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P214m Papert, Seymour A máquina das crianças: repensando a escola na era da Informática/ Seymour Papert; tradução Sandra Costa – ed. reb. – Porto Alegre: Artmed, 2008. 224 p.; 23 cm. ISBN 978-85-363-1058-9 Tecnologia Educacional. 1 Título. CDU 371.694:681.3 Catalogação na publicação: Juliana Lagôas Coelho - CRB 10/1798 vi Agradecimentos Este livro é toda a minha vida profissional ganharam muito com a oportu- nidade de trabalhar no MIT Media Labs,² cuja criação por Nicholas Negroponte, representa uma experiência significativa e original na construção de um ambien- te apropriado para o florescimento de uma disciplina, ainda embrionária, de relacionamento entre a academia e a indústria. As políticas do Média Lab possibilitaram-me trabalhar com algumas em- presas - notadamente a Lego, a Aplle e a IBM, a Nitendo e a Logo Computers Systens - sem jamais sentir pressões que comprometessem minha integridade intelectual. Este livro e o meu modo de pensar devem a essa colaboração muito mais do que o apoio financeiro: no mundo moderno é necessário refletir sobre m u d a n ç a s n a e d u c a ç ã o e n v o l v e n d o t o d o s o s s e t o r e s d a s o c i e d a d e . também devo mais do que apoio financeiro à National Science Foundation, principalmente porque Andrew Molnar, de modo admirável, tanto nos anos bons como nos difíceis, conseguiu manter acesa naquela instituição a chama da crença na mudança. Seria difícil traduzir em poucas palavras a contribuição da minha edito- ra, Susan Rabiner, para este trabalho. Se o texto final contém falhas, é porque eu consegui fazer mudanças de ultimas hora à sua revelia. Minha esposa Susanne Massie, uma escritora extraordinária, sempre soube quando eu estava, ou não, seguindo a trilha promissora. Como editora pro- fissional extremamente competente, inúmeras vezes passou horas recortando e colando páginas para mim incorrigíveis, até surgir uma nova forma, como uma estrutura que surge da rocha. Sua extraordinária engenhosidade, paciên- cia e abnegação proporcionaram-me condições propícias para o trabalho. A presença de Suzanne em vários aspectos de minha vida - intelectual, espiritual e emocional - ultrapassa de tal modo o profissional e o prático que prefiro nada mais acrescentar. ² Laboratório de Mídias do Massachussetts Instituto of Tecnology (MIT), EUA (www. media.mit.edu). Nicholas Negroponte projetou com sua equipe, o laptop de cem dóla- res (www.laptopfoundation.org), para crianças de países em desenvolvimento. Essa nova tecnologia portátil é a “máquina das crianças” idealizada por Seymour Papert na sua primeira obra sobre o tema, Mindstorms: children, computers and powerfull ideas (1980), e também no presente livro. http://www.laptopfoundation.org/ Sumário Prefácio à Edição Revisada Brasileira ............................................................................................ 9 Prefácio ....................................................................................................................................... 13 1. Yearners e Schoolers¹ ...................................................................................................... 17 2. Pensamento pessoal ...................................................................................................... 35 3. Escola: mudança e resistência à mudança ..................................................................... 47 4. Professores ..................................................................................................................... 65 5. Uma palavra para a arte de aprender ............................................................................ 87 6. Uma antologia de historias de aprendizagem ............................................................. 107 7. Instrucionismo versus construcionismo ....................................................................... 133 8. Computadoristas1 ......................................................................................................... 149 9. Cibernética ................................................................................................................... 169 10. O que se pode fazer? ................................................................................................... 191 Fontes de informação ............................................................................................................... 209 Referências ................................................................................................................................ 211 Prefácio à Edição Revisada Brasileira Esta edição revisada de A máquinas das crianças é oportuna em vários sentidos. Primeiro, pelo surgimento dos notebooks para alunos do ensino funda- mental e médio, o que representa a mais recente onda tecnológica na educa- ção mundial. A ideia dos computadores pessoais como ferramentas de aprendi- zagem foi lançada por Seymour Papert há quase 30 anos. Neste livro, ele reafirma a tese de que o computador é importante por dar autonomia intelec- tual ao aprendiz dos primeiros anos de escolarização e, assim, tornar a cr iança menos dependente de adul tos provedores de informação. Ade- mais, para ser eficaz na escola, o computador, segundo Papert, deveria ser como o livro e o caderno, sempre disponíveis. Na realidade, isso também faz sentido para adultos que hoje exercem as mais diversas atividades intelectuais com um computador ligado e levam seus notebooks quando a tarefa exige deslocamento. Segundo, porque, apesar do nome, este não é um livro apenas sobre compu- tadores na educação, mas o esboço de uma teoria de aprendizagem na escola e na vida, contextualizada com as novas tecnologias da informação e comuni- cação. Alguns pontos abordados vividamente — por meio de exemplo de coti- diano escolar e da vida pessoal do autor— são temas perenes, como a atividade colaborativa genuína entre aprendizes para resolução de problemas, tais como a inadequação da estrutura da escola convencional face as mudanças contem- porâneas em outros setores da sociedade, o medo de alguns professores de serem suplantados pelos seus alunos, entre outros. Terceiro, essa nova edição pode ser considerada um reconhecimento da obra de Seymour Papert, autor que esteve várias vezes no Brasil e que se refere ao nosso pais em mais de um texto seu. Minha intenção inicial era solicitar ao próprio autor um novo prefácio para esta edição, mas, quando escrevi essas linhas, ele ainda se encontrava hospitalizado nos Estados Unidos devido a um grave acidente. O autor viveu de perto o período em que os computadores foram inven- tados e evoluíram nos Estados Unidos. Neste livro, não apenas conta, como outros já o fizeram de maneira impessoal, uma história “objetiva", factual, mas relata acontecimentos e impressões de quem conviveu com figuras como Marvin Minsky, Alan Turing e outros mais que só conhecemos por relatos bibliográficos genéricos. Para Papert, a história mais difícil de contar, mas muito importante de se conhecer, é subjetiva e sociológica. Para o leitor que não viveu as décadas de 1960 a 1980 da informática, a ênfase no livro à atividade de programação e à linguagem Logo pode aparecer despropositada. Logo foi a grande novidade na primeira década de uso de computadores pessoa i s na educação em uma época em não ex i s t i a a interface estruturada em janelas nem o correio eletrônico e a Web com a infini- dade com as opções de hoje, a qual estende-se seu alcance a praticamente qualquer pessoa. O ensino assistido por computador ainda era muito pobre devido a limitações das maquinas em termos de hardware e software e também devi- dos contextos das teorias de aprendizagem baseadas nos condicionamentos operantes skinneriano, no período pós- Segunda Guerra. Em vez de o aprendiz postar-se na frente de uma teça monocromática com conteúdos poucos interessantes,a programação em Logo lhe dava autono- mia para, entre outras atividades, produzir imagens gráficas coloridas e dinâ- micas, em um trabalho colaborativo com alunos do mesmo nível, orientados por um professor com sensibilidade. Programar um computador era um enor- me feito para uma criança, pois comandar uma máquina era até então privilé g io de adul tos de um conhec imento espec ia l izado , a lgo ina lcançãve l para uma pessoa comum. Seymour Papert foi um grande responsável por isso. Os educadores de hoje lidam com novas tecnologias estão se dando conta que a massiva introdução na escola (e em casa) de computadores liga- dos à internet não significa melhoria da aprendizagem. Aprender de modo significativo e duradouro exige esforço, persistência, muitas vezes tolerância à frustração, algo diferente da atitude de copiar "da internet", colar, enfeitar e imprimir trabalhos escolares, prática que está se tomando uma lastimável cul- tura em nossas escolas e mesmo em universidades. Como atestam as conferên- cias internacionais Eurologo, muitos professores estão redescobrindo o valor educativo da atividade de programação, atropelada pela vulgarização de uma face da internet que deixa muito a desejar. Este livro também é a melhor fonte em português sobre o construcionismo. Algumas ideias merecem discussões significativas para a educação, pois tem- dem a passar despercebidas em uma primeira leitura. Uma delas, um insight resultante da convivência acadêmica de Seymour Papert com Jean Piaget, é a valorização do pensamento concreto, mas sem a conotação de trampolim para o abstrato. Se assim fosse, "...deixaria o abstrato plantado imóvel como a for- ma derradeira de conhecer". Para ele, o pensamento concreto, não o formal abstrato, é o verdadeiro recheio do funcionamento da mente, onde as abstra- ções funcionam como ferramentas para intensificar o concreto. Os métodos formais estão à mão, não no topo. Traduzindo para