanol pode levar à cegueira? Sim, com certeza (não apenas à cegueira, como à morte). Para que contextualizemos a informação, no ano de 1999, para aumentar a lucratividade na venda do etanol, o metanol foi adquirido e acrescentado na aguardente (etanol), uma vez que ele possui custo inferior ao etanol e, assim, haveria o aumento da lucratividade na venda da aguardente. Esse fato ocorreu no estado da Bahia (GONZÁLEZ, 1999). Você sabe qual foi a consequência desse ato? Trinta e cinco pessoas morreram! 368 Unidade III Exemplo de aplicação De posse da informação de que o metanol apresenta elevada toxicidade e pode levar à cegueira (é verdade) e é formado no organismo após a biotransformação do aspartame (é verdade), reflita: podemos dizer que o aspartame pode levar à cegueira? Lembrete Toda substância pode ser considerada tóxica, dependendo das condições de exposição. É bastante improvável que a quantidade de metanol formada no organismo a partir da biotransformação do aspartame seja suficiente para levar à cegueira. Você entendeu como é importante a colocação adequada das informações para que não se crie pânico na população ou se divulgue informações inverídicas? Segundo Walters (2001), a exposição ao aspartame gera radicais livres e há duas consequências diretas da formação desses compostos instáveis, mas extremamente reativos: aceleram o processo de envelhecimento do organismo e maximizam a possibilidade do aparecimento de câncer, uma vez que podem atuar na supressão de genes que nos protegem e maximizar a expressão dos que estimulam o aparecimento dessa doença. Há estudos que confirmam o aparecimento de leucemias, linfomas e vários outros tipos de câncer, inclusive os que envolvem o trato urinário, pela exposição ao aspartame, ainda que em pequena quantidade, segundo o mesmo autor. Ciclamatos Os ciclamatos não ocorrem naturalmente e são produzidos a partir da ciclohexilamina, obtida pela redução da anilina. O ciclamato de sódio (veja a figura a seguir) é conhecido simplesmente como ciclamato e é o mais comum dos ciclamatos. O O O-Na+SNH Figura 148 – Estrutura química do ciclamato de sódio 369 TOXICOLOGIA E ANÁLISES TOXICOLÓGICAS O ciclamato de cálcio (veja a figura a seguir) é mais utilizado em produtos que exijam menor quantidade de sódio ou até mesmo sejam isentos dessa substância. Os ciclamatos de cálcio e de sódio são edulcorantes não nutritivos. O 2O O- Ca++SNH Figura 149 – Estrutura química do ciclamato de cálcio Na Austrália, em 1994, consumidores de 12 a 39 anos de idade, 27% homens e 21% mulheres, apresentaram ingestão média de 23% da IDA do ciclamato. No Brasil, um estudo realizado entre 1990 e 1991 demonstrou que 67% da população consumia ciclamato e a ingestão diária era de aproximadamente 16% o valor da IDA, sendo que os adoçantes de mesa representaram a fonte principal de exposição, seguida dos refrigerantes (IARC, 1999). Em 1992, avaliou-se que a média de exposição ao ciclamato para toda a população espanhola foi de 0,44 mg/kg (PC) por dia e de 2,44 mg/kg (PC) por dia para a população que costumeiramente se expunha ao ciclamato, como os diabéticos. A IDA do ciclamato foi ultrapassada por apenas 0,16% das pessoas (IARC, 1999). Segundo a Anvisa (2012), aproximadamente 37% do ciclamato ao qual o organismo se expõe não são biotransformados pelo fígado, e cerca de 30% do edulcorante inalterado presente no intestino podem ser biotransformados a ciclohexilamina pela microbiota. Sugerimos que observe atentamente a diferença de respostas entre diferentes espécies. Em coelhos, o ciclamato administrado por via oral é prontamente absorvido, mas em humanos, ratos e porcos-da-índia a absorção é mais lenta. Essas espécies biotransformam o ciclamato a ciclohexilamina e a biotransformação desse metabólito é diferente entre humanos e outros animais. A maior parte da ciclohexilamina é rapidamente excretada inalterada na urina (IARC, 1999). Em coelhos, porcos-da-índia e ratos, a ciclohexilamina é biotransformada a ciclohexanona e, posterioremtne, a ciclohexanol. Macacos rhesus excretaram 99,5% do ciclamato inalterado quando expostos por vários anos por via oral, e os principais metabólitos encontrados são ciclohexilamina, ciclohexanona e ciclohexanol. Em ratos, a ciclohexilamina é biotransformada sobretudo por hidroxilação do anel ciclohexano; em humanos, a metabolização ocorre por desaminação. Em coelhos e porcos-da-índia, a metabolização ocorre pela hidroxilação do anel aromático e desaminação. A administração por gavagem ou injeção intraperitoneal em porcos-da-índia e ratos demonstra que a maior parte da ciclohexilamina é excretada inalterada e apenas 4% a 5% são biotransformados, em 24 horas (IARC, 1999). 370 Unidade III Ainda que a maioria das pessoas converta apenas pequenas quantidades de ciclamato em ciclohexilamina, existe uma resposta interindividual no perfil de biotransformação que pode trazer uma grande variação na excreção urinária da ciclohexilamina. Um dos aspectos que se faz necessário considerar é que a microbiota do trato digestório é uma importante fonte de biotransformação a ciclohexilamina, derivada do ciclamato, que pode apresentar efeitos adversos à saúde. Observe a amplitude de variação de resposta para a mesma condição de exposição ao edulcorante, apenas variando o organismo: a taxa de metabolização da ciclohexilamina apresenta uma variabilidade individual de < 1% até 60%. Lembrete A suscetibilidade individual é uma das condições de exposição. Uma situação que convém destacar é que o organismo se expõe aos sais de ciclamato, e uma das palavras que você mais leu nos últimos parágrafos foi ciclohexilamina, não é? Vamos entender por quê? Acompanhe o raciocínio a seguir. Há vários estudos que demonstram que o produto de biotransformação do ciclamato, a ciclohexilamina, é capaz de causar prejuízo nos testículos de ratos. Dose de 400 mg/kg dia de ciclohexilamina em ratos Wistar produz atrofia testicular, mas a mesma dose não afeta o testículo de camundongos, e essa toxicidade se deve à ciclohexinalamina propriamente dita, não aos produtos hidroxilados (IARC, 1999). Por exemplo: caso fôssemos questionados sobre a toxicidade da ciclohexilamina, estaríamos seguros em afirmar que essa substância pode causar prejuízo testicular em ratos Wistar. Entretanto, também precisa ficar bem claro que a dose que causa esse dano no animal é muito superior à IDA em humanos. Ficou mais claro como se faz a leitura dessas informações científicas? Sempre é importante termos um parâmetro de avaliação da exposição,
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