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Prévia do material em texto

P214m Papert, Seymour 
A máquina das crianças: repensando a escola na era da 
Informática/ Seymour Papert; tradução Sandra Costa – ed. reb. – 
Porto Alegre: Artmed, 2008. 
224 p.; 23 cm. 
ISBN 978-85-363-1058-9 
Tecnologia Educacional. 1 Título. 
CDU 371.694:681.3 
Catalogação na publicação: Juliana Lagôas Coelho - CRB 10/1798 
vi Agradecimentos 
Este livro é toda a minha vida profissional ganharam muito com a oportu- 
nidade de trabalhar no MIT Media Labs,² cuja criação por Nicholas Negroponte, 
representa uma experiência significativa e original na construção de um ambien- 
te apropriado para o florescimento de uma disciplina, ainda embrionária, de 
relacionamento entre a academia e a indústria. 
As políticas do Média Lab possibilitaram-me trabalhar com algumas em- 
presas - notadamente a Lego, a Aplle e a IBM, a Nitendo e a Logo Computers 
Systens - sem jamais sentir pressões que comprometessem minha integridade 
intelectual. Este livro e o meu modo de pensar devem a essa colaboração muito 
mais do que o apoio financeiro: no mundo moderno é necessário refletir sobre 
m u d a n ç a s n a e d u c a ç ã o e n v o l v e n d o t o d o s o s s e t o r e s d a s o c i e d a d e . 
também devo mais do que apoio financeiro à National Science Foundation, 
principalmente porque Andrew Molnar, de modo admirável, tanto nos anos 
bons como nos difíceis, conseguiu manter acesa naquela instituição a chama 
da crença na mudança. 
Seria difícil traduzir em poucas palavras a contribuição da minha edito- 
ra, Susan Rabiner, para este trabalho. Se o texto final contém falhas, é porque 
eu consegui fazer mudanças de ultimas hora à sua revelia. 
Minha esposa Susanne Massie, uma escritora extraordinária, sempre soube 
quando eu estava, ou não, seguindo a trilha promissora. Como editora pro- 
fissional extremamente competente, inúmeras vezes passou horas recortando 
e colando páginas para mim incorrigíveis, até surgir uma nova forma, como 
uma estrutura que surge da rocha. Sua extraordinária engenhosidade, paciên- 
cia e abnegação proporcionaram-me condições propícias para o trabalho. A 
presença de Suzanne em vários aspectos de minha vida - intelectual, espiritual 
e emocional - ultrapassa de tal modo o profissional e o prático que prefiro 
nada mais acrescentar. 
² Laboratório de Mídias do Massachussetts Instituto of Tecnology (MIT), EUA (www. 
media.mit.edu). Nicholas Negroponte projetou com sua equipe, o laptop de cem dóla- 
res (www.laptopfoundation.org), para crianças de países em desenvolvimento. Essa 
nova tecnologia portátil é a “máquina das crianças” idealizada por Seymour Papert na 
sua primeira obra sobre o tema, Mindstorms: children, computers and powerfull ideas 
(1980), e também no presente livro. 
http://www.laptopfoundation.org/
Sumário 
Prefácio à Edição Revisada Brasileira ............................................................................................ 9 
Prefácio ....................................................................................................................................... 13 
1. Yearners e Schoolers¹ ...................................................................................................... 17 
2. Pensamento pessoal ...................................................................................................... 35 
3. Escola: mudança e resistência à mudança ..................................................................... 47 
4. Professores ..................................................................................................................... 65 
5. Uma palavra para a arte de aprender ............................................................................ 87 
6. Uma antologia de historias de aprendizagem ............................................................. 107 
7. Instrucionismo versus construcionismo ....................................................................... 133 
8. Computadoristas1 ......................................................................................................... 149 
9. Cibernética ................................................................................................................... 169 
10. O que se pode fazer? ................................................................................................... 191 
Fontes de informação ............................................................................................................... 209 
Referências ................................................................................................................................ 211 
Prefácio à Edição Revisada Brasileira 
Esta edição revisada de A máquinas das crianças é oportuna em vários sentidos. 
Primeiro, pelo surgimento dos notebooks para alunos do ensino funda- 
mental e médio, o que representa a mais recente onda tecnológica na educa- 
ção mundial. A ideia dos computadores pessoais como ferramentas de aprendi- 
zagem foi lançada por Seymour Papert há quase 30 anos. Neste livro, ele 
reafirma a tese de que o computador é importante por dar autonomia intelec- 
tual ao aprendiz dos primeiros anos de escolarização e, assim, tornar a 
cr iança menos dependente de adul tos provedores de informação. Ade- 
mais, para ser eficaz na escola, o computador, segundo Papert, deveria ser 
como o livro e o caderno, sempre disponíveis. Na realidade, isso também faz 
sentido para adultos que hoje exercem as mais diversas atividades intelectuais 
com um computador ligado e levam seus notebooks quando a tarefa exige 
deslocamento. 
Segundo, porque, apesar do nome, este não é um livro apenas sobre compu- 
tadores na educação, mas o esboço de uma teoria de aprendizagem na escola 
e na vida, contextualizada com as novas tecnologias da informação e comuni- 
cação. Alguns pontos abordados vividamente — por meio de exemplo de coti- 
diano escolar e da vida pessoal do autor— são temas perenes, como a atividade 
colaborativa genuína entre aprendizes para resolução de problemas, tais como 
a inadequação da estrutura da escola convencional face as mudanças contem- 
porâneas em outros setores da sociedade, o medo de alguns professores de 
serem suplantados pelos seus alunos, entre outros. 
Terceiro, essa nova edição pode ser considerada um reconhecimento da 
obra de Seymour Papert, autor que esteve várias vezes no Brasil e que se refere 
ao nosso pais em mais de um texto seu. Minha intenção inicial era solicitar ao 
próprio autor um novo prefácio para esta edição, mas, quando escrevi essas 
linhas, ele ainda se encontrava hospitalizado nos Estados Unidos devido a um 
grave acidente. 
O autor viveu de perto o período em que os computadores foram inven- 
tados e evoluíram nos Estados Unidos. Neste livro, não apenas conta, como 
outros já o fizeram de maneira impessoal, uma história “objetiva", factual, mas 
relata acontecimentos e impressões de quem conviveu com figuras como Marvin 
Minsky, Alan Turing e outros mais que só conhecemos por relatos bibliográficos 
genéricos. Para Papert, a história mais difícil de contar, mas muito importante 
de se conhecer, é subjetiva e sociológica. 
Para o leitor que não viveu as décadas de 1960 a 1980 da informática, a 
ênfase no livro à atividade de programação e à linguagem Logo pode aparecer 
despropositada. Logo foi a grande novidade na primeira década de uso de 
computadores pessoa i s na educação em uma época em não ex i s t i a a 
interface estruturada em janelas nem o correio eletrônico e a Web com a infini- 
dade com as opções de hoje, a qual estende-se seu alcance a praticamente qualquer 
pessoa. O ensino assistido por computador ainda era muito pobre devido a 
limitações das maquinas em termos de hardware e software e também devi- 
dos contextos das teorias de aprendizagem baseadas nos condicionamentos 
operantes skinneriano, no período pós- Segunda Guerra. 
Em vez de o aprendiz postar-se na frente de uma teça monocromática 
com conteúdos poucos interessantes,a programação em Logo lhe dava autono- 
mia para, entre outras atividades, produzir imagens gráficas coloridas e dinâ- 
micas, em um trabalho colaborativo com alunos do mesmo nível, orientados 
por um professor com sensibilidade. Programar um computador era um enor- 
me feito para uma criança, pois comandar uma máquina era até então privilé 
g io de adul tos de um conhec imento espec ia l izado , a lgo ina lcançãve l 
para uma pessoa comum. Seymour Papert foi um grande responsável por isso. 
Os educadores de hoje lidam com novas tecnologias estão se dando 
conta que a massiva introdução na escola (e em casa) de computadores liga- 
dos à internet não significa melhoria da aprendizagem. Aprender de modo 
significativo e duradouro exige esforço, persistência, muitas vezes tolerância à 
frustração, algo diferente da atitude de copiar "da internet", colar, enfeitar e 
imprimir trabalhos escolares, prática que está se tomando uma lastimável cul- 
tura em nossas escolas e mesmo em universidades. Como atestam as conferên- 
cias internacionais Eurologo, muitos professores estão redescobrindo o valor 
educativo da atividade de programação, atropelada pela vulgarização de uma 
face da internet que deixa muito a desejar. 
Este livro também é a melhor fonte em português sobre o construcionismo. 
Algumas ideias merecem discussões significativas para a educação, pois tem- 
dem a passar despercebidas em uma primeira leitura. Uma delas, um insight 
resultante da convivência acadêmica de Seymour Papert com Jean Piaget, é a 
valorização do pensamento concreto, mas sem a conotação de trampolim para 
o abstrato. Se assim fosse, "...deixaria o abstrato plantado imóvel como a for-
ma derradeira de conhecer". Para ele, o pensamento concreto, não o formal
abstrato, é o verdadeiro recheio do funcionamento da mente, onde as abstra-
ções funcionam como ferramentas para intensificar o concreto. Os métodos
formais estão à mão, não no topo. Traduzindo para a escola, isso é mais uma
10 Seymour Papert
fundamentação para as didáticas baseadas no fazer, da educação infantil à 
universidade. Agir física e mentalmente com objetos concretos, em ambientes 
naturais ou se valendo de tecnologias de representação, não é melhor nem 
"pior" do que formalizar, aprender no nível mais abstrato. 
Outro conceito muito interessante que permeia o livro é a atitude de em- 
sino que Papert chama de tolerância exigente (demanding permissiveness), dei- 
xando claro que a proposta de quebrar com a aula e o currículo tradicionais 
não significa diminuir a responsabilidade do professor e deixar o aprendiz 
fazer o que quiser. Ao prover tecnologias e ambientes colaborativos adequados 
para desenvolver projetos pessoais, espera-se que o aprendiz trabalhe de modo 
árduo e que produza resultados significativos para si próprio e para o grupo. 
Isso obviamente em sintonia com parâmetros curriculares para seu nível de 
escolarização, que só professores competentes têm condições de orientar. 
A discussão sobre matética (a arte de aprender) lembra-nos reflexões de 
autores franceses sobre o professor reflexivo, todavia em uma mudança de 
direção, aplicando-se ao aluno. Na escola, particularmente no ensino funda- 
mental, o aprendiz ainda não se sente seguro e autónomo como um adulto 
nem tem o poder do professor. Isso torna tal atitude mental algo mais difícil de 
se atingir-principalmente em crianças que, sob uma ótica piagetiana, ainda 
não atingiram o estágio do pensamento formal, ou seja, ainda não têm a plena 
capacidade de ver o mundo e a si mesmas de uma maneira predominantemen- 
te lógica formal. 
Na revisão da tradução, procurei ser fiel ao espírito do texto original, o 
qual pretende estabelecer um diálogo com o leitor, fugindo das convenções de 
um livro acadêmico, conforme menciona o próprio autor no prefácio â sua 
edição norte-americana. Na mesma perspectiva, inseri quase uma centena de 
notas de rodapé, a fim de esclarecer para o leitor de língua portuguesa aspec- 
tos do texto que só têm sentido pleno para pessoas que conhecem a cultura do 
autor e que viveram a sua época-aproximadamente a segunda metade do 
século passado, algo que certamente os mais jovens não conheceram. Assim, 
as no tas cons t i tuem um h ipe r tex to pa ra le lo , cu ja l e i tura é opc iona l . 
No texto são citadas cerca de duas dezenas de intelectuais da época, 
boa parte deles trabalharam ou ainda trabalham em universidades norte-america- 
nas ou europeias. Esse aspecto, que tende a não ser notado em uma primeira 
leitura, dá ao leitor uma noção do multifacetado conhecimento e das áreas de 
interesse de Seymour Papert, mais ainda se levarmos em conta que ele era 
matemático por formação. Com certo exagero, costuma-se dizer que a Mate- 
mática é o ramo do conhecimento que não necessita quase de nenhum outro, 
pois, de acordo com essa tese, as outras ciências é que precisam da Matemáti- 
ca. Para comentar sobre o trabalho de pessoas citadas no texto, vali-me de 
parte das informações da Wikipédia em inglês, tendo o cuidado, é claro, de 
conferir com outras fontes. Em alguns casos inseri informações naquela enci- 
A Máquina das Crianças 11
clopédia livre, que é fiel ao espírito colaborativo da filosofia wiki de não ape- 
nas consumir, mas também contribuir e não confiar em apenas uma fonte. 
Lembrando Paulo Freire, citado várias vezes no texto, em algumas passa- 
gens o professor Papert faz uma sucinta discussão sobre o aspecto político do 
ato de ensinar no contexto da discussão de CAI e de outras tecnologias, cir- 
constância que lhe pareceu adequada para externar suas reservas por não atri- 
buir à máquina o poder de tomar decisões sobre como ensinar. 
O livro é leitura importante não apenas para pais e educadores, mas tam- 
bém para estudantes e profissionais da informática. 
Por fim, registro aqui meu agradecimento a Esman Dias, professor de 
Teoria e Técnica da Tradução da Universidade Federal de Pernambuco, pelas 
valiosas conversas que mantivemos no decorrer deste trabalho. 
 
Paulo Gileno Cysneiros 
 
 
12 Seymour Papert
Prefácio 
Seguidamente, ouve-se dizer que estamos adentrando a era da informá- 
tica.¹ Esse período que se inicia poderia ser igualmente denominado como a 
era da aprendizagem: a enorme quantidade de aprendizagem que vem ocor- 
rendo rapidamente em todo o mundo já é inúmeras vezes maior do que no 
passado. 
Não faz muito tempo - e até mesmo hoje, em diversas partes do mundo -, os 
jovens aprendiam habilidades que poderiam utilizar no trabalho pelo resto de 
suas vidas. Hoje, nos países industrializados, a maioria das pessoas tem em- 
pregos que não existiam na época em que muitos nasceram. A habilidade mais 
determinante do padrão de vida de uma pessoa é a capacidade de aprender 
novas habilidades, assimilar novos conceitos, avaliar novas situações, lidar 
com o inesperado. Isso será cada vez mais verdadeiro no futuro: a habilidade 
para competir tomou-se a habilidade de aprender. 
O que é um truísmo para as pessoas o é mais ainda para as nações. A 
força competitiva de uma nação no mundo moderno é diretamente proporcio- 
nal à sua capacidade para aprender - uma combinação das capacidades dos 
indivíduos e das instituições da sociedade. 
Capacidades individuais e institucionais de aprendizagem nem sempre 
andam juntas. Por exemplo, as condições na antiga União Soviética criaram 
uma geração de indivíduos com um elevado grau de adaptabilidade, necessá- 
rio para a sobrevivência sob a opressão arbitrária do regime comunista. Por 
outra ótica, o colapso das instituições daquele país revelou um extraordinário 
grau de rigidez burocrática. As instituições da sociedade não foram capazes de 
"aprender” a adaptar-se à mudança; foram incapazes até mesmo de perceber 
que uma crise estava ocorrendo, até que tivesse atingido proporções fatais. 
¹ A saber, o original foi escrito em 1993, quando a informática, particularmente a internet, 
estava expandindo-se rapidamente no mundo inteiro. 
No mundo contemporâneo,o Japão é um exemplo impressionante de- 
nação que construiu seu sucesso sobre a habilidade de aprendizagem da socie- 
dade - a capacidade e a disposição de suas instituições e de seus indivíduos 
para aprender. Os norte-americanos repetidamente se queixam de que o Japão 
aproveitou-se de descobertas técnicas feitas nos Estados Unidos. Essa queixa 
expressa bem meu ponto de vista, embora em um sentido oposto às intenções 
dos queixosos, que falharam em apreender que a essência do sucesso japonês 
é exatamente a habilidade responsável por sucessos passados da América do 
Norte - a disposição para aprender. Os queixosos fariam bem em reaprender 
dos japoneses a habilidade de aprender, uma vez que em tal habilidade a Amé- 
rica foi no passado, campeã mundial. 
A velocidade da transformação nos locais de trabalho não é o único fator 
que confere crescente importância à habilidade de aprender. A escala global 
das consequências de ações humanas torna mais urgente entendermos o que 
estamos fazendo. A destruição da camada de ozônio, epidemias de AIDS, a 
explosão demográfica, o colapso social em cidades norte-americanas e em al- 
deias russas, a condição de sofrimento do continente africano e as demais 
questões que fazem as manchetes diárias são problemas mais do que urgentes. 
São exemplos do muito pior que virá, se os seres humanos não conseguirem, 
em uma escala até o momento sem precedentes, levarem-se a aprender novas 
formas de pensar. 
A nota otimista deste livro advém de reconhecer a sinergia potencial de 
duas tendências no mundo. Uma delas é tecnológica. A mesma revolução 
tecnológica responsável pela forte necessidade de aprender melhor também 
oferece os meios para adotar ações efetivas. As tecnologias da informação, da 
televisão aos computadores e suas combinações, abrem oportunidades sem 
precedentes para ação, a fim de melhorar a qualidade do ambiente de apren- 
dizagem, entendido como todo o conjunto de condições que contribuem para 
moldar a aprendizagem no trabalho, na escola e no lazer. 
A outra tendência é epistemológica - uma revolução nas concepções so- 
bre o conhecimento. A tese central deste livro é que a grande contribuição das 
novas tecnologias para o enriquecimento da aprendizagem é a criação de mídias 
(media) de uso individual capazes de dar suporte a um amplo espectro de 
estilos intelectuais. As mulheres e os membros de culturas minoritárias têm 
sido os mais articulados em protestar contra a imposição de uma maneira 
uniforme e única de aprender. A maioria deles mal começou a utilizar as novas 
mídias para expressar e desenvolver opiniões distintas. São as crianças, po- 
rém, que demonstram de modo mais visível o efeito potencializador de mídias 
que combinam com suas preferências intelectuais. Elas têm o máximo a ga- 
nhar e retribuir. 
No mundo inteiro, as crianças assumiram um apaixonante e duradouro 
caso de amor com os computadores, utilizando-os de modo tão variado quan- 
to suas atividades. A maior parte do tempo é dedicada aos jogos, transforman- 
14 Seymour Papert
do nomes como Nitendo em palavras do cotidiano. Elas usam computadores 
para escrever, desenhar, comunicar-se obter informações. Algumas os utili- 
zam para relacionamentos sociais;² outras, para isolar-se. Em muitos casos, a 
dedicação ao computador é tanta que a palavra "vício" vem à mente de pais 
preocupados. 
O caso de amor envolve mais do que o desejo de realizar algo com compu- 
tadores. Também apresenta um elemento de possessividade e mais importan- 
te, de afirmação de identidade intelectual. Grande número de crianças vê o 
computador como "delas" - como algo que lhes pertence e à sua geração. 
Muitos tem notado que as crianças sentem-se mais confortáveis com o compu- 
tador do que com seus pais e professores, o que demonstra uma facilidade 
natural para dominar essa máquina. Nós, de uma geração mais antiga, pode- 
mos ter adquirido, de algum modo, o conhecimento específico para dominar 
um computador, mas as crianças sabem que é apenas uma questão de tempo 
até se apropriarem completamente de tais máquinas. Elas são a geração da 
informática. 
O que há por trás e qual o futuro desse caso de amor? Poderá ser direcio- 
nado pela geração mais velha para formas construtivas ou destrutivas? Ou sua 
evolução já está além do nosso controle? 
Este livro focaliza um aspecto dessas questões: de que modo o relaciona- 
mento entre crianças e computadores afeta a aprendizagem? Entender isso 
será crucial para nossa capacidade de direcionar o futuro. 
² Ao escrever estas linhas. Papert, de certa forma, antecipou a disseminação universal de 
ferramentas como Orkut, MSN. Google Talk. 
A Máquina das Crianças 15
Yearners e Schoolers¹ 
Imaginemos viajantes do tempo de um século atrás - um grupo de cirur- 
giões e outro de professores do ensino fundamental - cada qual mais ansioso 
para ver o quanto as coisas mudaram nas respectivas profissões em 100 anos 
ou mais no futuro. Imagine o espanto dos cirurgiões entrando em uma sala de 
cirurgia de um hospital moderno. Embora pudessem perceber que aJgum tipo 
de operação estava ocorrendo e até mesmo adivinhar qual o órgão operado, 
na maioria dos casos seriam incapazes de imaginar o que o atual cirurgião 
estaria tentando fazer ou qual a finalidade dos muitos instrumentos estranhos 
que ele e sua equipe cirúrgica estavam utilizando. Os rituais de assépsia e 
anestesia, os sons de alarme dos aparelhos eletrônicos e até mesmo as luzes 
intensas, tão familiares às platéias de televisão, seriam completameme estra- 
nhos para os visitantes. 
Os professores viajantes do tempo reagiriam de forma bem diferente a 
uma sala de aula do ensmo fundamental. Eles poderiam sentir-se intrigados 
com alguns objetos estranhos. Iriam constatar que algumas técnicas convencio- 
nais mudaram - e provavelmente discordariam entre si se as mudanças foram 
para melhor ou para pior -, mas perceberiam p!enamente a finalidade da maior 
parte do que se estava tentando fazer e facilmente poderiam assumir a classe. 
¹ O neologismo yearner origina-se do verbo ingles yearn – desejar fortemente algo difi- 
cil de tornar-se realidade, como a ânsia de Iiherdade por pessoas que vivem em um 
regime autoritário. E o neologismo (Schooler), uma forma verbal infinitiva do substan- 
tivo School (Escola), neste livros significa aproximadamente "defensores da instituição 
escolar na sua estrutura atual". O leitor notará que, em partes diferentes do texto, o 
autor utilizou a palavra "escola" com inicial minúscula como substantivo comum, mas 
tambérm com maiuscula, como substantivo próprio, referindo-se a instituição escolar. 
Preferimos manter essa prática e os termos originais, pois a opção "inovadores/conser- 
vadores", utilizada na primeira edição brasileira, não corresponde ao pensamento do 
Autor. Além disso, em outras partes do livro, o autor utilizou as palavras inglesas inova- 
Dor/conservador, diferenciando-as assim dos neologismos usados neste capítulo. 
1
Uso essa parábola como uma medida rudimentar do progresso desigual 
nas diversas frentes da mudança histórica. Na esteira do espantoso progresso 
da ciência e da tecnologia em nosso passado recente, algumas áreas da ativi- 
dade humana passaram por megamudanças. As telecomunicações, o lazer e os 
transportes, assim como a medicina estão entre elas. A Escola é um notável 
exemplo de uma área que não mudou tanto. Pode-se dizer que praticamente 
não houve mudança na maneira como ministramos educação aos nossos estu- 
dantes. Evidentemente ocorreram mudanças - utilizo a parábola apenas como 
um modo de chamar atenção para o que praticamente todo mundo sabe sobre 
nosso sistema escolar: ele mudou, mas não a ponto de alterar substancialmen- 
te sua natureza. A parábola levanta a pergunta: por que, durante um período 
em que tantas atividades humanas foram revolucionadas, não vimos mudan- 
ças semelhantes na forma de ajudarmos nossas crianças a aprender?² 
Propus essa questão em várias situações, desde conversas casuais atése- 
minários formais, com públicos variando de crianças com uns poucos anos de 
contato com a escola até educadores profissionais com vidas inteiras dedicadas 
à instituição escolar. Embora as respostas tenham sido tão variadas quanto o 
esperado em um teste psicológico de manchas de tinta,³ a distribuição está 
longe de ser uniforme de um extremo ao outro da curva. A maioria das respos- 
tas ficou de um lado ou de outro de um grande divisor. 
De um lado, há os Schoolers, que ficam perplexos com minha pergunta, 
surpresos de que eu pareça estar buscando megamudanças. Eles reconhecem 
que a escola tem problemas (que instituição não os tem hoje em dia?) e mos- 
tram-se muito interessados em resolvê-los. Mas megamudanças? O que eu quero 
dizer cora isso? 
Muitos se mostram indignados. Falar em megamudanças é como tocar 
harpa enquanto Roma pega fogo. A educação atual defronta-se com proble- 
mas imediatos, urgentes "Diga-nos como usar seus computadores para resol- 
ver alguns dos muitos problemas práticos imediatos que temos", dizem eles. 
Do outro lado do grande divisor estão os Yearners, que respondem citan- 
do obstáculos a mudanças na educação, como recursos financeiros, políticas, o 
² Ao escrever este parágrafo e o anterior, certamente Seymour Paper tinha em mente 
o sistema escolar dos Estados Unidos, a cultura e o público leitor da edição americana,
muito embora ele provavelmente tivesse uma ideia da situação bem pior em países
como o Brasil. O leitor brasileiro certamente sabe que nossa escola pública tem deficiên- 
cias estruturais tão grandes que, se atingíssemos a situação "insatisfatória" das escolas
de países desenvolvidos (em aspectos como formação dos professores, instalações físicas,
infra-estrutura, alocação de recursos públicos, ete ), estaríamos em um mar de rosas.
³ Certamente o autor refere-se ao teste de personalidade de Rorschach, quando se pede
à pessoa para imaginar formas na série de cartões com manchas simétricas de tinta,
como fazem as crianças em relação a nuvens.
18 Seymour Papert
imenso poder dos interesses implícitos de burocratas da escola ou a falta de 
pesquisas científicas sobre novas formas de aprender. Essas pessoas não di- 
zem: "Não consigo imaginar o que você poderia estar procurando”, porque 
elas próprias anseiam por algo diferente. 
Muitos Yearners-de pais a professores e administradores – simplesmen- 
 te encontram maneiras de driblar a Escola, ainda mais quando constatam que 
tais problemas são impedimentos diretos de aspirações com relação a seus 
próprios filhos. Alguns pais mantem seus filhos em casa: nos Estados Unidos, 
centenas de milhares de crianças estudam em casa.4 Outros buscam escolas al- 
ternativas e até mesmo ajudam a criar escolas que ofereçam tais alternativas. 
Outra categoria importante de Yeamers age como uma espécie de quinta 
coluna dentro da própria Escola: um grande número de professores consegue 
criar oásis de aprendizagem nos limites das suas próprias salas de aula, em 
profunda disparidade com a filosofia educacional abertamente adotada por 
seus administradores; algumas redes de escolas públicas municipais, talvez 
aquelas onde os Yearners passaram a ocupar cargos administrativos, abriram 
espaço para outros Yearners dentro da Escola, permitindo a criação de progra- 
mas alternativos dentro do sistema Escolar, abrindo caminho para que tais 
programas desviem-se das políticas públicas do município quanto ao método e 
ao currículo.5 
No entanto, apesar das muitas manifestações do anseio por algo diferen- 
te, o sistema educacional vigente, incluindo grande parte da comunidade de 
pesquisadores, continua bastante comprometido com a filosofia educacional 
do final do século XIX e início do século XX. Até agora nenhum dos que dessa- 
fiam essas sacrossantas tradições foi capaz de afrouxar o domínio do atual 
s i s t e m a e d u c a c i o n a l s o b r e a m a n e i r a d e e n s i n a r a c r i a n ç a s . 
Os professores viajantes do tempo de nossa parábola, que não encontra- 
ram nada irreconhecível na sala de aula contemporânea, ficariam muito sur- 
presos se tivessem ido para as casas de alguns estudantes, pois lá descobririam 
que, com diligência e vivacidade que a escola raramente consegue gerar, mui- 
tos alunos estariam profundamente envolvidos na aprendizagem de regras e 
estratégias do que pareceria, à primeira vista, ser algo muito mais exigente do 
que qualquer tarefa de casa. Eles definiriam o tema como videogame, e o que 
estavam fazendo, como "divertimento". 
Embora a tecnologia em si pudesse de início prender a atenção dos nos- 
sos visitantes, como professores eles ficariam perplexos com o nível de esforço 
intelectual que as crianças estavam empregando nessa atividade, além do ní- 
4 Diferentemente da legislação brasileira, a lei norte-americana permite essa prática 
desde a época dos pioneiros. 
5 Nos Estados Unidos, os estados e municípios têm autonomia para definir políticas de 
educação, em função dos objetivos e valores da comunidade. 
A Máquina das Crianças 19
vel de aprendizagem que estava ocorrendo. Níveis de esforço e de aprendiza- 
gem muito maiores do que o ocorrido apenas algumas horas antes na escola. 
Com certeza, o mais intelectualmente aberto e honesto dos professores viajan- 
tes do tempo poderia constatar que jamais presenciou tanto sendo aprendida 
em um espaço tão restrito e em tão pouco tempo. 
A Escola faria os pais - que honestamente não sabem como interpretar o 
óbvio caso de amor dos filhos com os videogames - acreditar que as crianças os 
adoram porque são fáceis de dominar e antiparizam com as tarefas de casa 
porque são difíceis. Na realidade, na maior parte das vezes, o inverso é verda- 
deiro. Para qualquer adulto que pense que esses jogos são fáceis, basta sentar- 
se e tentar dominar um deles. A maioria é difícil, com informações e técnicas 
complexas a serem aprendidas. Frequentemente as informações são muito mais 
difíceis e demoradas de dominar do que as técnicas de interação com o jogo. 
Se isso não convencer os pais de que os jogos são sérios, certamente um 
segundo argumento os convenceria: videogames são brinquedos - eletrónicos, 
sem dúvida, mas brinquedos-, e é claro que crianças gostam mais de brinque- 
dos do que de tarefa escolar. Por definição, brinquedo é diversão, e tarefa de 
casa, não. O que alguns pais podem não se dar conta é que os videogames, 
sendo o primeiro exemplo de tecnologia de computação aplicada à fabricação 
de brinquedos, foram a porta de entrada das crianças para o mundo da 
informática. Esses brinquedos, dando autonomia às crianças para testar ideias 
utilizando regras e estruturas preestabelecidas - de um modo como poucos 
brinquedos são capazes de proporcionar -, provaram ser capazes de ensinar 
aos aprendizes as possibilidades e limitações de um novo sistema, utilizando 
meios que muitos adultos invejariam. 
Os videogames ensinam às crianças o que os computadores estão come- 
çando a ensinar aos adultos - que algumas formas de aprendizagem são rápi- 
das, muito atraentes e gratificantes. O fato de exigirem muito tempo pessoal e 
de requererem novos estilos de pensar é um pequeno preço a pagar (e talvez 
até mesmo uma vantagem) com retomo garantido no futuro. Não é de surpre- 
ender que, em comparação, para muitos jovens a Escola pareça lenta, maçante 
e claramente desatualizada. 
A introdução dos computadores não é o primeiro desafio a valores edu- 
cacionais estabelecidos: há mais de 100 anos, por exemplo, John Dewey6 ini- 
ciou uma campanha por um estilo de aprendizagem escolar mais dirigido pelo 
6 Dewey (1859-1952) foi eminente filósofo e psicólogo norte-americano, professor de 
ensino médio e depois professor em várias universidades. Foi proponente de amplas 
reformas educacionais nos EUA e da Educação Progressiva, centrada no raciocínio crí- 
tico do aluno, referida mais adiante por Seymour Papert. É reconhecido como um dos fundadores 
do Pragmat i smo F i losóf ico e como p ionei ro do Func ional i smo na Ps ico lo - 
gia. Entre outros temas, também escreveu sobre Tecnologia. 
20 Seymour Papert
próprio aprendiz; depois dele, muitos reformadores mais ou menos radicais 
lutaram para mudar a escola. Na época, Dewey empreendeu sua formidável 
tarefa com pouco mais do que uma forte intuição filosófica sobre o modo 
como as crianças desenvolvem-se, pois não havia movimentos significativos 
da sociedade em geral para mudar as escolas. Na época de Dewey, certamente 
inexistia uma insatisfação tão profunda como a atual com a educação, que 
parece, às vezes, um virtual desejo de destruir o sistema de escola pública, em 
vez de deixar que as coisas continuem como estão. Dewey permanece um 
herói para os que acreditam na concepção contemporânea da criança como 
uma pessoa com direito à autodeterminação intelectual, havendo pouca dúvida 
de que uma criança tratada com respeito e encorajamento, em vez de rejeição 
e punição, terá um melhor desempenho em qualquer sistema educacional. 
Embora as ideias educacionais de Dewey tenham certamente eliminado alguns 
dos mais cruéis obstáculos ao desenvolvimento infantil saudável, elas foram 
tão diluídas que pouco foi abordado em relação à seguinte questão: ao tentar 
ensinar às crianças o que os adultos querem que elas saibam, a Escola utiliza a 
forma natural dos seres humanos aprenderem em ambientes não-escolares? 