a escola, isso é mais uma 10 Seymour Papert fundamentação para as didáticas baseadas no fazer, da educação infantil à universidade. Agir física e mentalmente com objetos concretos, em ambientes naturais ou se valendo de tecnologias de representação, não é melhor nem "pior" do que formalizar, aprender no nível mais abstrato. Outro conceito muito interessante que permeia o livro é a atitude de em- sino que Papert chama de tolerância exigente (demanding permissiveness), dei- xando claro que a proposta de quebrar com a aula e o currículo tradicionais não significa diminuir a responsabilidade do professor e deixar o aprendiz fazer o que quiser. Ao prover tecnologias e ambientes colaborativos adequados para desenvolver projetos pessoais, espera-se que o aprendiz trabalhe de modo árduo e que produza resultados significativos para si próprio e para o grupo. Isso obviamente em sintonia com parâmetros curriculares para seu nível de escolarização, que só professores competentes têm condições de orientar. A discussão sobre matética (a arte de aprender) lembra-nos reflexões de autores franceses sobre o professor reflexivo, todavia em uma mudança de direção, aplicando-se ao aluno. Na escola, particularmente no ensino funda- mental, o aprendiz ainda não se sente seguro e autónomo como um adulto nem tem o poder do professor. Isso torna tal atitude mental algo mais difícil de se atingir-principalmente em crianças que, sob uma ótica piagetiana, ainda não atingiram o estágio do pensamento formal, ou seja, ainda não têm a plena capacidade de ver o mundo e a si mesmas de uma maneira predominantemen- te lógica formal. Na revisão da tradução, procurei ser fiel ao espírito do texto original, o qual pretende estabelecer um diálogo com o leitor, fugindo das convenções de um livro acadêmico, conforme menciona o próprio autor no prefácio â sua edição norte-americana. Na mesma perspectiva, inseri quase uma centena de notas de rodapé, a fim de esclarecer para o leitor de língua portuguesa aspec- tos do texto que só têm sentido pleno para pessoas que conhecem a cultura do autor e que viveram a sua época-aproximadamente a segunda metade do século passado, algo que certamente os mais jovens não conheceram. Assim, as no tas cons t i tuem um h ipe r tex to pa ra le lo , cu ja l e i tura é opc iona l . No texto são citadas cerca de duas dezenas de intelectuais da época, boa parte deles trabalharam ou ainda trabalham em universidades norte-america- nas ou europeias. Esse aspecto, que tende a não ser notado em uma primeira leitura, dá ao leitor uma noção do multifacetado conhecimento e das áreas de interesse de Seymour Papert, mais ainda se levarmos em conta que ele era matemático por formação. Com certo exagero, costuma-se dizer que a Mate- mática é o ramo do conhecimento que não necessita quase de nenhum outro, pois, de acordo com essa tese, as outras ciências é que precisam da Matemáti- ca. Para comentar sobre o trabalho de pessoas citadas no texto, vali-me de parte das informações da Wikipédia em inglês, tendo o cuidado, é claro, de conferir com outras fontes. Em alguns casos inseri informações naquela enci- A Máquina das Crianças 11 clopédia livre, que é fiel ao espírito colaborativo da filosofia wiki de não ape- nas consumir, mas também contribuir e não confiar em apenas uma fonte. Lembrando Paulo Freire, citado várias vezes no texto, em algumas passa- gens o professor Papert faz uma sucinta discussão sobre o aspecto político do ato de ensinar no contexto da discussão de CAI e de outras tecnologias, cir- constância que lhe pareceu adequada para externar suas reservas por não atri- buir à máquina o poder de tomar decisões sobre como ensinar. O livro é leitura importante não apenas para pais e educadores, mas tam- bém para estudantes e profissionais da informática. Por fim, registro aqui meu agradecimento a Esman Dias, professor de Teoria e Técnica da Tradução da Universidade Federal de Pernambuco, pelas valiosas conversas que mantivemos no decorrer deste trabalho. Paulo Gileno Cysneiros 12 Seymour Papert Prefácio Seguidamente, ouve-se dizer que estamos adentrando a era da informá- tica.¹ Esse período que se inicia poderia ser igualmente denominado como a era da aprendizagem: a enorme quantidade de aprendizagem que vem ocor- rendo rapidamente em todo o mundo já é inúmeras vezes maior do que no passado. Não faz muito tempo - e até mesmo hoje, em diversas partes do mundo -, os jovens aprendiam habilidades que poderiam utilizar no trabalho pelo resto de suas vidas. Hoje, nos países industrializados, a maioria das pessoas tem em- pregos que não existiam na época em que muitos nasceram. A habilidade mais determinante do padrão de vida de uma pessoa é a capacidade de aprender novas habilidades, assimilar novos conceitos, avaliar novas situações, lidar com o inesperado. Isso será cada vez mais verdadeiro no futuro: a habilidade para competir tomou-se a habilidade de aprender. O que é um truísmo para as pessoas o é mais ainda para as nações. A força competitiva de uma nação no mundo moderno é diretamente proporcio- nal à sua capacidade para aprender - uma combinação das capacidades dos indivíduos e das instituições da sociedade. Capacidades individuais e institucionais de aprendizagem nem sempre andam juntas. Por exemplo, as condições na antiga União Soviética criaram uma geração de indivíduos com um elevado grau de adaptabilidade, necessá- rio para a sobrevivência sob a opressão arbitrária do regime comunista. Por outra ótica, o colapso das instituições daquele país revelou um extraordinário grau de rigidez burocrática. As instituições da sociedade não foram capazes de "aprender” a adaptar-se à mudança; foram incapazes até mesmo de perceber que uma crise estava ocorrendo, até que tivesse atingido proporções fatais. ¹ A saber, o original foi escrito em 1993, quando a informática, particularmente a internet, estava expandindo-se rapidamente no mundo inteiro. No mundo contemporâneo,o Japão é um exemplo impressionante de- nação que construiu seu sucesso sobre a habilidade de aprendizagem da socie- dade - a capacidade e a disposição de suas instituições e de seus indivíduos para aprender. Os norte-americanos repetidamente se queixam de que o Japão aproveitou-se de descobertas técnicas feitas nos Estados Unidos. Essa queixa expressa bem meu ponto de vista, embora em um sentido oposto às intenções dos queixosos, que falharam em apreender que a essência do sucesso japonês é exatamente a habilidade responsável por sucessos passados da América do Norte - a disposição para aprender. Os queixosos fariam bem em reaprender dos japoneses a habilidade de aprender, uma vez que em tal habilidade a Amé- rica foi no passado, campeã mundial. A velocidade da transformação nos locais de trabalho não é o único fator que confere crescente importância à habilidade de aprender. A escala global das consequências de ações humanas torna mais urgente entendermos o que estamos fazendo. A destruição da camada de ozônio, epidemias de AIDS, a explosão demográfica, o colapso social em cidades norte-americanas e em al- deias russas, a condição de sofrimento do continente africano e as demais questões que fazem as manchetes diárias são problemas mais do que urgentes. São exemplos do muito pior que virá, se os seres humanos não conseguirem, em uma escala até o momento sem precedentes, levarem-se a aprender novas formas de pensar. A nota otimista deste livro advém de reconhecer a sinergia potencial de duas tendências no mundo. Uma delas é tecnológica. A mesma revolução tecnológica responsável pela forte necessidade de aprender melhor também oferece os meios para adotar ações efetivas. As tecnologias da informação, da televisão aos computadores e suas combinações, abrem oportunidades sem precedentes para ação, a fim de melhorar a qualidade do ambiente de apren- dizagem, entendido como todo o conjunto de condições que contribuem para moldar a aprendizagem no trabalho, na escola e no lazer. A outra tendência é epistemológica - uma revolução nas concepções so- bre o conhecimento. A tese central deste livro é que a grande contribuição das novas tecnologias para o enriquecimento da aprendizagem é a criação de mídias (media) de uso individual capazes de dar suporte a um amplo espectro de estilos intelectuais. As mulheres e os membros de culturas minoritárias têm sido os mais articulados em protestar contra a imposição de uma maneira uniforme e única de aprender. A maioria deles mal começou a utilizar as novas mídias para expressar e desenvolver opiniões distintas. São as crianças, po- rém, que demonstram de modo mais visível o efeito potencializador de mídias que combinam com suas preferências intelectuais. Elas têm o máximo a ga- nhar e retribuir. No mundo inteiro, as crianças assumiram um apaixonante e duradouro caso de amor com os computadores, utilizando-os de modo tão variado quan- to suas atividades. A maior parte do tempo é dedicada aos jogos, transforman- 14 Seymour Papert do nomes como Nitendo em palavras do cotidiano. Elas usam computadores para escrever, desenhar, comunicar-se obter informações. Algumas os utili- zam para relacionamentos sociais;² outras, para isolar-se. Em muitos casos, a dedicação ao computador é tanta que a palavra "vício" vem à mente de pais preocupados. O caso de amor envolve mais do que o desejo de realizar algo com compu- tadores. Também apresenta um elemento de possessividade e mais importan- te, de afirmação de identidade intelectual. Grande número de crianças vê o computador como "delas" - como algo que lhes pertence e à sua geração. Muitos tem notado que as crianças sentem-se mais confortáveis com o compu- tador do que com seus pais e professores, o que demonstra uma facilidade natural para dominar essa máquina. Nós, de uma geração mais antiga, pode- mos ter adquirido, de algum modo, o conhecimento específico para dominar um computador, mas as crianças sabem que é apenas uma questão de tempo até se apropriarem completamente de tais máquinas. Elas são a geração da informática. O que há por trás e qual o futuro desse caso de amor? Poderá ser direcio- nado pela geração mais velha para formas construtivas ou destrutivas? Ou sua evolução já está além do nosso controle? Este livro focaliza um aspecto dessas questões: de que modo o relaciona- mento entre crianças e computadores afeta a aprendizagem? Entender isso será crucial para nossa capacidade de direcionar o futuro. ² Ao escrever estas linhas. Papert, de certa forma, antecipou a disseminação universal de ferramentas como Orkut, MSN. Google Talk. A Máquina das Crianças 15 Yearners e Schoolers¹ Imaginemos viajantes do tempo de um século atrás - um grupo de cirur- giões e outro de professores do ensino fundamental - cada qual mais ansioso para ver o quanto as coisas mudaram nas respectivas profissões em 100 anos ou mais no futuro. Imagine o espanto dos cirurgiões entrando em uma sala de cirurgia de um hospital moderno. Embora pudessem perceber que aJgum tipo de operação estava ocorrendo e até mesmo adivinhar qual o órgão operado, na maioria dos casos seriam incapazes de imaginar o que o atual cirurgião estaria tentando fazer ou qual a finalidade dos muitos instrumentos estranhos que ele e sua equipe cirúrgica estavam utilizando. Os rituais de assépsia e anestesia, os sons de alarme dos aparelhos eletrônicos e até mesmo as luzes intensas, tão familiares às platéias de televisão, seriam completameme estra- nhos para os visitantes. Os professores viajantes do tempo reagiriam de forma bem diferente a uma sala de aula do ensmo fundamental. Eles poderiam sentir-se intrigados com alguns objetos estranhos. Iriam constatar que algumas técnicas convencio- nais mudaram - e provavelmente discordariam entre si se as mudanças foram para melhor ou para pior -, mas perceberiam p!enamente a finalidade da maior parte do que se estava tentando fazer e facilmente poderiam assumir a classe. ¹ O neologismo yearner origina-se do verbo ingles yearn – desejar fortemente algo difi- cil de tornar-se realidade, como a ânsia de Iiherdade por pessoas que vivem em um regime autoritário. E o neologismo (Schooler), uma forma verbal infinitiva do substan- tivo School (Escola), neste livros significa aproximadamente "defensores da instituição escolar na sua estrutura atual". O leitor notará que, em partes diferentes do texto, o autor utilizou a palavra "escola" com inicial minúscula como substantivo comum, mas tambérm com maiuscula, como substantivo próprio, referindo-se a instituição escolar. Preferimos manter essa prática e os termos originais, pois a opção "inovadores/conser- vadores", utilizada na primeira edição brasileira, não corresponde ao pensamento do Autor. Além disso, em outras partes do livro, o autor utilizou as palavras inglesas inova- Dor/conservador, diferenciando-as assim dos neologismos usados neste capítulo. 1 Uso essa parábola como uma medida rudimentar do progresso desigual nas diversas frentes da mudança histórica. Na esteira do espantoso progresso da ciência e da tecnologia em nosso passado recente, algumas áreas da ativi- dade humana passaram por megamudanças. As telecomunicações, o lazer e os transportes, assim como a medicina estão entre elas. A Escola é um notável exemplo de uma área que não mudou tanto. Pode-se dizer que praticamente não houve mudança na maneira como ministramos educação aos nossos estu- dantes. Evidentemente ocorreram mudanças - utilizo a parábola apenas como um modo de chamar atenção para o que praticamente todo mundo sabe sobre nosso sistema escolar: ele mudou, mas não a ponto de alterar substancialmen- te sua natureza. A parábola levanta a pergunta: por que, durante um período em que tantas atividades humanas foram revolucionadas, não vimos mudan- ças semelhantes na forma de ajudarmos nossas crianças a aprender?² Propus essa questão em várias situações, desde conversas casuais atése- minários formais, com públicos variando de crianças com uns poucos anos de contato com a escola até educadores profissionais com vidas inteiras dedicadas à instituição escolar. Embora as respostas tenham sido tão variadas quanto o esperado em um teste psicológico de manchas de tinta,³ a distribuição está longe de ser uniforme de um extremo ao outro da curva. A maioria das respos- tas ficou de um lado ou de outro de um grande divisor. De um lado, há os Schoolers, que ficam perplexos com minha pergunta, surpresos de que eu pareça estar buscando megamudanças. Eles reconhecem que a escola tem problemas (que instituição não os tem hoje em dia?) e mos- tram-se muito interessados em resolvê-los. Mas megamudanças? O que eu quero dizer cora isso? Muitos se mostram indignados. Falar em megamudanças é como tocar harpa enquanto Roma pega fogo. A educação atual defronta-se com proble- mas imediatos, urgentes "Diga-nos como usar seus computadores para resol- ver alguns dos muitos problemas práticos imediatos que temos", dizem eles. Do outro lado do grande divisor estão os Yearners, que respondem citan- do obstáculos a mudanças na educação, como recursos financeiros, políticas, o ² Ao escrever este parágrafo e o anterior, certamente Seymour Paper tinha em mente o sistema escolar dos Estados Unidos, a cultura e o público leitor da edição americana, muito embora ele provavelmente tivesse uma ideia da situação bem pior em países como o Brasil. O leitor brasileiro certamente sabe que nossa escola pública tem deficiên- cias estruturais tão grandes que, se atingíssemos a situação "insatisfatória" das escolas de países desenvolvidos (em aspectos como formação dos professores, instalações físicas, infra-estrutura, alocação de recursos públicos, ete ), estaríamos em um mar de rosas. ³ Certamente o autor refere-se ao teste de personalidade de Rorschach, quando se pede à pessoa para imaginar formas na série de cartões com manchas simétricas de tinta, como fazem as crianças em relação a nuvens. 18 Seymour Papert imenso poder dos interesses implícitos de burocratas da escola ou a falta de pesquisas científicas sobre novas formas de aprender. Essas pessoas não di- zem: "Não consigo imaginar o que você poderia estar procurando”, porque elas próprias anseiam por algo diferente. Muitos Yearners-de pais a professores e administradores – simplesmen- te encontram maneiras de driblar a Escola, ainda mais quando constatam que tais problemas são impedimentos diretos de aspirações com relação a seus próprios filhos. Alguns pais mantem seus filhos em casa: nos Estados Unidos, centenas de milhares de crianças estudam em casa.4 Outros buscam escolas al- ternativas e até mesmo ajudam a criar escolas que ofereçam tais alternativas. Outra categoria importante de Yeamers age como uma espécie de quinta coluna dentro da própria Escola: um grande número de professores consegue criar oásis de aprendizagem nos limites das suas próprias salas de aula, em profunda disparidade com a filosofia educacional abertamente adotada por seus administradores; algumas redes de escolas públicas municipais, talvez aquelas onde os Yearners passaram a ocupar cargos administrativos, abriram espaço para outros Yearners dentro da Escola, permitindo a criação de progra- mas alternativos dentro do sistema Escolar, abrindo caminho para que tais programas desviem-se das políticas públicas do município quanto ao método e ao currículo.5 No entanto, apesar das muitas manifestações do anseio por algo diferen- te, o sistema educacional vigente, incluindo grande parte da comunidade de pesquisadores, continua bastante comprometido com a filosofia educacional do final do século XIX e início do século XX. Até agora nenhum dos que dessa- fiam essas sacrossantas tradições foi capaz de afrouxar o domínio do atual s i s t e m a e d u c a c i o n a l s o b r e a m a n e i r a d e e n s i n a r a c r i a n ç a s . Os professores viajantes do tempo de nossa parábola, que não encontra- ram nada irreconhecível na sala de aula contemporânea, ficariam muito sur- presos se tivessem ido para as casas de alguns estudantes, pois lá descobririam que, com diligência e vivacidade que a escola raramente consegue gerar, mui- tos alunos estariam profundamente envolvidos na aprendizagem de regras e estratégias do que pareceria, à primeira vista, ser algo muito mais exigente do que qualquer tarefa de casa. Eles definiriam o tema como videogame, e o que estavam fazendo, como "divertimento". Embora a tecnologia em si pudesse de início prender a atenção dos nos- sos visitantes, como professores eles ficariam perplexos com o nível de esforço intelectual que as crianças estavam empregando nessa atividade, além do ní- 4 Diferentemente da legislação brasileira, a lei norte-americana permite essa prática desde a época dos pioneiros. 