O fracasso dos reformadores do passado em promover uma aprendiza- 
gem substancialmente melhor instrumentalizou os que estão dentro do siste- 
ma educacional vigente com o argumento de que propostas futuras provarão 
ser também incapazes de promover uma aprendizagem radicalmente melhor. 
É bem possível que alguns acreditem que o melhor argumento contra uma 
megamudança seja este: se tal mudança tivesse sido realmente necessária no 
passado, por que tentativas anteriores não vingaram? Todavia o sistema vi- 
gente pode estar à beira de um colapso. Este Iívto é permeado e direcionado 
pela minha convicção de que fortes sentimentos de insatisfação na sociedade 
como um todo estão rapidamente impossibilitando que se resgate a educação 
como a conhecemos, sc continuarmos apenas tentando remendar suas bordas. 
Entre as insatisfações, o sentimento das crianças não é uma das menores; no 
passado elas podiam não gostar da Escola, mas eram persuadidas a acreditar 
que ela era o passaporte para o sucesso na vida. Na medida em que as crianças 
rejeitam uma Escola que não está em sintonia com a vida contemporânea, elas 
tomam-se agentes ativos de pressão para a mudança. Como qualquer outra 
estrutura social, a Escola precisa ser aceita por seus participantes. Ela não 
sobreviverá muito além do tempo em que não se puder mais persuadir as 
crianças a conceder-lhe certo grau de legitimidade. 
A informática, nas suas várias formas, com uma força persuasiva muito 
maior do que até mesmo a filosofia de um pensador radical como Dewey, está oferecendo 
a o s Y e a r n e r s n o va s o p o r t un i d a d e s p a r a c r i a r a l t e r na t i va s . A ú n i c a 
questão é se as alternativas serão criadas democraticamente. A escola pública 
abrirá o caminho ou, como na maioria das vezes, a mudança primeiro irá 
beneficiar os filhos dos ricos e poderosos e apenas aos poucos - e com muito 
esforço - entrará nas vidas dos filhos do restante de nós? A escola continuará 
A Máquina das Crianças 21
a impor a todos um único modo de saber ou se adaptará a um pluralismo 
epistemológico? Desde que minha opção é pela escolha democrática, grande 
parte deste livro é dedicada ao exame de exemplos do que os Yearners fizeram 
nas poucas oportunidades que tiveram para promover mudanças em escolas 
públicas de ensino fundamental. Muitos dos exemplos que utilizei são real- 
mente modestos em escala. Entretanto, ofereço-os como possibilidades do rico 
potencial que o futuro poderá trazer, e não como retratos fiéis do porvir. A 
história a seguir, uma pane factual e outra ficcional, ajudará a ilustrar aonde 
espero chegar com o livro. 
A parte factual foi meu encontro com Jennifer, uma menina de 4 anos, da 
educação infantil. Ela soube que eu tinha sido criado na África do Sul e per 
guntou-me se eu sabia como as girafas dormem "Elas têm pescoços muito 
compridos", disse ela, e perguntou onde colocam a cabeça quando querem 
descansar. Com sinceridade, respondi que não sabia e perguntei-lhe o que 
pensava. Ela explicou seu problema com um gesto de aconchegar a cabeça 
sobre os braços: "Minha cadela aninha a cabeça nos braços quando dorme. Eu 
também faço assim, mas a cabeça da girafa fica muito longe". Continuei o 
diálogo com outras crianças ao redor e obtive uma farta colheita de boas teo- 
rias. Uma delas sugeriu que a girafa dorme em pé, "como um cavalo". Isso foi 
o inicio de uma animada discussão, voltando à questão onde o animal põe a
cabeça. Ninguém imaginou que a cabeça poderia permanecer erguida. Uma
delas sugeriu que a girafa poderia colocar a cabeça no chão se fizesse spacatto
como uma ginasta. Jennifer, adotando a ideia de que girafas dormem em pé,
demonstrou óbvio deleite ao conseguir formular uma teoria: "Ela procura uma
árvore onde possa encostar o pescoço!". Perguntei como seria se não houvesse
uma árvore. Ela me olhou com desdém e respondeu que obviamente haveria
árvores, pois girafas comem as folhas dos topos e é por isso que elas têm
pescoços tão compridos.
Nesse exemplo vemos dois lados do tipo de pensamento de crianças nes- 
sa idade: a coexistência de uma enorme capacidade para elaborar teorias e 
uma dependência quase total de adultos para obter informações que testem 
suas teorias ou, de outro modo, que as coloquem em contato com a realidade. 
Jennifer encontra-se em um estágio de transição. As crianças mais novas estão 
completamente absortas em um mundo de exploração imediata. Em um estágio 
posterior, a menos que o espirito de pesquisa tenha sido extinguido, como não 
raro ocorre, elas serão capazes de explorar um mundo além do tato e da visão. 
Ao chegar em casa no final do dia, ainda estimulado pela conversa com 
as crianças, lancei me em uma investigação sobre girafas, com a intensidade e 
talvez mesmo com o imediatismo das interações de Jennifer com sua cadelinha. 
Não tenho uma girafa de estimação, mas tenho uma biblioteca. Alguns dos 
livros foram logo espalhados pela mesa de trabalho à medida que empreendi, 
com alguns desvios de rota, uma gratificante caçada de informações sobre os 
22 Seymour Papert
hábitos de sono das girafas. Pude explorar esse mundo porque os livros pro- 
porcionaram-me um imediatismo ampliado. 
Até recentemente seria tolice perguntar por que esse imediatismo amplia- 
do não poderia estar disponível para Jennifer, pois crianças da sua idade não 
sabem ler e, mesmo que soubessem, não seriam capazes de conduzir este tipo 
de pesquisa. Tal resposta, porém, não é mais convincente. Nenhum obstáculo 
técnico impediria a fabricação de uma máquina - chamemo-la de Máquina do 
Conhecimento - que desse a Jennifer o poder de conhecer o que outros sa- 
bem. Há quase 20 anos, Nicholas Negroponte, meu colega no MIT, construiu 
uma máquina que possibilitava a exploração virtual da pequena cidade de 
Aspen, no Colorado, por meio de um computador. Exemplos muito simples 
estão aos poucos entrando em produção comercial sob nomes como "vídeo 
interativo", e-book, livro eletrónico, CD-i e, em versões um pouco mais elabo- 
radas, "realidade virtual".7 
O que diferencia tais esforços de uma verdadeira Máquina do Conheci- 
mento não é mais a falta de tecnologia de memória ou de acesso a informa- 
ções, mas o tamanho do esforço necessário para reunir o conhecimento. No 
entanto, o grande mercado potencial para uma máquina desse tipo torna ine- 
vitável seu eventual aparecimento. 
Um sistema como esse possibilitaria a uma futura Jennifer explorar um 
mundo muito mais rico do que aquele dos meus livros em papel. Utilizando a 
fala, o tato ou gestos, ela guiaria a máquina ao tópico de seu interesse, rápida- 
mente navegando em umespaço de conhecimento muito mais amplo do que 
os conteúdos de qualquer enciclopédia impressa. Quer ela estivesse interessa- 
da em girafas, panteras ou pulgas, quer desejasse vê-las comendo, dormindo, 
caminhando, correndo, pulando, lutando, parindo ou copulando, ela poderia 
encontrar o caminho até os sons e as imagens relevantes que, no seu entender, 
a ajudasse a saber o que desejasse conhecer. Embora não seja o caso, um dia 
essa possibilidade será ampliada até para se experimentar o cheiro e o tato, e 
talvez a cinestesia de estar com os animais. 
Tal Máquina do Conhecimento mal arranha a superfície de como as no- 
vas mídias mudarão a relação das crianças com o conhecimento. Todavia, até 
mesmo o exame mais superficial dessa questão requer uma concessão elemen- 
tar, porém consequente: as crianças que crescerem com a oportunidade de 
7 É preciso levar em consideração que este livro foi escrito há cerca de 15 anos, período 
em que a tecnologia da informática evoluiu muito. A sigla CD-i é pouco conhecida no 
Brasil. Referc-se a um gravador de videocassete, com capacidade para CD interativo, 
lançado em 1991 nos EUA pela Phillips. O CD-i teve vida curta. Precursor do videogame, 
foi descontinuado logo após o lançamento dos games Nintendo e Sega quando a Phillips 
resolveu também entrar nesse mercado. 
A Máquina das Crianças 23
explorar as florestas as cidades as profundezas dos oceanos, os mitos antigos 
e o espaço exterior estarão menos propensas do que os jogadores de videogame 
a s e n t a r em t r a n q u i l a m e n t e e m u ma s a l a , a s s i s t i n d o a t é o f i m a q u a l q u e r 
coisa que lembre, mesmo vagamente, o currículo da escola fundamental como 
o conheremos aré agora!
Uma reflexão menos superficial nos levaria a perguntar: de que modo a 
introdução de Máquinas do Conhecimento no ambiente escolar compromete- 
r i a a p r i ma z i a a l e i t u r a e à e s c r i t a - o u s e j a , a f l u ên c i a d a s c r i an ç a s n a 
utilizacão da linguagem alfabética? 
Na l i terarura educacional, há muito existe a suposição generalizada de 
que a leitura é a principal via de acesso dos estudantes ao conhecimento. De 
alguém que não sabe ler diz-se ter sido condenado à ignorância ou, no míni- 
mo que é dependente da l imi tada quan t idade de in formações s ign i f i ca t ivas 
que podem ser obtidas oralmente. 
O desenvolvimento educacional das cr ianças, portanto, tem sido visto 
como r igidamente dependente do aprender a ler em um determinado período 
de v ida . A expec ta t iva de uma Máquina do Conhec imen to sugere que essa 
suposição fundamental não seja necessar iamente uma verdade e terna, sendo 
possível que comece a mudar em uma ou duas décadas pelo fato de a enten- 
dermos melhor. Não estou sugerindo que a linguagem escrita tende a ser aban- 
donada Estou sugerindo que é necessár io uma nova concepção a respei to da 
posição do aprender a ler como requisi to para o acúmulo, por estudantes, de 
conhecimentos necessár ios. Ou pelo menos como a pr imeira via a ser aberta 
para as crianças quando iniciam a educação formal. 
Tenho convicções ainda mais firmes com relação a um outro tipo de ques- 
tão levantado pela Máquina do Conhecimento e pela pr imazia da le i tu ra na 
cu l tu ra a tua l , como a v ia essencia l para o conhecimento . Aprender a l e r e 
escrever é uma importante parte do que ocorre com Jennifer na pr imeira sé- 
rie, mas não está necessariamente no âmago do que lhe é passado sobre o que 
é aprender A transição de Jennifer é , de fato , epistémica; embora não tenha 
p lena consc iênc ia d i s so , e la es tá sendo desv iada de conf iar em uma forma 
dominante de conhecer para confiar em outra. 
Quando bebé. Jennifer adquiriu conhecimento por exploração, sendo dona 
de sua própria aprendizagem. Embora seus pais colocassem conhecimento no 
seu caminho, ela escolhia o que queria explorar, determinando para si mesma 
o que e como pensar. Isso não significa que os adultos não tivessem tentado,
em maio r ou menor g rau , con t ro lá - l a e à sua ap rend izagem. Atua lmen te é
algo sabido que pré-escolares não depositam, em seus bancos de memória, o
conhecimento que os adultos tentam impingir-lhes, da mesma forma que apren- 
dem mais tarde, quando vão para a escola. O conhecimento é metabol izado,
ass imi lado jun tamente com todas as ou t ras exper iências d i re tas do mundo.
Quando Jennifer perguntou-me sobre girafa, e la estava em um estágio 
no qua l mais perguntas su rg iam em sua men te do que e la pod ia responder 
24 Seymour Papert
pela exploração direta do seu mundo imediato Ela agiu da maneira cr roo fora 
ensinada, perguntando a um adulto condescendente que iria recompensar sua 
curiosidade com aprovação. Embora a pressão social para esse modo de apren- 
der - ser informado por alguém, acatar autoridade - tenha raíz na curiosi- 
dade do próprio aprendiz, no decorrer da vida educacional da maioria das 
crianças esse modo de aprender será massivamente reforçado pela escola. 
Como Jennifer se sairá, no final, dependerá de muitos fatores socais, 
psicológicos e acidentais. É evidente que ela está entrando em um período de 
transição que exercerá um impacto profundo e talvez nocivo e cruel sobre seu 
desenvolvimento intelectual. O jargão da Escola com frequência utiliza o ter- 
mo alfabetização (literacy) para referir-se a condição de ser capaz de ler e 
escrever. Entretanto, os teóricos que tentam analisar mais a fundo o significa 
do da educação criticam muito a concepção de que o analfabetismo pôde ser 
sanado ensinando-se ãs crianças a habilidade mecânica de decodificar marcas 
pretas sobre papel branco. Há muito mais envolvido. Paulo Freire ensina-nos a 
não dissociar "ler a palavra" de "ler o mundo". Tornar-se alfabetizado significa 
pensar de uma forma diferente da anterior ver o mundo de outra maneira, 
supondo-se que há muitas alfabetizações diferentes. 
Nesse sentido, a escolha de um nome para o processo torna-se epistemo- 
lógica: recentemente, alguns autores sugeriram o termo "estilos de conhecer" 
como substituto para alfabetização. Sou inteiramente simpático às intenções 
de tais autores; porém, sinto falta de uma palavra para a distinção entre um 
sentido literal de alfabetização (literacy) e os outros sentidos mais sofisticados 
que a ideia evoca. Em desespero, cunhei as palavras letteracy ("leteracia") e 
letterate ("leterado") para referir-me à habilidade peculiar envolvida em ler 
palavras formadas com as letras do alfabeto. Deixo fora dessa definição bem 
específica as oportunidades, oferecidas em sua maioria pelos novos meios re- 
presentados simbolicamente pela Máquina do Conhecimento, permitindo que 
os estudantes tomem-se altamente educados,8 sem depender do seu progresso 
em direção à leteraria.9 
A necessidade desse malabarismo linguístico reflete a natureza radical 
da revolução nos meios (media), introduzida pelo computador. Sem o risco de 
8 O autor usou aqui o termo literate (instruído, letrado, educado), que remete o falante 
nativo do inglês a um jogo de palavras com os neologismos letterate e letteracy, mencio- 
nado no parágrafo. 
9 Atualmente, fala-se em media literaty, para referir-se a uma alfabetização mais ampla, 
que inclui a familiaridade com as ubíquas Novas Tecnologias de Informação e Comuni- 
cação (NTIC). Outra extensão, cunhada por especialistas, é o conceito de letramento. 
relativo ao aprendizado da língua escrita pela interação natural do aprendiz com mate- 
riais escritos do ambiente, tais como revistas em quadrinhos, cartazes, rótulos, outdoors. 
propagandas de TV jornais, entre outros. 
A Máquina das Crianças 25
simplificar demais, pode-se dizer que existiram, até agora, dois meios ampla- 
mente utilizados para a transmissão de informações e de ideias c apenas uma 
grande transição histórica. 
Durante a maior parte da históriahumana, a fala permaneceu como a 
única transmissora do aprendido ameriormente. Desenhos, sinais de fumaça e 
gestos foram complementos importantes, mas jamais ameaçaram o monopó- 
lio da fala como determinante das informações que as pessoas em qualquer 
sociedade poderiam compartilhar, entre grupos ou mesmo entre gerações. A 
escrita foi o primeiro distanciamento significativo da tradição oral, permane- 
cendo como detalhe se o surgimento da linguagem escrita data dos hieróglifos 
egípcios ou de Guttenberg. 
Cineastas, pintores e outros usuários de mídias ainda em desenvolvimen- 
to poderão sentir-sc ignorados pela minha decisão de considerar as mídias 
digitais o principal avanço depois da escrita. F.ntretanto acredito que a histó- 
ria de Jennifcr capta melhor do que palavras abstratas um importante aspecto 
daquilo que torna as mídias digitais qualitativamente diferentes. Ela mostra- 
nos uma alternativa aos riscos que as crianças estão sujeitas pelo fato de alfa- 
betização e letteracy serem praticamente sinónimos. Elas estão sob risco por 
não terem acesso a um mundo imediato mais amplo para explorar e porque 
dispõem de fontes muito limitadas para recorrer, apenas perguntando. O risco 
é duplo, pois tal situação reforça o papel tradicional da Escola de impor letreracy 
e toda a rigidez associada a esse papel. 
Dada a novidade da tecnologia digital, não é de surpreender que não 
tenhamos desenvolvido uma linguagem universalmente aceita para falar so- 
bre ela. Isso não significa, entretanto, que devemos ignorar que uma revolu- 
ção está em gestação ou que não devamos fazer todo o possível paro orientar 
sua evolução. E isso porque, em face do problema de como reformar a educa- 
ção básica, a transição do modo de conhecer baseado na leteracia (letteracy) 
para o modo de conhecer por meio das novas mídias pode ser mais importante 
do que a passagem da cultura preletterate (pré-leitura de palavras) para a 
cultura leterada (letterate). 
É importante lembrar que a revolução da lettracia, ou seja, o advento da 
escrita e da imprensa, não afetou diretamente a maneira fundamental de ex- 
plorar e conhecer o mundo da maioria das crianças de 2, 4 ou até mesmo de 6 
anos. Evidentemente, as grandes questões sobre o futuro da alfabetização 
(litteracy) e da leteracia estão além dos objetivos deste livro. O importante aqui 
é que a Máquina do Conhecimento oferece às crianças uma transição entre a 
aprendizagem anterior a escola e a verdadeira alfabetização de uma forma 
mais pessoal, mais negociada, mais gradual e, portanto, menos precária do 
que a súbita transição que se exige hoje das crianças, quando passam do modo 
de aprender por meio da experiência direta para o uso da palavra impressa como 
a fonte do informações importantes. 
26 Seymour Papert
Por que então não levar a sério, como o fazem os defensores da Escola 
atual (Schoolers), uma opção tão promissora para o processo educacional? 
Teimosia? Uma obstinada recusa em abandonar velhos hábitos? Tais fatores 
estão presentes quando sc questiona procedimentos bem sedimentados. Em 
educação esse problema apresenta um elemento adicional. A maioria dos 
Schoolcrs bem-intencionados estão amarrados à suposição de que o modo de 
ser da Escola é o único possível, pois nunca viram ou imaginaram alternativas 
viáveis para proporcionar determinados tipos de conhecimento. 
No entanto, até mesmo o Schoolcr mais empedernido reconhecerá pron- 
tamente que algumas aprendizagens importantes acontecem de modo eficien- 
te sob condições muito diferentes daquelas da Escola: os bebés aprendem a 
falar sem um currículo ou lições formais; as pessoas desenvolvem habilidades 
em hobbies sem professores; o comportamento social não é aprendido pela 
instrução em sala de aula. Um Schooler poderá até aceitar que uma Máquina 
do Conhecimento possa ampliar as possibilidades do aprender, incluindo tanto 
girafas distantes como cãezinhos da redondeza. Todavia, ficará intrigado por 
não ter ouvido falar de ninguém - exceto, talvez, de pessoas muito talentosas - 
que tenha conseguido dominar disciplinas tão difíceis como a geometria ou a 
álgebra por meios diferentes daqueles de programas de instrução educacional 
bem-estabelccidos, testados pelo tempo. 
Esses céticos facilmente podem imaginar, por exemplo, um professor con- 
duzindo uma turma de estudantes por meio de "perguntas socráticas", a "desco- 
brir por si mesmos" alguma fórmula matemática. No entanto, não consideram 
isso significativamente diferente de uma boa explicação da fórmula. Embora 
concordando com eles, sempre ansiei (yearned) por maneiras de aprender pelas 
quais as crianças pudessem agir como criadores em vez de consumidores de 
conhecimento, mesmo sabendo que os métodos propostos sempre pareciam ser 
apenas um pouco superiores, quando muito, aos estilos antigos.10 
No meu caso, ocorreu uma virada no início da década de 1960, quando 
os computadores mudaram na essência o meu modo de trabalhar. O que mais 
me impressionou foi que determinados problemas abstratos e difíceis de cap- 
tar tomaram-se concretos e transparentes e que certos projetos potencialmen- 
te interessantes, mas complexos demais para empreender, tornaram-sc mane- 
jáveis. Ao mesmo tempo, tive minha primeira experiência da empolgação e do 
poder de domínio que mantêm as pessoas trabalhando noite a dentro com 
10 Faz-se necessário lembrar novamente que, na época, ainda não existia a Wikipédia 
(www.wikipedia.org) c ferramentas afins, disponíveis gratuitamenie na internet em 
quase 200 linguas, onde as pessoas consomem e também são incentivadas a colaborar, 
adicionando novos conhecimentos. 
A Máquina das Crianças 27
seus computadores. Percebi que as crianças poderiam ter condições de desfru- 
t a r das mesmas van tagens - um pensamento que mudou minha v ida . 
Escolhi como meta lutar para criar um ambiente no qual todas as crian- 
ças - seja qual for sua cultura, gênero ou personalidade - pudessem aprender 
álgebra, geometria, ortografia e história de maneiras mais próximas à apren- 
dizagem informal da criança pré escolar ou da criança excepcional do que ao 
processo educacional adotado nas escolas. Na linguagem do Schooler cético, 
minha principal dúvida era se as "crianças bem-dotadas" aprendiam de modo 
diferente por serem excepcionais ou se, conforme desconfiei, tomaram-se ex- 
cepcionais porque as circunstâncias permitiram-lhes aprender de um modo 
diferente. 
Posso ouvir muitos Schoolers dizerem para si próprios, enquanto lêem 
estas linhas: "Sim, já ouvimos antes esse discurso. É o velho refrão da educa- 
ção progressista. Isso foi tentado e não funcionou. Você mesmo ridicularizou o 
método por descoberta com o exemplo de álgebra". 
Há alguma semelhança (e aceitarei a palavra "progressista" para designá- 
la) entre a concepção de aprendizagem que estou apresentando e alguns prin- 
cípios filosóficos expressos nas várias formas de inovação que apareceram sob 
nomes como educação progressista, educação aberta, centrada na criança, constru- 
trivista ou radical. Compartilho com esse amplo movimento a crítica à Escola 
por transformar as crianças em receptores passivos de conhecimento. Paulo 
Freire expressou essa crítica de modo muito sugestivo em sua descrição da 
Escola como seguindo um "modelo bancário" em que as informações são de- 
positadas na mente da criança, como dinheiro em uma caderneta de poupan- 
ça. Outros escritores expressaram o mesmo pensamento, acusando a escola de 
tratar a mente da criança como um "vasilhame a ser preenchido" ou como o 
receptor no final de uma linha de transmissão. 
Uma das formas que discordo da educação progressista torna-se aparen- 
te quando deixamos de criticar a Escola e passamos a inventar novos métodos. 
A meu ver, quase todas as experiências que pretendiam implementar uma edu- 
cação progressista foram desapontadoras porque não chegaram até o ponto 
de tomar o estudante o sujeito do processo em vez de torná-lo objeto. Em 
alguns casos, isso ocorreu porque os experimentadoresforam demasiado tími- 
dos; as experiências falharam, do mesmo modo como o teste de um novo 
tratamento médico falharia se os médicos tivessem medo de prescrever os 
remédios nas dosagens eficazes. 
Na maioria dos casos, houve razões mais profundas do que a timidez 
para impedi-los. Os primeiros criadores de experiências em educação progres- 
sista careciam das ferramentas que lhes permitissem criar novos métodos de 
forma confiável c sistemática. Dispondo de meios muito limitados, eles foram 
forçados a confiar demais nos talentos específicos de professores como indiví- 
duos ou em combinação adequada com um contexto social particular. Em com- 
sequência, muitas vezes os sucessos obtidos não podiam ser generalizados. 
28 Seymour Papert
Outra parábola enfatizará esse ponto e também esclarecerá onde vejo 
minha principal nova contribuição para o velho debate. Meus hipotéticos 
Schoolers disseram que a educação progressista foi tentada e não funcionou. 
Concordo que ela não funcionou muito bem - do mesmo modo como Leonardo 
da Vinci fracassou em suas tentativas de inventar um avião. Fazer um avião na 
época de Leonardo requeria mais do que a manipulação criativa de tudo o que 
se sabia sobre aeronáutica. Seu fracasso em fabricar um avião funcional não 
provou que ele estava errado em suas suposições sobre a viabilidade das má- 
quinas voadoras. 
O avião de da Vinci teve de esperar pelo desenvolvimento de algo que só 
poderia suceder por intermédio de grandes mudanças na maneira como a so- 
ciedade administra seus recursos. Os irmãos Wright puderam ter sucesso onde 
Leonardo pôde apenas sonhar, porque uma infra-estrutura tecnológica forne- 
ceu materiais, ferramentas, motores e combustíveis, enquanto uma cultura 
científica (que se desenvolveu em co-evolução com essa infra-estrutura) for- 
neceu ideias que se basearam nas capacidades peculiares dos novos recursos. 
Os inovadores em educação, mesmo no passado muito recente, estavam 
em uma situação análoga à de Leonardo. Eles podiam formular, e de fato for- 
mularam, perspectivas arrojadas. São exemplos a ideia de John Dewey de que 
as crianças aprenderiam melhor se a aprendizagem realmente fizesse parte da 
experiência de vida; ou a ideia de Paulo Freire de que elas aprenderiam me- 
lhor se fossem verdadeiramente responsáveis por seus próprios processos de 
aprendizagem; ou a ideia de Jean Piaget de que a inteligência surge de um 
processo evolutivo no qual muitos fatores devem dispor de tempo para encon- 
trar seu próprio equilíbrio; ou a ideia de Lev Vygotsky de que a conversação 
desempenha um papel crucial na aprendizagem. Tais ideias sempre atraíram 
os Yearners, refletindo uma atitude de respeito às crianças e uma filosofia so- 
cial democrática. 
Lamentavelmente, na prática, tais ideias não alçariam vôo. Quando al- 
guns educadores tentaram criar uma escola real baseada nesses princípios 
gerais, foi como se Leonardo tivesse tentado fazer um avião com carvalho 
e movido a mula. A maioria dos profissionais que tentou seguir os grandes pen- 
sadores na educação foi forçada a ceder em tantas coisas que a intenção origi- 
nal perdeu-se. O "método por descoberta", por exemplo, pode ser um passo 
em direção ao sonho de Dewey, porém é um passo modesto, completamente 
insuficiente para fazer o tipo de diferença expressa no enorme sonho de dar às 
crianças autonomia para aprender pela experiência viva. É apenas um discur- 
so duplo pedir às crianças que se responsabilizem pela própria aprendizagem 
e, ao mesmo tempo, mandá-las "descobrir" algo que pode não ter papel algum 
no entendimento das coisas pelas quais elas se preocupam, estão interessadas 
ou curiosas. 
Como uma via de acesso ao conhecimento do tipo que Jennifer estava 
buscando, a Máquina do Conhecimento não será mais do que uma metáfora 
A Máquina das Crianças 29
instigante ainda por algum tempo, pois é muito grande a quantidade necessá- 
ria de conhecimento factual para fazê-la funcionar. Há, contudo, áreas de co- 
nhecimento em que a transição epistêmica é bem mais brutal para muitas 
crianças e nas quais uma máquina que forneça um contexto para suavizá-la 
está muito mais à mão. Uma dessas áreas é a matemática. 
Se a ideia de uma transição de estilos orais de conhecer para estilos 
leterados de conhecer parece menos aplicável à matemática, em grande parte 
deve-se ao fato da nossa cultura estar inclinada a reservar o nome matemática 
para o tipo de matemática "leterada" ensinada na escola e talvez para uma 
base intuitiva mínima diretamente conectada a ela. Contudo, ao excluir uma 
base muito maior do conhecimento que deveria servir como alicerce para a 
matemática formal, interrompemos a via para uma melhor aprendizagem. Toda 
criança pré-escolar adquiriu por si própria um conhecimento matemático pe- 
culiar sobre quantidades, espaço e confiabilidade de diversos processos de 
raciocínio, elementos que serão úteis posteriormente na aula de matemática. 
A enorme quantidade dessa matemática "oral" construída e acumulada pelas 
crianças foi bem documentada por Jean Piaget. 
O problema central para a educação matemática é encontrar maneiras 
de valer-se da vasta experiência da criança em matemática oral, mas os compu- 
tadores podem fazer isso. 
Até agora o uso mais potente de computadores para mudar a estrutura 
epistemológica da aprendizagem infantil foi a construção de micromundos,11 
nos quais as crianças executam atividades matemáticas porque são espaços 
virtuais atrativos, exigindo o desenvolvimento de habilidades matemáticas 
específicas. Simultaneamente, o formato desses mundos ajusta-se ao estilo oral 
bem-sucedido da aprendizagem da criança pequena. Oferecendo-lhe a oportu- 
nidade de aprender e de usar a matemática por meio de um modo não-forma- 
lizado de conhecer, encoraja em vez de inibir a criança a eventualmente ado- 
tar um modo também formalizado, do mesmo modo como a Máquina do Co- 
nhecimento eventualmente estimularia a criança a ler, em vez de desencorajar 
a leitura 
Ao afirmar isso, é necessário enfatizar uma diferença em relação a várias 
tendências de uso de métodos concretos ou construtivistas para ensino de 
Matemática. A essência da Máquina do Conhecimento seria perdida caso ela 
11 A ideia de micromundo foi lançada por Papert já no seu primeiro livro em 1980, 
sobre computadores e educação. Hoje softwares com esse nome são desenvolvidos c 
comercializados pela empresa canadense Logo Computer Systems (LCSl), referida pelo 
autor na seção de Agradecimentos. 
30 Seymour Papert
Designer de têxteis africanos. O desenho na página seguinte também foi feito por 
crianças utilizando a linguagem de programação Logo com computadores na sala 
de aula 
fosse concebida apenas como um mecanismo para ensinar as crianças a ler. Do 
mesmo modo, o propósi to de desenvolver modos não-formalizados de apren- 
der matemát ica é in te i ramente subver t ido quando é concebido como um na- 
daime para aprendizagem do est i lo formal ou como um truque para atrair as 
crianças para um ensino formalizado. Eles devem ser valorizados em si mês- 
mos e ser genuinamente úteis para o aprendiz em si e por s i . Muitos outros 
exemplos desta distinção serão encontrados em capítulos posteriores. 
Por enquanto, ilustro meu argumento mostrando, na página anterior, um 
d e s i g n o r i g i n a l ( e m co r e s ma g n í f i c a s , q u e i n f e l i z me n t e n ão p u d e r a m s e r 
reproduzidas aqui) , fei to por crianças em uma escola de ensino fundamental 
da cidade de Nova York, como parte do estudo de têxteis africanos. Os padrões 
dos des igns fo ram fe i tos p rogramando-se um computador com a l inguagem 
Logo , ut i l izando uma versão não-formalizada de um tipo de Matemática cha- 
mado de geometria da tartaruga. As crianças não usaram o processo de design 
para aprender mais geometr ia formal . Elas u t i l izaram um t ipo de geometr ia 
que combinou com seu estilo preferido de aprender, para explorar ideias sobredesign afr icano. A geometr ia não está presente para ser aprendida, mas para 
ser usada. A principal exceção que eu faria não é pequena: tanto a geometria 
quanto a aprendizagem podem ser objetos de prazer , s i tuação na qual o uso 
poderia ficar em um plano à margem. 
Essas considerações sobre geometria formal e outras geometrias pode- 
riam ser ofensivas para muitos Yearners e igualmente para Schoolers , pois pa- 
reço es tar d izendo que a lguns es tudantes dever iam f icar sa t is fe i tos com um 
tipo de geometria út i l , mas diferente da verdadeira, e isso poderia ser inter- 
pretado como um viés elitista. O que quero realmente dizer (desenvolverei em 
deta lhes no Capí tu lo 9) é que há bas tante espaço para reexaminar-se mui ta 
coisa sobre que conhecimento e que maneiras de conhecer deveriam receber 
um status privilegiado. Certamente a Escola não detém o direito de decidir por 
nós. Os Yearners que anseiam por melhores maneiras de ensinar o que a escola 
decretou que todos deveriam saber não aceitaram totalmente a ideia de 
megamudança. Espero que, depois de ler este livro, passem a questionar não 
apenas como a Escola ensina, mas também aquilo que ensina. 
Um distanciamento maior do currículo é exemplificado por um projeto 
em que as crianças inventam e constroem criaturas artificiais utilizando uma 
versão ampliada do Lego, a qual inclui minúsculos computadores que captam 
informações de sensores e controlam motores. O computador pode ser pro- 
gramado em Logo para fazer as criaturas moverem-se de um modo "intencio- 
nal". Por exemplo, uma menina de 8 anos construiu uma "gata mãe " e seu 
"gatinho". Ambos perambulavam ate que o gatinho emitisse um bip e acendes- 
se uma luz posicionada na cabeça; a esse sinal a gata começava a mover-sc na 
direção dele. Outras crianças construíram serpentes e monstros, e uma equipe 
construiu um modelo de casa "inteligente" que se auto limpava. 