5 Nos Estados Unidos, os estados e municípios têm autonomia para definir políticas de educação, em função dos objetivos e valores da comunidade. A Máquina das Crianças 19 vel de aprendizagem que estava ocorrendo. Níveis de esforço e de aprendiza- gem muito maiores do que o ocorrido apenas algumas horas antes na escola. Com certeza, o mais intelectualmente aberto e honesto dos professores viajan- tes do tempo poderia constatar que jamais presenciou tanto sendo aprendida em um espaço tão restrito e em tão pouco tempo. A Escola faria os pais - que honestamente não sabem como interpretar o óbvio caso de amor dos filhos com os videogames - acreditar que as crianças os adoram porque são fáceis de dominar e antiparizam com as tarefas de casa porque são difíceis. Na realidade, na maior parte das vezes, o inverso é verda- deiro. Para qualquer adulto que pense que esses jogos são fáceis, basta sentar- se e tentar dominar um deles. A maioria é difícil, com informações e técnicas complexas a serem aprendidas. Frequentemente as informações são muito mais difíceis e demoradas de dominar do que as técnicas de interação com o jogo. Se isso não convencer os pais de que os jogos são sérios, certamente um segundo argumento os convenceria: videogames são brinquedos - eletrónicos, sem dúvida, mas brinquedos-, e é claro que crianças gostam mais de brinque- dos do que de tarefa escolar. Por definição, brinquedo é diversão, e tarefa de casa, não. O que alguns pais podem não se dar conta é que os videogames, sendo o primeiro exemplo de tecnologia de computação aplicada à fabricação de brinquedos, foram a porta de entrada das crianças para o mundo da informática. Esses brinquedos, dando autonomia às crianças para testar ideias utilizando regras e estruturas preestabelecidas - de um modo como poucos brinquedos são capazes de proporcionar -, provaram ser capazes de ensinar aos aprendizes as possibilidades e limitações de um novo sistema, utilizando meios que muitos adultos invejariam. Os videogames ensinam às crianças o que os computadores estão come- çando a ensinar aos adultos - que algumas formas de aprendizagem são rápi- das, muito atraentes e gratificantes. O fato de exigirem muito tempo pessoal e de requererem novos estilos de pensar é um pequeno preço a pagar (e talvez até mesmo uma vantagem) com retomo garantido no futuro. Não é de surpre- ender que, em comparação, para muitos jovens a Escola pareça lenta, maçante e claramente desatualizada. A introdução dos computadores não é o primeiro desafio a valores edu- cacionais estabelecidos: há mais de 100 anos, por exemplo, John Dewey6 ini- ciou uma campanha por um estilo de aprendizagem escolar mais dirigido pelo 6 Dewey (1859-1952) foi eminente filósofo e psicólogo norte-americano, professor de ensino médio e depois professor em várias universidades. Foi proponente de amplas reformas educacionais nos EUA e da Educação Progressiva, centrada no raciocínio crí- tico do aluno, referida mais adiante por Seymour Papert. É reconhecido como um dos fundadores do Pragmat i smo F i losóf ico e como p ionei ro do Func ional i smo na Ps ico lo - gia. Entre outros temas, também escreveu sobre Tecnologia. 20 Seymour Papert próprio aprendiz; depois dele, muitos reformadores mais ou menos radicais lutaram para mudar a escola. Na época, Dewey empreendeu sua formidável tarefa com pouco mais do que uma forte intuição filosófica sobre o modo como as crianças desenvolvem-se, pois não havia movimentos significativos da sociedade em geral para mudar as escolas. Na época de Dewey, certamente inexistia uma insatisfação tão profunda como a atual com a educação, que parece, às vezes, um virtual desejo de destruir o sistema de escola pública, em vez de deixar que as coisas continuem como estão. Dewey permanece um herói para os que acreditam na concepção contemporânea da criança como uma pessoa com direito à autodeterminação intelectual, havendo pouca dúvida de que uma criança tratada com respeito e encorajamento, em vez de rejeição e punição, terá um melhor desempenho em qualquer sistema educacional. Embora as ideias educacionais de Dewey tenham certamente eliminado alguns dos mais cruéis obstáculos ao desenvolvimento infantil saudável, elas foram tão diluídas que pouco foi abordado em relação à seguinte questão: ao tentar ensinar às crianças o que os adultos querem que elas saibam, a Escola utiliza a forma natural dos seres humanos aprenderem em ambientes não-escolares? O fracasso dos reformadores do passado em promover uma aprendiza- gem substancialmente melhor instrumentalizou os que estão dentro do siste- ma educacional vigente com o argumento de que propostas futuras provarão ser também incapazes de promover uma aprendizagem radicalmente melhor. É bem possível que alguns acreditem que o melhor argumento contra uma megamudança seja este: se tal mudança tivesse sido realmente necessária no passado, por que tentativas anteriores não vingaram? Todavia o sistema vi- gente pode estar à beira de um colapso. Este Iívto é permeado e direcionado pela minha convicção de que fortes sentimentos de insatisfação na sociedade como um todo estão rapidamente impossibilitando que se resgate a educação como a conhecemos, sc continuarmos apenas tentando remendar suas bordas. Entre as insatisfações, o sentimento das crianças não é uma das menores; no passado elas podiam não gostar da Escola, mas eram persuadidas a acreditar que ela era o passaporte para o sucesso na vida. Na medida em que as crianças rejeitam uma Escola que não está em sintonia com a vida contemporânea, elas tomam-se agentes ativos de pressão para a mudança. Como qualquer outra estrutura social, a Escola precisa ser aceita por seus participantes. Ela não sobreviverá muito além do tempo em que não se puder mais persuadir as crianças a conceder-lhe certo grau de legitimidade. A informática, nas suas várias formas, com uma força persuasiva muito maior do que até mesmo a filosofia de um pensador radical como Dewey, está oferecendo a o s Y e a r n e r s n o va s o p o r t un i d a d e s p a r a c r i a r a l t e r na t i va s . A ú n i c a questão é se as alternativas serão criadas democraticamente. A escola pública abrirá o caminho ou, como na maioria das vezes, a mudança primeiro irá beneficiar os filhos dos ricos e poderosos e apenas aos poucos - e com muito esforço - entrará nas vidas dos filhos do restante de nós? A escola continuará A Máquina das Crianças 21 a impor a todos um único modo de saber ou se adaptará a um pluralismo epistemológico? Desde que minha opção é pela escolha democrática, grande parte deste livro é dedicada ao exame de exemplos do que os Yearners fizeram nas poucas oportunidades que tiveram para promover mudanças em escolas públicas de ensino fundamental. Muitos dos exemplos que utilizei são real- mente modestos em escala. Entretanto, ofereço-os como possibilidades do rico potencial que o futuro poderá trazer, e não como retratos fiéis do porvir. A história a seguir, uma pane factual e outra ficcional, ajudará a ilustrar aonde espero chegar com o livro. A parte factual foi meu encontro com Jennifer, uma menina de 4 anos, da educação infantil. Ela soube que eu tinha sido criado na África do Sul e per guntou-me se eu sabia como as girafas dormem "Elas têm pescoços muito compridos", disse ela, e perguntou onde colocam a cabeça quando querem descansar. Com sinceridade, respondi que não sabia e perguntei-lhe o que pensava. Ela explicou seu problema com um gesto de aconchegar a cabeça sobre os braços: "Minha cadela aninha a cabeça nos braços quando dorme. Eu também faço assim, mas a cabeça da girafa fica muito longe". Continuei o diálogo com outras crianças ao redor e obtive uma farta colheita de boas teo- rias. Uma delas sugeriu que a girafa dorme em pé, "como um cavalo". Isso foi o inicio de uma animada discussão, voltando à questão onde o animal põe a cabeça. Ninguém imaginou que a cabeça poderia permanecer erguida. Uma delas sugeriu que a girafa poderia colocar a cabeça no chão se fizesse spacatto como uma ginasta. Jennifer, adotando a ideia de que girafas dormem em pé, demonstrou óbvio deleite ao conseguir formular uma teoria: "Ela procura uma árvore onde possa encostar o pescoço!". Perguntei como seria se não houvesse uma árvore. Ela me olhou com desdém e respondeu que obviamente haveria árvores, pois girafas comem as folhas dos topos e é por isso que elas têm pescoços tão compridos. Nesse exemplo vemos dois lados do tipo de pensamento de crianças nes- sa idade: a coexistência de uma enorme capacidade para elaborar teorias e uma dependência quase total de adultos para obter informações que testem suas teorias ou, de outro modo, que as coloquem em contato com a realidade. Jennifer encontra-se em um estágio de transição. As crianças mais novas estão completamente absortas em um mundo de exploração imediata. Em um estágio posterior, a menos que o espirito de pesquisa tenha sido extinguido, como não raro ocorre, elas serão capazes de explorar um mundo além do tato e da visão. Ao chegar em casa no final do dia, ainda estimulado pela conversa com as crianças, lancei me em uma investigação sobre girafas, com a intensidade e talvez mesmo com o imediatismo das interações de Jennifer com sua cadelinha. Não tenho uma girafa de estimação, mas tenho uma biblioteca. Alguns dos livros foram logo espalhados pela mesa de trabalho à medida que empreendi, com alguns desvios de rota, uma gratificante caçada de informações sobre os 22 Seymour Papert hábitos de sono das girafas. Pude explorar esse mundo porque os livros pro- porcionaram-me um imediatismo ampliado. Até recentemente seria tolice perguntar por que esse imediatismo amplia- do não poderia estar disponível para Jennifer, pois crianças da sua idade não sabem ler e, mesmo que soubessem, não seriam capazes de conduzir este tipo de pesquisa. Tal resposta, porém, não é mais convincente. Nenhum obstáculo técnico impediria a fabricação de uma máquina - chamemo-la de Máquina do Conhecimento - que desse a Jennifer o poder de conhecer o que outros sa- bem. Há quase 20 anos, Nicholas Negroponte, meu colega no MIT, construiu uma máquina que possibilitava a exploração virtual da pequena cidade de Aspen, no Colorado, por meio de um computador. Exemplos muito simples estão aos poucos entrando em produção comercial sob nomes como "vídeo interativo", e-book, livro eletrónico, CD-i e, em versões um pouco mais elabo- radas, "realidade virtual".7 O que diferencia tais esforços de uma verdadeira Máquina do Conheci- mento não é mais a falta de tecnologia de memória ou de acesso a informa- ções, mas o tamanho do esforço necessário para reunir o conhecimento. No entanto, o grande mercado potencial para uma máquina desse tipo torna ine- vitável seu eventual aparecimento. Um sistema como esse possibilitaria a uma futura Jennifer explorar um mundo muito mais rico do que aquele dos meus livros em papel. Utilizando a fala, o tato ou gestos, ela guiaria a máquina ao tópico de seu interesse, rápida- mente navegando em umespaço de conhecimento muito mais amplo do que os conteúdos de qualquer enciclopédia impressa. Quer ela estivesse interessa- da em girafas, panteras ou pulgas, quer desejasse vê-las comendo, dormindo, caminhando, correndo, pulando, lutando, parindo ou copulando, ela poderia encontrar o caminho até os sons e as imagens relevantes que, no seu entender, a ajudasse a saber o que desejasse conhecer. Embora não seja o caso, um dia essa possibilidade será ampliada até para se experimentar o cheiro e o tato, e talvez a cinestesia de estar com os animais. Tal Máquina do Conhecimento mal arranha a superfície de como as no- vas mídias mudarão a relação das crianças com o conhecimento. Todavia, até mesmo o exame mais superficial dessa questão requer uma concessão elemen- tar, porém consequente: as crianças que crescerem com a oportunidade de 7 É preciso levar em consideração que este livro foi escrito há cerca de 15 anos, período em que a tecnologia da informática evoluiu muito. A sigla CD-i é pouco conhecida no Brasil. Referc-se a um gravador de videocassete, com capacidade para CD interativo, lançado em 1991 nos EUA pela Phillips. O CD-i teve vida curta. Precursor do videogame, foi descontinuado logo após o lançamento dos games Nintendo e Sega quando a Phillips resolveu também entrar nesse mercado. A Máquina das Crianças 23 explorar as florestas as cidades as profundezas dos oceanos, os mitos antigos e o espaço exterior estarão menos propensas do que os jogadores de videogame a s e n t a r em t r a n q u i l a m e n t e e m u ma s a l a , a s s i s t i n d o a t é o f i m a q u a l q u e r coisa que lembre, mesmo vagamente, o currículo da escola fundamental como o conheremos aré agora! Uma reflexão menos superficial nos levaria a perguntar: de que modo a introdução de Máquinas do Conhecimento no ambiente escolar compromete- r i a a p r i ma z i a a l e i t u r a e à e s c r i t a - o u s e j a , a f l u ên c i a d a s c r i an ç a s n a utilizacão da linguagem alfabética? Na l i terarura educacional, há muito existe a suposição generalizada de que a leitura é a principal via de acesso dos estudantes ao conhecimento. De alguém que não sabe ler diz-se ter sido condenado à ignorância ou, no míni- mo que é dependente da l imi tada quan t idade de in formações s ign i f i ca t ivas que podem ser obtidas oralmente. O desenvolvimento educacional das cr ianças, portanto, tem sido visto como r igidamente dependente do aprender a ler em um determinado período de v ida . A expec ta t iva de uma Máquina do Conhec imen to sugere que essa suposição fundamental não seja necessar iamente uma verdade e terna, sendo possível que comece a mudar em uma ou duas décadas pelo fato de a enten- dermos melhor. Não estou sugerindo que a linguagem escrita tende a ser aban- donada Estou sugerindo que é necessár io uma nova concepção a respei to da posição do aprender a ler como requisi to para o acúmulo, por estudantes, de conhecimentos necessár ios. Ou pelo menos como a pr imeira via a ser aberta para as crianças quando iniciam a educação formal. Tenho convicções ainda mais firmes com relação a um outro tipo de ques- tão levantado pela Máquina do Conhecimento e pela pr imazia da le i tu ra na cu l tu ra a tua l , como a v ia essencia l para o conhecimento . Aprender a l e r e escrever é uma importante parte do que ocorre com Jennifer na pr imeira sé- rie, mas não está necessariamente no âmago do que lhe é passado sobre o que é aprender A transição de Jennifer é , de fato , epistémica; embora não tenha p lena consc iênc ia d i s so , e la es tá sendo desv iada de conf iar em uma forma dominante de conhecer para confiar em outra. Quando bebé. Jennifer adquiriu conhecimento por exploração, sendo dona de sua própria aprendizagem. Embora seus pais colocassem conhecimento no seu caminho, ela escolhia o que queria explorar, determinando para si mesma o que e como pensar. Isso não significa que os adultos não tivessem tentado, em maio r ou menor g rau , con t ro lá - l a e à sua ap rend izagem. Atua lmen te é algo sabido que pré-escolares não depositam, em seus bancos de memória, o conhecimento que os adultos tentam impingir-lhes, da mesma forma que apren- dem mais tarde, quando vão para a escola. O conhecimento é metabol izado, ass imi lado jun tamente com todas as ou t ras exper iências d i re tas do mundo. Quando Jennifer perguntou-me sobre girafa, e la estava em um estágio no qua l mais perguntas su rg iam em sua men te do que e la pod ia responder 24 Seymour Papert pela exploração direta do seu mundo imediato Ela agiu da maneira cr roo fora ensinada, perguntando a um adulto condescendente que iria recompensar sua curiosidade com aprovação. Embora a pressão social para esse modo de apren- der - ser informado por alguém, acatar autoridade - tenha raíz na curiosi- dade do próprio aprendiz, no decorrer da vida educacional da maioria das crianças esse modo de aprender será massivamente reforçado pela escola. Como Jennifer se sairá, no final, dependerá de muitos fatores socais, psicológicos e acidentais. É evidente que ela está entrando em um período de transição que exercerá um impacto profundo e talvez nocivo e cruel sobre seu desenvolvimento intelectual. O jargão da Escola com frequência utiliza o ter- mo alfabetização (literacy) para referir-se a condição de ser capaz de ler e escrever. Entretanto, os teóricos que tentam analisar mais a fundo o significa do da educação criticam muito a concepção de que o analfabetismo pôde ser sanado ensinando-se ãs crianças a habilidade mecânica de decodificar marcas pretas sobre papel branco. Há muito mais envolvido. Paulo Freire ensina-nos a não dissociar "ler a palavra" de "ler o mundo". Tornar-se alfabetizado significa pensar de uma forma diferente da anterior ver o mundo de outra maneira, supondo-se que há muitas alfabetizações diferentes. Nesse sentido, a escolha de um nome para o processo torna-se epistemo- lógica: recentemente, alguns autores sugeriram o termo "estilos de conhecer" como substituto para alfabetização. Sou inteiramente simpático às intenções de tais autores; porém, sinto falta de uma palavra para a distinção entre um sentido literal de alfabetização (literacy) e os outros sentidos mais sofisticados que a ideia evoca. Em desespero, cunhei as palavras letteracy ("leteracia") e letterate ("leterado") para referir-me à habilidade peculiar envolvida em ler palavras formadas com as letras do alfabeto. Deixo fora dessa definição bem específica as oportunidades, oferecidas em sua maioria pelos novos meios re- presentados simbolicamente pela Máquina do Conhecimento, permitindo que os estudantes tomem-se altamente educados,8 sem depender do seu progresso em direção à leteraria.9 A necessidade desse malabarismo linguístico reflete a natureza radical da revolução nos meios (media), introduzida pelo computador. Sem o risco de 8 O autor usou aqui o termo literate (instruído, letrado, educado), que remete o falante nativo do inglês a um jogo de palavras com os neologismos letterate e letteracy, mencio- nado no parágrafo. 9 Atualmente, fala-se em media literaty, para referir-se a uma alfabetização mais ampla, que inclui a familiaridade com as ubíquas Novas Tecnologias de Informação e Comuni- cação (NTIC). Outra extensão, cunhada por especialistas, é o conceito de letramento. relativo ao aprendizado da língua escrita pela interação natural do aprendiz com mate- riais escritos do ambiente, tais como revistas em quadrinhos, cartazes, rótulos, outdoors. propagandas de TV jornais, entre outros. A Máquina das Crianças 25 simplificar demais, pode-se dizer que existiram, até agora, dois meios ampla- mente utilizados para a transmissão de informações e de ideias c apenas uma grande transição histórica. Durante a maior parte da históriahumana, a fala permaneceu como a única transmissora do aprendido ameriormente. Desenhos, sinais de fumaça e gestos foram complementos importantes, mas jamais ameaçaram o monopó- lio da fala como determinante das informações que as pessoas em qualquer sociedade poderiam compartilhar, entre grupos ou mesmo entre gerações. A escrita foi o primeiro distanciamento significativo da tradição oral, permane- cendo como detalhe se o surgimento da linguagem escrita data dos hieróglifos egípcios ou de Guttenberg. Cineastas, pintores e outros usuários de mídias ainda em desenvolvimen- to poderão sentir-sc ignorados pela minha decisão de considerar as mídias digitais o principal avanço depois da escrita. F.ntretanto acredito que a histó- ria de Jennifcr capta melhor do que palavras abstratas um importante aspecto daquilo que torna as mídias digitais qualitativamente diferentes. Ela mostra- nos uma alternativa aos riscos que as crianças estão sujeitas pelo fato de alfa- betização e letteracy serem praticamente sinónimos. Elas estão sob risco por não terem acesso a um mundo imediato mais amplo para explorar e porque dispõem de fontes muito limitadas para recorrer, apenas perguntando. O risco é duplo, pois tal situação reforça o papel tradicional da Escola de impor letreracy e toda a rigidez associada a esse papel. Dada a novidade da tecnologia digital, não é de surpreender que não tenhamos desenvolvido uma linguagem universalmente aceita para falar so- bre ela. Isso não significa, entretanto, que devemos ignorar que uma revolu- ção está em gestação ou que não devamos fazer todo o possível paro orientar sua evolução. E isso porque, em face do problema de como reformar a educa- ção básica, a transição do modo de conhecer baseado na leteracia (letteracy) para o modo de conhecer por meio das novas mídias pode ser mais importante do que a passagem da cultura preletterate (pré-leitura de palavras) para a cultura leterada (letterate). É importante lembrar que a revolução da lettracia, ou seja, o advento da escrita e da imprensa, não afetou diretamente a maneira fundamental de ex- plorar e conhecer o mundo da maioria das crianças de 2, 4 ou até mesmo de 6 anos. Evidentemente, as grandes questões sobre o futuro da alfabetização (litteracy) e da leteracia estão além dos objetivos deste livro. O importante aqui é que a Máquina do Conhecimento oferece às crianças uma transição entre a aprendizagem anterior a escola e a verdadeira alfabetização de uma forma mais pessoal, mais negociada, mais gradual e, portanto, menos precária do que a súbita transição que se exige hoje das crianças, quando passam do modo de aprender por meio da experiência direta para o uso da palavra impressa como a fonte do informações importantes. 