A ideia de programar tal comportamento em uma máquina pode parecer 
difícil. Na verdade, versões recentes do Logo (por exemplo, Micromundo Logo), 
tornam isso tão fácil para o usuário que a construção técnica de objetos e os 
princípios científicos subjacentes são como um meio natural para expressão da 
fantasia, tal como ocorre com o desenho ou a fala. Assim, torna-se pouco níti- 
da uma das linhas que secciona a epistemologia da Escola em disciplinas dife- 
rentes: tradicionalmente, na Escola, as aulas de arte e de redação podem dis- 
por de tempo para a fantasia, mas a disciplina de ciências lida com fatos. Não 
é de admirar que muitas crianças a considerem desinteressante. 
Uma segunda l inha divisória também perde nit idez pela união da 
tecnologia com a biologia. Construir um animal artificial não é um substituto 
para estudar os reais, porém proporciona maior compreensão de aspectos dos 
animais naturais, como por exemplo o conceito de feedback que faz que a gata 
Lego encontre seu filhote. A situação é análoga ao modo como o princípio de 
sustentação está subjacente ao vôo de pássaros e de aviões, havendo, porém, 
uma grande diferença na importância social dos dois casos. Enquanto não 
importa muito se as pessoas entendem o princípio aeronáutico da susten- 
tação, o feedback é um conceito-chave para pensar-sc sobre sistemas. A falta 
de habilidade para pensar fluentemente sobre o ambiente, a Economia ou 
até mesmo a própria família individual como um sistema sem dúvida impor- 
ta muito. 
O conceito de feedback ilustra quão artificial é confinar a ciência ao tipo 
de conhecimento preciso favorecido pela leteracia. A gata Lego nunca "sabe" o 
local exato da luz do gatinho; tudo o que ela "sabe" vagamente é se está mais 
para a esquerda ou direita. O programa faz a gata virar um pouco na direção 
da luz, mover-se um pouco para a frente e repetir o ciclo; girar um ou dez 
graus a cada volta produzirá o mesmo resultado. Assim, o que a gata "sabe" 
está mais em consonância com o conhecimento qualitativo de uma criança 
ainda não-alfabetizada do que com qualquer coisa precisa e quantitativa. O 
A Máquina das Crianças 33
fato de ela conseguir encontrar o caminho exato até o objetivo resulta em 
sentimentos de poder ou autonomia para os que pensam de modo qualitativo, 
particularmente para as crianças. Isso lhes possibilita ingressar no campo da 
ciência por uma região em que o pensamento científico é mais semelhante ao 
próprio pensamento infantil. 
A ideia de que um conhecimento parcial c qualitativo possa ser um co- 
nhecimento bom é adequada para se discutir se a construção de um modelo 
Lego é realmente relevante para o estudo científico da biologia. Quando se 
rejeita todo o conhecimento inexato, pode-se acreditar que a única maneira de 
um modelo poder elucidar a natureza é simulando-a com precisão. A gata- 
modelo mostra um tipo diferente de simulação, uma "simulação soft" que pro- 
porciona um entendimento qualitativo de um sistema complexo construindo 
um sistema simples com o qual partilha um princípio. 
O projeto de computação gráfica do têxtil africano e o da criatura artifi- 
cial são um vislumbre de direções de mudança da Escola rumo à megamudança. 
O restante deste livro é estruturado por três temas relevantes à possibilidade 
da instituição escolar seguir por esse caminho. 
O mais realista dos três é um exame do que está acontecendo nas escolas. 
No Capitulo 3 analiso a resposta da Escola como instituição às formas de um- 
dança que antecipei aqui 0 Capitulo 4 discute os professores, e o Capítulo 10, 
tópicos de estratégia para a mudança. 
O t e m a s e g u i n t e b u s c a d e s e n v o l v e r u m a m e l h o r n o ç ã o d a 
evolução da tecnologia em si e as ideias e culturas que a acompanharam. Essa discussão 
permeia todo o livro, mas está concentrada nos Capítulos 8 e 9. 
O tema final é o mais polêmico. Acredito que, se quisermos novas formas 
de aprendizagem, necessitamos de um tipo muito diferente de teoria de apren- 
dizagem. Aquelas até agora desenvolvidas por psicólogos da educação e por 
psicólogos acadêmicos em geral correspondem a um tipo de aprendizagem que é próprio 
d a E s c o l a . E n q u a n t o e s s e s m o d o s d e p e n s a r s o b r e a a p r e n d i z a - 
gem forem dominantes, será muito difícil efetuar uma mudança substancial 
na forma tradicional da Escola. 
No próximo capitulo, apresento um panorama inicial da direção para a 
qual me voltarei, em busca de novas formas de pensar. Colocando de modo 
sumário, tal direção é para dentro de nós mesmos. No Capítulo 5, proponho 
um nome para um novo tipo de teoria de aprendizagem, que refletirá o fato de 
que a experiência humana proporciona a todos nós um celeiro maior de co- 
nhecimentos sobre a aprendizagem do que o acumulado por todos os acadê- 
micos de bata branca em seus laboratórios. 
34 Seymour Papert
Pensamento pessoal 
Uma disciplina de psicologia que fiz quando estudante universitário dei- 
xou poucos resíduos na minha mente, exceto uma homilia sobre objetividade 
proferida na primeira nula. Fomos advertidos de que muitos de nós poderiam 
ter-sc matriculado sob a errónea impressão de que a disciplina, sendo de psi- 
cologia, seria uma ocasião para explorar questões psicológicas de nossas pró- 
prias vidas. Aqueles que vieram por essa razão foram aconselhados a repensar 
se realmente desejavam continuar. Foi-nos dito que o ponto de partida para o 
estudo da psicologia científica era a habilidade de distanciar-se do objeto de 
estudo. Teríamos que fazer muito esforço para aprender como manter-nos 
distanciados das intuições baseadas em nossas próprias experiências, sobre as 
questões psicológicas que estaríamos estudando. 
Sem dúvida, em qualquer outra disciplina, a habilidade de distanciar-sc 
do objeto de estudo c necessária. Creio, no entanto, que no estudo da educa- 
ção necessitamos exatamente do oposto, pois há distanciamento excessivo. 
Os Yearners têm continuamente protestado contra o modo como o currí- 
culo da Escola distanciao conhecimento da individualidade do estudante. Alem 
disso, a busca por uma ciência da educação conduziu a modos de pensar sobre 
o ensino que excluem o professor como pessoa e também a concepções de
pesquisa em educação que excluem o pesquisador como pessoa. Inicio meu
protesto situando meu próprio trabalho sobre inovação educacional em mi- 
nha experiência de vida.
Minha crítica á Escola e meu anseio (yearning) por algo diferente come- 
çaram muito cedo. No ensino fundamental, eu já sabia com bastante clareza 
que meu melhor trabalho intelectual ocorria fora da sala de aula, Meu ressen- 
timento da Escola era atenuado apenas pelo fato de que eu gostava muito de 
dois professores e tinha muitos amigos que participavam comigo de atividades 
que eu considerava mais valiosas. A mais importante foi um jornal escolar 
produzido por uma versão "anos de 1930" de editoração eletrónica. Minha 
impressora cra um bloco gelatinoso feito em casa, para o qual se podia trans- 
2
ferir tinta de unia folha-mestra polida e, dali, para folhas de papel absorvente. 
O joral foi importante para mim de várias formas. Acima de tudo, proporcio- 
nou-me um senso de identidade. Os adultos perguntavam entre si: "O que 
você faz?", e eu podia pensar sobre o que eu "fazia" como algo mais pessoal e 
distintivo do que "ir para a escola". 
Além disso, o jomal estabeleceu conexões com diversas áreas de desen- 
volvimento intelectual e social que modelariam meus anos de ensino médio e 
mais além. Desenvolvi um senso de identidade e um pouco de habilidade como químico. 
M eu s i s t ema de i mpre s sã o ba se ou - se i n i c i a l men re e m um a r t i go d a 
Children’s Encyclopedia, de Arthur Mee, mas evoluiu ao longo do tempo e de 
muitas variações experimentais. Desenvolvi um senso pessoal como escritor e 
tive de assumir responsabilidades financeiras e administrativas que não eram 
menos reais por serem em uma escala muito pequena. E, talvez mais impor- 
tante em seu impacto subsequente em minha vida, o jornal lentamente me 
levou aos primórdios do ativismo político na atmosfera altamente carregada 
de Johannesburg onde vivi dos 7 até aproximadamente os 25 anos.1 
Os fatos particulares da minha história são únicos para mim como pes- 
soa mas os princípios gerais que eles ilustram não o são. Ler biografias e 
questionar amigos convenceu-me de que todos os aprendizes bem-sucedidos 
encontram meios de dirigir suficientemente suas vidas iniciais, desenvolvendo 
um sentimento próprio de identidade intelectual. Um exemplo fascinante é 
Jean Piaget cujo caso contém um pouco de ironia, pois esse homem, tantas 
vezes citado como a autoridade sobre o que as crianças não são capazes de 
fazer por não terem atingido estágios adequados do desenvolvimento, publi- 
cou seu primeiro artigo cientifico aos 11 anos! O que podemos extrair disso? 
Os devotos de Piaget seguidamente vêem esse fato de um modo reverente, 
como um sinal precoce de genialidade. De fato, o ensaio curto, que relata a 
observação de um pássaro raro nas montanhas suíças, não contém quaisquer 
padrões lógicos que seriam considerados surpreendentes para uma criança 
média de 11 anos. Sou inclinado a pensar sobre aquela publicação muito mais 
como uma causa do que uma consequencia das excepcionais qualidades inte- 
lectuais de Piaget embora, eiidentemente (no que cie consideraria um senti- 
do dialético), fosse ambas. 
O artigo de Piaget não aconteceu simplesmente como decorrênda de 
alguma qualidade de sua mente. Ele o explica como um simples ato intencio- 
nal. Ele queria obter permissão para usar a biblioteca da então escola ginasial 
de sua pequena cidade suíça, por isso escreveu e publicou o artigo para fazer 
a bibliotecária levá-lo a sério o suficiente para dar-lhe permissão para frequentá- 
la. O mais impressionante, nesse caso, não é que um menino de 11 anos pu- 
desse escrever um relato sobre um pássaro, mas que um menino dessa idade 
1 Certamente o autor refere-se às tensões sociais da segregação racial do Apartheid. 
36 Seymour Papert
levou-se suficientemente a sério para conceber e executar tal estrategia para 
lidar com a bibliotecária. Vejo nisso o jovem Jean preparando-se para torna- 
se Píaget. Ele estava praticando assumir o comando do seu próprio desenvolvi- 
mento, algo que é necessário não apenas para aqueles que desciam se tomar- 
se pensadores de vanguarda, mas para todos os cidadãos em uma sociedade 
na qual os indivíduos têm que definir e redefinir seus papéis ao longo de toda 
a vida. 
Em acentuado contraste com a imagem de Piaget criança construindo 
Piaget adulto, a Escola possui uma inerente tendência a infantilizar as crian- 
ças colocando-as em uma posição de ter de fazer conforme são mandadas, a 
ocupar-se com trabalhos ditados por outra pessoa e que, além disso, não pos- 
suem qualquer valor intrínseco; o trabalho escolar é feito apenas porque o 
autor de um currículo decidiu que fazer o trabalho moldaria quem o fizesse 
em uma forma desejável. Considero isso ofensivo, em pane porque lembro o 
quanto objetei, quando criança, a ser colocado em tal situação, mas principal- 
mente porque estou convencido de que a melhor aprendizagem ocorre quan- 
do o aprendiz assume o comando, como o jovem Piaget o fez. Assim, estou 
sempre antenado para iniciativas que possibilitem que a finalidade da Escola 
como um local para aprender coexista com uma cultura de responsabilidade 
pessoal. 
Isso não deve ser confundido com a ideia em moda de tomar relevante" 
o que as crianças aprendem: assim, professor, não apenas ensine-as a somar,
mas também finja que estão fazendo compras em um supermercado. Não se
engana facilmente uma criança. Quando percebem que estão fazendo-as jogar
um jogo tolo, elas são desencorajadas a levarem-se a sério.
Achei mais interessante o que vi na escola Lamplighter em Dallas onde 
crianças de quarta série assumiam responsabilidade de verdade na administração 
de um negócio de ovos. Elas compravam a ração, limpavam os viveiros, coleta- 
vam e vendiam os ovos e, no final do ano, ficavam com o lucro, caso houvesse 
algum. Se terminassem com perdas, teriam que se explicar para a turma seguin- 
te. No entanto, mesmo isso possibilita pouca oportunidade para iniciativas reais 
e apenas um sentimento menor de fazer algo realmente importante. 
Um sentimento mais profundo de fazer algo intrinsecamente importante 
é visível no Projeto Kidnet, uma colaboração entre a National Geographic Society 
e Robert Tinker, responsável pelo desenvolvimento de alguns dos melhores 
usos de computadores na aprendizagem de Ciências.2 Esse projeto engaja es- 
tudantes de final do ensino fundamental na coleta de dados sobre chuva áci- 
2 Robert Tinker é presidente do Consórcio Concord (www.concord.org), uma organiza- 
ção sem fins lucrativos que produz software educacional de qualidade, na filosofia 
software livre. Também produz cursos a distância para professores e estudantes de 
nível médio, entre outras atividades. 
A Máquina das Crianças 37
da. Cada escola envia seus dados, por meio de redes eletrónicas, para um 
computador central, no qual são integrados e devolvidos aos locais de origem 
para serem analisados e discutidos no contexto de problemas globalmente 
importantes. O projeto sugere um cenário de milhões de crianças em todo 
o mundo engajadas em um trabalho que oferece uma contribuição real para o
estudo cientifico de um problema social urgente. Em princípio, um milhão de
crianças poderia coletar mais dados sobre o ambiente do que qualquer núme- 
ro socialmente custeável de cientistas profissionais.
Isso é muitíssimo melhor do que folhas de exercício e experimentos ritua- 
lísticos da escola, pois pelo menos os aprendizes sentem que estão engajados 
em uma atividade significativa e socialmente importante, sobre a qual eles 
concretamente se sentem responsáveis. No entanto, o que mais gosto é a opor- 
tunidade oferecida aos estudantes de libertarem-se de sua própria estrutura 
para engajar-se em atividades mais autodirecionadas.Um exemplo dessa rup- 
tura ocorre quando os estudantes utilizam com frequência a experiência ad- 
quirida no projeto para engajar-se em campanhas ambientais locais. Um outro 
exemplo que me agradou particularmente foi expresso por um aluno que idea- 
lizou um plano para não ocupar as crianças com a coleta de dados, auto- 
matizando essas operações. Ele explicou que assim elas poderiam dedicar-se a 
outra atividade ambiental mais importante! Esse estudante não pôde im- 
plementar concretamente o plano com os meios disponíveis na escola, mas 
esteve perto. Dentro de alguns anos, projetos como esse usarão hardware e 
software flexíveis o suficiente para que o plano daquele aluno possa ser ampla- 
mente implementado. 
Um exemplo diferente de computadores proporcionando às crianças a 
oportunidade de desenvolver um sentimento de trabalhar a sério é o de dois 
meninos de quinta série com interesses muito diferentes: um em ciências e o 
outro em dança e música, os quais se uniram para criai uma "coreografia de 
tela", programando um computador existente no fundo da sala de aula. O que 
fizeram pode não ter sido relevante, mas certamente foi percebido por eles 
próprios como de vital importância e foi visto como pela professora, que os 
encorajou a usar um tempo da aula para o projeto. Observando-os, lembrei- 
me do jornal ao qual me dediquei quando criança. Conclui que eles estavam 
crescendo como agentes intelectuais independentes, e qualquer um poderia 
ver que eles estavam aprendendo algo que, para aquela idade, era uma quan- 
tidade incomum de matemática e programação de computador. 
Esta discussão, uma tessitura de incidentes de aprendizagem da minha 
vida e da de Piaget com incidentes das vidas de crianças em escolas contempo- 
râneas, representa uma alternativa à metodologia preferida pela corrente de 
pensamento "científico" dominante. Os pesquisadores, seguindo o chamado 
método científico de experiências controladas, solenemente expõem as crian- 
ças a algum tipo de "tratamento" e então procuram resultados mensuráveis. 
No entanto, isso contraria todo o conhecimento comum de como os seres hu- 
38 Seymour Papert
manos desenvolvem-se. Embora seja óbvio para mim que meu jornal dessem- 
penhou um profundo papel em meu desenvolvimento intelectual, tenho certe- 
za de que nenhum teste teria detectado isso, comparando meu "desempenho" 
no dia anterior ao seu início e três meses depois. Os efeitos significativos fo- 
ram aparecendo no decorrer de um período muito mais longo, a ser medido, 
provavelmente, em anos. Além disso, um experimento que proporcionasse a 
uma centena de crianças "a experiência de produzir um jornal", mesmo que 
fosse continuada por vários anos, perderia o ponto do que ocorreu comigo. O 
engajamento significativo era demasiado pessoal para esperar-se a ocorrência 
de um efeito de massa; apaixonei-me pela edição do jornal (assim como o fiz 
pela matemática e por outras áreas de conhecimento) por razões tão pessoais 
e, em certo sentido, tão irreprodutíveis quanto as que determinam qualquer 
tipo de paixão. 
O método da experimentação controlada que avalia uma ideia implemen- 
tando-a, com o cuidado de manter todo o resto igual e medindo o resultado, 
pode ser apropriado para avaliar os efeitos de uma modificação pequena. No 
entanto, não pode nos dizer nada sobre ideias que poderiam levar a uma um- 
dança profunda. Não se pode simplesmente implementar tais ideias para ver 
se elas conduzem a uma mudança profunda: um sistema megamudado pode 
começar a existir apenas por meio de uma evolução lenta e orgânica e de uma 
harmonia próxima à evolução social. Ele será dirigido menos pelo resultado de testes e 
medições do que pela compreensão intuitiva dos seus participantes. 
O recurso mais poderoso para esse processo é exatamente o que é nega- 
do pela psicologia objetiva e por uma suposta ciência da educação. Cada um 
de nós construiu um estoque de conhecimento intuitivo, empático, senso co- 
mum sobre a aprendizagem. Esse conhecimento entra em jogo quando a pes- 
soa reconhece algo de bom em uma experiência de aprendizagem sem conhe- 
cer seu resultado. Para mim é óbvio que todo bom professor utiliza esse tipo de 
conhecimento muito mais do que escores de teste ou outras medições objeti- 
vas em decisões diárias acerca dos estudantes. Talvez o problema mais impor- 
tante na pesquisa em educação seja como mobilizar e fortalecer esse conheci- 
mento. 
Reconhecê-lo é um primeiro passo para seu fortalecimento. A negação do 
conhecimento pessoal intuitivo levou a uma profunda cisão no pensamento 
sobre a aprendizagem; a cisão lembra a teoria de que cada um de nós possui 
dois hemisférios cerebrais que pensam de modos fundamentalmente diferen- 
tes. Por analogia, é como se, ao pensarmos sobre a aprendizagem, utilizasse- 
mos o hemisfério cerebral tipo Escola, que pensa que a Escola é o único modo 
natural de aprender, e um hemisfério pessoal que sabe perfeitamente que ela 
não o é. 
Uma segunda estratégia para fortalecer o lado pessoal e romper com a 
força asfixiante do hemisfério Escolar é desenvolver uma metodologia para a 
reflexão sobre casos de aprendizagem bem-sucedida c especialmente sobre 
A Máquina das Crianças 39
nossas melhores experiências individuais de aprendizagem. Analogias com dois 
eventos na história da aviação-um caso de verdadeira megamudança – escla- 
recerão meu pensamento. 
As pessoas que sonharam em fazer máquinas voadoras olharam para os 
pássaros com o mesmo espírito que quero olhar para os exemplos de aprendi- 
zagem bem-sucedida. Contudo, não foi suficiente simplesmente observar e 
copiar. Muitos tomaram o caminho errado ao pensar que a essência do vóo dos 
pássaros era o bater das asas. Até mesmo o grande Leonardo da Vinci foi atraí- 
do para a concepção de um ornitóptero, uma máquina que pareceria como um 
pássaro e voaria pelo bater de asas semelhante aos pássaros. Esse não era o 
meio para fazer uma máquina voadora. Ainda assim, foi a observação dos 
pássaros que revelou o segredo. Minha analogia aqui se refere a John Wilkins, 
bispo, cientista e fundador da Royal Society do século XVII. Wilkins pode não 
ter sido o primeiro a observar que os pássaros podiam voar sem bater asas, 
mas foi um dos primeiros a perceber a importância dessa observação, à pri- 
meira vista banal. Ele estava certo. A simplicidade de uma gaivota planando 
sem qualquer movimento visível do corpo tornou-se o modelo que, eventual- 
mente, levou a formulação do princípio da sustentação - o conceito subjacente 
tanto do entendimento dos voadores naturais quanto da fabricação de voado- 
res artificiais. Devemos aprender a ver a aprendizagem bem-sucedida pelo 
prisma dessas ideias poderosas. 
O segundo evento ocorreu como um resultado indireto do primeiro. O 
ano de 1903 - quando um avião a motor voou com sucesso pela primeira vez - 
foi um ponto de virada na história dos transportes. No entanto, a famosa 
máquina voadora criada por Wilbur e Orville Wríght foi desqualificada devi- 
do a seu desempenho. A duração do melhor dos diversos vôos naquele dia 
foi de apenas 59 segundos! Como alternativa prática para o carroção puxado a 
cavalo, era cómica. Ainda assim, mentes imaginativas podiam ver nela o nas- 
cimento da indústria que levaria aos aviões tipo Jumbo e ao ónibus espacial 
(shuttle). 
Pensar sobre o futuro da educação exige um esforço semelhante de imagi- 
nação. A abordagem literal prevalente, tipo "o que você vê é o que você obtém',3 
ao medir a eficácia dos computadores na aprendizagem pelas aquisições nas 
salas de aula atuais, assegura que o amanhã será sempre prisioneiro do on- 
3 No original a expressão what you see is what you get, cujas iniciais formam o acrónimo 
wysiwyg, refere-se ao software que reproduz na tela do computador informações (tex- 
tos, imagens, ete ) com a mesma aparência do formato impresso. O recurso wysiwyg 
popularizou-se com o advento da interface gráfica tipo Windows. Os primeiros compu- 
tadores pessoais não possuíam esse recurso.40 Seymour Papert
tem. Na realidade, a situação na educação é, com frequência, até mesmo pior 
do que julgar a eficácia dos aviões pelo vóo de cinquenta e nove segundos. E 
como colocar um motor a jato em um velho carroção para ver se ele ajudará os 
cavalos. Provavelmente isso assustaria os animais e sacudiria o vagão até fazê- 
lo em pedaços, "provando" que a tecnologia a jato é realmente nociva para a 
melhoria dos transportes. 
Tenho em meus arquivos uma grande coletânea de artigos científicos re- 
la tando exper iências que ten tam medi r "o efe i to dos computadores sobre a 
aprendizagem". E como medir as características de vóo da máquina dos Wright 
para determinar "o efeito do vóo sobre os transportes". A importância do avião 
poderia ser apreciada por meio de um árduo trabalho imaginativo baseado na 
compreensão de pr incíp ios como o de "sustentação" , subjacentes ao design . 
Para encont rar p r inc íp ios co r respondentes para a ap rendizagem, t emos que 
olhar para dentro de nós mesmos tanto quanto para os computadores: princí- 
p ios como "assumir a responsabi l idade" , " ident idade in telectual" e "apaixo- 
nar-se" (como usei ao falar sobre o meu jornal) desempenharam idêntico pa- 
pe l no meu pensamen to , como resu l t ado d i r e to de obse rva r a mi m mesmo 
quando pareci estar voando intelectualmente. Os incidentes no restante deste 
capítulo realçam alguns outros. 
À medida que eu crescia, aprender tomou-se um hobby . Evidentemente, 
qualquer hobby envolve aprendizagem. Todavia , as pessoas, na sua maioria , 
e s tão mais in te ressadas no que ap rendem do que em como a ap rendizagem 
ocorre. De fato, a maioria aprende sem sequer pensar sobre a aprendizagem. 
Com frequência, s i tuo-me no outro extremo. Aprendi prest idigi tação, pi lota- 
gem de aviões e culinária não apenas porque desejava fazer essas coisas, mas 
po rque que r i a sabe r como se r i a a ap rend izagem. Embora t enha chegado a 
gostar de todos esses hobbies em si, parte do meu prazer foi sempre o de obser- 
var -me aprendendo e cons t ru i r t eor ias sobre como o f iz . Um bom exemplo 
desse processo é como aprendi a fazer croissants. 
Quando entendi como fazê-los, após muitos e muitos fracassos, permiti- 
me um pouco de orgulho, mas então comecei a preocupar-me como isso acon- 
teceu. Em um dia eu não conseguia fazê-los e no outro conseguia! O que um- 
dara? Para reconstruir o momento de t ransição, tentei recapturar meu estado 
de "inabilidade" no dia anterior. A princípio, pensei em fatores externos como 
as proporções dos ingredientes, os tempos de crescimento e de descanso e as 
temperaturas da massa, da superfície de trabalho e do forno. Variá-los, porém, 
parecia não explicar meus resultados irregulares anteriores. 
Quando, enfim, realmente revivi o momento-chave, aprendi muito mais 
do que como fazer croissants. A diferença entre antes e depois estava em sentir 
o grau de gordura da manteiga pela maciez da massa e pelo meu pesado rolo
de mármore. Tentar captar isso deliberadamente me pareceu, a princípio, como
A Máquina das Crianças 41
no conto de fadas A princesa e a ervilha.4 Tentei muitos vezes, Quando decidi 
que tivera o suficiente e que desistiria naquele dia que uma ruptura ocorreu. 
No balcão de mármore, havia uma ultima porção de manteiga envolvida em 
massa. Imaginando o que fazer com ela, brincando, amassei-a com o rolo e 
relaxei, sem tentar mais nada em particular. Subitamente sumi, de modo 
perceptível a estrutura da massa. Depois dessa experiencia, fiquei sabendo 
“nos dedos” como fazer um croissant. Agora, quando tento depois do um inter- 
valo do vários anos o "jeito" sempre retorna por volta da segunda fornada. Se 
tivesse que fazer isso em um teste escolar, eu teria falhado, porque preciso de 
uma primeira fornada sem êxito para adquirir a sensibilidade para a segunda, 
bem-sucedida. Quando relato tais experiências para uma plateia de educado- 
res sempre espero que alguém se aborreça com a minha conversa sobre croissants 
e diga: "O que isso tem a ver com gramática, matemática ou aprender a escrever 
cartas comerciais? Naturalmente, em culinária você tem de aprender a sentir a 
relação entre seu corpo e a massa. Mas matemática não se refere a sensações 
corporais com os números". Gosto dessa reação porque traz à tona uma coisa 
que se encontra subjacente na cultura e me permite confronta-la. 
Anos atrás eu começaria replicando: "Você pensa que matemática não 
tem nada a ver com o corpo porque você não é um matemático; se fosse, 
saberia que a matemática está repleta de sensações viscerais e de vários tipos 
de cinestesia". Hoje, diria ao contrário: "O motivo pelo qual você não é um 
matemático poderia muito bem ser por pensar que a matemática não tem 
nada a ver com o corpo; você manteve seu corpo fora dela porque supõe que 
ela seja abstrata, ou talvez um professor tenha ralhado com você por usar seus 
dedos para somar!". Essa ideia não é apenas metafísica, tendo me inspirado a 
usar o computador como um meio (médium) para permitir que as crianças 
coloquem seus corpos novamente na matemática. 
Meu exemplo favorito é uma invenção chamada "tartaruga". Considere- 
a como um instrumento de desenho cujo uso mais simples tomar-se-á claro a 
partir do seguinte cenáno. Imagine que você está olhando para uma tela de 
computador. Nela, você vê uma pequena tartaruga, que se move quando você 
digita comandos em uma linguagem chamada "fala de tartaruga”, riscando 
uma linha à medida que anda. O comando "PARAFRENTE 50" faz que a tarta- 
ruga mova-se para f rente em l inha re ta a uma determinada dis tância . 
"PARAFRENTE 100" fará que ela mova-se na mesma direção duas vezes mais 
longe. Logo você capta a ideia de que os números representam a distância 
percorrida e podem ser pensados como passos de tartaruga. Agora, se desejar 
4 Conto dinamarquês de Hans Christian Andersen (1835), em cuja história parte da 
trama trata da delicadeza da pele de uma verdadeira princesa. Testada por uma rainha, 
não dormiu direito devido a uma ervilha colocada debaixo de uma pilha de colchões. 
Há em português traduções da obra de Andersen. 
42 Seymour Papert
fazê- la andar em uma direção diferente , você dará um comando como 
"PARADIREITA 90”, Ela permanece no mesmo lugar, mas, gira sobre si mesma, 
voltando se para o leste se anteriormente estivesse voltada para o norte, com 
tal conhecimento você poderia fazê-la desenhar facilmente um quadrado. Se 
achar fácil, você pode pensar em como desenhar um círculo; se também 
achar fácil, pode tentar uma espiral. Em algum ponto você encontrará seu 
nível do dificuldade e, quando o encontrar, eu aconselho você a colocar-se no 
lugar da tartaruga. Imagine você se movimentando em um quadrado, em um 
círculo, em uma espiral ou seja o que for. Você pode resistir por um momento 
por estar tenso ou por ter tentado arduamente, como fiz com meus croissants. 
No entanto, quando se permitir relaxar, verá que há uma fonte mais rica de 
conhecimento matemático no seu corpo do que nos livros didáticos. 
Aprender a falar francês foi para mim uma das experiências de aprendi- 
zagem mais ricas. Embora não fosse apenas para aprender a língua-fui morar por um 
tempo em Par is para concluir minha pesquisa de doutorado em mate- 
mática-, meu objetivo profissional foi entremeado por divertidas experiências 
de aprendizagem. Por exemplo, cultivei uma relação com um menino de 8 
anos que se mostrou encantado em ser meu "professor". Ele era jovem bastan- 
te para estar "estudando francês" ao mesmo tempo que eu. Embora ele fosse 
um falante nativo, estava aprendendo ortografia e gramática na escola e ad- 
quirindo um vocabulário em um ritmo apreciável. Pude comparar a velocida- 
de e o padrão do meu progresso com o dele e, ao fazê-lo, constatei um fato 
curioso: sob qualquer critério de medida que pudesse pensar, cu estava apren- 
dendo mais rápido. Poderiater atribuído a discrepância entre essa observação 
e a preguiça linguística comum dos adultos a algum tipo de "dom especial 
para línguas". Mas não o fiz. Explico a discrepância pelo fato de que estava 
aprendendo francês principalmente como uma criança, mas podia também 
utilizar algumas ideias sofisticadas que uma criança não conheceria. Por um 
lado, estava aberto a imergir ludicamente na nova língua; por outro, podia 
fazer uso ocasional da linguística formal. Em algum ponto entre os dois estava 
o fato de que minha aprendizagem do francês pareceu facilitada por experi- 
mentar (ou brincar) não apenas com o francês, mas também com a própria
aprendizagem. Estudar nosso próprio processo de aprendizagem - como tam- 
bém no exemplo de fazer croissants - pode ser um poderoso método para
melhorar a aprendizagem. De qualquer modo, em retrospecto vejo uma im- 
portante raiz das minhas ideias atuais nesse reconhecimento das vantagens de
combinar modos de aprendizagem infantis e adultos.
Ainda que minha pesquisa matemática em Paris tenha rendido um Ph. D., 
a descoberta parisiense que exerceu maior impacto na minha vida foi Jean 
Piaget, que na época estava ministrando um curso na Sorbonne. Vim a conhece- 
lo e fui convidado a trabalhar em seu Centro de Epistemologia Genética, em 
Genebra, onde dispendi os quatro anos seguintes e tomei-me um apaixonado 
pelo pensamento infantil. Se as ideias centrais deste livro cruzaram minha 
A Máquina das Crianças 43
mente pela primeira vez naquela época, estavam, contudo, sob o mais nebulo- 
so disfarce. Em particular, nâo lembro de ter feito qualquer conexão entre 
minha própria aprendizagem e o processo do desenvolvimento intelectual das 
crianças sobre o qual trabalhamos no Centro de Piaget. O motivo é significati- 
vo: estávamos tratando o pensamento das crianças de um modo demasiado 
sério e formal. Evidentemente, pensamos sobre o brinquedo infantil; foi Piaget 
quem cunhou a frase de que o brinquedo é o trabalho das crianças. Entretanto, 
ninguém naquele ambiente estava considerando o reverso desse vigoroso dita- 
do: a ideia de que o trabalho (pelo menos o trabalho intelectual sério) poderia 
ser o brinquedo dos adultos. Pensávamos nas crianças como "pequenos cientis- 
tas", mas não nos detínhamos muito na ideia complementar de ver os cientis- 
tas como "crianças grandes". 