26 Seymour Papert Por que então não levar a sério, como o fazem os defensores da Escola atual (Schoolers), uma opção tão promissora para o processo educacional? Teimosia? Uma obstinada recusa em abandonar velhos hábitos? Tais fatores estão presentes quando sc questiona procedimentos bem sedimentados. Em educação esse problema apresenta um elemento adicional. A maioria dos Schoolcrs bem-intencionados estão amarrados à suposição de que o modo de ser da Escola é o único possível, pois nunca viram ou imaginaram alternativas viáveis para proporcionar determinados tipos de conhecimento. No entanto, até mesmo o Schoolcr mais empedernido reconhecerá pron- tamente que algumas aprendizagens importantes acontecem de modo eficien- te sob condições muito diferentes daquelas da Escola: os bebés aprendem a falar sem um currículo ou lições formais; as pessoas desenvolvem habilidades em hobbies sem professores; o comportamento social não é aprendido pela instrução em sala de aula. Um Schooler poderá até aceitar que uma Máquina do Conhecimento possa ampliar as possibilidades do aprender, incluindo tanto girafas distantes como cãezinhos da redondeza. Todavia, ficará intrigado por não ter ouvido falar de ninguém - exceto, talvez, de pessoas muito talentosas - que tenha conseguido dominar disciplinas tão difíceis como a geometria ou a álgebra por meios diferentes daqueles de programas de instrução educacional bem-estabelccidos, testados pelo tempo. Esses céticos facilmente podem imaginar, por exemplo, um professor con- duzindo uma turma de estudantes por meio de "perguntas socráticas", a "desco- brir por si mesmos" alguma fórmula matemática. No entanto, não consideram isso significativamente diferente de uma boa explicação da fórmula. Embora concordando com eles, sempre ansiei (yearned) por maneiras de aprender pelas quais as crianças pudessem agir como criadores em vez de consumidores de conhecimento, mesmo sabendo que os métodos propostos sempre pareciam ser apenas um pouco superiores, quando muito, aos estilos antigos.10 No meu caso, ocorreu uma virada no início da década de 1960, quando os computadores mudaram na essência o meu modo de trabalhar. O que mais me impressionou foi que determinados problemas abstratos e difíceis de cap- tar tomaram-se concretos e transparentes e que certos projetos potencialmen- te interessantes, mas complexos demais para empreender, tornaram-sc mane- jáveis. Ao mesmo tempo, tive minha primeira experiência da empolgação e do poder de domínio que mantêm as pessoas trabalhando noite a dentro com 10 Faz-se necessário lembrar novamente que, na época, ainda não existia a Wikipédia (www.wikipedia.org) c ferramentas afins, disponíveis gratuitamenie na internet em quase 200 linguas, onde as pessoas consomem e também são incentivadas a colaborar, adicionando novos conhecimentos. A Máquina das Crianças 27 seus computadores. Percebi que as crianças poderiam ter condições de desfru- t a r das mesmas van tagens - um pensamento que mudou minha v ida . Escolhi como meta lutar para criar um ambiente no qual todas as crian- ças - seja qual for sua cultura, gênero ou personalidade - pudessem aprender álgebra, geometria, ortografia e história de maneiras mais próximas à apren- dizagem informal da criança pré escolar ou da criança excepcional do que ao processo educacional adotado nas escolas. Na linguagem do Schooler cético, minha principal dúvida era se as "crianças bem-dotadas" aprendiam de modo diferente por serem excepcionais ou se, conforme desconfiei, tomaram-se ex- cepcionais porque as circunstâncias permitiram-lhes aprender de um modo diferente. Posso ouvir muitos Schoolers dizerem para si próprios, enquanto lêem estas linhas: "Sim, já ouvimos antes esse discurso. É o velho refrão da educa- ção progressista. Isso foi tentado e não funcionou. Você mesmo ridicularizou o método por descoberta com o exemplo de álgebra". Há alguma semelhança (e aceitarei a palavra "progressista" para designá- la) entre a concepção de aprendizagem que estou apresentando e alguns prin- cípios filosóficos expressos nas várias formas de inovação que apareceram sob nomes como educação progressista, educação aberta, centrada na criança, constru- trivista ou radical. Compartilho com esse amplo movimento a crítica à Escola por transformar as crianças em receptores passivos de conhecimento. Paulo Freire expressou essa crítica de modo muito sugestivo em sua descrição da Escola como seguindo um "modelo bancário" em que as informações são de- positadas na mente da criança, como dinheiro em uma caderneta de poupan- ça. Outros escritores expressaram o mesmo pensamento, acusando a escola de tratar a mente da criança como um "vasilhame a ser preenchido" ou como o receptor no final de uma linha de transmissão. Uma das formas que discordo da educação progressista torna-se aparen- te quando deixamos de criticar a Escola e passamos a inventar novos métodos. A meu ver, quase todas as experiências que pretendiam implementar uma edu- cação progressista foram desapontadoras porque não chegaram até o ponto de tomar o estudante o sujeito do processo em vez de torná-lo objeto. Em alguns casos, isso ocorreu porque os experimentadoresforam demasiado tími- dos; as experiências falharam, do mesmo modo como o teste de um novo tratamento médico falharia se os médicos tivessem medo de prescrever os remédios nas dosagens eficazes. Na maioria dos casos, houve razões mais profundas do que a timidez para impedi-los. Os primeiros criadores de experiências em educação progres- sista careciam das ferramentas que lhes permitissem criar novos métodos de forma confiável c sistemática. Dispondo de meios muito limitados, eles foram forçados a confiar demais nos talentos específicos de professores como indiví- duos ou em combinação adequada com um contexto social particular. Em com- sequência, muitas vezes os sucessos obtidos não podiam ser generalizados. 28 Seymour Papert Outra parábola enfatizará esse ponto e também esclarecerá onde vejo minha principal nova contribuição para o velho debate. Meus hipotéticos Schoolers disseram que a educação progressista foi tentada e não funcionou. Concordo que ela não funcionou muito bem - do mesmo modo como Leonardo da Vinci fracassou em suas tentativas de inventar um avião. Fazer um avião na época de Leonardo requeria mais do que a manipulação criativa de tudo o que se sabia sobre aeronáutica. Seu fracasso em fabricar um avião funcional não provou que ele estava errado em suas suposições sobre a viabilidade das má- quinas voadoras. O avião de da Vinci teve de esperar pelo desenvolvimento de algo que só poderia suceder por intermédio de grandes mudanças na maneira como a so- ciedade administra seus recursos. Os irmãos Wright puderam ter sucesso onde Leonardo pôde apenas sonhar, porque uma infra-estrutura tecnológica forne- ceu materiais, ferramentas, motores e combustíveis, enquanto uma cultura científica (que se desenvolveu em co-evolução com essa infra-estrutura) for- neceu ideias que se basearam nas capacidades peculiares dos novos recursos. Os inovadores em educação, mesmo no passado muito recente, estavam em uma situação análoga à de Leonardo. Eles podiam formular, e de fato for- mularam, perspectivas arrojadas. São exemplos a ideia de John Dewey de que as crianças aprenderiam melhor se a aprendizagem realmente fizesse parte da experiência de vida; ou a ideia de Paulo Freire de que elas aprenderiam me- lhor se fossem verdadeiramente responsáveis por seus próprios processos de aprendizagem; ou a ideia de Jean Piaget de que a inteligência surge de um processo evolutivo no qual muitos fatores devem dispor de tempo para encon- trar seu próprio equilíbrio; ou a ideia de Lev Vygotsky de que a conversação desempenha um papel crucial na aprendizagem. Tais ideias sempre atraíram os Yearners, refletindo uma atitude de respeito às crianças e uma filosofia so- cial democrática. Lamentavelmente, na prática, tais ideias não alçariam vôo. Quando al- guns educadores tentaram criar uma escola real baseada nesses princípios gerais, foi como se Leonardo tivesse tentado fazer um avião com carvalho e movido a mula. A maioria dos profissionais que tentou seguir os grandes pen- sadores na educação foi forçada a ceder em tantas coisas que a intenção origi- nal perdeu-se. O "método por descoberta", por exemplo, pode ser um passo em direção ao sonho de Dewey, porém é um passo modesto, completamente insuficiente para fazer o tipo de diferença expressa no enorme sonho de dar às crianças autonomia para aprender pela experiência viva. É apenas um discur- so duplo pedir às crianças que se responsabilizem pela própria aprendizagem e, ao mesmo tempo, mandá-las "descobrir" algo que pode não ter papel algum no entendimento das coisas pelas quais elas se preocupam, estão interessadas ou curiosas. Como uma via de acesso ao conhecimento do tipo que Jennifer estava buscando, a Máquina do Conhecimento não será mais do que uma metáfora A Máquina das Crianças 29 instigante ainda por algum tempo, pois é muito grande a quantidade necessá- ria de conhecimento factual para fazê-la funcionar. Há, contudo, áreas de co- nhecimento em que a transição epistêmica é bem mais brutal para muitas crianças e nas quais uma máquina que forneça um contexto para suavizá-la está muito mais à mão. Uma dessas áreas é a matemática. Se a ideia de uma transição de estilos orais de conhecer para estilos leterados de conhecer parece menos aplicável à matemática, em grande parte deve-se ao fato da nossa cultura estar inclinada a reservar o nome matemática para o tipo de matemática "leterada" ensinada na escola e talvez para uma base intuitiva mínima diretamente conectada a ela. Contudo, ao excluir uma base muito maior do conhecimento que deveria servir como alicerce para a matemática formal, interrompemos a via para uma melhor aprendizagem. Toda criança pré-escolar adquiriu por si própria um conhecimento matemático pe- culiar sobre quantidades, espaço e confiabilidade de diversos processos de raciocínio, elementos que serão úteis posteriormente na aula de matemática. A enorme quantidade dessa matemática "oral" construída e acumulada pelas crianças foi bem documentada por Jean Piaget. O problema central para a educação matemática é encontrar maneiras de valer-se da vasta experiência da criança em matemática oral, mas os compu- tadores podem fazer isso. Até agora o uso mais potente de computadores para mudar a estrutura epistemológica da aprendizagem infantil foi a construção de micromundos,11 nos quais as crianças executam atividades matemáticas porque são espaços virtuais atrativos, exigindo o desenvolvimento de habilidades matemáticas específicas. Simultaneamente, o formato desses mundos ajusta-se ao estilo oral bem-sucedido da aprendizagem da criança pequena. Oferecendo-lhe a oportu- nidade de aprender e de usar a matemática por meio de um modo não-forma- lizado de conhecer, encoraja em vez de inibir a criança a eventualmente ado- tar um modo também formalizado, do mesmo modo como a Máquina do Co- nhecimento eventualmente estimularia a criança a ler, em vez de desencorajar a leitura Ao afirmar isso, é necessário enfatizar uma diferença em relação a várias tendências de uso de métodos concretos ou construtivistas para ensino de Matemática. A essência da Máquina do Conhecimento seria perdida caso ela 11 A ideia de micromundo foi lançada por Papert já no seu primeiro livro em 1980, sobre computadores e educação. Hoje softwares com esse nome são desenvolvidos c comercializados pela empresa canadense Logo Computer Systems (LCSl), referida pelo autor na seção de Agradecimentos. 30 Seymour Papert Designer de têxteis africanos. O desenho na página seguinte também foi feito por crianças utilizando a linguagem de programação Logo com computadores na sala de aula fosse concebida apenas como um mecanismo para ensinar as crianças a ler. Do mesmo modo, o propósi to de desenvolver modos não-formalizados de apren- der matemát ica é in te i ramente subver t ido quando é concebido como um na- daime para aprendizagem do est i lo formal ou como um truque para atrair as crianças para um ensino formalizado. Eles devem ser valorizados em si mês- mos e ser genuinamente úteis para o aprendiz em si e por s i . Muitos outros exemplos desta distinção serão encontrados em capítulos posteriores. Por enquanto, ilustro meu argumento mostrando, na página anterior, um d e s i g n o r i g i n a l ( e m co r e s ma g n í f i c a s , q u e i n f e l i z me n t e n ão p u d e r a m s e r reproduzidas aqui) , fei to por crianças em uma escola de ensino fundamental da cidade de Nova York, como parte do estudo de têxteis africanos. Os padrões dos des igns fo ram fe i tos p rogramando-se um computador com a l inguagem Logo , ut i l izando uma versão não-formalizada de um tipo de Matemática cha- mado de geometria da tartaruga. As crianças não usaram o processo de design para aprender mais geometr ia formal . Elas u t i l izaram um t ipo de geometr ia que combinou com seu estilo preferido de aprender, para explorar ideias sobredesign afr icano. A geometr ia não está presente para ser aprendida, mas para ser usada. A principal exceção que eu faria não é pequena: tanto a geometria quanto a aprendizagem podem ser objetos de prazer , s i tuação na qual o uso poderia ficar em um plano à margem. Essas considerações sobre geometria formal e outras geometrias pode- riam ser ofensivas para muitos Yearners e igualmente para Schoolers , pois pa- reço es tar d izendo que a lguns es tudantes dever iam f icar sa t is fe i tos com um tipo de geometria út i l , mas diferente da verdadeira, e isso poderia ser inter- pretado como um viés elitista. O que quero realmente dizer (desenvolverei em deta lhes no Capí tu lo 9) é que há bas tante espaço para reexaminar-se mui ta coisa sobre que conhecimento e que maneiras de conhecer deveriam receber um status privilegiado. Certamente a Escola não detém o direito de decidir por nós. Os Yearners que anseiam por melhores maneiras de ensinar o que a escola decretou que todos deveriam saber não aceitaram totalmente a ideia de megamudança. Espero que, depois de ler este livro, passem a questionar não apenas como a Escola ensina, mas também aquilo que ensina. Um distanciamento maior do currículo é exemplificado por um projeto em que as crianças inventam e constroem criaturas artificiais utilizando uma versão ampliada do Lego, a qual inclui minúsculos computadores que captam informações de sensores e controlam motores. O computador pode ser pro- gramado em Logo para fazer as criaturas moverem-se de um modo "intencio- nal". Por exemplo, uma menina de 8 anos construiu uma "gata mãe " e seu "gatinho". Ambos perambulavam ate que o gatinho emitisse um bip e acendes- se uma luz posicionada na cabeça; a esse sinal a gata começava a mover-sc na direção dele. Outras crianças construíram serpentes e monstros, e uma equipe construiu um modelo de casa "inteligente" que se auto limpava. A ideia de programar tal comportamento em uma máquina pode parecer difícil. Na verdade, versões recentes do Logo (por exemplo, Micromundo Logo), tornam isso tão fácil para o usuário que a construção técnica de objetos e os princípios científicos subjacentes são como um meio natural para expressão da fantasia, tal como ocorre com o desenho ou a fala. Assim, torna-se pouco níti- da uma das linhas que secciona a epistemologia da Escola em disciplinas dife- rentes: tradicionalmente, na Escola, as aulas de arte e de redação podem dis- por de tempo para a fantasia, mas a disciplina de ciências lida com fatos. Não é de admirar que muitas crianças a considerem desinteressante. Uma segunda l inha divisória também perde nit idez pela união da tecnologia com a biologia. Construir um animal artificial não é um substituto para estudar os reais, porém proporciona maior compreensão de aspectos dos animais naturais, como por exemplo o conceito de feedback que faz que a gata Lego encontre seu filhote. A situação é análoga ao modo como o princípio de sustentação está subjacente ao vôo de pássaros e de aviões, havendo, porém, uma grande diferença na importância social dos dois casos. Enquanto não importa muito se as pessoas entendem o princípio aeronáutico da susten- tação, o feedback é um conceito-chave para pensar-sc sobre sistemas. A falta de habilidade para pensar fluentemente sobre o ambiente, a Economia ou até mesmo a própria família individual como um sistema sem dúvida impor- ta muito. O conceito de feedback ilustra quão artificial é confinar a ciência ao tipo de conhecimento preciso favorecido pela leteracia. A gata Lego nunca "sabe" o local exato da luz do gatinho; tudo o que ela "sabe" vagamente é se está mais para a esquerda ou direita. O programa faz a gata virar um pouco na direção da luz, mover-se um pouco para a frente e repetir o ciclo; girar um ou dez graus a cada volta produzirá o mesmo resultado. Assim, o que a gata "sabe" está mais em consonância com o conhecimento qualitativo de uma criança ainda não-alfabetizada do que com qualquer coisa precisa e quantitativa. O A Máquina das Crianças 33 fato de ela conseguir encontrar o caminho exato até o objetivo resulta em sentimentos de poder ou autonomia para os que pensam de modo qualitativo, particularmente para as crianças. Isso lhes possibilita ingressar no campo da ciência por uma região em que o pensamento científico é mais semelhante ao próprio pensamento infantil. A ideia de que um conhecimento parcial c qualitativo possa ser um co- nhecimento bom é adequada para se discutir se a construção de um modelo Lego é realmente relevante para o estudo científico da biologia. Quando se rejeita todo o conhecimento inexato, pode-se acreditar que a única maneira de um modelo poder elucidar a natureza é simulando-a com precisão. A gata- modelo mostra um tipo diferente de simulação, uma "simulação soft" que pro- porciona um entendimento qualitativo de um sistema complexo construindo um sistema simples com o qual partilha um princípio. O projeto de computação gráfica do têxtil africano e o da criatura artifi- cial são um vislumbre de direções de mudança da Escola rumo à megamudança. O restante deste livro é estruturado por três temas relevantes à possibilidade da instituição escolar seguir por esse caminho. O mais realista dos três é um exame do que está acontecendo nas escolas. No Capitulo 3 analiso a resposta da Escola como instituição às formas de um- dança que antecipei aqui 0 Capitulo 4 discute os professores, e o Capítulo 10, tópicos de estratégia para a mudança. O t e m a s e g u i n t e b u s c a d e s e n v o l v e r u m a m e l h o r n o ç ã o d a evolução da tecnologia em si e as ideias e culturas que a acompanharam. Essa discussão permeia todo o livro, mas está concentrada nos Capítulos 8 e 9. O tema final é o mais polêmico. Acredito que, se quisermos novas formas de aprendizagem, necessitamos de um tipo muito diferente de teoria de apren- dizagem. Aquelas até agora desenvolvidas por psicólogos da educação e por psicólogos acadêmicos em geral correspondem a um tipo de aprendizagem que é próprio d a E s c o l a . E n q u a n t o e s s e s m o d o s d e p e n s a r s o b r e a a p r e n d i z a - gem forem dominantes, será muito difícil efetuar uma mudança substancial na forma tradicional da Escola. No próximo capitulo, apresento um panorama inicial da direção para a qual me voltarei, em busca de novas formas de pensar. Colocando de modo sumário, tal direção é para dentro de nós mesmos. No Capítulo 5, proponho um nome para um novo tipo de teoria de aprendizagem, que refletirá o fato de que a experiência humana proporciona a todos nós um celeiro maior de co- nhecimentos sobre a aprendizagem do que o acumulado por todos os acadê- micos de bata branca em seus laboratórios. 