Após os quatro anos em Genebra, tornei-me professor de matemática no 
MIT. Muitos fatores tomaram a mudança atraente. Havia a perspectiva de aces- 
so a computadores e de trabalhar com Marvin Minsky e Warren MeCulloch,5 
além da maravilhosa atmosfera lúdica que eu experimentara naquele lugar 
em breves visitas. Quando finalmente cheguei, tudo isso foi reunido em ses- 
sões que duravam a noite toda em torno de um computador PDP-1 que Minsky 
recebera. Era pura diversão. Estávamos descobrindo o que poderia ser feito 
com um computador, e qualquer coisa interessante era válida. Ninguém sabia 
ainda o suficiente para decretar que algumas das coisas eram mais sérias do 
que outras. Estávamos como bebés descobrindo o mundo. 
Foi nessa situação que pensei sobre computadores e crianças. Eu estava 
brincando como uma criança e experimentando uma vulcânica explosão de 
criatividade. Por que o computador não poderia proporcionar a uma criança o 
mesmo tipo de experiência? Por que uma criança não poderia brincar como 
eu? O que teríamos que fazer para tornar isso possível? 
Essas perguntas lançaram-me em uma nova busca orientada pela ideia, 
tipo Robin Hood, de roubar tecnologia dos senhores dos laboratórios e dá-la 
para as crianças do mundo. Um primeiro passo nessa busca foi reconhecer 
que uma das fontes do poder dos tecnólogos era o esotérico véu de mistério 
tecido no redor da ideia de programação. Uma situação é análoga ao modo 
como sacerdotes de outras eras conservavam o poder, monopolizando a há- 
bilidade de ler e escrever e ocultando o conhecimento considerado como 
mais poderoso em uma linguagem que as pessoas comuns não podiam en- 
1Marvin Minsky e Warren MeCulloch, contemporâneos de Papert no MIT, são nomes 
 Proeminentes na área de Inteligência Artificial. Minsky desenvolveu com Papert a pri- 
meira versão da tartaruga Logo e publicaram em co-autoria a obra Perceptrons: na 
introduction to computational geometry (l969); seu livro mais conhecido é A socieda- 
de da mente (1988), A obra mais citada de MeCulloch, em co-autoria com Walter Pitts, 
é Embodiments of mind (1965). 
44 Seymour Papert
tender. Percebi a necessidade de construir linguagens de computação que pu- 
dessem ser "vulgarizadas" - disponíveis para as pessoas comuns c especial- 
mente para as crianças. 
Isso veio a ser uma longa e difícil tarefa. As linguagens de computador, 
assim como as linguagens naturais, não podem ser "feitas"; elas têm que evo- 
luir. O que pôde ser feito foi uma primeira tentativa de uma linguagem chama- 
da Logo, que serviria como um ponto de partida para uma evolução mais longa 
e que, de fato, ainda continua 6 
Para maior realismo, as ideias neste livro são desenvolvidas pelo viés da 
história das minhas próprias invenções. Não mantenho nenhum segredo sobre 
o fato de que amo e valorizo algumas delas. Creio que algumas podem até
mesmo ter um longo futuro. Repito, porém, que meu propósito aqui não é
dizer ao leitor como fazer coisas de modo correto, mas provocar e incentivar
imaginações. Neste livro, minhas invenções reais servem ao mesmo propósito
que os exemplos imaginários de viajantes do tempo e hipotéticos engenheiros
do século XIX. Elas visam evocar outras ideias, a preparar nossa mente para
outras invenções muito mais estimulantes a serem ainda criadas. Meu propó- 
sito não é, de modo algum, defender uma invenção particular como sendo "a"
solução para "o" problema da educação; ao contrário, cada exemplo pretende
servir como indicador para uma vasta área de novas oportunidades de inven- 
ção educacional. Minha meta com relação aos Schoolers - ou a qualquer um
que pense que determinada forma de aprendizagem é a forma cena e natural
de aprender - é incitar a imaginação a inventar alternativas. Piaget disse que
entender é inventar. Ele estava pensando nas crianças. O princípio, porém,
aplica-se a todos nós.
6 Há comunidades de programadores em Logo em vários países, as quais se reúnem 
anualmente em um país europeu, nas conferências internacionais Eurologo (www. 
eurologo.org). 
A Máquina das Crianças 45
Escola: mudança e resistência à mudança 
Minha primeira investida na criação de imagem, de megamudança edu- 
cacional ocorreu com o livro Mindstorms: children, computers, and powerful 
ideiase1 escrito no final da década de 1970, época em que os computadores 
pessoais eram novidade. A IBM ainda não havia entrado nessa área tampouco 
os japoneses. O Apple original era a menina dos olhos da maioria dos amado- 
res entusiastas da computação.2 
O subtítulo daquele Livro, ao mencionar as crianças e excluir a escola, 
reflete uma lacuna na minha experiência e no meu conhecimento. O envolvi 
mento das crianças com os computadores já havia começado. Os primeiros 
videogames, ainda primitivos, haviam aparecido e podiam-se montar experiên- 
cias em enormes e dispendiosas máquinas simulando o ainda inexistente compu- 
tador pessoal. O interesse das crianças pelo que poderiam fazer com aquelas 
máquinas não sofria interferência por saber que um computador de um mi- 
lhão de dólares encontrava-te por trás do terminal utilizado na situação expe- 
rimental. Nenhuma experiência semelhante podia ser feita sobre o que escolas 
poderiam fazer em um mundo onde computadores fossem objetos de uso coti- 
diano. Sua reação seria de tal modo determinada por questões de custo e 
2 A tradução brasileria do Mindstorns foi publicada em 1985 pela Editora Brasilense 
(SP), com o título Logo: computadores e educação. Mindstorns é outro é outro neologismo do 
autor que se dá pela união das palavras mind (mente, intelecto, inteligência) e storm 
(tempestade, paixão). Lembra ao leitor de língua inglesaa palavra brainstorm (tem- 
pestade cerebral), que denota ideia resultante de um excitabte momento de tra- 
balho intelectual, de novas instituições. 
1 O primeiro computador padrão PC (Personal Computer) foi lançado pela IBM nos 
Estados Unidos em agosto de 1981, pouco depois da publicação do Mindstorms. A 
Apple havia lançado pela primetra vez com o modelo Apple Meintosh, a interface grá- 
fica wysiwyg com elementos básicos do padrão Windows que conhecemos hoje, tendo 
sido um grande avanço na facilidade de usos de computadores por leigos em informática. 
3
tamanho que nenhuma “simulação" proporcionaria compreensão sobre como 
distribuir o orçamento real e aceitar mudanças reais em sua organização. Não 
é de estranhar, então, que o que escrevi sobre escolas carecesse da textura 
resultante da experiência real, presente na minha discussão do modo como 
computadores poderiam ser mediadores entre crianças e ideias. Não fui o úni- 
co a sofrer dessa limitação. Na realidade, uma persistente visão limitada com- 
tinua a deformar a discussão pública das relações entre tecnologia c escolas. 
Meu propós i to , nes te capí tu lo , é desenvolver uma v isão mais ampla . 
Mindstorms foi escrito em um momento crítico do desenvolvimento da 
informática aplicada à educação. Na época havia no máximo um punhado de 
salas de aula onde algo parecido com as situações relatadas no capítulo ante- 
rior poderia ter ocorrido; de fato, as únicas atividades de meu conhecimento 
na área foram dois projetos formais de pesquisa, um meu c outro relacionado, 
de autoria de Alan Kay,3 um seminal co-autor da ideia de que o computador 
poderia ser um instrumento acessível a todos. Mesino assim, dois anos depois 
da publicação do livro, havia centenas de salas de aula onde era possível ob- 
servar situações semelhantes e, em outros dois anos, havia centenas de milha- 
res.4 Esse crescimento de uma "cultura do computador na escola" estava ainda 
longe de uma megamudança, mas atingira proporções que o tomaram incom- 
paravelmente mais rico como fonte de discernimento sobre mudanças educa- 
cionais do que as limitadas experiências da década anterior. Em 10 anos, as 
escolas americanas haviam comprado 3 milhões de computadores, e centenas 
de milhares de professores fizeram cursos para aprender a usá-los; novos gi- 
gantes industriais entraram no mercado da educação e 20 mil itens pretenden- 
do ser "software educacional" foram postos à venda. 
Esses dramáticos eventos não demoraram a atrair a atenção da mídia. 
Independentemente dos números, a própria ideia de uma criança usar um 
computador dava às pessoas uma sensação de que algo novo, empolgante e 
um pouco perturbador estava no ar. Acrescente-se a isso a qualidade fotogêni- 
5 Alan Kay era pesquisador em ciência da computação no MIT, sendo considerado por 
alguns como o pai, dentre outras inovações, da interface gráfica em janelas, como o 
Windows. Recentemente esteve envolvido na concepção do software para o laptop OLPC 
(One Laptop Per Child, liderado por Nicholas Ncgroponte). 
4 Na época, 1983-1984, no Brasil, como em outros países, também já eram feitas expe- 
riências com computadores na Educação. Entre outras iniciativas, Fernando Almeida 
(PUC SP) publicou o pequeno livro Computadores e educação (Editora Cortez), basea- 
do na sua tese de doutorado. O governo federal estava lançando o Projeto Educom, 
com a formação de grupos interdisciplinares de pesquisadores em cinco universidades 
públicas brasileiras. Léa Fagundes, em Porto Alegre, entusiasmada com o potencial da 
nova tecnologia, de modo pioneiro já fazia a intermediação entre pesquisadores de 
Psicologia, Educação e a comunidade brasileira de Informática. 
48 Seymour Papert
ca de crianças com olhos ainda mais brilhantes pela luz da tela e entenda-se 
melhor porque os computadores nas escolas durante algum tempo receberam 
mais cobertura entusiástica na imprensa do que discussões equilibradas sobre 
o que tudo isso significava. E qual foi o significado disso? Que indagações
sensatas levariam à compreensão do que estava ocorrendo e para onde isso
poderia levar? Uma manchete no Wall Street Joumaal refletia as dúvidas de
pessoas sensatas interessadas no que havia de verdade em tudo isso. Literal- 
mente, o jornal proclamava, com um compreensível tom de ceticismo: "Esco- 
las compram muitos computadores, mas benefícios nas salas de aula são poucos".
Falar sobre a crise nas escolas estava em alta. Até mesmo no clima otimista de
Washington no governo de Reagan, o relatóriol Nation at Risk proclamara
isso de forma dramática. Não nos surpreende que se fizessem perguntas como:
Onde estão todos esses computadores sobre os quais tanto se fala? Estão ser- 
vindo para quê? Longe de produzir melhoria, eles pareciam incapazes até
mesmo de interromper a deterioração do sistema.
Tenho duas respostas ao tipo de dúvida levantado pelo jornal nova- 
iorquino - uma relativamente superficial e outra mais séria. A primeira refere- 
se ao uso da palavra muitos para descrever o número dos computadores nas 
escolas, que, naquele momento, era entre um e dois milhões. Isso era muito? 
Sim, se pensássemos em uma montanha de computadores empilhados em al- 
gum quintal. Não, se dividíssemos isso pelo número de alunos em todas aque- 
las salas de aula. Por experiência própria, sei o que é ter a vida intelectual 
transformada, mais de uma vez, pelo uso dos computadores. Além de mudan- 
ças intelectualmente mais profundas, meus hábitos de escrita mudaram por- 
que levo um computador em aviões, no carro, para o gramado ou para o ba- 
nheiro; meus hábitos de comunicação também mudaram em consequência de 
tantos colegas e amigos manterem-se em contato por meio do correio eletróni- 
co. Há apenas dois dias, esclareci minhas ideias sobre a reforma económica na 
Rússia programando uma simulação informal de competição económica. Isso 
porque tenho um computador - na verdade, vários deles - ao meu alcance em 
quase todos os momentos. 
O nível crítico no qual computadores fazem real diferença é certamente 
menor do que o meu; no entanto, é muito maior do que o oferecido pelas 
escolas para a maioria dos alunos. Um milhão de computadores dividido por 
50 milhões de estudantes dá a cada um deles um quinquagésimo de compu- 
tador. Não acredito que os benefícios significativos que os computadores 
trouxeram para mim teriam advindo de um quinquagésimo de máquina. Essa 
simples aritmética (que não se altera, em princípio, pelo fato de algumas esco- 
las terem tido três ou quatro vezes o número médio) fornece uma explicação 
tão óbvia ao problema apontado pelo jornal que fico pensando se os jornais- 
tas que o escreveram estavam realmente pensando, em sentido concreto, so- 
bre o que estavam escrevendo. Fico pensando se ficariam surpresos caso pu- 
dessem observar escolas em algum país onde apenas um instrumento de es- 
A Máquina das Crianças 49
crita fosse fornecido a cada 50 alunos, concluindo então que escrever não 
ajuda significativamente a aprendizagem. 
O argumento de que é pouco provável um número reduzido de computa- 
dores produzir uma grande mudança parece não se sustentar face a alguns 
dos incidentes anteriormente mencionados, em que crianças estavam desfru- 
tando a experiência de compartilhar dois computadores com uma classe intei- 
ra. Não há dúvida de que, com ou sem computadores, um evento isolado pode, 
às vezes, precipitar um crescimento intelectual importante. 
Entretanto, com mais frequência, a mudança requer uma experiência de 
computador muito mais continua e social do que é possível com duas máqui- 
nas no fundo de uma sala de aula. No Capítulo 6 conheceremos Debbie, que, 
de fato, teve uma grata surpresa sobre o significado da Matemática, porém 
estava em uma escola com mais de uma centena de computadores. A mudança 
também é muitas vezes reversível, como no caso de Raymond, cuja experiên- 
cia com computadores proporcionou-lhe sua primeira vivência de aprendiza- 
gem prazerosa e bem-sucedida na escola. Esse estudante,classificado como 
um caso de “transtorno de aprendizagem", produziu um trabalho de qualida- 
de que espantou seus professores, seus pais e até a ele próprio. No entanto, ter 
provado algo melhor, agravou de tal modo sua aversão pelos métodos da sala 
de aula regular que, no final, rejeitou a escola com mais intensidade do que 
antes de sua experiência com o computador. 
Uma outra razão para o pequeno efeito envolve problemas mais profun- 
dos do que o número de máquinas. No início da década de 1980, havia poucos 
computadores nas escolas, que, além de poucos, estavam na sua maioria em 
salas de aula de professores visionários, grande parte destes os empregando 
em um espírito "progressista", desbravando caminhos entre as práticas de uma 
Escola de currículo compartimentalizado e de memorização impessoal. 
Depois esse padrão mudou significarivamente. A iniciativa e o poder pas- 
saram dos professores para os administradores de redes escolares - com mais 
frequência em âmbito municipal mas também estadual. Quando havia poucos 
computadores na escola, a administração mostrava-se contente em deixá-los 
nas talas de aulas dos professores que demonstravam maior entusiasmo, em 
geral professores empolgados com o computador como um instrumento de 
transformação. Todavia, a medida que os números cresceram e os computado- 
res tomaram-se uma espécie de símbolo de status, a administração entrou em 
ação. Do ponto de vista de um administrador; fazia mais sentido colocar todos 
os computadores em uma sala - enganosamente denominada "laboratório de 
informática” – sob o controle de um professor especializado em informática. 
Assim todas as crianças poderiam unir-se e estudar computação durante uma 
hora por semana. 
Em uma lógica inexorável, o passo seguinte foi introduzir um currículo 
para o computador. Assim, pouco a pouco as características subversivas do 
computador foram desgastando-se. Em vez de cortar caminho, desafiando as- 
50 Seymour Papert
sim a própria ideia de fronteiras entre as matérias, o computador tomou-se 
uma nova matéria: em vez de mudar a ênfase de um currículo formal e impes- 
soal para a exploração viva e empolgada por pane dos alunos, o computador 
passou a ser usado para reforçar o modo de ser da Escola. O que começara 
como um instrumento subversivo de mudança foi neutralizado pelo sistema, 
convertido em instrumento de consolidação. 
Essa análise contradiz diretamente a resposta em geral oferecida por pes- 
quisadores ao se indagar por que os computadores causaram tão pouco im- 
pacto nos problemas enfrentados pela Escola. Tendem a dizer que “as escolas 
não sabem como usar o computador” e propõem remediar isso com mais pes- 
quisas sobre métodos para usar os computadores, desenvolvendo mais softwares, 
especialmente softwares que sejam mais fáceis de usar e criando canais de 
disseminação de conhecimentos referentes aos computadores. Eles estão fun- 
damentalmente errados. É evidente que a pesquisa aumentará a variedade e a 
eficácia do uso dos computadores, porém não é isso que mudara a natureza do 
uso do computador nas escolas. A passagem de um instrumento radicalmente 
subvertedor na sala de aula para um obtuso instrumento no laboratório de 
informática não adveio de uma falta de conhecimento nem de uma falta de 
software. Atribuo isso a uma inteligência inata da Escola, que agiu como qual- 
quer organismo vivo defendendo-se de um corpo estranho. Ela ativou uma 
reação imunológica cujo resultado final é digerir e assimilar o intruso. Os pro- 
fessores progressistas souberam muito bem como usar o computador para seus 
próprios fins como um instrumento de transformação; a Escola soube muito 
bem como cortar essa subversão pela raiz. Ninguém nessa historia agiu a par- 
tir de ignorância sobre computadores, embora possam ter sido ingenuos por 
não entender o drama sociológico no qual eram atores. 
Essa concepção da trajetória dos computadores nas escolas aponta para 
uma abordagem bem diferente do artigo no Wall Street Joumaal quanto ao que 
se pode aprender a partir da experiência dos computadores nas escolas. A 
pergunta mudou de "Foi um sucesso - sim ou não?" para "O que realmente 
ocorreu abaixo da superfície, e o que podemos aprender com essa experiência 
para criar estratégias futuras?". 
A principal "lição" que aprendi representa uma mudança significativa 
nas concepções que ofereci em Mindstorms e no que é ainda habitual na área 
de computadores na educação. A mudança c análoga ao surgimento do ensino 
centrado no desenvolvimento, que evita moldar a mente como se ela fosse um 
meio passivo e, em vez disso, co-opera com os padrões de desenvolvimento do aprendiz. 
Se es te não progr ide da forma esperada, o professor "desenvolvimen- 
tista" tenta entender o que ocorreu em vez de estigmatizar o aluno como um 
fracassado. Olhando sob a superfície, pode-se, com frequência, perceber uma 
coerência interna naquilo que parecia ser apenas um erro; perceber obstácu- 
los mentais que obstaculizam o caminho do progresso, e perceber elementos 
dinâmicos que possam ser mobilizados para ajudá lo. 
A Máquina das Crianças 51
As ideias sobre crianças, em Mindstorms, eram claramente “desenvolvi- 
mentistas” do principio ao fim, porém hoje me sinto embaraçado ao reconhe- 
cer como meu pensamento sobre a Escola violava canoncs desenvolvimetntitas 
básicos. Caracterizei grande parte do que a escola faz como "errado" e fiz um 
sermão sobre o que era "certo". Tais procedimentos não são eficazes para orien- 
tar crianças tampouco para orientar inovaçõcs cducacionais. A Escola não virá 
a usar computadores "adequadamente" pclo fato de os pesquisadores aponta- 
rem como fazê-lo. Ela virá a usá-los bem (se o fizer algum dia) como uma 
parte integral de um processo coerente de desenvolvimento. Como bons pro- 
fessores centrados no desenvolvimento, os pesquisadores poderáo contribuir 
melhor quando entenderem o processo de mudança na Escola como sendo um 
desenvolvimento c apoiarem-no utilizando as ideias que foram bem-sucedidas 
na compreensão da mudança em crianças. 
Piaget aumentou amplamente nosso conhecimento do pensamento in- 
fant i l meio de uma ideia que, como ocorrc com muitas outras grandes 
ideias parece ridiculamente óbvia quando a entendemos. Todo o funciona- 
mento mental, afirmou, possui duas facetas, que cle chama de assimilação 
(mudar sua representação de mundo para adequar-se aos seus modos de pen- 
sar) e acomodação (adaptar seus modos de pensar para adequar-se ao mun. 
do), A primeira resposta da Escola ao computador foi, muito naturalmente, de 
assimilação. A Escola não sc deixou mudar sob a influência do novo aparelho; 
ela viu o computador pela lcnte mental das suas próprias formas de pensar e 
fazer. Uma característica dos sistemas conservadores é que a acomodação ocorre 
apenas quando as oportunidades de assimilação forem esgotadas. Nesse ínte- 
rim percebe-se interessantes estratégias secundárias na história de desenvol- 
vimento à medida que o sistema manifesta sua capacidade de bloquear aco- 
modações incipientes. 
O acrónimo CAI (Computer Aided Instruction ou Instrução Auxiliada pelo 
Computador) é empregado para o uso da tecnologia de computação plena- 
mente assimilado pela educação. CAI refere-se a programar o computador para 
ministrar os tipos de exercícios tradicionalmente aplicados por um professor 
em um quadro-verde, em um livro didático ou em uma folha de exercícios. Tal 
procedimento está tão longe de desafiar as suposições da Escola tradicional 
que os críticos com frequencia perguntam se isso realmente produz algo que 
justifique o custo dos computadores. Os céticos mais empedernidos descrevem 
o computador como uma "ficha de resumo para memorização que custa mil
dólares". e o que ele faz como sendo "pratique e acerte"5.
Os defensores de CAI respondem listando vantagens de um computador 
pedir a um aluno, por exemplo, para calcular 35% de dois dólares. As vanta- 
gens mais citadas incluem feedback imediato (o indivíduo aprenderá maiscom 
5No original drill and kill. 
52 Seymour Papert
um erro, sendo informado imediatamente não apenas sobre aquilo que errou, 
mas sobre o porquê), instrução individualizada (as perguntas podem ser adap- 
tadas ao nível de competência do estudante), e neutralidade (o computador 
não está sujeito a percepções viesadas do estudante pelo professor e vice-ver- 
sa, relativas a raça, gênero ou história pessoal). 
Estudos cstatísticos mostram que a introdução do CAI com frequencia 
eleva modestamente os resultados dos testes escolares, em especial na extre- 
midade inferior da escala. Faz isso, porém, sem questionar a estrutura ou as 
metas educacionais da Escola tradicional. 
O primeiro sinal de acomodação incipiente veio, como talvez ocorra sem- 
pre, por intermédio de uma outra assimilação. Muitos dos professores pro- 
gressistas conseguiram assimilar o computador às suas ideias sobre o ensino 
(e sobre como driblar a Escola), o que gerou um movimento que chamarei de 
Movimento de Tecnologia Educacional Progressista (ou PET).6 
O CAI é mais velho que o PET, quase tão antigo quanto o próprio compu- 
tador. Quando entrei na área da computação, cle já existia, monopolizando o 
pensamento sobre computadores na educação. As primeiras formulações de 
ideias que se tornariam as do PET surgiram aos poucos, a partir do desenvol- 
vimento do Logo e da tartaruga, mencionados no capitulo anterior. No início 
da década de 1970, outro grupo aderiu a essa corrente de desenvolvimento, 
sob a liderança de Alan Kay, um cientista de computação, músico e uma perso- 
nalidade inspiradora que foi, creio, a primeira pessoa a usar a expressão compu- 
tador pessoal. No final daquela década essas ideias filtraram-se lentamente na 
percepção de professores progressistas que por acaso também estavam em 
contato com o entusiasmo que acompanhou os primeiros microcomputadores. 
Em 1980. trés eventos somaram-se em um poderoso impulso de sensibili- 
zação da comunidade de professores para a ideia de que os computadores 
podiam ser usados no espírito da educação progressista: o livro Mindstorms foi 
o início, cxpondo as ideias em uma forma bastante acessível: os computadores
pessoais de preço acessível atingiram um nível de desempenho suficiente para
executar uma boa versão do Logo, e o software Logo tornou-se comercialmente
disponível. O resultado foi um movimento de adesão de muitos professores
leigos em informática, o que gerou milhares de implementações do PET em
salas de aula. O caráter desse movimento e a profundidade de seu conflito
com a filosofia da Escola não podem ser apreendidos por fórmulas abstratas.
Entretanto, os episódios seguintes darão uma ideia da textura do conflito.
Até mesmo agora posso fechar os olhos e visualizar uma cena, em 1981, 
em uma sala de aula de quinta série de uma escola pública em Nova York. Dois 
6 No original, Progressive Educational Tehnology Movement. A sigla PET. adotada pelo 
autor, na língua inglesa, significa animal doméstico ou bichinho de estimação como um gato ou 
um peixinho, que toda criança gosta de ter em casa. 
A Máquina das Crianças 53
mundos pareciam coexistir na sala: em uma extremidade uma professora, 
Thelma, passava uma “lição” no quadro - verde; na outra, um grupo de alunos 
trabalhava com dois computadores. O grupo de computador encontrou uma 
dificuldade em um problema e mandou alguém "perguntar pra professora”. 
Thelma respondeu que talvez Bill pudesse ajudar - e continuou sua aula sem 
interrupção, sem se preocupar com o fato de Bill ter - se juntado ao grupo de 
alunos que nem sequer fingiam escutá-la. 
Frente e fundos da sala estavam separados por muito mais do que uma 
diferenca entre a tecnologia do quadro-verde e a tecnologia do computador. 
Uma distancia bem maior marcava o relacionamento das crianças com o que 
elas estavam fazendo. Na frente, elas estavam seguindo a agenda de outra 
pessoa; nos fundos, seguiam a sua própria. 
Daquele gupo, lembro com maior nitidez de Brian e Henry. Quando em- 
trei na sala, fui capturado, como todos os visitantes, pelos espetaculares efei- 
tos visuais tela do computador produzidos por programas escritos pelos 
dois alunos. Formas coloridas movimentando-se em complexas linhas entre- 
laçadas levaram-me imediatamente a associar um talento coreográfico, um 
senso de movimento e dramaticidade. Tive que observar mais de perto como 
os efeitos foram produzidos para dar-me conta da sofisticação matemática 
subjacente ao controle da geometria e da dinamica dos movimentos. Esses 
meninos estavam engajados em um exercício matemático fundamentalmente 
diferente do cálculo de 35% de dois dólares, solicitado por alguém, como 
relatei antes. Sua atividade incluía esse tipo de cálculo (além de um pensa- 
mento matemático mais sofisticado), mas não como um exercício sem nenhum 
objetivo em si. Os cálculos surgiam no decorrer da elaboração de um projeto 
maior, pessoalmente motivado. 
Escolhi o problema de percentagem como exemplo da abordagem CAI, 
porque é do mesmo tipo de vários outros problemas de cálculo que Brian e 
Henry tiveram que resolver, como por exemplo: a que velocidades dois objetos 
precisam movimentar-se para chegar ao mesmo lugar, no mesmo tempo, se 
um segue um cuja extensão é 35% da extensão do outro? 
Esse último problema é mais dificil do que o de tipo habitual da Escola, 
pois sua forma geométrica torna-o mais complexo e os meninos teriam de esfor- 
çar-se um bocado para descobrir como fazê-lo: perguntar a um professor ou a 
um colega, procurar em um livro, trabalhar por analogia com alguma outra 
situação, tentar inventar um método, recorrer à tentativa e ao erro. As crianças 
nunca pareceram importar-se. O que torna a Matemática da Escola tão repug- 
nante para os Brians, e chata para os Henrys, não é que ela seja "difícil", mas por 
que é um ritual sem sentido, ditado por um currículo estabelecido que diz: "Hoje, 
por ser a décima quinta segunda-feira da quinta série, você tem que fazer essa 
soma independentemente de quem você é ou do que você realmente deseja 
fazer; faça o que lhe mandam e faça da maneira como mandam". 
54 Seymour Papert
O que quero enfatizar não é o fato de a professora deles estar disposta, 
como alguns defensores da “escola livre” propuseram, a permitir que seus alu- 
nos fizessem qualquer coisa que desejassem. Longe disso: ela impôs padrões 
muito elevados e exigiu comprometimento e disciplina, No entanto, quando 
Brian e Henry quiseram fazer algo mais profundo, mais instrutivo e mais inte- 
lectualmente exigente do que o curriculo da quinta série, seu instinto de pro- 
fessora disse-lhe para encorajá los. 
O relacionamento anterior entre esses meninos é revelador sobre a Esco- 
1a como ambiente intelectual. Embora tivessem sido colegas durante quatro 
anos, nunca falaram muito um com o outro até que os computadores os unis- 
sem. Eles já haviam desenvolvidos fortes interesses individuais na vida e, em 
bora a Escola os estivesse juntado na mesma sala, forneceu poucas oportunida- 
des para que tais interesses se fundissem em um relacionamento genuíno. 
Assim, a Escola desperdiça seu mais valioso recurso – o intercâmbio entre os 
alunos intelectualmente mais interessantes. 
Brian sempre se interessara por música e dança; observando-o, não havia 
dúvidas de que os aspectos sensoriais e corporais do mundo eram importantes 
para ele. Henry, por sua vez era deselegante em seus movimentos – poder-se- 
ia mesmo dizer - em descompasso com o próprio corpo; mas sempre fora o 
gênio da matemática, e suas fantasias eram sobre ficção cientifica. Ademais. 
não se ligava em roupas e cores. Embora isso o excluísse de uma significativa 
área de experiência, até a chegada dos computadores ele não a experimentara 
c o mo u m a de f i c i ê nc i a - c e r t a me n t e u ma de f i c i ê nc i a r e l e va n t e pa r a 
a sua atividade escolar. Ciência e Matemática, as áreas que ele mais apreciava 
e nas quais se destacava, pareciam não ter qualquer relação com prazer senso- 
riale ação física. De fato, essa percepção certamente contribuiu para seu ape 
go a tais atividades, exatamente como contribuira para a resposta indiferente 
de Brian as mesmas. 
Quando sua professora trouxe os computadores para a sala de aula, os 
dois alunos tinham expectativas muito diferentes. Henry percebeu imediata- 
mente que aquilo seria o seu "negócio”; semn dúvida ele seria “o melhor no 
computador”. Já a reação de Brian foi uma mistura de uma leve curiosidade 
com um qué de apreensão. 
Henry constatou que o caminho para tirar o máximo do computador 
passava por uma relação de trabalho com a pessoa menos provável na classe, 
Brian, o dançarino. De sua parte Brian constatou, pela primeira vez, que a 
Matemática poderia ser um meio pessoalmente empolgante de auto-expre- 
são e a base para uma amizade genuinamente interessante. 
A história requer um pouco de informação de bastidores, sobre como os 
computadores foram introduzidos na sala de aula . Thelma frequentara um 
curso intensivo de férias, patrocinado pela National Science Foundation, so- 
bre o uso de computadores nas escolas. Ela se matriculara sem muita ideia do 
A Máquina das Crianças 55
que iria fazer e com algum receio, pois jamais pensara em si mesma como uma 
“pessoa” de tecnologia”. Não obstante, os computadores estavam no ar. Ela 
tinha amigos que falavam sobre a revolução dos microcomputadores, sobre 
como essas máquinas dar iam as pessoas comuns acesso a informações 
antes monopolizadas por grandes empresas e agências governamentais. Tam- 
bém havia lido que eles poderima levar a novos métodos de ensino. Todavia, 
mais importante, ela entendeu que as crianças adoravam tais máquinas, e o 
mesmo espírito que a levara a carregar hamsters, plantas, cartazes e todo o 
tipo do que chamava de “lixo” para sua sala de aula despertou seu interesse 
quando ouviu falar sobre o cuno de férias. 
O primeiro contato de Thelma com programação consistiu em usar o 
Logo para instruir o computador a desenhar padrões de linhas na tela. Ela 
ficou realmente assustada com seu próprio espanto ao verificar que podia 
fazer o computador desenhar aquilo que queria; mesmo fazê-lo desenhar 
um simples quadrado proporcionou-lhe uma sensação de prazer em come- 
çar a “ser a dona” de uma tecnologia tão simbólica do que havia de mais mo- 
derno e poderoso. Após alguns dias, sua habilidade para produzir padrões 
mais intricados e colocar objetos em movimento na tela evocou associações 
com arte computador e com efeitos especiais de filmes como Guerra nas 
estrelas. 