34 Seymour Papert Pensamento pessoal Uma disciplina de psicologia que fiz quando estudante universitário dei- xou poucos resíduos na minha mente, exceto uma homilia sobre objetividade proferida na primeira nula. Fomos advertidos de que muitos de nós poderiam ter-sc matriculado sob a errónea impressão de que a disciplina, sendo de psi- cologia, seria uma ocasião para explorar questões psicológicas de nossas pró- prias vidas. Aqueles que vieram por essa razão foram aconselhados a repensar se realmente desejavam continuar. Foi-nos dito que o ponto de partida para o estudo da psicologia científica era a habilidade de distanciar-se do objeto de estudo. Teríamos que fazer muito esforço para aprender como manter-nos distanciados das intuições baseadas em nossas próprias experiências, sobre as questões psicológicas que estaríamos estudando. Sem dúvida, em qualquer outra disciplina, a habilidade de distanciar-sc do objeto de estudo c necessária. Creio, no entanto, que no estudo da educa- ção necessitamos exatamente do oposto, pois há distanciamento excessivo. Os Yearners têm continuamente protestado contra o modo como o currí- culo da Escola distanciao conhecimento da individualidade do estudante. Alem disso, a busca por uma ciência da educação conduziu a modos de pensar sobre o ensino que excluem o professor como pessoa e também a concepções de pesquisa em educação que excluem o pesquisador como pessoa. Inicio meu protesto situando meu próprio trabalho sobre inovação educacional em mi- nha experiência de vida. Minha crítica á Escola e meu anseio (yearning) por algo diferente come- çaram muito cedo. No ensino fundamental, eu já sabia com bastante clareza que meu melhor trabalho intelectual ocorria fora da sala de aula, Meu ressen- timento da Escola era atenuado apenas pelo fato de que eu gostava muito de dois professores e tinha muitos amigos que participavam comigo de atividades que eu considerava mais valiosas. A mais importante foi um jornal escolar produzido por uma versão "anos de 1930" de editoração eletrónica. Minha impressora cra um bloco gelatinoso feito em casa, para o qual se podia trans- 2 ferir tinta de unia folha-mestra polida e, dali, para folhas de papel absorvente. O joral foi importante para mim de várias formas. Acima de tudo, proporcio- nou-me um senso de identidade. Os adultos perguntavam entre si: "O que você faz?", e eu podia pensar sobre o que eu "fazia" como algo mais pessoal e distintivo do que "ir para a escola". Além disso, o jomal estabeleceu conexões com diversas áreas de desen- volvimento intelectual e social que modelariam meus anos de ensino médio e mais além. Desenvolvi um senso de identidade e um pouco de habilidade como químico. M eu s i s t ema de i mpre s sã o ba se ou - se i n i c i a l men re e m um a r t i go d a Children’s Encyclopedia, de Arthur Mee, mas evoluiu ao longo do tempo e de muitas variações experimentais. Desenvolvi um senso pessoal como escritor e tive de assumir responsabilidades financeiras e administrativas que não eram menos reais por serem em uma escala muito pequena. E, talvez mais impor- tante em seu impacto subsequente em minha vida, o jornal lentamente me levou aos primórdios do ativismo político na atmosfera altamente carregada de Johannesburg onde vivi dos 7 até aproximadamente os 25 anos.1 Os fatos particulares da minha história são únicos para mim como pes- soa mas os princípios gerais que eles ilustram não o são. Ler biografias e questionar amigos convenceu-me de que todos os aprendizes bem-sucedidos encontram meios de dirigir suficientemente suas vidas iniciais, desenvolvendo um sentimento próprio de identidade intelectual. Um exemplo fascinante é Jean Piaget cujo caso contém um pouco de ironia, pois esse homem, tantas vezes citado como a autoridade sobre o que as crianças não são capazes de fazer por não terem atingido estágios adequados do desenvolvimento, publi- cou seu primeiro artigo cientifico aos 11 anos! O que podemos extrair disso? Os devotos de Piaget seguidamente vêem esse fato de um modo reverente, como um sinal precoce de genialidade. De fato, o ensaio curto, que relata a observação de um pássaro raro nas montanhas suíças, não contém quaisquer padrões lógicos que seriam considerados surpreendentes para uma criança média de 11 anos. Sou inclinado a pensar sobre aquela publicação muito mais como uma causa do que uma consequencia das excepcionais qualidades inte- lectuais de Piaget embora, eiidentemente (no que cie consideraria um senti- do dialético), fosse ambas. O artigo de Piaget não aconteceu simplesmente como decorrênda de alguma qualidade de sua mente. Ele o explica como um simples ato intencio- nal. Ele queria obter permissão para usar a biblioteca da então escola ginasial de sua pequena cidade suíça, por isso escreveu e publicou o artigo para fazer a bibliotecária levá-lo a sério o suficiente para dar-lhe permissão para frequentá- la. O mais impressionante, nesse caso, não é que um menino de 11 anos pu- desse escrever um relato sobre um pássaro, mas que um menino dessa idade 1 Certamente o autor refere-se às tensões sociais da segregação racial do Apartheid. 36 Seymour Papert levou-se suficientemente a sério para conceber e executar tal estrategia para lidar com a bibliotecária. Vejo nisso o jovem Jean preparando-se para torna- se Píaget. Ele estava praticando assumir o comando do seu próprio desenvolvi- mento, algo que é necessário não apenas para aqueles que desciam se tomar- se pensadores de vanguarda, mas para todos os cidadãos em uma sociedade na qual os indivíduos têm que definir e redefinir seus papéis ao longo de toda a vida. Em acentuado contraste com a imagem de Piaget criança construindo Piaget adulto, a Escola possui uma inerente tendência a infantilizar as crian- ças colocando-as em uma posição de ter de fazer conforme são mandadas, a ocupar-se com trabalhos ditados por outra pessoa e que, além disso, não pos- suem qualquer valor intrínseco; o trabalho escolar é feito apenas porque o autor de um currículo decidiu que fazer o trabalho moldaria quem o fizesse em uma forma desejável. Considero isso ofensivo, em pane porque lembro o quanto objetei, quando criança, a ser colocado em tal situação, mas principal- mente porque estou convencido de que a melhor aprendizagem ocorre quan- do o aprendiz assume o comando, como o jovem Piaget o fez. Assim, estou sempre antenado para iniciativas que possibilitem que a finalidade da Escola como um local para aprender coexista com uma cultura de responsabilidade pessoal. Isso não deve ser confundido com a ideia em moda de tomar relevante" o que as crianças aprendem: assim, professor, não apenas ensine-as a somar, mas também finja que estão fazendo compras em um supermercado. Não se engana facilmente uma criança. Quando percebem que estão fazendo-as jogar um jogo tolo, elas são desencorajadas a levarem-se a sério. Achei mais interessante o que vi na escola Lamplighter em Dallas onde crianças de quarta série assumiam responsabilidade de verdade na administração de um negócio de ovos. Elas compravam a ração, limpavam os viveiros, coleta- vam e vendiam os ovos e, no final do ano, ficavam com o lucro, caso houvesse algum. Se terminassem com perdas, teriam que se explicar para a turma seguin- te. No entanto, mesmo isso possibilita pouca oportunidade para iniciativas reais e apenas um sentimento menor de fazer algo realmente importante. Um sentimento mais profundo de fazer algo intrinsecamente importante é visível no Projeto Kidnet, uma colaboração entre a National Geographic Society e Robert Tinker, responsável pelo desenvolvimento de alguns dos melhores usos de computadores na aprendizagem de Ciências.2 Esse projeto engaja es- tudantes de final do ensino fundamental na coleta de dados sobre chuva áci- 2 Robert Tinker é presidente do Consórcio Concord (www.concord.org), uma organiza- ção sem fins lucrativos que produz software educacional de qualidade, na filosofia software livre. Também produz cursos a distância para professores e estudantes de nível médio, entre outras atividades. A Máquina das Crianças 37 da. Cada escola envia seus dados, por meio de redes eletrónicas, para um computador central, no qual são integrados e devolvidos aos locais de origem para serem analisados e discutidos no contexto de problemas globalmente importantes. O projeto sugere um cenário de milhões de crianças em todo o mundo engajadas em um trabalho que oferece uma contribuição real para o estudo cientifico de um problema social urgente. Em princípio, um milhão de crianças poderia coletar mais dados sobre o ambiente do que qualquer núme- ro socialmente custeável de cientistas profissionais. Isso é muitíssimo melhor do que folhas de exercício e experimentos ritua- lísticos da escola, pois pelo menos os aprendizes sentem que estão engajados em uma atividade significativa e socialmente importante, sobre a qual eles concretamente se sentem responsáveis. No entanto, o que mais gosto é a opor- tunidade oferecida aos estudantes de libertarem-se de sua própria estrutura para engajar-se em atividades mais autodirecionadas.