Tendo levado esse tipo de técnica de programação para sua turma, Thelma 
incentivou a colaboração entre Brian e Henry. Na classe, criar animações na 
tela tornou-se a escolha mais comum das crianças, que podiam fazer o que 
quisessem com os computadores. 
Algumas crianças criaram animações realistas para contar uma história. 
Não foi surpresa o fato de Henry estar entre os que preferiram formas mais 
estilizadas, cujo interesse visual era a complexidade das formas e padrões em 
movimento e não o conteúdo narrativo. Ele entendeu logo o lado técnico da 
programação. Antes dos colegas, sabia exatamente como criar figuras na tela 
e fazer que se movimentassem. Henry possuía imaginação visual suficiente 
para experimentar efeitos cuja natureza era evocada pelos nomes que ele es- 
colhia: "Fogos de Artificio" ou "Guerra nas Estrelas" ou “Big Bang". Seu talento 
para Matemática valeu-lhe um fácil domínio de técnicas para programar um 
objeto na tela que começasse a movimentar-se quase imperceptivelmente ace- 
lerando aos poucos. Algo mais criativo ficou evidente no que um matemático 
chamaria de "generalizar a ideia", quando ele percebeu que as mesmas técni- 
cas poderiam ser usadas para fazer um som aumentar gradativamente, ini- 
ciando com um rugido grave até um grito agudo, desaparecendo a seguir na 
amplitude ultra-sônica. Do ponto de vista da escola, ele estava se saindo muito 
bem, mas na realidade algo estava faltando. 
Henry sentia prazer na engenhosidade matemática por trás das suas de- 
monstrações, mas estava decepcionado com o resultado final. Seu problema 
56 Seymour Papert
não era simplesmente extrair dos colegas exclamações de Surpresa quando 
vissem seu trabalho. Ele sentia que faltava algo nas suas criações que não 
sabia como realizar ou até mesmo expressar, qualidades que um outro aluno 
de quinta série descreveu como "graça" e "empolgação". Talvez, pela primeira 
vez na vida, elc tenha experimentado o sentimento doloroso de estar cons 
ciente de uma limitação intelectual. Sua mente estava pronta para efetuar um 
grande avanço. 
A ideia ocorreu-lhe quando viu Brian dançando em um corredor da esco- 
la. Reconhecendo que os movimentos de Brian tinham exatamente aquilo que 
faltava em suas criações gráficas, Henry percebeu de súbito que poderiam 
juntar-se para produzir a melhor coreografia de tela! Aquele rnomenro foi o 
início um longo relacionamento de trabalho, Etn parceria, os dois meninos 
criaram algo que nenhum deles poderia ter sequer imaginado sozinho e, ao 
fazê-lo, aprenderam muito mais do que os testes de Matemática são capazes 
de medir 
Eles certamente dominaram um bocado de Matemática aplicada. Movi- 
mentar aqueles objetos na tela requereu uma descrição dos movimentos em 
linguagem matemática que ultrapassava até mesmo o conhecimento anterior 
de Henry. Os meninos representaram a velocidade de um objeto como uma 
variável e construiram fórmulas para variá-la. Eles aprenderam a pensar sobre 
direções como ângulos medidos em graus. Mais que isso, apreenderam a ideia 
de fazer geometria por coordenadas de um modo muito mais próximo da des- 
coberta viva e pessoal de René Descartes do que daquela extremamente chata 
e formal dos livros didáticos de Matemática. Esse tipo de conhecimento, po- 
rém, foi apenas uma pequena parcela do que Henry c Brian aprenderam. 
Além de desenvolverem habilidades em Matemática aplicada, eles come- 
çaram a perceber a Matemática de uma forma bem diferente. Ela tornou-se 
algo para ser usado intencionalmente; eles sentiram-na como uma fonte de 
poder para realizar projetos importantes e profundamente pessoais. Não sei se 
as pessoa que não experimentaram a Matemática dessa forma podem apre- 
ciar plenamente quão inebriante, quão poderosa ela pode ser. Uma analogia 
poderia ser a experiência de aprender a esquiar A principio é - se instruído em uma série 
de mov imen tos desa j e i t ados : des loque seu peso , dobre seus j oe lhos 
e assim por diante. Obedece-se aos comandos, mas se sente fazendo movimen- 
tos toscos, fingindo ser outra pessoa. Então, certo dia, surge uma experiência 
de conversão: está-se voando (ou assim parece) ladeira abaixo. Os joelhos 
estão flexionando e estirando, o próprio peso está se deslocando. A pessoa não 
precisa "fazer" tais coisas; elas fluem como partes inseparáveis de um movi- 
mento leve c jovial. 
Certamente para Brian, e é posslvel que também para Henry, o trabalho 
colaborativo teve elementos dessa experiência de conversão. A Matemática 
tornou-se mais como voar morro abaixo do que como dobrar os joelhos e 
A Máquina das Crianças 57
deslocar o peso às ordens de um instrutor. Isso não significa que fazer mate- 
mática tenha se tornado fácil: muito pelo contrário; exatamente como na expe- 
riência de esquiar, houve a frustração e a infindável luta para dominar novas 
técnicas e manejar novos desafios. Tornou-se mais difícil à medida que eles 
ocuparam-se com problemas mais sérios. Entretanto, quando se está profun- 
damente envolvido em algo, o estágio "fácil" não é o que se deseja. A pessoa 
dispenderia, por assim dizer, o resto de sua vida de esquiador descendo as 
ladeiras mais fáceis; porém muitos, sobretudo os jovens, buscam o desafio de 
montanhas mais interessantes. 
A analogia com o esqui apresenta um lado da vivência da aprendizagem 
de Matemática de Brian e Henry que vai além da aquisição de conhecimento 
técnica. Também sugere maneiras nas quais a aprendizagemfoi além do apren- 
der Matemática, mesmo no sentido mais amplo da mesma. O uso da palavra 
“fluente” em relação a esquiar reflete um modo de relacionar-se com ativida- 
des em que a palavra é mais utilizada - por exemplo, fluencia na língua ou no 
desempenho musical. Quero generalizar essa noção para outras atividades e 
sugerir que Henry e Brian, de modos bastante diferentes, estavam aprenden- 
do a ser fluentes no uso da Matemática. Eles também estavam aprendendo a 
sensação da fluência. Quero sugerir que essa é em si uma irnportante, porém 
pouco reconhecida, área de competência. 
Brian começou a entrar em colaboração com outros tipos de fluencia. 
Sua habilidade em dança, em movimento corporal, foi o que havia chamado a 
atenção de Henry e o que propiciou a base da atividade colaborativa. Entre- 
tanto havia algo mais do que simples competência em dança em relação ao 
padrão de onde ele se encontrava e não era fluente. Brian falava com fluência, 
sendo capaz de contar uma história de uma forma que arrebatava a atençao. 
Sua fala possuía "elegância" e "empolgação", qualidades que faltavam pro- 
gramação de Henry. Algo surpreendente, porém, ocorreu quando ele pegou 
um lápis para escrever. O que surgiu no papel carecia totalmente dessas quali- 
dades; eram frases laboriosamente enfadonhas, uma após outra. O contraste 
entre a fluencia oral e a escrita laboriosa é muito comum e é uma importante 
causa de analfabetismo; as pessoas que sabem, a partir de suas habilidades 
orais, o que é usar a linguagem fluentemente são desencorajadas por sua pró- 
pria falta de jeito quando se veem forçadas a escrever e, com frequência, sim- 
plesmente terminam recusando-se a faze-lo. 
Para pessoas como Brian, a oportunidade de programar animações em 
Logo propicia um meio de ampliar sua fluencia para uma área que compartilha 
qualidades essenciais com a fala, os movimentos corprais e a linguagem es- 
crita. Pode levar tempo para construir o desejado no computador, mas, uma 
vez conseguido, você pode movimentar o próprio corpo com ela, sentindo a 
emoção do sucesso de uma forma corporal muito direta. Por outro lado, o 
programa é um texto que ainda precisa ser estudado e editado. Nesse sentido, 
é como escrever: na realidade, o programa é uma forma de escrita. 
58 Seymour Papert
Essa é a primeira das muitas formas de o computador quebrar as barrei- 
ras que tradicionalmente separam o pre-leterado do leterado,7 o concreto do 
abstrato, o corpóreo do incorpóreo. Ao construir uma ponte ligando tais divi- 
soes, elimina o obstáculo que impediu muitas pessoas de passarem da oralidade 
concreta, sintonizada com o corpo, da infância, para competências que no 
passado eram acessíveis apenas em formas letradas, abstratas e descorporifica- 
das. Isso se aplica diretamente a Brian. Os problemas mais óbvios de Henry 
com a travessia da referida ponte são no sentido oposto. Ele havia passado 
facilmente, mas também completamente, para o outro lado e não pôde voltar 
com facilidade. 
A supervalorização do abstrato em nossa cultura obscurece as formas nas 
quais Henry pode ter-se beneficiado da oportunidade concreta de pensar sobre 
a coreografia dos movimentos. Adquirir sensibilidade para criar elegância e 
empolgação lhe teria sido vantajoso para escrever um trabalho de ciências, 
compor uma história ou simplesmente contar uma piada, Com o tempo, pode- 
ria até mesmo ter afetado o modo como movimenta o corpo. Poderia ter um- 
dado toda sua vida social. De um modo mais sutil e profundo, poderia ter-lhe 
aberto para uma maior variedade de formas de aprender. 
Os dois meninos sentiram como é comunicar-se um com o outro trans- 
pondo uma barreira cultural. Eles tiveram a experiência de gerir conjunta- 
mente um complexo projeto durante muitas semanas e, evidentemente, - em- 
bora isso em si fosse a menor parte - estavarn aprendendo a programar compu- 
tadores. 
A história de Brian e Henry não teve o objetivo de sugerir que todos os 
alunos que trabalharem com a linguagem Logo terão uma experiencia seme- 
lhante. Muitos outros fatores além do Logo contribuíram para o ocorrido. Tal- 
vez pudéssemos resumi-los dizendo que a professora foi bem-sucedida em criar 
uma cultura de computação produtiva e sustentável na sua sala de aula. E, 
mesmo assim, as condições estavam longe de ideais. Muitas crianças terão 
uma experiencia menos rica, embora seja raro que não haja nenhum ganho. A 
história não visa ser estatisticamente representativa de um evento médio, mas 
sim conceitualmente representativa de uma forma de aprender muito diferen- 
te daquela da Escola. A próxima história é igualmente representativa da "res- 
posta imunológica" da Escola. 
Richard teve uma experiência intensiva com a linguagem Logo na quarta 
e quinta séries da Hennigan Elementay School em Boston, no experimental 
Projeto Headlight , 8 ele usara Logo quase os dias na escola, no mesmo 
7 Conforme discursão no Capítulo I, esses neologismos referem-se à havilidade para 
ler palavras, anterior à alfabetização, que é uma habilidade mais complexa. 
8 Headlight significa farol de automóveis e trens; uma luz intensa que ilumina o ca- 
minho. 
A Máquina das Crianças 59
espirito evidenciado por Brian e Henry e adquirira considerável competência 
tanto nos aspectos técnicos da programação Logo quanto na possibilidade de 
utilizá-la como um meio de expressão (medium) para outros trabalhos. Alguns 
meses depois de Richard concluir o ensino fundamental na Hennigan, ele re- 
cebeu em sua nova escola a visita de membros da equipe de pesquisa que 
trabalharam com ele, interessados em seu progresso. Embora os pesquisado- 
res soubessem que o acesso aos computadores na nova escola fosse muito mais 
limitado do que em Hennigan também sabiam que uma grande parte do seu 
tempo era dedicada ao Logo e mostravam-se ansiosos para ver o que Richard 
estava fazendo com sua proficiencia em Logo. Para sua surpresa, foram infor- 
mados de que ele não tinha permissão para usá-lo. “Pensávamos que você 
gostasse de Logo, disseram à professora. "Sim, eu gosto", respondeu ela "eu 
faço os meus alunos dedicarem muito tempo ao Logo, mas Richard domina 
Logo e fiz com que ete aprendesse outra coisa". 
Essa história capta uma das principais diferenças entre aprender na esco- 
la e todas as outras aprendizagens. Na vida geralmente o conhecimento é 
adquirido para ser usado. Todavia aprendizagem escolar, com maior fre- 
quencia encaixa-se na apropriada metáfora de Paulo Freire: nela o conheci- 
mento é tratado como dinheiro, para ser guardado em um banco para o futu- 
ro. Algo desse modo de pensar estava presente na atitude da professora de 
compuação na nova escola de Richard. O Logo é algo para ser aprendido, não 
para ser usado: os alunos aprendem para sabê-lo; quando sabem, colocam-no 
de lado no bancos de memória (que por acaso, não pagam juros) e pas- 
sam para o tópico seguinte no currículo. No caso do conhecimento de compu- 
tação, a abordagem bancária muitas vezes é justificada pelo argumento de que 
co locará em uma pos i ção van ta josa quando c resce rem e p rocura rem 
empregos que exijam habilidades em computacão. Nada poderia ser mais ridi- 
culo. Se “habilidade em computação” for interpretada no sentido estreito de 
conhecimento técnicos sobre computadores não há nada que as crianças pos- 
sam aprender agora que valha a pena depositar em um banco: na época em 
que crescerem as habilidades de computação necessárias no local de trabalho 
terão evoluído para algo fundamental distinto. O que torna o argumento ver- 
dadeiramente ridículo é que a própria ideia de depositar em banco o conhec- 
mento de computação para usar algum dia no trabalho destrói a única "habili- 
dade de computação” realmente importante: o hábito de usar o computador 
para fazer o que quer que seja fazendo. No entanto, exatamente isso foi 
abandonado quando se mudou o computador para o tal laboratório de informática. 
Uma outra forma na qual os computadores podem ser integrados ou iso- 
lados doprocesso de aprendizagem tem menos relação com o computador 
como instrumento do que com a computação como um conjunto de ideias. A 
questão aparece muito claramente quando constrastamos o que veio a ser cha- 
nado de “alfabetização em computação”com o sentido da palavra alfabetiza- 
ção (lateracy), utilizado para referir-se a alguém como uma pessoa instruida 
60 Seymour Papert
(literate). No contexto da Escola, a alfabetização em computação veio a ser 
definida especialmente como um conhecimento prático porém mínimo sobre 
computadores. Alguém em nossa cultura que tivesse um nivel tão minimo de 
conhecimento em leitura, escrita e literatura seria chamado de analfabeto; as 
mesmas considerações levam-nos a chamar alguém que possui um conheci- 
mento igualmente minimo sobre computadores como analfabeto em compu- 
tação. Além disso, a diferença não é meramente de grau, mas de tipos de 
conhecimento. Quando dizemos "Fulano é uma pessoa muito instruída (lite- 
rate)”, não queremos dizer que Fulano é altamente hábil em decifrar fonemas. 
Pelo menos, deixamos implícito que ele conhece literatura, mas, além disso, 
queremos dizer que Fulano adquiriu determinadas formas de entender o mun- 
do que derivam de uma familiaridade com a cultura literária. Similarmente, a 
expressão alfabetização em computação deveria referir-se aos tipos de conhe- 
cimento que derivam de uma cultura de computação. 
Um exemplo dessa questão é fornecido por uma unidade de ensino pla- 
nejada pela professora Joanne Ronkin, na Henningan School, que alia o estu- 
do da estrutura das flores ao estudo da estrutura dos programas de computa- 
dor. Os dois unem-se intimamente e de modo muito simples. O aluno tem de 
fazer um programa de computador para desenhar uma flor; o estilo estruturado 
de programação sugeriria dividir o trabalho em escrever "subprocedimentos" 
para as diferentes partes da flor. O estudante, então, defronta-se com a opção 
de fazer isso de uma maneira que combina com a estrutura da flor ou de uma 
maneira que não combina, Em meu estilo de programar, tendo a ser relativa- 
mente não-estruturado, a menos que haja uma forte razão: uma delas impulsio- 
nar-me-ia a ser muito estruturado com relação um programa de flores por- 
que vejo o design da flor como ajustando-se a preceitos estruturados. De fato, 
penso que a razão para as duas estruturas é, em grande parte, a mesma. Um 
forte argumento para programas modularizados é que eles facilitam a corre- 
ção das falhas, e parece-me plausivel que a estrutura modular dos sistemas 
biológicos facilita a correção de falhas no curso da evolução. Este é um exem- 
plo pequeno, mas rico, do quanto ver o mundo por meio de conceitos compu- 
tacionais leva a insights sobre fenômenos do cotidiano que não apresentarn 
qualquer conexão direta com computadores. 
A critica do laboratório de informática como neutralizando o computa- 
dor não deve ser tomada como uma negação de que os computadores em uma 
sala separada possam ser utilizados de formas maravilhosas - contanto que se 
permita que a sala separada torne-se um ponto de encontro de ideias que 
anteriormente foram mantidas separadas. 
Em uma escola de Missouri, um improvável grupo de professores formado 
por um professor de física, um de educação fisica e um de técnicas industriais 
reuniu se para desenvolver em conjunto um projeto educacional. Eles preten- 
diam oferecer para os alunos um workshop sobre robótica, um tópico com 
aspectos que interessavam os tres professores. O professor de fisica estava 
A Máquina das Crianças 61
interessado em algumas questões teóricas subjacentes; o professor de educa- 
ção fisica em movimentos do corpo; e o professor de técnicas industriais, na 
construção de maquinas. 
O projeto teve uma importância que foi além do especificamente apren- 
dido no workshop de robotica. O fato de aqueles três professores estarem fa- 
zendo algo juntos passou para os alunos a mensagem de que, sem eufemis- 
mos nerds e jocks2 podem ter mais em comum do que se poderia imaginar. 
O projeto de robótica é um exemplo simples do que chamo de efeitos de 
segunda ordem ou efeitos sistemicos da presença do computador. A escola não 
dispendeu milhares de dólares em computadores especificamente para que os 
alunos pudessem ter a experiencia de testemunhar uma aliança espontânea 
entre três professores de áreas distintas. De modo geral, os computadores 
são introduzidos com objetivos educacionais específicos, e seus efeitos de pri- 
meira ordem são medidos observando-se quão bem tais objetivos são atingi- 
dos. Em uma escala que varia enormemente de uma escola para outra, a pre- 
sença do computador, porém, pode vir a desempenhar um papel menos espe- 
cifico, mas potencialmente mais poderoso: ao entrar na cultura da escola, ele 
pode entremear-se na aprendizagem de muito mais formas do que seus pro- 
motores originais poderiam ter antecipado. 
O projeto dos texteis africanos, mencionado no Capítulo 1, ilustra um 
outro modo importante pela qual um laboratório de computadores pode dar 
origem e melhores resultados do que a administração planejou ou pelos quais 
pagou. O professor Orlando Mihich10 é um dentre muitos do meu conheci- 
mento que contribuiram com tempo pessoal para organizar sessões no labora- 
tório de informática fora do horário escolar, permitindo que pelo menos al- 
9 Nerd, nos Estados Unidos é uma giria escolar geralmente pejorativa, referente a 
alunos (ou alunas) desajeitados, com óculos de fundo de garrafa, que se dedicam ao 
estudo de matemática e outras disciplinas “intelectuais”, embora nem sempre sejam 
bem sucessidos nas notas. Hoje tem sido muito usado em referencia aos que se dedicam 
ao computador. Jock, o oposto, refere-se aos alunos com fisico de atleta, que se dedi- 
cam a esportes como basquetebol ou futebol, que compram briga e ameaçam os mais 
fracos. De moda geral, a expressão nerds e jocks é usada em relação a duas pessoas 
em extremos opostos, que não se dão bem na escola. No entanto, dependendo da 
situação os termos podem ou não ser usados de forma pejorativa. 
10 Orlando Mihich, professor e gestor escolar da rede pública da cidade de Nova York, na 
época deste livro, destacou-se na Comunidade Logo dos Estados Unidos pelo trabalho 
com alunos utilizando a linguagem Logo. O projeto de têxteis africanos, mencionado no 
Capitulo 1 e neste parágrafo, foi feito por alunos do professor Mihich. Em 2001 recebeu 
o prêmio de Professor de Computação do Ano, concedido pela Federação Estadual de
Profesores de Nova York e pela Escola de Educação de New York Institute of Tecnology.
62 Seymour Papert
guns alunos trabalhassem com o computador com liberdade suficiente para 
uma genuína experiência de aprendizagem, Alguns das melhores exemplos de 
projetos de aprendizagem baseados em computação partiram da iniciativa in- 
dividual de professores criativos que recusaram limitado papel de "professor 
de informática. 
Apesar de muitos exemplos de excelentes trabalhos como o que mencio- 
nei, o isolamento do computador no ambiente escolar deve ser visto como um 
tipo de "resposta imunológica" da Escola a um corpo estranho: quer ou não os 
participantes estivessem conscientes de que isso é o que estavam fazendo, 
está claro que a lógica do processo era colocar o intruso no seu devido lugar, 
em conformidade com os modos de ser da Escola. O computador na sala de 
aula subvertendo a divisão do conhecimento em matérias , sendo então 
transformado em uma disciplina escolar. Ao subverter a ideia de currículo, foi 
transformado em um tópico com um currículo próprio. Evidentemente, esse 
mecanismo não é circunscrito aos computadores. A seu tempo, Escola tam- 
bérn formalizou outras influencias subvertedoras. Piaget, por exemplo, foi o 
teórico da aprendizagem sem currículo; a Escola, então, desenvolveu um "cur 
riculo piagetiano". 
Reconhecendo tais reações imunológicas, somos levados a buscar respos- 
tas para a pergunta: por que não acontecem megamudanças identificando e 
pondo a descobertoos mecanismos que defendem a Escola de megamudan- 
ças? Na medida em que tais mecanismos forem identificados, podemos come- 
çar a pensar sobre a Escola de modos que nos capacitarão a promover mudan- 
ças mais efetivas. Assim, uma vez mais a história de Brian e Henry possibilita- 
nos perceber a tensão entre a maneira do professor e a maneira da Escola de 
lidar com o computador. Aprofundar o entendimento sobre essa tensão é um 
tema central deste livro. Qual é o estilo da Escola? E o do professor? 
Volto à comparação entre a educação e áreas como a medicina, que pas- 
saram por megamudanças. Uma resposta possível á pergunta de por quais 
motivos não houve megamudança na educação é argumentar que a própria 
ideia de megamudanças é inadequada para ela: a Escola é em essência dife- 
rente dos exemplos de áreas megamudadas como a cirurgia. Esta, segundo tal 
argumento, é suscetível a megamudanças tecnologicamente induzidas por ser 
um ato essencialmente técnico. A aprendizagem, porém, é um ato natural. 
como comer, por exemplo, ou como conversar face a face. Houve mudanças 
nos hábitos de alimentação, mas não megamudanças. Viajantes do tempo de 
um passado distante certarnente não teriam qualquer problema em reconhe- 
cer que estamos comendo, mesmo que falhassem em reconhecer os ingredien- 
tes. O ato de comer é essencialmente o mesmo, quer os alimentos sejam cozi- 
dos em fornos de micro-ondas, ou em fogueiras ao ar livre, quer não sejam 
cozinhados. Se há megadiferenças na alimentaçao, elas encontran-se na di- 
mensão social e não na dimensio técnica. 
A Máquina das Crianças 63
Eu concordaria que aprender é um ato natural se estivéssemos falando 
sobre o tipo de aprendizagem que ocorre em um relacionamento saudável 
entre uma mãe e seu bebé ou entre duas pessoas começando a se conhecer. 
Todavia, a educação escolar não é um ato natural. Muito pelo contrário: a 
Escola como instituição, com seus planos diários de lições, currículo estabele- 
cido, testes padronizados e outras tantas parafernálias, tende constantemente 
a reduzir a aprendizagem a uma série de atos técnicos, reduzindo o professor 
ao papel de técnico. Evidentemente, ela jamais obtém sucesso completo, pois 
os professores resistem ao papel de técnico e desenvolvem relacionamentos 
humanos naturais afetuosos, nas suas salas de aula. No entanto, o mais im- 
portante a se considerar em relação ao potencial para megamudanças é que 
tal situação coloca o professor em um estado de tensão entre dois pólos: a 
Escola tenta fazer do professor um técnico; entretanto, na maioria dos casos, 
um senso de identidade resiste, embora em muitos casos o professor tenha 
internalizado o conceito de ensino da Escola. Cada professor encontra-se, por- 
tanto, em algum ponto de um continuum entre o técnico e o que ouso chamar 
de um verdadeiro professor. 
A questão central da mudança na educação é a tensão entre a tecnicização 
e a não-tecnicização, e aqui o professor ocupa o ponto fulcral. 
Desde a invenção da imprensa, nunca aconteceu um impulso tão grande 
no potencial para fortalecer a aprendizagem tecnicizada. Há, porém, um outro 
lado: paradoxalmente, a mesma tecnologia possui o potencial de destecnicizar 
a aprendizagem. Se isso acontecesse, eu consideraria uma mudança muito 
maior do que a colocação, em cada carteira, de um computador programado 
para conduzir o estudante no passo do mesmo velho currículo. Contudo, não 
é necessário ficarmos discutindo sobre que mudança tem o maior alcance. O 
necessário é reconhecer que a grande questão no futuro da educação é se a 
tecnologia fortalecerá ou subverterá a tecnicidade do que se tornou o modelo 
teórico e, em larga medida, a realidade da Escola. 
Meu argumento paradoxal é que a tecnologia pode apoiar uma megamu- 
dança na educação tão ampla quanto a que vimos na medicina, porém em um 
processo diretamente oposto ao que conduziu às mudanças na medicina mo- 
derna. A medicina mudou, tornando-se cada vez mais técnica em sua nature- 
za; na educação, a mudança virá pela utilização de meios técnicos para elimi- 
nar a natureza técnica da aprendizagem na Escola. 
64 Seymour Papert
Professores 
Houve um tempo em que eu acreditava, como muitas outras pessoas, 
que os professores seriam o maior obstáculo para a transformação da esco- 
la.1 Essa crença simplista, cuja insistente prevalência é, na verdade, um obs- 
táculo muito maior para a mudança educacional do que o fato de alguns 
professores serem mesmo conservadores, tem em sua origem representações 
culturais profundamente arraigadas. No meu caso, lembro de ter ficado im- 
pressionado, ainda no ensino fundamental, com o aforismo cético de George 
Bernard Shaw: "Os capazes criam, os incapazes ensinam".2 Alguém que "não 
cria" certamente não será um parceiro construtivo para promover uma um 
dança significativa. 
Atitudes negativas em relação aos professores, culturalmente comparti- 
lhadas, são reforçadas por experiências pessoais. Como uma criança rebelde, 
eu via os professores como inimigos. Com o passar do tempo, tais sentimentos 
fundiram-se com uma posição teórica que teve a consequencia ilógica de 
"demonizar" ainda mais os professores, identificando-os com os papéis aos 
quais a Escola os forçou. Antipatizava com os métodos coercivos da escola, e 
eram os professores que aplicavam a coerção. Eu era contra a avaliação por 
notas, e eram os professores quem davam as notas. No entanto, certamente eu 
tinha elementos de experiências anteriores para ver os professores de modo 
mais simpático. 
1 No original, o autor informa em nota de rodapé que "as ideias deste capítulo tomaram 
forma em conversas com Carol Sperrf'. Mais adiante ele fornecr outras informações 
sobre o trabalho da Dra. Sperry com professores em um projeto com Logo. Ela fez parte 
do departamento de educação da Harvard Universiry, vizinha do MT. em Boston. 
2 George Bernard Shaw (1856-1950) foi um escritor irlandês jornalista dramaturgo. 
crítico literário, socialista. É famoso pelo espirito irreverente, exemplificação na maxi- 
ma acima, e pela critica ao capitalismo e à guerra. Foi um crítico da educação formal, 
tendo abandonado a escola aos 16 anos. O leitor poderá notar que várias ideias de 
Papert sobre educação estão em sintonia com o pensamento de Shaw. 
4
Como a maioria das pessoas que têm em geral más lembranças da escola, 
tenho também maravilhosas impressões de alguns mestres, como o professor 
Wallis, que não perdeu nada de sua presença. Daisy3 (como o chamávamos, 
embora não na sua frente) ensinou-me oficialmente latim e grego, porém me 
proporcionou muito mais discernimento sobre Lewis Caroll4 do que sobre Cícero 
ou Heródoto. Legou-me, também, um décimo primeiro mandamento: ”In- 
vente três teorias todos os dias antes do café da manhá e descarte-as antes 
do jantar". Eu o adorava, e ainda hoje percebo que lhe devo pelo menos 
algumas fibras da lúdica postura epistemológica que permeia meu pensa- 
mento atual. Naquele momento, porém e até recentemente, eu classificava 
Daisy como uma exceção, mantendo intacto meu preconceito antiprofessor, 
do mesmo modo como os que dizem: "Eu, racista? Mas como? Alguns dos 
meus melhores amigos são...". O resultado não era pensar melhor sobre pro- 
fessores, mas dizer "Daisy não é um professor, é um ser humano verdadeira- 
mente exemplar!”. Tive de escrever Mindstorms e desenvolver o Logo para 
descobrir que muitos outros professores também o são; é a Escola que os 
disfarça como outra coisa. 
O Logo proporcionou a muitos milhares de professores de ensino funda- 
mental a primeira oportunidade para apropriar-se do computador de manei- 
ras que ampliaram seus estilos pessoais de ensinar. Isso foi fácil para eles, 
pois estavam frustrados por más condições: em geral, tinham que trabalhar 
com equipamentos de informática muito limitados e, não-raro, tinham que 
dividi-los entre várias salas de aula; as oportunidades para desenvolver seu 
próprio conhecimento de informática eram limitadas, e a "resposta imunológica”da Escola com frequencia arrebatava os sucessos que eles, de fato conquista- 
vam. Até mesmo o Logo disponivel na época parece-me lamentavelmente primi- 
tivo quando o analiso depois de mais uma década de crescimento da língua- 
gem. As versões mais recentes do Logo são muito mais intuitivas para o usuá- 
rio, flexiveis e fáceis de usar. 
Embora apenas uma minoria daqueles professores pioneiros tenha obti- 
do sucesso utilizando o Logo para construir um ambiente de sala de aula 
satisfatório, o que eles tentaram fazer é uma rica fonte para entender a força 
latente para mudança na profissão. Isso mudou completamente meu pensa- 
mento. Um livro é um veículo para os leitores entenderem como o autor pen- 
a s . M i n d s t o r m s f u n c i o n o u p a r a m i m t a m b é m n a d i r e ç ã o o p o s t a . 
Não escrevi aquele livro pensando nos professores; no máximo imaginei 
ser lido por um pequeno grupo de vanguarda. Quando o número provável de 
professores leitores elevou se para seis dígitos, fiquei satisfeito, mas pertuba- 
1 Em português, margarida (flor). 
2 Escritor do século XIX, autor do clássico Alice no pais das maravilhas. 
66 Seymour Papert
do. Do que eles gostaram no meu livro? Era embaraçoso haver algo no meu 
próprio trabalho que eu não entendia. 
Felizmente, o livro também me ajudou a encontrar respostas para as per- 
guntas que suscitou. Ele foi um passaporte para o mundo dos professores. 
Recebi centenas de cartas contando-me anseios (yearnings) e esperanças, pro- 
jetos e ressentimentos. Fui inundado com convites para palestras e seminários, 
visitar escolas e participar de projetos, tudo isso serviu como oportunidades 
únicas para entender o que os professores contavam-me sobre suas experiên. 
cias com computadores, Em consequencia, minha identificação do professor 
com a Escola lentamente se dissolveu, na percepsào de um relacionamento 
muito mais complexo. A mudança resultou em uma sensação liberadora de 
que o equilibrio de forças era mais favorável à mudança do que supusera, mas 
ao mesmo tempo produziu um novo desafio para entender a interação, no 
mundo dos professores, de correntes que favorecem a mudança e que resistem 
a ela. Identificar maneiras de apoiar a evolução dessas correntes pode estar 
entre as mais importantes contribuições que se pode fazer para promover uma 
mudança educacional. 
Como pano de fundo para entender tais correntes, começarei examinan- 
do uma história relatada pelo autor de livros na área da educação Fred 
Hechinger, em uma saudosa coluna do Newt York Times. Todo professor certa- 
mente encontrará nessa his tór ia o eco de a lguma exper iência pessoal . 
O diretor de uma escola em Nova York apareceu sem avisar para assistir 
a uma aula de Química. A lição, brilhante, encantou o diretor. No final ele 
cumprimentou o professor pela soberba amostra de ensino e pediu para ver 
seu plano de aula. O professor respondeu que sabia tão bem o conteúdo e 
interessava-se tanto pelo tema que não sentiu necessidade de um plano de 
aula. O diretor objetivamente não tinha nenhuma queixa quanto à lição em si, 
mas o professor foi culpado por não seguir as normas, o que resultou em uma 
carta de repreensão anexada à sua ficha. 
Há mais de uma forma de ler esse pungente relato de um sistema malo- 
grando seus próprios propósitos na tentativa de impô-los. Pode-se vê-lo como 
um relato satírico-cômico de um desentendimento entre um supervisor zeloso 
demais e um trabalhador ingênuo, o primeiro com uma mentalidade ridícula- 
mente literal em relação a uma transgressão secundária do regulamento, e o 
último recusando-se a entender a importância das aparências, que poderiam 
ter sido salvas pelo preparo de um plano de aula simbólico. Nesse caso, a 
história é apenas marginal sobre a Escola; ela é semelhante a outras da buro- 
cracia, em outras situações da vida. 
Fazendo outra leitura, contudo, a história toca no cerne do que realmen- 
te é a Escola. Ela revela tensões entre uma concepção de Escola como um lugar 
emocionalmente aconchegante e estimulante para as crianças - e, por outro 
lado, a assustadora ideia de Escola como uma máquina de desempenhar pro- 
cedimentos estipulados. Ela evoca anseios (yearnings) por um ensino que aju- 
A Máquina das Crianças 67
de a nos apaixonarmos pelo conhecimento, e também frustrações por sermos 
obrigados a aprender listas de fatos, gostemos ou não, que os especialistas 
decidiram que devem ser conhecidos por todos. 
A opção entre essas duas interpretações da história narrada por Hechinger 
reflete a questão central da educação: O problema da Escola é de natureza 
superficial, podendo ser sanado com uma dose de boa vontade e bom senso, 
ou é uma profunda falha nas suposições fundamentais sobre as quais o sistema 
inteiro se baseia? O mal da Escola é um resfriado ou um câncer? 
O significado dessas duas concepções torna-se mais evidente comparando- 
se a história de Hechinger com o caso de Brian e Henry, meu exemplo principal 
do capítulo anterior. A escola desenvolveu um sistema de controle hierárquico 
que estabelece limites estreitos nos quais se permite que os atores — tanto 
gestores quanto professores — exerçam algum grau de iniciativa pessoal. Ne- 
nhum dos lados jamais aceita plenamente tais limites. A história de Hechinger 
mostra uma fronteira em conflito, com constantes escaramuças pelo poder, 
onde os participantes estão sempre testando suas forças sem realmente desafiar 
o sistema em si. As sementes de um desafio mais agudo estavam presentes na
decisão de permitir que Brian e Henry gastassem tempo construindo coreogra- 
fias com o computador. O professor de Química poderia, se quisesse, ter escri- 
to um plano de aula simbólico, como muitos de seus colegas rotineiramente o
fazem. Thelma não dispunha dessa opção. Não poderia haver um plano de
lição pela simples razão de que não havia uma "lição"
Assim, a decisão inicial de como utilizar os computadores colocou a pro- 
fessora em rota de colisão com o sistema de controle da Escola: ao decidir não 
mais controlar os alunos, ela removeu a forma vigente de a Escola controlá-la. 
A questão deixou de ser sobre como o poder é distribuído dentro da hierarquia 
educacional, para se questionar se a hierarquia é um modo adequado de orga- 
nização da educação. Há atividades em que a organização hierárquica é obri- 
gatória: o exército é um exemplo óbvio. Em outro extremo estão atividades em 
que qualquer pessoa sensata consideraria a organização hierárquica como 
absurda - por exemplo, em poesia ou pintura. Em outras áreas, há espaço para 
a escolha de um equilibrio entre a hierarquia e seu oposto - para o qual acom- 
panho Warren MeCulloch ao usar o nome heterarquia, que sugere um sistema 
no qual cada elemento é igualmente governado por todos os outros. No espec- 
tro entre a organização militar e a poesia, onde deveríamos colocar a organi- 
zação de uma escola? 
Há um perigo ao se pensar sobre isso como um "problema de gestão" que 
a escola poderia resolver (e muitas vezes o faz) discutindo com um especialis- 
ta como dirigir organizações. Todavia injetar um novo plano de gestão em 
uma escola de outro modo não-modificada é como injetar computadores ou 
um novo currículo, deixando-se todo o resto inalterado. O corpo estranho será, 
rejeitado. A organização hierárquica da Escola está intimamente amarrada à 
sua concepção da educação e, em particular, ao seu comprometimento com 
68 Seymour Papert
modos hierárquicos de pensar sobre o próprio conhecimento. O lugar que se 
considera ser o lugar adequado da Escola na escala hierarquia-heterarquia de 
formas de organização depende da posição da teoria de conhecimento da pes- 
s o a n a e s c a l a h i e r a r q u i a - h e t e r a r q u i a d e e p i s t e m o l o g i a s . 
Uma teoria hierárquica caricata do conhecimento e da escola poderia ser 
mais ou menos assim: o conhecimento é formado por fragmentos atômicos 
chamados de fatos, conceitos e habilidades. Um bom cidadão precisa possuir40 mi l dessas par t ículas . As cr ianças conseguem adquir i r 20 por d ia . 
Um pequeno cálculo demonstra que 180 dias durante 12 anos serão suficien- 
tes para colocar 43.200 partículas em suas cabeças - porém a operação terá de 
ser bem-organizada, pois, embora algum ganho do tempo possa ser absorvido, 
tão pouco quanto 10% tornaria impossível atingir a meta. Segue-se que os 
técnicos encarregados da tarefa (daqui em diante denominados professores) 
precisam seguir um cuidadoso plano (daqui em diante denominado currículo) 
coordenado ao longo dos 12 anos completos. Deve-se, portanto, exigir que 
eles escrevam diariamente que partículas foram fornecidas para os bancos de 
memória dos estudantes. O problema do controle de qualidade é facilitado 
pela descoberta da existência de relações hierárquicas entre as partículas: fa- 
tos enquadram-se em conceitos, conceitos podem ser classificados como maté- 
rias, e matérias dividem-se em tópicos nivelados por séries. Uma hierarquia de 
pessoas pode ser construída para adaptar-se à hierarquia do conhecimento. Os 
professores podem ser supervisionados por coordenadores de currículo e che- 
fes de departamento, os quais, por sua vez, por diretores, e estes, pelos supe- 
rintendentes.5 
Tal teoria poderia recorrer à analogia de construir uma catedral gótica a 
partir de 40 mil blocos de pedra. Claramente, uma rigorosa organização faz-se 
necessária para realizar tal tarefa. Não se pode ter operários decidindo como 
colocar um bloco aqui ou ali apenas por estarem inspirados a fazê-lo. Educar 
uma criança é um processo semelhante. Todos têm que seguir o plano. 
Evidentemente ninguém concordaria com tais teorias em um sentido li- 
teral. No entanto, creio honestamente que elas captam a essência das teorias 
respeitáveis no meio acadêmico das quais a organização hierárquica da Escola 
deriva sua legitimidade. Se o modelo de aprendizagem "Catedral Gótica" fos- 
se em princípio verdadeiro, Thelma teria buscado um desastre ao permitir que 
as crianças em sua classe decidissem, por assim dizer, onde colocar os tijolos; e 
a administração de sua escola teria sido severamente punida por permitir-lhe 
fazê-lo. Ela, porém, não estava sendo negligente, preguiçosa ou irresponsável. 
Os professores que dão igual autonomia aos seus alunos estão, desse modo, 
5 Nos Estados Unidos, o cargo de superintendente corresponde ao de Secretário de 
 Educação no Brasil. 
A Máquina das Crianças 69
declarando sua crença em uma teoria de conhecimento radicalmente diferen- 
te, que requer muito mais esforço deles e dos seus alunos. 
Meu uso de termos “teoria de conhecimento” em vez de “métodos de ensi- 
no” é deliberado . Os educadores progressistas não vêem a si mesmos como 
oferecendo uma via de alternativa para que os alunos aprendam a mesma lista de 
itens de deconhecimento. Eles valorizam um tipo diferente de conhecimento. 
Por exemplo, ocasionalmente uso um elevador que possui um código de 
Segurança. Tem-se digitar um número com quatro dígitos para que come- 
ce a funcionar. Já que o código é mudado com frequência e só utilizo o eleva- 
uma vez ou outra, em geral lembro de cada novo código de uma forma 
vaga. “Há 17 e um 34", digo a mim mesmo, "talvez seja 1734 ou 3417, ou 
talvez os números sejam 71 e 43. Faço algumas tentativas, e o elevador movi- 
menta-se. Acredito que é um procedimento válido, pois funciona. Na escola, 
contudo, eu falharia no teste de habilidades em elevador. Esse é um exemplo 
trivial de um fenômeno importante a que chamo conhecimento-em-uso. Quando 
o conhecimento é distribuído em minúsculos pedaços, não se pode fazer mais
do que memorizá-lo na aula e escrevê-lo em um teste. Quando ele está inte- 
grado em um contexto de uso, pode-se ativá-lo e corrigir falhas menores, como
inverter os dígitos do código do elevador.
Não estou sugerindo que o conhecimento em uso seja a essência da 
epistemologia progressista ou até mesmo que todos os professores progressis- 
tas aceitariam esse principio. Estou utilizando-o aqui apenas como um exem- 
plo de um "tipo diferente de conhecimento", pois variam muito as crenças de 
professores que rejeitam a filosofia de educação da Escola. Na realidade, todo 
professor deveria ser encorajado a ir tão longe quanto possível no sentido de 
desenvolver um estilo pessoal de ensinar. Contudo, uma metáfora menos es- 
pecífica que empreguei no livro Mindstorms parece captar bem um elemento 
muito compartilhado, que serve de estrutura para examinarmos mais de perto 
as aspirações e os problemas dos professores progressistas. 
A base da metáfora foi uma observação sobre a ideia de que as crianças 
possuem "aptidões" para as várias disciplinas escolares. Está bem entranhado 
em nossa cultura que apenas uma minoria tem cabeça para números. De modo 
correspondente, a maioria das pessoas pensa sobre si mesmas como não-incli- 
nadas para a Matemática. No entanto, o que dizer de crianças que têm dificul- 
dade para aprender francês nas escolas americanas? 
Seja qual for a explicação para tal dificuldade, certamente não se pode 
atribuí-la a uma falta de aptidão para o francês - com certeza muitas dessas 
crianças teriam aprendido francês perfeitamente bem se tivessem nascido e sido 
criadas na França. Talvez lhes falte uma aptidão para aprender francês, confor- 
me ele é ensinado nas escolas americanas. Isso, porém, é uma questão muito 
diferente. Do mesmo modo, não temos melhores motivos para supor que crian- 
ças que têm problemas com a Matemática careçam de uma inteligência mate- 
mática, do que supor que os outros carecem de uma "inteligência em francês” 
70 Seymour Papert
Resta-nos a pergunta: O que aconteceria se as crianças que não conse- 
guem entender Matemática, fossem criadas na “Matematicalándia”, um lugar 
que fosse para a Matemática o que a França é para o francês? Muitos professo- 
res aceitaram o desafio de construir algo como um pais da Matemática em 
suas salas de aula e adotaram o Logo e sua tartaruga como material de cons- 
tução. A sala de aula de Thelma demonstra, de uma forma geral, como mui- 
tos começaram a fazer isso. Seguindo essa metáfora, podemos pensar em Brian 
e Henry como estando na Matematicalândia; o que eles estavam fazendo com o 
computador era mais semelhante a aprender francês na França, enquanto o 
que ocorria na aula regular de Matemática era mais como aprendê-la como 
uma língua estrangeira. Em tais contextos informatizados, do mesmo modo 
como aprender francês na França, o aprendiz pode iniciar conhecendo algo de 
certo modo tateando, antes que se torne algo firme. Na aula de Matemática, 
onde o conhecimento não é utilizado, mas simplesmente empilhado como ti- 
jolos formando um edifício morto, não há qualquer espaço para experimenta- 
çoes significativas. 
Muitos professores progressistas poderiam ter dúvidas sobre a viabilida- 
de de se criar uma Matematicalândia e hesitar em relação às inconveniências 
que isso poderia ocasionar caso fosse viável; porém, deixando de lado conside- 
raçoes práticas, parece óbvio para eles que aprender Francês na França e Ma- 
temática na Matematilândia é, em princípio, um estilo melhor do que o da sala 
de aula tradicional. 
A consequencia imediata para a prática do ensino é aquela que já comen- 
tei antes. A aprendizagem de um assunto morto requer um ato técnico de 
estruturar o conhecimento em bocados "ensináveis", possibilitando ao profes- 
sor alimentar seus alunos com um pedaço de cada vez, conduzindo direta- 
mente à tradicional parafernália de currículo, hierarquia e controle. Em com- 
traste, Brian e Henry foram capazes de encontrar o próprio caminho para 
estruturar seu conhecimento, recebendo apenas orientação ocasional. Aprender- 
em-uso libera os alunos para aprender de uma forma pessoal, e isso, por sua 
vez, libera os professores para oferecer aos seus estudantes algo mais pessoal 
e mais gra t i f icante para ambos os lados . Essa perspect iva , não surge 
sem problemas, e alguns professores poderão vê-la maiscomo uma ameaça do 
que como uma liberação. 
O sentimento gratificante de Thelma de que exercera um ato criativn (e 
não intencionalmente subversivo) ao estabelecer seu plano para informática 
ocasionou riscos tanto psicológicos quanto burocráticos. A definição de papéis 
e procedimentos da Escola restringe o professor, mas também oferece prote- 
ção, como veremos na história a seguir, cujas principais características escutei 
de muitos que adotaram a mesma atitude de Thelma. 
O que segue é uma reconstrução do que tomei conhecimento por inter- 
médio de Joe, um professor de quinta série: 
A Máquina das Crianças 71
Desde o momento em que os computadores surgiram, comecei a temer 
o dia em que meus alunos saberiam mais sobre programação do que eu.
Evidentemente, no início eu tinha uma grande vantagem, pois acabara
de voltar de um curso intensivo de férias sobre Logo, e os alunos esta- 
vam ainda começando. No decorrer do ano, porém, eles estavam alcan- 
çando-me pois dedicavam mais tempo à atividade do que eu podia. Na
verdade, eles não me alcançaram no primeiro ano, mas eu sabia que a
cada ano as crianças sabcriam mais devido a experiências nas séries
anteriores. Além disso, as crianças estão mais sintonizadas com compu- 
tadores que nós adultos.
Nas primeiras ocasiões em que percebi que os alunos tinham proble- 
mas que eu não conseguia nem mesmo entender, quanto mais resolver, 
resisti enfrentar o fato de não poder manter uma atitude de saber mais 
do que sabia. Eu estava com medo que isso destruísse minha autoridade 
como professor. A situação piorou, e reconheci que não entendera o 
problema, sugerindo que eles procurassem discutir com colegas da tur- 
ma que pudessem ajudar. Foi o que eles fizeram. E ocorreu que juntas as 
crianças conseguiram encontrar uma solução. O mais surpreendente é 
que aquilo que temia terminou sendo uma liberação. Eu não tinha mais 
medo de ficar exposto. Eu estava exposto e não tinha mais que fingir. E a 
coisa maravilhosa foi ter percebido que minha insegurança envolvia mais 
do que computadores. Senti que não precisava mais fingir saber rudo 
em outras matérias. Que alívio! Isso mudou meu relacionamento com as 
crianças e comigo mesmo. Minha turma tornou-se muito mals uma co- 
munidade co laborat iva , onde es távamos todos aprendendo jun tos . 
Uma reflexão sobre essa história mostrará que não há respostas simples 
para algumas questões quantitativas óbvias que alguns leitores devem, nesse 
ínterim, ter formulado: Quantos professores encaixam-se na otimista descri- 
ção de Thelma? Quão longe eles levariam tais ideias? Quanto esforço e sacrifí- 
cio fariam? Minha descrição confere à Thelma a pureza de uma rara idealista 
dedicada. Muitos outros tém as dúvidas, os medos e a ambivalência que Joe 
compartilha com a maioria dos professores que foram levados a experimentar 
o computador como um instrumento de mudança. Joe embarcou na experiên- 
cia com temor. Não previu que problemas poderia encontrar e, quando eles
surgiram, hesitou. Tudo terminou bem no seu caso, porém muitos outros, em
situações semelhantes, empacaram e retrocederam. Muitos juntaram todos os
computadores em um laboratório de informática. Alguns os seguiram, desis- 
tindo da sala de aula para tornarem-se professores de informática. Muitos se
sentiram seduzidos e abandonados pelo discurso de uma revolução da infor- 
mática, à medida que o computador tornou-se um objeto rotineiro. É muito
difícil identificar exatamente quantos persistiram e quantos desistiram e – de
qualquer modo - não valeria a pena saber, já que vemos, a partir do relato de
Joe, que cada caso depende de um delicado equilibrio que pode pender para
um lado ou para o outro, O que certamente não desejam de modo algum os
interessados na mudança é minimizar os fatores adversos: apenas os enten-
72 Seymour Papert
dendo, podemos construir artesanalmente estratégias sensatas para o futuro. 
Do mesmo modo, tais casos fornecem pouca base para animar os que ainda 
prevêem que os computadores não têm um futuro significativo na educação. 
Apesar de suas dúvidas, Joe foi mais longe do que os outros que mencio- 
namos até agora. O professor de Química relatado por Hechinger tentou ex- 
pressar seu próprio entusiasmo intelectual na sua atividade de ensino; Thelma 
tentou criar um ambiente no qual as crianças desenvolveriam seus próprios 
entusiasmos; Joe deu um passo além, formulando explicitamente a ideia (o 
que os outros podem ter feito tacitamente) de permitir-se o prazer de ser co- 
aprendiz com seus alunos. A progressão é psicologicamente compreensível. 
Querer aprender é um desejo humano básico, e estar com crianças que o estão 
fazendo enquanto se é privado disso é como observar pessoas jantando em um 
bom restaurante enquanto fazemos dieta. Por que todos os professores não 
fazem do mesmo modo? 
Muitos aspectos da Escola impedem os professores de funcionarem em 
uma sala de aula como co-aprendizes. Questões rotineiras, como horário, são 
frequentemente mencionadas quando se pergunta a professores progressistas. 
Eles dizem simplesmente que o tempo de aula não é suficiente. No entanto, 
penso que Joe demonstra a falácia dessa explicação. De fato, não haveria tem- 
po suficiente para que ele continuasse com tudo o mais e também se engajasse 
em sua própria aprendizagem. Apesar disso, ele teve a coragem de implementar 
um plano com maior chance de funcionar: mudou a vida de sua turma de tal 
forma que os alunos podiam tanto dar como receber, e sua aprendizagem não 
competia com a deles, mas sím contribuía. Para fazer isso, ele teve de enfren- 
tar algo que requereu coragem para admitir: a maior parte do trabalho que 
exigia de seus alunos era demasiado maçante para estimulá-los a participar! 
O computador mudou a situação porque ele é em si um objeto interessante 
para explorar-se e porque acrescentou dimensões de interesse a outras áreas 
de trabalho. 
O que na realidade vi Joe fazendo com sua turma envolveu uma gama 
muito mais ampla de aprendizagem do que os aspectos técnicos da programa- 
ção de computador que foram o objeto dos seus medos. Alguns dos seus alu- 
nos estavam fazendo trabalhos semelhantes aos de Brian e Henry, porém a 
maioria estava engajada em projetos de um tipo muito diferente, nos quais a 
Matemática estava integrada em disciplinas que lidam com dados concretos, 
como História ou Ciências. Um aspecto desses projetos foi algo que vi pela 
primeira vez no trabalho de uma professora de quinta série na Hennigan School, 
em Boston. 
Antes que os computadores entrassem em sua vida, Joanne desenvolveu 
um projeto sobre biologia humana como parte da atividade de sala de aula. O 
tópico de estudo era o esqueleto, utilizado para que os alunos escolhessem um 
osso e fizessem um relatório sobre ele. Quando os computadores surgiram, ela 
simplesmente fez o que sempre fizera, exceto que agora os estudantes domi- 
A Máquina das Crianças 73
navam Logo suficientemente bem para fazer o relatório no computador, em 
vez de usarem papel e lápis. Em certo sentido, nada mudou além da troca de 
meio. A substituição, porém, teve consequências. Uma delas tinha relação com 
os medos expressos por Joe. 
O computador é um dispositivo técnico aberto que estimula pelo menos 
alguns estudantes a avançar seu conhecimento até onde puderem, dando real- 
ce ao projeto por meio de uma ilimitada variedade de "efeitos". Assim, apren- 
der mais sobre técnicas de computação torna-se parte do projeto de uma for- 
ma que não ocorreria com o papel e o lápis. Isso poderia dar a impressão de 
desvio do "objetivo principal", que era estudar Biologia. Não o fez: pensar 
sobre representações na tela produziu uma familiaridade mais rica com o es- 
queleto do que era comum na época pré-computador. O esqueleto abaixo, um 
trabalho colaborativo de quatro alunos, mostra várias características, típicas 
do que ocorre em um contexto de uso do computador. 
Esta figura foi programada por alunos de quarta série, utilizando o Logo Writer. 
Em primeirolugar os estudantes fransformaram a tarefa de representar 
um osso na de representar o esqueleto inteiro, possibilitada pelo fato de o 
computador permitir condições de trabalho muito melhores: as partes feitas 
74 Seymour Papert
pelos que colaboraram podiam ser mais facilmente agregadas. Um exame mais 
detalhado da figura mostrará que os módulos podiam ser utilizados em vários 
lugares e que, mais importante, as mudanças seriam feitas facilmente sem o 
sujo processo de apagar ou o tedioso processo de começar de novo. Em segun- 
do lugar, essas mesmas condições de trabalho facilitaram uma dupla intenção, 
claramente visivel na figura: ela foi feita com um senso de estética visual mas 
também de precisão cientifica. Isso levanta questões desafiadoras referentes à 
natureza do conhecimento e aos criterios para julgá-lo. Eu chamaria de res- 
ponsabilidade epistemológica do professor o ato de discutir com alunos 
(o que, de fato, tive o privilégio de fazer) o que foi sacrificado em cada
intenção em beneficio da outra. Não haverá uma resposta absoluta, mas pode
haver discursões articuladas e reflexivas.
A questão da ciência e da estética é apenas uma dentre muitas que fazem 
um tipo diferente de exigência ao professor – e oferecem um tipo mais rico de 
oportunidade - do que é habitual em uma aula de Ciências. Quer isso seja 
encarado como uma exigência quer como uma oportunidade, certamente re- 
quer conhecimento e sofisticação para os quais não há lugar na lista de disci- 
plinas de um típico curso de Pedagogia. Onde podem os professores encontrar 
ajuda para desenvolverem-se em tais direções? Que tipo de desenvolvimento 
os ajudaria? 
Para definir tal problema, que pode ser o mais importante de todos os 
relativos à adoção de computadores na Educação, seria proveitoso reexaminar 
alguns dos obstáculos enfrentados por professores que tentam enconaar uma 
solução. O mais chocante deles simplesmente impede o surgimento da situa- 
ção interessante. Os projetistas do esqueleto tiveram acesso aos computadores 
por quase uma hora diária, e sua professora tinha a liberdade de usar esse 
tempo como desejasse. Assim, eles e a professora podiam aprofundar-se suficien- 
temente no projeto para que questões interessantes surgissem e fossem trata- 
das de forma agradável. 
As possibilidades estão contra a ocorrência de qualquer coisa como essa – 
embora seja um tributo à surpreendente resiliência de alunos e professores 
que tal fato às vezes ocorra - quando os alunos dispõem semanalmente de 40 
minutos de laboratório de informática e têm que aprender sobre processamento 
de textos, bases de dados e outras coisas mais, além de “fazer um pouco de 
Logo". Um segundo obstáculo é o conceito de treinamento de professores. 
Embora o nome não seja o mais importante em relação a esse conceito, é 
curioso que a frase "treinamento de professores" flui com facilidade da língua 
de pessoas que ficariam horrorizadas pela sugestão de que professores são 
treinados para "treinar" crianças. A frase faz-me pensar em em treinamento esfíncter- 
riano, treinamento básico e adestramento de tigres. 
Sei que a palavra treinamento é, com frequência, empregada para tipos 
importantes de aprendizagem. Por exemplo, afirmei no Capítulo 1 que fui “ trei- 
nado” como matemático. Todavia, justificar – “treinamento de professores” des- 
A Máquina das Crianças 75
sa forma parece - me – e para um número considerável de professores que co- 
nheço - justificar o uso do pronome masculino "ele", pressupondo que inclui a 
mulher. Em bases linguísticas puramente abstratas, os dois usos estão "corre- 
tos". Em ambos os casos, porém, o que está envolvido não é apenas uma ques- 
tão de sintaxe, mas de ideologia. Por que a assimetria? Por que falamos sobre 
professores e crianças de modo tão diferente? A resposta leva-nos de volta ao 
meu tema principal: a Escola não possui na sua narureza institucional a com- 
cepção de que os professores exercem em papel criativo; ela os vê como como técni- 
cos fazendo um trabalho técnico e por isso a palavra treinamento é perfeita- 
mente adequada. 
Quer se aceite ou não essa análise geral, é difícil não reconhecer sua 
verdade no tipo de preparo que a Escola habitualmente considera adequado 
para professores de informática. Em muitos sistemas escolares, o que é ofere- 
cido como preparo aos professores que usarão os computadores é com muita 
propriedade denominado treinamento, pois consiste em um pequeno número 
de sessões de duas horas erroneamente chamadas de workshops ou seminá- 
rios, cuja meta é transmitir habilidades técnicas. Para realçar tal limitação, 
vale a pena examinar dois exemplos de suprimento de melhores condições 
para que os professores aprendam e possam crescer. 
Há cerca de Oito anos, conduzi um workshop de verão sobre o Logo para 
um pequeno grupo de professores. Eu estava um pouco nervoso porque sus- 
peitei que uma das participante estava lá não porque desejasse aprender o 
Logo, mas por ter sido mandada por um diretor que queria implantar um pro- 
jeto de informática em sua escola, em uma época quando isso ainda era algo 
excepcional. Eu sabia que o ressentimento reprimido de um único participante 
por perder parte de suas férias de veráo poderia envenenar o espírito do gru- 
po, mesmo que os demais tivessem vindo movidos um desejo pessoal de 
aprender. 
Uma das minhas estratégias preferidas de trabalho com esse tipo de gru- 
po é propor uma forma de projeto suficientemente aberta para permitir abor- 
dagens muito diferentes, mas igualmentes restritas para possibilitar que dife- 
rentes abordagens sejam comparadas. Nesse workshop, propus que cada um 
escrevesse um programa para representar algum aspecto da noção de “aldeia”. 
Programar o computador para desenhar uma aldeia na tela é um bom tema 
para iniciantes exercitarem técnicas de programação. Pode-se começar escre- 
vendo um procedimento para desenhar uma única habitação; uma desse- 
nhada, ela ser empregada como "subprocedimento" de um “superprocedi- 
mento” para obter um grupo de habitações idênticas; e, tendo-se conseguido 
um produto, pode-se prosseguir introduzindo variações e todo tipo de enfeites 
e delalhes, inclusive animação, texto e hipertexto. Do ponto de vista do ensi- 
no, isso tem a vantagem de os alunos poderem terminar em níveis diferentes, 
76 Seymour Papert
de acordo com suas habilidades técnicas e gostos pessoais e, ainda assim, to- 
dos terão algo para mostrar. 
À medida que os dias foram passando, meus temores pareceram infunda- 
dos. Todos estavam envolvidos na atividade. Fiquei especialmente aliviado ao 
notar que a pessoa do grupo que pensei ser a mais difícil parecia pouco capaz 
de conter seu entusiasmo. Em todos os momentos de discussão, ela tinha ideias 
aos montes sobre como utilizar o que estava aprendendo; mesmo quando estava 
trabalhando no computador, de tempos em tempos ela exclamava que mal 
podia esperar para introduzir o que estava aprendendo em sua sala de aula: 
“Minhas crianças vão adorar isso!". Por todas as regras habituais de avaliação 
o workshop estava correndo bem. Meu objetivo educacional para meus alunos- 
professores tinha sido definido como aprender Logo e princípios de programa- 
ção. A turma estava progredindo razoavelmente rápido nessa direção - e tam- 
bém demonstrando entusiasmo.
Apesar disso, eu tinha uma incômoda sensação de que algo estava erra- 
do. Não consegui detectar o que era até que uma pequena comoção irrompeu 
no workshop. Uma das outras participantes aparentemente tinha os mesmos 
pressentimentos que eu, porém ela diagnosticou mais rápido o problema. Per- 
dendo a paciência com as expressões de entusiasmo, ela resmungou: 'Esqueça 
as malditas crianças ". A reação dos outros na sala foi elétrica: alguns ficaram 
chocados e protestaram; uma pessoa respondeu imediatamente com um co- 
mentário de apoio. A princípio fiquei surpreso, mas depois percebi que aquela 
explosão captou o que estivera incomodando-me. O elemento dissonante ti- 
nha sido osentimento, que eu ainda não conseguia articular, de que os partici- 
pantes consideravam-se como professores-em-treinamento e não como apren- 
dizes. A percepção de serem professores estava impedindo-os de entregarem- 
se plenamente e experimentar o que estavam fazendo como algo intelectual- 
mente empolgante e prazeroso em si, ou seja, pelo que aquela atividade pode- 
ria proporcionar-lhes como pessoas. O principal obstáculo no caminho para os 
professores assumirem o papel de aprendizes é sua inibição com relação à 
aprendizagem. 
Após o incidente, experimentei algo semelhante ao sentimento de libera- 
ção de Joe. Eu estava livre do incômodo temor com relação ao que estava 
errado e da necessidade de buscar segurança nas exclamações de encanto dos 
professores. Minha liberdade permitiu que eu examinasse mais de perto o que 
cada um estava fazendo com sua programação, e logo percebi uma notável 
diferença de estilo. Alguns estavam construindo as casas unindo formas geo- 
métricas básicas; no caso mais simples, seguindo o exemplo que usei em 
Mindstorms: uma "casa" pode ser feita colocando-se um triângulo em cima de 
um quadrado. 
A Máquina das Crianças 77
Uma das participantes parecia desconfortável com essas formas. Talvez 
ela tivesse associações desagradáveis com a matemática da Escola, ou talvez 
sua personalidade a inclinasse para coisas menos definidas. Independente da 
causa, o desconforto levou-a a usar a ideia de um colega, que não tinha dado 
certo, quando tentou fazer um padrão geométrico bem definido para repre- 
sentar um jardim de flores. O resultado foi uma linha ondulada que podia ter 
sido um canteiro malfeito, mas era exatamente "a coisa" para representar fu- 
maça subindo da chaminé da casa. Em breve, todas as casas tinham fumaças 
de padrões variados. Uma coisa levou à outra. O efeito esfumaçado poderia 
ser adaptado para desenhar nuvens flutuando sobre a aldeia e, com um pouco 
mais de adaptação, para desenhar árvores e outros objetos menos quadrados 
do que casas. 
Às vezes, ações muito pequenas de um professor podem semear progres- 
so em uma turma. Uma ação que tornou importante nesse workshop foi dar 
nome àquele emergente estilo de programação. Eu o apelidei de "programa- 
ção esfumaçada" e o contrastei com "programação bordas rígidas". O efeito 
imediato foi encorajar; a autora original da fumaça. Até esse ponto, era um ato 
individual envolvendo o professor (eu) e a aluna, Gradualmente, transfor- 
mou-se em algo socializado. Nomear estilos tornou-se um hábito e estimulou 
orgulho dos participantes, pois nomes eram algo para discutir e para possuir. 
Um vocabulário foi desenvolvido para a discussão; também um senso de valo- 
res, respeitando se o estilo do colega sem deixar de valorizar o próprio. 
Em suma, tinha sido iniciado um processo de desenvolvimento do que 
chamo de microcultura. Falar sobre estilos é uma ótima semente para o desen- 
volvímento de uma cultura de aprendizagem; isso contribui para a riqueza da 
aprendizagem imediata, mas também permite que os benefícios fluam para 
outras áreas, já que os estilos podem ser reconhecidos em uma variedade de 
diferentes conteúdos e atividades. Toda aprendizagem, beneficia-se da dis- 
cussão – contanto que a fala seja boa -,e comparar estilos é uma das melhores 
formas de iniciar uma conversa, contanto que as diferenças sejam claras e os 
participantes respeitem autenticamente os estilos dos outros enquanto defen- 
dem o seu próprio. No entanto, para a conversa seja boa, deve ter raízes 
nos interesses reais dos participantes a ser apoiada pelo conhecimento e expe- 
riencia. 
A questão do contraste do estilo esfumaçado e o de margens rígidas 
d e p r o g r a m a ç ã o e s t a v a , d e f a t o , e n r a i z a d a e m o u t r a s q u e s t õ e s , 
Não era apenas uma simples diferença de estilo, embora eu estivesse tentando 
promover uma cultura na qual qualquer diferença de fato fosse respeitada. 
Essa questão tem sido central em debates sobre epistemologias alternativas. O 
estilo bordas rígidas esta mais próximo dos estilos de pensar analíticos, 
generalizáveis, valorizados pela epistemologia tradicional "canônica", que tem 
sido combatido por feminista como sendo androcêntrico, por afro-cêntricos 
como sendo eurocêntricos, e de modo geral pela esquerda política como sendo 
78 Seymour Papert
representante do pensamento de grupos dominantes. De fato, uma pesquisa 
realizada por Sherry Turkle,6 socióloga do MIT, e por mim mostra que é mais 
provável ser esse o estilo preferido de brancos do sexo masculino. Isso é suficien- 
te para torná- lo muito re levante os professores . Há, porém, um outro 
aspecto que o torna ainda mais relevante. Passar do estilo bordas rígidas para o 
esfumaçado significou distanciamento de uma abordagem forma e abstrata, 
em direção a uma que pode ser caracterizada com todos os termos que Piaget 
(representando uma faixa muito mais ampla do pensamento psicológico) apli- 
ca ao pensamento das crianças pequenas: concreto, figurativo, animista e até 
mesmo egocêntrico. 7 
Assim, essa questão está ancorada na preocupação dos professores sobre 
o tipo de pensamento apropriado para as crianças - porém, de tal maneira
complexa, de modo a conferir grande importância ao segundo critério para
uma boa conversa sobre a aprendizagem: os conhecimentos necessários e a
experiência. Muito mais do que "treinamento", é necessário que os professores
desenvolvam a habilidade de beneficiarem-se da presença dos computadores
e de levarem esse benefício para seus alunos.
É pertincnte como um pequeno país da América Central foi capaz de 
lidar com esse problema de uma forma qualitativamente superior à maior par- 
te dos sistemas escolarcs norte-americanos. Acredito que isso se deve, em grande 
parte, ao fato de que o país classificou a si próprio como um "país em desen- 
volvimento" e tornou isso uma vantagem em comparação aos países que vêem 
a si mesmos como "desenvolvidos"— e, assim, supostamente não precisariam 
 desenvolver-se. Uma moral da história é que seria melhor para todos se ousássemos 
classificar-nos como "em desenvolvimento". 
6 Sherry Turkle é também psicóloga, Seu livro The second self: computers and the human 
spirit. Nova York, Simon & Schuster, 1984, explora as percepções das pessoas sobre os 
computadores e a mente humana. É oportuno lembrar que o computador da época não 
tinha interface tipo Windows e não havia a internet. Como Papert, ela utilizou a teoria 
de Piaget sobre o desenvolvimento da inteligencia pela criança. O segundo livro de 
Turkle sobre o tema foi Life on the screeen: identity in the age of the internet. Nova York. 
Simon & Schuster, 1995. Alguns textos recentes de Turkle estão disponíveis na internet, 
como por exemplo How computers change the way we think, 2004. http://chronicle.com/ 
prm/weekly/v50/i21/21b02601.htm. Além de colaboradora, Turkle foi casada com 
Seymour Papert. 
7 A vasta obra de Piaget está em boa parte disponível em português, embora algumas 
traduções do francês deixem muito a desejar, o que dificulta a leitura de um autor que. 
embora pareça o contrário, não é fácil. Para o leitor interessado, sugiro uma boa obra 
introdutória, como por exemplo John Flavell, A psicologia de desenvolvimento de Jean 
Piaget. São Paulo, Pioneira (apenas não aborda as obras de Piaget publicadas após 
1962) 
A Máquina das Crianças 79
Em 1986, Oscar Arias concorria à eleição para presidente da Costa Rica. A 
mesma mentalidade que o capacitou a vencer a eleição lançar o processo de paz 
na América Central e ganhar o Prémio Nobel refletiu-se em uma promessa de 
de campanha de tomar duas medidas para que as crianças costarriquenhas pensas- 
sem sobre si mesmas como pertencentes ao mundo moderno, e não como espec- 
dores de Terceiro Mundo, observando, desejosos, sem poder participar. Uma 
das medidas seria colocar computadores em todas as escolas de ensino funda- 
mental do pais. Adiante, terei várias ocasiões para referir-me a aspectos do quese transformou em um projeto com muitas características exemplares, Aqui, 
focalizo apenas como o projeto fez mais do que "treinar" seus professores.8 
Mesmo correndo algum r isco, decidiram convidar empresas a submete 
rem projetos inteiros, não apenas para fornecimento e manutenção dos compu- 
tadores, mas também especificando o conteúdo educacional, o preparo dos 
professores e o processo de avaliação. Pelo fato de envolver muitos milhares 
de computadores, foi algo comercialmente atraente, não sendo surpresa o fato 
de 14 empresas terem submetido propostas. A IBM procurou-me como consul- 
tor e seguiu meu conselho de apresentar um projeto que era excepcional por 
dedicar proporcionalmente grande parte do esforço ao preparo dos professo- 
res antes da implementação, como também oferecendo suporte depois. Em 
termos de custo, isso poderia parecer sem sentido em uma proposta competiti- 
va; porém, na direção do setor de educação da IBM para a América Latina,9 
havia uma mulher enérgica, inteligente e completamente antiburocrática. 
Alejandrina Fernández persuadiu seus superiores na empresa de que a IBM po- 
dia permitir-se perder dinheiro no primeiro ano desse projeto. No final, a aten- 
ção dada ao papel dos professores rendeu-lhe o contrato que levou a um modelo 
bem-sucedido, depois utilizado em meia dúzia de países latino-americanos. 
O governo da Costa Rica criou uma fundação para supervisionar o proje- 
to10 - um caso incomum de um governo com astúcia para resguardar um pro 
jeto de sua própria burocracia! Dentro da fundação, a discussão centralizou-se 
no papel dos professores. Um grupo afirmou que o modo de uso deveria ser 
tão fácil quanto possível para o professor. Muitos dos professores nos distritos 
rurais possuíam escassa experiência com tecnologia e nenhuma educação for- 
mal em qualquer coisa técnica. Esses profissionais, argumentou-se, seriam ex- 
cluídos de quaisquer modos de uso dos computadores que requeressem habi- 
8 Essa interessante experiência, em um país pequeno, sul-americano, ainda necessita 
de pesquisas longitudinais independentes que revelem, de modo objetivo, distanciado, 
as consequências em mais de 20 anos, sob vários aspectos, humanos e institucionais, 
da introdução das tecnologias da informática na educação. 
9 No Original, IBM's Latin American Education group. 
10 Fundación Omar Dengo (www.fod.ac.cr). 
80 Seymour Papert
lidades técnicas. Portanto, tal grupo defendeu o uso de software tipo CAI, e, se 
esse lado tivesse vencido, o contrato provavelmente teria ido para uma empre- 
sa que oferecesse o tipo de sistema fechado ("à prova de professores") no qual 
se liga o computador e o professor não tem nem mesmo que se dar ao trabalho 
de carregar um disquete - tudo é feito automaticamente sob controle central. 
O argumento do outro grupo, embora não exatamente nestas palavras, 
era tornar tão difícil quanto possível para os professores. No final, a Costa 
Rica, sob a liderança de Clotilde Fonseca, montou um programa exemplar no 
qual centenas de professores, a maioria dos quais, de fato, sem nenhum prepa- 
ro técnico, aprenderam a programar em Logo, resultando em um novo e consi- 
derável sentimento de confiança em si mesmos e em seu país, dominando algo 
considerado como desafiador, moderno, difícil e "não para pessoas como eles". 
Isso contrasta visivelmente com a posição adotada por muitos distritos escola- 
res norte-americanos de que Logo é "educacionalmente bom", mas "difícil demais para 
os professores!" 
O debate foi decidido por uma experiência na qual um grupo de profes- 
sores participou de um workshop intensivo de Logo de três semanas. Embora 
não haja qualquer forma objetiva de fazer tais medições, acredito ter sido 
evidente para todos os observadores que uma excepcional quantidade de apren- 
dizagem ocorreu naquelas semanas. Penso também que ficou quase tão evi- 
dente que isso ocorreu porque os professores participantes sentiram que havia 
muito mais do que uma melhoria técnica na aprendizagem de habilidades 
básicas. Eles estavam fazendo uma afirmação pessoal de sua vontade em rela- 
ção a apropriarem-se dessa coisa moderna; uma afirmação profissional contra 
uma concepção do ensino como uma profissão inferior; e uma afirmação na- 
cional contra a visão do seu país como subdesenvolvido. Muitos deles também 
estavam fazendo uma afirmação de gênero, pois uma grande percentagem 
dos professores do ensino fundamental era de mulheres, e os organizadores 
do projeto tiveram o bom senso de considerar esse aspecto no processo de 
seleção. 
O projeto da Costa Rica mostrou de um modo especialmente claro o compu- 
tador desempenhando um papel na formação identitária do professor e reme- 
te-nos à questão das representações negativas dos professores. Em uma com- 
versa com Oscar Arias, que me perguntou o que eu considerava ser o aspecto 
mais interessante do projeto, focalizei o que expus aqui sobre os professores. 
Perplexidade e satisfação estamparam-se na face quando ele ouviu sobre o 
esforço dedicado ao projeto pelos professores. Ele explicou que no passado 
ouvira apenas que os professores queriam mais dinheiro para trabalhar menos 
e contou-me quão satisfeito estava de que seu projeto de informática o educa- 
ção também. Deixei o palácio presidencial sentindo orgulho de ter participado 
de uma oportunidade para que professores se mostrassem pelo que são e se 
tornassem um pouco mais. 
A Máquina das Crianças 81
Além de permitir aos professores a oportunidade de tornar o projeto par- 
te de um senso de identidade em desenolvimento, o Programa de Informática 
na Educação apresenta carac te rs i s t i cas que o torna desenvolment i s ta 
para professores. É uma concessão, um meio termo entre a ideia de um labora- 
tório de informática (que foi imposto por restrições financeiras) e o computa- 
na sala de aula. Os alunos que vão para a sala separada com computadores, 
porém, o professor de sala de aula vai com eles. Além disso, o professor tam- 
bém aprende com eles, pois no laboratório há ainda um professor de informática 
que teve a oportunidade de desenvolver-se (em um grau que é raro até mês- 
mo nos países mais “desenvolvidos”) não apenas como especialista, mas tam- 
bém como o intérprete de uma cultura de aprendizagem. 
Outro caso de concessão à realidade a foi a meta de um modelo no qual 
meu grupo de pesquisa no MIT foi precursor, primeiro na Lamplighter School, 
em Dallas, e depois no Projeto Headlight na Hennigan School, em Boston. O 
modelo, que precisou de mais recursos do que a Costa Riea era capaz de 
arcar – embora bem menos em proporção à riqueza nacional dos dois países -, 
originalmente incorporou trés princípios essenciais. 
Primeiro, o número de computadores deveria ser suficiente para que cada 
turma dispendesse pelo menos um período diário com o professor regular na 
sala de inforrnática, cada aluno tendo pleno acesso a um computador. Segun- 
do, embora qualquer software educativo pudesse ser eventualmente utilizado, 
o principal uso dos computadores seria fundamentado na suposição de que
todos, alunos e professores, seriam capazes de programar o computador em
Logo desde o inicio. Terceiro, todos os professores teriam não apenas compe- 
tência, mas também liberdade de escolha suficiente para usar os computado- 
res de um modo que expressasse estilos pessoais de trabalho. Posteriormente,
um quarto principio surgiu a partir desses três quando a Gardner Academy,
uma escola fundamental em San José (Califórnia) com um grande número de
alunos latinos, desenvolveu sua própria implementação dos três princípios sob
o nome projeto Mindstorm. Esse quarto principio enfatiza a vantagem do de- 
desenvolvimento explicito, a partir de dentro da escola, de uma cultura própria
de aprendizagem e uma filosofia de educação. O nome do projeto sinalizou a
intenção de adotar minhas ideias; sua divergência daquilo que eu mesmo des- 
crevera foi, a meu ver, parte da confirmação de que ele fora bem-sucedido. Na
educação, a mais elevadamarca de sucesso é não ter imitadores, mas inspirar
outros a ir além.
O projeto foi criado pelo Technology Center, do Valc do Silício (Califórnia), 
permitindo que o mesmo evoluísse sem interferência, após ter selecionado 
uma escola e um gestor. A diretora foi Carol Sperry, que entrou na área de 
informática após muitos anos como professora de sala de aula. Acredito que 
sua experiência como professora ajudou a desenvolver o sentimento de com- 
petência dos professores, estimulando-os a criar uma cultura na escola e a vê- 
la como deles. Ela não tinha vindo de uma universidade ou de uma burocracia 
82 Seymour Papert
escolar para dizer aos professores o que fazer com os computadores. Pelo fato 
de ela própria ser uma professora, e não se sentir obrigada a prestar contas a 
ninguém fora da escola, pôde pedir aos demais que se juntassem a ela " inse- 
rindo-se no drive junto com o disquete do Logo". A intensidade do envolvimento 
pessoal criou uma cultura de professores excepcionalmente forte, e isso, por 
sua vez, proporcionou a vários deles a confiança intelectual necessária para 
d a r s u p o r t e a u m a c u l t u r a p o u c o c o m u m e n t r e a l u n o s . 
Um exemplo ilustrará o ponto. Ao discutir o caso de Brian e Henry, citei o 
comentário de um aluno sobre a colocação de "elegância" nas figuras feitas 
Fazer isso é Matemática? 
A Máquina das Crianças 83
com o computador, O aluno que participava do Projeto Mindstorm, explicou 
que, quando crescesse, queria unir Arte e Matemática. O incomum não é o fato 
 de ele haver dito dito isso, mas, antes, que os professores pudessem lidar com esse 
modo de pensar sobre a Matemática. A exigência especial sobre o professor é 
vista sobre uma outra perspectiva: enquanto houver um currículo fixo, o profes- 
sor não terá necessidade de envolver-se na questão do que é ou não é Mate- 
mática. No entanto, aqui o professor estava inclinado a aceitar o que seria tido 
como uma pergunta filosófica e envolver-se em discussões sérias com alunos e 
com colegas sobre se as atividades daquele aprendiz - que pareciam muito 
diferentes de qualquer matemática do currículo - eram, não obstante, Mate- 
mática. 
Neste capítulo, meu pensamento foi conceitual: apresentei um conceito 
de Escola, um conceito de professor, um conceito de burocrata e um conceito 
de luta. Concluo com algumas reflexões mais pragmáticas sobre estratégia de 
mudança. 
O que é possível fazer para mobilizar a força potencial para mudança, 
inerente à posição dos professores? Em primeiro lugar, devo fazer algumas 
reservas. O conflito que descrevi é, a princípio, idealizado. Para colocar em 
cena as ideias aproximamo-nos muito de uma imagem de pessoas angelicais 
engajadas em uma guerra santa contra demônios do mal. Os professores de 
came e osso tém posições variadas. Aqueles que cresceram em nossa socieda- 
de internalizaram alguma coisa do estilo da Escola, e professores não constitu- 
em exceção. Ao mesmo tempo, a maioria dos gestores escolares foi algum dia 
professor e continua a partilhar de alguns dos seus anseios (yearnings). A his- 
tória narrada por Hechinger não é sobre um diretor perverso, mas sim sobre o 
papel de diretor: o cargo, não a pessoa. Carol Sperry escreveu sobre "contradi- 
ções", mesmo em professores que pensam sobre si próprios como militantes 
trabalhando para a mudança. Em uma perspectiva feminista, ela vê as mulhe- 
res como agentes essenciais de mudanças na educação; porém as próprias 
mulheres internalizaram um modelo de mulher no papel de aceitar pacifica- 
mente a autoridade e, como professoras, fazem-no duplamente. O resultado é 
que, quando tentam implementar mudanças, com frequencia elas desfazem 
de formas sutis com a mão esquerda o que teceram com a direita, não-raro 
boicotando sua própria concepção das coisas pelo uso de uma linguagem como 
"Eu sou apenas uma professora, mas " 
Em suma, estamos lidando com uma situação de desenvolvimento desi- 
gual. O problema para a sociedade é dar aos professores o mesmo apoio 
pluralista que o melhor deles dá aos seus alunos. Indivíduos em diferentes 
lugares precisam de apoio para sair de onde estão. Eles não podem ser levados 
a algo muito diferente da situação real por meio de adulação ou autoritarismo. 
Naquilo que escrevo, retenho a imagem de um ideal; porém mesmo adotar 
plenamente o ideal não faz sentido, a menos que se consiga enxergar o modes- 
84 Seymour Papert
to posso seguinte. A consequencia prática é que a mudança não pode vir a não 
ser pluralisticamente. 
O problema prático mais importante é encontrar meios pelos quais pro- 
fessores que se encontram em etapas diversas, no tocante à disposição de tra- 
balho para mudança, possam fazê-lo. Não pode haver uma mudança uniforme 
de um lado a outro da paisagem e qualquer tentativa de fazê-la reduzirá o 
ritmo da mudança para o do menor denominador comum. A sociedade não 
pode dar-se ao luxo de manter atrás seus potencialmente melhores professo- 
res apenas porque alguns, ou até mesmo a maioria, não estão dispostos. 
A Máquina das Crianças 85
Uma palavra para a arte de aprender 
Por que não há, em inglês, uma palavra para a arte de aprender? O dicio- 
nário Webster diz que a palavra pedagogia significa a arte de ensinar. O que 
está faltando é uma palavra paralela para aprender. Nas faculdades de educa- 
ção, as disciplinas sobre a arte de ensinar são em geral listadas apenas como 
"métodos". Todos sabem que os métodos importantes na educação são os de 
Ensino - essas disciplinas suprem o que se acredita ser necessário para formar 
um professor competente. E quanto aos métodos para aprender? Que discipli- 
nas são oferecidas aos que desejam tornar-se aprendizes competentes? 
O mesmo desequilíbrio pode ser observado em palavras para as teorias 
que se encontram por trás dessas duas artes "Teoria da Instrução" e "Design 
Instrucional" são algumas das muitas formas de designar áreas acadêmicas de 
estudo e pesquisa em apoio à arte de ensinar. Não há quaisquer designações 
semelhantes para áreas acadêmicas que apóiem a arte de aprender. Isso é 
compreensível: a necessidade de tais nomes não foi ainda sentida porque há 
muito pouco ao que ela poderia aplicar-se. Sob diversos nomes, a Pedagogia 
como a arte de ensinar foi adotada pelo mundo acadêmico como uma área 
respeitável e importante. A arte de aprender é uma órfã acadêmica. 
Não deveríamos nos deixar enganar pelo fato de as bibliotecas dos de- 
partamentos acadêmicos de psicologia com frequencia possuírem uma seção 
designada "teoria de aprendizagem". Os livros mais antigos sob esse título 
tratam de uma atividade que é, às vezes, caricaturada pela imagem de um 
cientista de bata branca observando um rato correr em um labirinto; obras 
mais recentes tendem a embasar suas teorias muito mais no desempenho de 
programas de computador do que no comportamento de animais. Não viso 
atacar a reputação de tais livros - eu próprio sou co-autor de um e orgulho-me 
dele -, mas apenas notar que eles não versam sobre a arte de aprender. Por 
exemplo, eles não oferecem conselho para o rato (ou para o computador) 
sobre como aprender, embora tenham muito a dizer a um psicólogo sobre 
como treinar um rato. Às vezes, tais livros são utilizados como base para trei- 
5
nar crianças, porém não consegui encontrar neles qualquer conselho útil so- 
bre melhorar minha própria aprendizagem. 
O tratamento desigual das artes de aprender e ensinar em nossa língua 
Mostra-se visível na gramática e no vocabulário. Pense, por exemplo, em ana- 
lizar gramaticalmente a sentença "o professor ensina uma criança". Professor é 
o sujeito ativo da oração; criança, objcto direto. O professor faz algo para o
aprendiz. Essa forma gramatical ostenta o caminho da ideologia hierárquica
da Escola ao representar o ensino como o processo ativo. O professor está no
comando e é, portanto, quem precisa de competência; o aprendiz tem apenas
que obedecer as instruções. Essa assimetria está tão profundamente arraigadaque até mesmo os defensores da educação "ativa" ou "construtivista" conside
ram difícil escapar dela. Há muitos livros e cursos sobre a arte do ensino
construtivista que falam sobre a arte de organizar situações onde o aprendiz
"construirá conhecimento", mas não conheço nenhum livro sobre o que supo- 
nho ser a mais difícil arte de realmente construir conhecimento. A literatura
tipo auto-ajuda na subcultura construtivista é quase tao fortemente viesada
para o lado do professor quanto a subcultura instrucionista.
Um primeiro pssa para remediar tais deficiências é dar um nome à 
inexistente área de estudo para que possamos falar sobre ela. Além disso, 
fazê-lo é também uma questão de respeito: qualquer cultura que tivesse consi- 
deração com a arte de aprender teria um nome para ela. Em Mindstorms , 
propus uma palavra que não pegou, porém, como acredito que hoje há mias 
receptividade cultural para essa palavra, tentarei de novo - sempre tendo em 
mente que minha meta principal não é advogar uma determinada palavra, 
mas sim enfatizar sua necessidade. Se a cultura estiver mesmo madura para 
tanto, muitas pessoas irão sugerir seus próprios termos (talvez apenas sim- 
plesmente os utilizando) e, no final, uma delas criará raiz no solo da língua- 
gem. Lineu, o pai da terminologia botânica deu o nome de Bellis perennis a 
uma flor branca muito conhecida. A linguagem comum, porém, chama-a de 
margarida, ignorando o nome em latim, assim como ignora insistência do 
botânico de que uma margarida é uma 'inflorescência" e não uma flor. Uma 
pessoa propõe, e “a cultura” ou "a linguagem" dispõe. 
De qualquer modo, para ilustrar a lacuna em nossa língua e minha pro- 
posta de preenchê-la, considere seguinte sentença: 
Quando aprendi francês, adquiri conhecimento _______ sobre a lín- 
gua, conhecimento_______ sobre o povo e conhecimento________ sobre 
a aprendizagem. 
As palavras linguístico e cultural preencheriam os primeiros dois espaços 
sem qualquer problema; no entanto, o leitor terá dificuldade em encontrer 
uma palavra para preencher o terceiro espaço. Minha candidata é Matética, e 
assim restituo uma roubo semântico perpetrado por meus ancestrais profissio- 
nais que sequestraram a palavra matemática de uma família de palavras gre- 
gas relacionadas à aprendizagem. 
88 Seymour Papert
Mathematikos significava "disposto a aprender", mathema era "uma li- 
ção", e manthanein era o verbo "aprender". Os matemáticos estavam tão com- 
vencidos de que a sua era a única aprendizagem verdadeira que se sentiram 
justificados em apropriar-se da palavra; e foram tão bem-sucedidos que a 
conotação dominante da raiz math é atualmente aquela coisa sobre números 
que eles ensinam na Escola. 
Um dos poucos vestígios do sentido original da raiz, retido pelo inglês 
atual é polymath (polímata em português), que não se refere a uma pessoa que 
conhece muitos tipos de matemática, mas a alguém que aprendeu muita coisa. 
Seguindo minha proposta, eu usaria o substantivo matética para uma discipli- 
na sobre a arte de aprender, como em: "A matética (ou qualquer outro nome 
pelo qual ela venha a ser conhecida) é até mesmo mais importante do que a 
matemática como uma área de estudo para as crianças". 
Uma comparação com um outro empréstimo grego para falar sobre pro- 
cessos mentais esclarecerá o significado pretendido de matética e talvez apoie 
sua "sonoridade" e feeling. A palavra heurística - da mesma raiz que o grito 
"Eureka!" de Arquimedes - significa a arte da descoberta intelectual. Ultima- 
mente ela tem sido aplicada de modo específico à descoberta de soluções para 
problemas. Assim, a matética é para a aprendizagem o que a heurística é para 
a resolução de problemas. 
Embora a ideia da heurística seja antiga - remontando no mínimo a Des- 
cartes e, se estendermos um pouco, aos gregos - sua influência sobre o pensa- 
mento educacional contemporâneo deve-se principalmente ao matemático 
George Polya, mais conhecido por seu livro How to solve it.1 Seu tema é seme- 
lhante à minha queixa de que a Escola dá mais importância ao conhecimento 
sobre números e gramática do que ao conhecimento sobre aprendizagem. A 
diferença é que, no lugar da palavra aprendizagem, Polya colocaria "princípios 
para solução de problemas". Eu concordaria totalmente com ele: na Escola 
ensina-se às crianças mais sobre números e gramática do que sobre pensar. Em 
um ensaio escrito em 1972, em que apóio e amplio as ideias de Polya, formulei 
esta ideia como um provocante paradoxo: 
Em geral, considera-se uma boa prática instruir as pessoas em suas ativi- 
dades ocupacionais. Ora, as ocupações das crianças são aprender, pen- 
sar, brincar e similares. No entanto, não lhes dizemos nada sobre tais 
coisas. Ao contrário, falamos a elas sobre números, gramática e a Revo- 
lução Francesa, de algum modo esperando que, a partir dessa confusão, 
todas as coisas realmente importantes venham à tona por si só. Às vezes 
elas surgem, porém o complexo-alienação-evasão-escolar-drogas certa- 
1 Escrito em 1945 depois que Polya (nascido em Budapeste, Hungria) emigrou para os 
Estados Unidos. Foi publicado no Brasil em 1995 com o título A arte de resolver proble- 
mas, pela Editora Interciencia. Papert com certeza o conheceu pessoalmente. 
A Máquina das Crianças 89
mente não é menos comum... Permanece o paradoxo: por que não lhes 
ensinamos a pensar, a aprender, a brincan? 
A educação tradicional vé a inteligência como inerente à rnente humana, 
portanto não necessitando ser aprendida. Isso significaria que é próprio da 
escola ensinar fatos, ideias, e valores, supondo que os seres humanos (de qual- 
quer idade) são dotados, por natureza, com a competência de utilizá-los. O 
desafio de Polya começou com a simples observação de que a competência dos 
estudantes para resolver problemas melhorou quando elc os instruiu a seguir 
regras tao simples como; antes de fazer qualquer outra coisa, dedique algum 
tempo tentando pensar sobre problemas semelhantes ao seu. A partir disso, 
ele desenvolveu uma coletânea de outras regras "heurísticas" no mesmo espi- 
rito, algumas, como esta, que se aplicam a todos os tipos de problemas; outras, 
a áreas especificas do conhecimento, entre as quais o próprio Polya dedicou 
mais atenção à Matemática. 
Outro exemplo típico da categoria de regras de Polya adapta-se ao prin- 
cípio "dividir para conquistar". É comum os estudantes falharem ao tentar 
resolver um problema, porque insistem em resolvê-lo por inteiro, de uma só 
vez; em muitos casos seria muito mais fácil sc reconhecessem que partes do 
problema podem ser resolvidas separadamente e depois reunidas para lidar 
com o todo. Assim, os irmãos Wright desde o inicio tiveram a intenção de 
construir um avião motorizado que pudesse decolar de um campo. Todavia. Se 
tivessem continuado a tentar de mesmo modo, a partir de suas primeiras ex- 
periências, muito provavelmente teriam chegado ao mesmo final trágico de 
outros que os antecederam. Ao cortrário, eles resolveram o ploblema do design 
da asa inventando e construindo um túnel de vento no qual testaram segmen- 
tos de asa. Depois construíram um planador que decolava a favor do vento, 
em um local com ventos ideais. Independente disso, eles também trabalharam 
em um motor, Assim, aos poucos eles superaram os problemas. 
Polya desejou introduzir na educação um tratamento mais explicito dos 
princípios do que é com frequência é chamado de "resolução de problemas". Do 
mesmo modo, eu gostaria de introduzir um tiatamento mais explícito dos 
principios da aprendizagem. Pensar sobre heurística, contudo, ajuda a expli- 
car a ideia da matética de modo. Ao oferecer minha própria explicação 
não-convencional do motivo pelos quais os princípios heurísticos ajudam o 
estudante, tentarei estabelecer um contraste entre heurística e matética. 
Acredito que a resolução de problemas emprega processos muito mais 
sutis do que aqueles captados nas regras de Polya. Isso não significa que as 
regras sejam valiosas como ajuda naresolução de problemas. De fato, seu 
papel mais importante é menos direto e muito mais simples do que seu senti- 
do literal. Tentar aplicar regras heurísticas refreia os estudantes na pressa de 
terminarem um problema e iniciarem o seguinte. Ela os faz gastar mais tempo 
com os problemas, e minha posição matética simplesmente que gastar tem- 
90 Seymour Papert
po não tensionado com um problema resulta em conhecê-lo e, por meio disso, 
a pessoa melhora sua capacidade de lidar com problemas semelhantes. Não é 
usar a regra que resolve o problema; é pensar sobre o problema que promove 
a aprendizagem. 
O mesmo ocorre com o falar sobre os problemas ou mostrá-los para al- 
guérn mais. O que é matética aqui é a mudança de foco do pensar se as próprias 
regras são eficazes na aplicação imediata, para procurar explicações múltiplas 
do modo como trabalhar com as regras pode contribuir, a longo prazo, para a 
aprendizagem. Para salientar o argumento de uma forma certamente exagera- 
da, sugiro que qualquer tipo de "brincar com problemas" melhorará as compe- 
tencias subjacentes a sua solução. 
Essa interpretação sobre o motivo pelo qual os métodos heurísticos funcio- 
nam ressalta vários temas mateticamente importantes, cada um deles apon- 
tando para um caminho no qual a Escola impede a aprendizagem e também 
para alguns conselhos úteis sobre como fazer isso melhor. 
Para começar, o tema "dar-se tempo" (fazer tudo calmamente), mencio- 
nado em conexão com Polya, está bem ilustrado em uma passagem de um 
livro cujo nome mais de uma vez levantou sobrancelhas quando o citei em 
círculos academicos: o bestseller intitulado The road less travelled, escrito pelo 
psiquiatra Morgan Scott Peck.2 Li o livro pela primeira vez pelo mesmo motivo 
de ter feito parcerias com a Lego e a Nintendo, o que também fez que algumas 
sobrancelhas academicamente imaculadas e politicamente corretas se arque- 
assem à ideia da existência de qualquer ligação com pessoas que ganham di- 
nheiro. Do mesmo modo que Peck, Lego ou Nintendo, qualquer um que possa 
atrair tantas pessoas a variadas situações relacionadas à aprendizagem tem 
um conhecimento que aqueles educadores que não conseguem prender a aten- 
ção de 30 crianças durante 40 minutos deveria querer aprender. 
Veja o que Peck diz-nos sobre fazer tudo com calma: 
Aos 37 anos aprendi a consertar coisas. Antes, quase todas as minhas 
tentativas de fazer pequenos reparos de encanamento, consertar brin- 
quedos ou montar uma mobilia encaixotada de acordo com a hieroglífica 
folha de instruções que a acompanhava terminaram em confusão, fra- 
casso e frustração. Apesar de ter conseguido concluir o curso de medici- 
na e sustentar uma família como executivo e psiquiatra mais ou menos 
bem-sucedido, cu me considerava um idiota em mecânica. Eu estava 
convencido de que era deficiente em algum gene ou, por maldição da 
natureza, carecia de alguma qualidade mística responsável pela habili- 
dade mecânica. 
2 Esse livro de Peck também foi sucesso no Brasil, com o nome A trilha menos percorri- 
da, publicado pela Editora Nova Era (Record). 
A Máquina das Crianças 91
Certo dia, no final do meu trigésimo sétimo ano, no fazer uma cami- 
n h ad a em u m d o mi n g o d e p r imav e r a , p a s se i p o r v i z i n h o e s t av a 
consertando um cortador de grama. Após cumprimentá-lo comentei: 
“Amigo, admiro você. Jamais consegui consertar esse tipo de coisa ou 
fazer algo como isso”. Meu vizinho, se nenhuma hesitação, respondeu 
d e i m e d i a t o : ” É p o r q u e v o c ê n ã o s e d á t e m p o ” . 
Retoquei minha caminhada, um tanto inquieto pelo sábia simplicida- 
de, pela espontaneidade e pelo caráter determinado da resposta dele. 
“Você não acha que ele possa estar certo não é?", perguntei a mim mês- 
mo. De qualquer modo, isso ficou registrado e, na próxima oportunida- 
de que se apresentou para fazer um pequeno reparo, pude lembrar a 
mim mesmo de dar-me tempo. 
O freio de mão do carro de uma paciente estava emperrado, e ela 
sabia que havia algo que poderia ser feito sob o painel para liberá-lo, 
mas não sabia o quê. Deitei no assoalho do assento dianteiro do carro e 
dei-me tempo para sentir-me confortável. Quando isso ocorreu, dei-me 
tempo para observar a situação. Observei por vários minutos, A princí- 
pio, tudo o que vi foi um emaranhado confuso de fios, tubos e varetas, 
cujo significado eu desconhecia. Gradualmente, sem nenhuma pressa 
consegui focar minha visão no mecanismo de suporte do freio e seguir 
seu curso. Então percebi claramente que havia uma pequena trava im- 
pedindo que o freio fosse liberado. Lentamente, estudei essa trava até 
compreender que, se eu a empurrasse para cima com a ponta do dedo, 
ela se moveria facilmente e liberaria o freio. E assim o fiz. Um único 
movimento, uma leve pressão de um dedo, e o problema estava resolvi- 
do. Eu era um mecânico magistral! 
Na realidade, não comecei a ter o conhecimento ou o tempo para 
adquiri-lo para ser capaz de consertar a maioria das falhas mecânicas, 
dado o fato de que escolhi concentrar meu tempo em questões não- 
mecânicas. Em geral, ainda corro para o mecânico mais próximo. No 
entanto, agora sei que essa é uma escolha que faço c que não sou amaldi- 
çoado, geneticamente deficiente ou de outro modo incapacitado ou impo- 
tente. E sei que eu e qualquer outra pessoa que não seja deficiente men- 
tal pode resolver qualquer problema sc estiver desejando dar-se tempo. 
Dar-se tempo a si mesmo é um princípio absurdamente óbvio, igualmente 
do domínio da heurística e da matética. Entretanto, a Escola flagrantemente o 
transgride por suas maneiras de retalhar o tempo: "Peguem seus livros... resol- 
vam 10 problemas no final do Capítulo 18... triiin... o sinal tocou, fechem seus 
livros". Imagine um executivo, um neurocirurgião ou um cientista que tivesse 
que trabalhar com uma agenda tão fragmentada. 
Essa história trata de modo comovente tanto do tempo quanto de um 
segundo tema: falar. Peck não diz isso explicitamente, mas podemos supor 
que, ele tivesse experimentado a epifania de dar-se tempo em uma idade 
anterior aos 37 anos, ele teria falado mais, para mais pessoas, sobre suas expe- 
92 Seymour Papert
riencias e a dos com outros com problemas mecanicos. Um principio central da 
matética é que a boa discussão promove aprendizagem. É um dos objetivos 
centrais da matética é elucidar, por meio da pesquisa, os tipos de discussão que 
promovem maior ganho c as circunstâncias que favorecem tais discuções. 
Ainda assim, na maioria dos círculos, falar sobre o que realmente se passa em 
nossas mente é bloqueado por tão fortes quanto os que inibiam as pes- 
soas da era vitoriana de expressar fantasias sexuais. Esses tabus são encoraja- 
pela Escola, porém vão muito além dela e apontam para modos nos quais 
nossa cultura, em geral, é profundamente "antimatética”. 
Um exemplo extremo ilustrará com nitidez o processo antimatético que 
existe sob formas muito mais sutis, porém destrutivas, na Escola. O incidente 
ocorreu em uma "sala de atividades" onde crianças diagnosticadas como por- 
tadoras de transtornos de aprendizagem passam parte do seu dia. Frank, 
um aluno da terceira série era um deles. 
Uma auxiliar da professora deu a Frank um conjunto de somas para fazer 
em uma folha de papel. Eu sabia que a criança detestava profundamente fazer 
somas no papel, embora, sob outras condições, pudesse trabalhar com sucesso 
os números. Por exemplo, eu o vira fazer cálculos impressionantes de 
quantas peças Lego de quais formatos precisava para fazer uma tarefa do seu 
interesse. Para lidar com a exigência da Escola, ele tinha algumas técnicas 
para calcular números isolados de situações reais. Uma delas seria usar os 
dedos, mas sua professora havia dito que tal procedimento não era permitido. 
Quando ele sentou na sala, percebi que ele estava morrendo de vontade de 
usar os dedos, mas sabia que era proibido. Então o vi olhar ao redor, procuran- 
do por algo com que contar.Não havendo nada à mãoo, observei sua frustação 
aumentando. O que eu poderia fazer? Podia usar minha influência e persuadir 
a auxiliar a dar-lhe outra atividade ou permitir a contagem nos dedos. Isso, 
porém, não resolveria o problema: amanhã ele estaria de novo na mesmu situa- 
ção. Educar a auxiliar? Não era o momento nem o lugar, A inspiração surgiu! 
Caminhei casualmente até o menino e disse em voz alta: "Você pensou nos 
seus dentes?". Percebi imediatamente, pela sua expressão, que ele entendera; 
e, pelo rosto da auxiliar, que ela não. “Transtorno de aprendizagem, pois sim!”, 
pensei comigo mesmo. Ele fez suas somas com um sorriso meio dissimulado. 
obviamente delicado com aquela ideia subversiva. 
Em uma piada clássica, uma criança fica depois da aula para fazer a per- 
gunta: “Professora, o que eu aprendi hoje?". A professora, com ar de surpresa, 
questiona: “Por que você está perguntando isso?". A criança responde: “Papai 
sempre me pergunta, e eu nunca sei o que dizer”. 
O que Frank aprendeu na escola naquele dia? Caso fosse indagada, a 
auxiliar poderia ter dito que ele resolveu dez problemas de adição, portanto 
aprendeu sobre adição. O que Frank diria? Certamnte ele não falaria para 
sua professora sobre seu novo artificio para transformar lingua e dentes em 
um ábaco. Apesar de seu transtorno de aprendizagem, há muito tempo ele 
A Máquina das Crianças 93
aprendera a não falar demais sobre o que realmente estava ocorrendo em sua 
cabeça. Ele já havia encontrado professores demais que exigiram não apenas a 
resposta certa, mas também que a apresentasse da maneira como eles decreta- 
ram, Aprender a deixá-los pensar que ele estava fazendo como haviam ensina- 
do fazia parte de pertencer à cultura da Escola. 
O caso de Frank pode ter sido incomum, porém a maioria das pessoas 
compartilha um medo semelhante de tornar-se vunerável, expondo-se como 
possuidor de uma mente confusa ou inferior. A partir desse temor, desenvolve- 
se um hábito que tem quase a força de um tabu para não falar livremente 
sobre como pensamos e ainda mais sobre como aprendemos. Nesse caso, mi- 
nha brincadeira com Frank encaixa-se muito bem na teoria de Freud de que as 
piadas são engraçadas precisamente porque não o são - elas expressam senti- 
mentos reprimidos que não têm nenhuma graça; no caso narrado, havia um 
sentimento implícito de algo errado com a maneira da Escola falar (e especial- 
mente com sua maneira de não falar) sobre a aprendizagem. Freud conside- 
rou as piadas como uma maneira de aliviar tensões resultantes da repressão 
da agressividade e de se viver com tabus sobre instintos sexuais. Creio que 
ocorre uma situação semelhante com relação à aprendizagem. 
Esse tabu matético tem muito em comum com os tabus que existirarn até 
recentemente com relação a falar sobre questões sexuais. Na era vitoriana3 e 
mesmo quando eu era criança, as fantasias sexuais enquadravam-se no con- 
ceitos de “pensamentos sujos" e, embora aceitável reconhecer que outras 
pessoas os tinham, os indivíduos respeitáveis não falavam abertamente sobre os 
seus. É interessante especularmos sobre o que havia por trás dessa relutância 
em falar. Imagine que você é uma pessoa da época vitoriana: embora possa 
estar muito seguro de não ser o único a ter pensamentos sujos, você não sabe 
exatamente quão comum isso é ou se as outras pessoas supõem que você tam- 
bém os tem. Então é melhor manter a boca fechada. 
Se fiz ou não um relato preciso dos tabus sexuais vitorianos, estou certo 
de que algo análogo ocorre atualmente. Hoje poucas pessoas preocupam-se 
em revelar que suas mentes estão cheias de pensamentos sexuais; muitas até 
mesmo sentem um tabu contra não falar em público sobre esse tópico. Os 
tabus contemporâneos são relacionados a diferentes aspectos da mente Os 
mais relevantes aqui, entre muitos outros que restringem nossa intimidade, se 
mostram sob a forma de uma relutância muito comum em não permitir que 
outras pessoas percebam quanta confusão permeia nosso pensamento. Nin- 
guém gosta de parecer "ignorante" ou "burro", ou simplesmente errado. Obvia- 
mente, todos sabemos que nossas mentes estão cheias de confusáo e que mui- 
3 Referente à época da rainha Viória, da Inglaterra (1813-1901), quando os padões 
 comportamentais e atitudes morais, de modo geral hipócritas, destacaram pelo pu- 
ritanismo e intolerância. 
94 Seymour Papert
tos outros se encontram na mesma condição; mas imaginamos que algumas 
mentes são organizadas, asseadas e argutas e não vemos qualquer motivo para 
anunciar que não estamos nessa classe, especialmente na presença de pessoas 
como chefes e professores, que exercem poder sobre nós. Assim, vozes interio- 
res advertem-nos a tomar cuidado com o que dizemos: falar demais poderá 
revelar que tipo de mente temos e tornar-nos vulneráveis. Com o tempo, tal 
precaução torna-se um hábito. 
A analogia com os tabus sexuais pode parecer que exageramos a relutân- 
cia de se falar livremente sobre a aprendizagem pessoal. Duvido. Minha pró- 
pria luta para atingir o grau de liberação que tenho com relação a isso me 
proporcionou a percepção de um tabu muito forte. Até mesmo hoje, embora 
tenha uma base relativamente boa de segurança intelectual, muitas vezes me 
surpreendo tentando encobrir a confusão da minha mente. Parece que não 
consigo evitar de dar a determinadas pessoas uma impressão de maior clareza 
do que tenho e, de fato, do que penso que qualquer outra pessoa tenha. Desen- 
volvi - e não creio que seja o único - uma bateria completa de mecanismos de 
defesa, como veremos adiante. 
Exagerada ou não, a sugestão de um tabu é para enfatizar que levar as 
pessoas a falarem sobre aprender não é apenas uma questão de prover o as- 
sunto e a linguagem. A falta de uma linguagem é importante. No entanto, há 
também alguma forma de resistência ativa. Assim, avançar em direção à meta 
da matética requer mais do que auxflios técnicos para a discussão. Requer 
também o desenvolvimento de um sistema de suporte psicológico. 
A forma mais simples de tal sistema que posso imaginar é adotar a práti- 
ca de abrir-se, falando mais livremente sobre experiências de aprendizagem. 
O restante deste capítulo descreve como eu próprio emergi do que creio ser 
adequado chamar de um transtorno de aprendizagem que me afligiu por um 
tempo quase duas vezes mais longo do que o sentimento de Peck em relação a 
si mesmo como um idiota mecânico. 
Uma criança na escola que não consegue aprender a ler ou fazer aritmé- 
tica na idade adequada tende a ser diagnosticada como portadora de um trans- 
torno de aprendizagem, sendo colocada em classes especiais. Consegui ler e 
somar na idade normal. Houve, porém, outras áreas em que minha aprendiza- 
gem ficou muito atrás daquela de crianças da minha idade. Peck relata que 
descobriu, aos 37 anos, que podia lidar com problemas mecânicos. Levei um 
tempo maior para recuperar-me de um transtorno de aprendizagem que me 
importunou desde minhas primeiras memórias: eu não conseguia lembrar no- 
mes de flores. Na verdade, minha agnosia nesse domínio não era total. Pelo 
que lembro, conseguia aplicar corretamente as palavras rosa, tulipa e narciso 
às variedades comuns dessas plantas. Não conseguia, porém, realmente 
explicitar o que era uma rosa. Com frequencia eu me via em situações embara- 
çosas; quando admirava rosas em um jardim, acabava descobrindo serem ca- 
mélias ou até mesmo tulipas. E com certeza eu não sabia identificar espécies 
A Máquina das Crianças 95
silvestre de rosas. Nomes como crisântemo, dália, mal-me-quer e cravo for- 
mavam uma nuvem indistinta na minha mente. A extensão do meu desconhe- 
cimento com relação a isso é ilustrada por um incidente ocorrido justo na 
minha transição para a "alfabetização em flores", que narrarei nas próximas 
páginas. 
Um vaso de plantas florescendo de modo vistoso apareceu em um espaço 
comum do edificio onde tenho meu escritório. Na época eu estava começando 
a prestar atenção às flores e fiquei encantadocom o que me pareceu ser uma 
variedade muito exótica. Quando tentei lembrar se vira alguma antes, a única 
ideia que me veio à mente foi que não era uma ipoméia (espécie de trepadeira 
que "descobrira" há algumas semanas). Tal como frequentemente ocorre com 
pessoas com transtornos de aprendizagem, um forte sentimento de desconfor- 
to inibiu-me de simplesmente perguntar o nome da planta. Em vez disso, ten- 
tei iniciar conversações sobre a beleza da planta, esperando que alguém men- 
cionasse casualmente seu nome. 
Até o momento em que falhara quatro ou cinco vezes, estive absorvido 
no jogo de descobrir o nome sem realmente perguntar. Nesse momento, parei 
para pensar e encontrei uma estratégia melhor do que uma conversa indireta. 
Dir igindo-me a uma pessoa que me pareceu conhecer f lores, eu disse: 
não é uma variedade incomum? ", e o sucesso veio na forma de: "0h, eu real- 
mente não distingo uma variedade de petúnia da outra". Era uma petúnia! 
Nas semanas seguintes, consegui identificar petúnias em mais de 20 ocasiões 
(antes de parar de contar). Não imagino que alguma pessoa ou o destino as 
estivesse plantando no meu caminho. No verão em New England, as petúnias 
estão por toda a parte. O verdadeiro enigma é como pude ter estado cego para 
elas todos esses anos. Como foi possível que tantas pessoas ao meu redor 
sempre tivessem sabido como é uma petúnia enquanto eu não? O que havia de 
errado comigo? 
Não penso que haja algo "errado" comigo, mas, mesmo com toda a segu- 
rança intelectual que pude construir com base em sucessos acadêmicos, ainda 
sou vulnerável a dúvidas sobre mim mesmo. A dor ocasionada por minhas 
dúvidas faz-me pensar sobre os sentimentos das crianças que têm muito mais 
dificuldade do que seus colegas para aprender a ler ou a somar. Embora as 
consequencias do meu transtorno fossem bem mais suaves do que as delas (e 
qualquer comparação contém o risco de estar sendo condescendente), de fato 
penso que há elementos comuns suficientes para tornar a comparação impor- 
tante. No mínimo, meu fracasso em beneficiar-me dos recursos empregados 
pela Escola para sanar tais dificuldades é motivo suficiente para pensarmos 
com mais cuidado sobre as práticas usuais da "educação especial". 
No discurso da Escola, a ideia de motivação desempenha um papel fu- 
damental: "Se as crianças não aprendem, elas devem estar desmotivadas; em- 
tão, vamos procurar formas de motivá-las". Essa orientação com certeza não 
se aplica diretamente ao meu caso, pois em todos os sentidos da palavra eu já 
96 Seymour Papert
estava altamente motivado. Muitas vezes tomei a decisão de vencer minha 
inaptidão floral, resultando em um jorro de intensa atividade de aprendiza- 
gem de nomes de flores. Do mesmo modo, preguiça não era explicação. Ternos 
de procurar mais a fundo por noções e estruturas muito mais sutis para enten- 
der esses transtornos e pensar estratégias para superá-los. Por exemplo, no 
lugar do conceito unidimensional de "estar motivado", desenvolverei um com- 
ceito de relacionamento com áreas do conhecimento, que apresenta toda com- 
plexidade e matizes dos relacionamentos com pessoas. 
Considero significativo que, apesar das minhas ideias sofisticadas sobre 
aprendizagem, na tentativa de aprender nomes de flores eu terminava por 
utilizar as estratégias da Escola. Procurando por um professor, eu entrava em 
uma floricultura e perguntava: "O que são estas? E aquelas? E aquelas?". Na 
busca de um manual, comprei um livro para tentar associar fotografias de 
flores com seus nomes. Fiz até viagens de campo para jardins botânicos, onde 
lia as etiquetas dos nomes de todas as flores. Tudo foi inútil. Do mesmo modo 
que os métodos da Escola com as crianças que têm problemas para aprender 
matérias escolares, o ataque frontal de uma aprendizagem mecânica de nada 
adiantou. Era como aprender para uma prova escolar. Eu lembrava dos nomes 
de algumas flores por algum tempo, mas elas logo afundavam de volta na 
confusão familiar. Depois de algum tempo, o paroxismo da aprendizagem de 
flores passava, e eu resignava-me por mais um ano ou dois a ser alguém que 
"não é bom" em nomes de flores. 
Certo dia, uma ruptura ocorreu por serendipidade.4 Era final da prima- 
vera, e eu estava no interior, entre pessoas que falavam sobre quão maravilho- 
sos estavam os tremoços (lupines). Sentindo-me excluído daquela conversa e 
não querendo admitir que não tinha qualquer ideia do que fosse um tremoço, 
usei o truque anteriormente bem-sucedido na situação da petúnia. Eu disse: 
"Loo-Pin não é um nome estranho? Fico imaginando qua poderia ser sua ori- 
gem" (colocar uma conversação em andamento é uma boa estratégia empre- 
gada astuciosamente por muitas crianças com 'transtorno de aprendizagem"). 
Alguém especulou inteligentemente: "Soa como lobo - lupus, o lobo. Mas não 
vejo a conexão". Depois de algumas rodadas de comentários em direções dis- 
persas (que teriam morrido se eu não tivesse alimentado o fogo na conversa- 
ção), alguém disse: "Ela parece com a cauda de um lobo". Outra pessoa co- 
mentou que na verdade não parecia. Esse é um julgamento subjetivo, pois o 
que importava para mim era que, de todas as plantas à vista, apenas uma 
poderia ser percebida como tendo a mais leve semelhança com uma cauda de 
4 No original, serendipity baseia-se no conto de fadas Os três príncipes de Serendip (na 
tigo nome do Sri Lanka), cujos heróis faziam descobertas acidentais, mais por sagaci- 
dade, de coisas que não estavam procurando. Termo já aportuguesado. 
A Máquina das Crianças 97
lobo. Então conclui, corretamente, que aquelas massas coloridas, que desde 
então aprendi a descrever como "pontas altas", eram tremoços. 
O aspecto da serendipidade que teve um papel central no meu desenvol- 
vimento não foi descobrir como aquelas flores chamavam-se; foi fazer uma 
conexão entre uma flor e um nome, entre duas áreas de conhecimento: nomes 
de flores e um tipo específico de interesse em etimologia, que por acaso tam- 
bém tenho. A experiência prévia levou-me a acreditar que em breve eu esque- 
ceria o nome tremoço, mas dessa vez estava tão encantado com minha 
engenhosidade e intrigado pelo enigma etimológico que o incidente ainda es- 
tava zumbindo na minha cabeça quando retornei para os meus livros e pude 
explorar a palavra. Li que lupine de fato deriva da palavra latina para lobo 
(wolf em inglês), mas não devido à aparência de cauda da sua ponta. A palavra 
está ligada a uma crença de que os lupines eram ruins para o solo porque 
"devoravam" (em inglês, wolfed) todos os nutrientes. O interesse proporciona- 
do pelo caráter ambíguo (verdadeiro/falso) da teoria do lobo levou-me a 
pesquisar e deparar-me com uma reviravolta na história, que a tornou ainda 
mas evocativa para mim. 
Desde que tenho lembranças, sinto-me entusiasmado por aspectos para- 
doxais de palavras; assim, meu entusiasmo aumentou quando descobri uma 
alusão paradoxal na etimologia de lupine. Não se pensa mais em lupines como 
devorando nutrientes; ao contrário, o lupine, como membro da família da er- 
vilha, é capaz de captar nitrogênio da atmosfera e acrescentar valor ao solo. 
Vê-los em solo pobre é algo desejável e não de rejeição. No entanto, o nome 
sobreviveu à teoria sobre a qual se baseava e, assim, tornou-se um dos muitos 
exemplos de ideias antigas que se encontram preservadas na nossa linguagem 
e mantém conexões das quais estamos apenas marginalmente conscientes. Mi- 
nha relação com nomes de flores estava assumindo um novo tom por ter feito 
o contato com áreas que considero pessoalmente interessantes.
Essa reviravolta também tocou em outra questão pessoal evocativa. Uma 
das razões para o meu gosto por etimologia é que ela oferece bons exemplos 
para uma vindita5 contra a ideia de qualquer explicação única para fenômenos 
mentais. Todas são multideterminadas - e isso é a essência do modo de funcio- 
namento da mente. Agora, as origens dos nomes de flores começaram a mos- 
trar-se promissoras como uma área na qualeu poderia encontrar um apoio 
forte, porém muito simples, para esse modo de pensar. 
A primeira vista, a etimologia pode parecer caminhar contra a minha 
preferência por explicações múltipIas, pois com frequencia parece identificar 
5No original, vendetta: palavra italiana assimilada pela língua inglesa que significa 
uma rixa entre famílias que atravessa gerações; a família do assassinado busca vingar- 
se matando alguém da família do assassino. Essa prática era prevalente na Córsega e 
na Sicília, e também em algumas cidades do Nordeste brasileiro. 
98 Seymour Papert
com precisao uma única fonte histórica para uma palavra. Encotrar uma fon- 
te , porém, não é expl icaçâo ps icológica ou cul tura l do modo como a 
palavra é usada. A teoria de devorar a excelência do solo estar pode esta na raiz de 
uma explicação completa de antigas formas populares que parecem ter sido 
seguidas por Lineu quando ele chamou esse gênero de plantas Lupinus, mas 
dificilmente vem a ser uma explicação da pela qual o nome vingou em 
nossa cultura. Explicar o motivo pelo qual os botânicos dão nome a uma plan- 
ta não explica a razão de o povo simples fazê-lo - na maioria dos casos, a 
linguagem popular despreza o nome botânico e desenvolve o seu próprio. Di- 
zemos lilás em vez de syringa e usamos na lapela um cravo em vez de um 
dianthus . Parece plausivel que uma et imologia popular como a teor ia 
"parece-uma-cauda de-lobo" poderia ter contribuído, aliada à teoria de “devo- 
rar-a-excelência-do-solo", para fazer o nome lupine vingar no uso popular. Afi- 
nal, se a associação ocorreu a uma pessoa, é razoável supor que tenha ocorri- 
do a outras e que ela paira perto do limiar consciência de muitas mais. 
Minha teoria matética não depende da verdade de minha etimologização 
amadorística. O que importa aqui que ela estava conectada a regiões de 
conhecimento que eram fortemente evocativas para mim. A verdadeira moral 
da história é como uma determinada qualidade atraente propaga-se de pala- 
vras para flores e, posteriormente, de flores para outros domínios mentais. Se 
eu tivesse que resumir isso em uma única metáfora, diria que ela sobre como 
regiões mentais "frias" foram aquecidas pelo contato com regiões “quentes”. 
Um contato não foi suficiente para aquecer minha região antes gelada de 
nomes de flores. Nesse meio tempo, dois anos depois do incidente lupine, quan- 
do escrevo, uma dramática mudança ocorreu na minha memória para nomes de 
flores. É como se elas agora encontrassem um lugar aderir. Entretanto, isso 
não ocorreu imediatamente - e quando ocorreu, muito mais do que a capacida- 
de de lembrar seus nomes, mudou meu relacionamento com as plantas. 
Durante quase um ano não houve muita mudança, embora eu não esque- 
cesse da palavra lupine e de fato percebesse a mim mesmo prestando atenção 
a excentricidades em nomes de flores. Por exemplo, peguei-me brincando com 
as pequenas contradições sugeridas por uma audição etimologicamente literal 
de "lilás branco" ou "rosa amarela". Lilás (lilac em inglês) deriva de uma 
palavra persa para a cor lilás, e rosa, de uma palavra grega para vermelho. 
Pode-se afinar o ouvido para perceber o mesmo tipo de excentricidade ao 
ouvir que os lírios d'água (water lilies) e os copos-de-leite (arum lilies) não são 
(em sentido botânico) lírios de modo algum. 
Em determinados momentos, senti-me impaciente comigo mesmo por 
prestar atenção a esses pensamemos tão triviais, mas eles continuaram for- 
m a n d o o n d a s c o n c ê n t r i c a s n a m i n h a m e n t e e , e m c o n t r a p a r t i d a , 
estou contente, pois elas colocaram-me em um estado de prontidão para o 
grande momento. Certa noite, lendo, deparei-me subitamente com o fato de 
que para os botânicos uma margarida não é uma flor. 
A Máquina das Crianças 99
As flores da família que inclui margaridas, ásteres e girassóis são chamadas de 
inflorescências, pois o que geralmente chamamos de flor é visto pelos botânicos 
como uma massa de flores minúsculas. 
Não posso dizer se fiquei mais chocado por saber disso ou por ter vivido 
tanto tempo sem sabê-lo. Uma margarida não é uma flor? Convenhamos, ela é 
a flor prototípica! Se no ano passado tivessem pedido para eu desenhar uma 
flor, teria feito algo mais parecido com uma margarida do que qualquer outra 
coisa. Embora agora pareça tolo e um tanto ignorante, fiquei mesmo descon- 
certado e empolgado. Corri de livro em livro nos meus intervalos, tentando 
aprender mais. 
As notícias foram ruins: o golpe de estado contra a nomenclatura-padrão 
foi além das margaridas, incluindo girassóis, crisântemos e dálias. Elas foram 
difamadas com nomes como "falsa flor" ou prestigiadas com nomes chiques 
como "inflorescência"; porém, ao que parece, em muitos círculos é uma gafe 
definitiva chamá-las de flores. Mas como isso pode acontecer? Um girassol 
não é uma flor? Até mesmo os copos-de-leite, que já haviam sido menospreza- 
dos na minha mente por não serem lírios, estavam agora excluídos de serem 
flores. 
O momento mais poderoso veio na manhã seguinte, quando finalmente 
pude ver algumas flores. Encontrei-me em uma situação que se repetiria várias 
vezes no ano seguinte: estava olhando para um objeto familiar com a sensação 
de olhá-lo pela primeira vez. 
100 Seymour Papert
O disco (ou a massa) no centro de muitas inflorescêncios é composto por muitas 
flores minúsculas como esta; o que parece ser pétalas são também flores comple- 
tas em si. 
Compare um botão-de-ouro com uma margarida e você pode começar a 
entender como o botânico os vê como coisas fundamentalmente diferentes. 
Para o botânico, uma flor estrutura-se ao redor dos seus órgãos sexuais: os 
estames e anteras, pistilos, estigmas e ovários são a essência da flor. As pétalas 
e sépalas que causam uma impressão colorida tão espetacular sobre nós, sobre 
os pássaros e os insetos, são para eles características secundárias. No bo- 
tão-de-ouro, na tulipa e no lírio, você pode ver todas essas partes - mas não na 
margarida. Ou melhor, na margarida você vê as partes reperidas muitas vezes, 
pois aquelas partes brancas que você pode ter arrancado uma a uma enquanto 
recitava "bem-me-quer, mal-me-quer" não são pétalas envolvendo órgãos se- 
xuais, mas flores inteiras. Se você arrancar uma com muito cuidado, verá que 
ela é como uma petúnia em miniatura, alongada e com alças dos lados. E o 
que elas envolvem, o disco amarelo central, é, em si, uma massa de flores 
completas até mesmo menores. Então, botanicamente falando, a margarida 
não é uma flor, mas um compacto feixe de flores de dois tipos - flores dispôs- 
tas em forma de raio no exterior, envolvendo flores dispostas em forma de 
disco no interior. O botânico a chamará de uma cabeça ou de uma inflores- 
cência, embora suponho e espero que as crianças sempre a chamem de flor. 
Até esse ponto, meu novo envolvimento com as flores estava restrito aos 
nomes e pertencia diretamente à minha área estabelecida de vivo interesse em 
etimologia. Com o incidente envolvendo margaridas, ela expandiu-se de pala- 
vras para coisas. Comecei a olhar para as flores e pensar em suas estruturas. O 
conceito de flor estava mudando, e novas entidades conceituais começaram a 
crescer na minha mente: a unidade de pensamento mudou da flor para a plan- 
A Máquina das Crianças 101
ta inteira e, gradativamente, para entidades previamente nebulosas como “a 
família das rosas” (que inclui cerejas, maçãs e morangos, assim como rosas) 
adquirindo uma realidade mais sólida. 
Também comecei a pensar nos botânicos: era fácil ver que a definição 
que davam de flor excluía as margaridas; isso era uma simples questão de 
lógica. Entretanto vir a apreciar as razões para a adoção dessa definição foi 
um processo diferente em sua essência e mais complexo, melhor caracteriza- 
do como entrar em uma cultura do que como entender um conceito. 
Dar nomes permaneceu um tema importante em um conjunto crescente 
e complexo de relacionamentos na minha mente.Um exemplo simples come- 
çou com o nome da margarida. Agora que a humilde flor se tornara tamanho 
centro de interesse, naturalmente bisbilhotei suas origens e significados do 
nome. Mal pude acreditar aa minha sorte: margarida (daisy) é day’s eye (olho 
do dia)! Que achado! Novamente experimentei estupefação por não ter sabido 
disso e até mesmo certo embaraço por ter ignorado sua obviedade. O achado 
adquiriu mais tempero com o fato de os livros darem explicações diferentes. 
Uma teoria afirmava que a margarida se parecia com o sol, que é "o olho do dia”; 
uma outra a associava à tendência de abrirem de dia e fecharem à noite.6 
Uma terceira teoria começou com uma especulação. Deparei-me com o 
fato de se haver pensado que as margaridas tinham propriedades medicinais 
para problemas de olhos. Um primeiro palpite de que isso poderia estar rela- 
cionado ao seu nome, pareceu-me demasiado implausível para valer a pena 
conferir. Fazer isso, mesmo assim, levou-me a um outro achado curioso: a 
Doutrina das Assinaturas afirmava que, por meio da aparência as planyas mos- 
tram seu valor medicinal. A erva-férrea (self-heal),7 uma flor silvestre, é valori- 
zada para tratar indisposições de garganta pelo fato de sua flor possuir uma 
garganta, e isso se reflete na derivação do nome botânico Prunella vulgaris, de 
Breune, palavra alemã para quinsy (um nome antigo, que aprendi nessa inves- 
tigação, para amigdalite). Diz-se que os padrões de coloração das folhas da 
hepática sugerem a aparência do fígado, explicando, assim, tanto o nome he- 
pática - da palavra latina, significando estar relacionado ao fígado – como a 
6 Como elemento associativo, no espirito da exposição de Papert, acrescento uma forte 
conotação poética à imagem da margarida como olho do dia; em mim evoca um belo 
 e brilhante olho abrindo-se no horizonte do alvorecer; à tarde, no horizonte oposto, 
um olho que s fecha com cores mais densas, evidenciando o cansaço do dia que se 
finda. 
7Designação comum às plantas do Prunella, nativas de regiões temperadas da 
Europa, Ásia e Noroeste africano. Também conhecida como brígula. Veja imagens da 
Prunella vulgaris em http://Imagens.google.com.br. A Doutrina ou Teoria das Assinatur- 
ras é fasciante capítulo na história das plantas medicinais (fitoterapia), que re- 
monta aos chineses e depois aos gregos e romanos. 
102 Seymour Papert
crença de que ela é para indisposições do fígado. Determinadas caracteris- 
ticas de plantas tornaram-se mais salientes. Por exemplo, que algumas têm 
gargantas e outras não. O interesse em nomes estava levando-me para o mun- 
do real das flores. 
Outras conexões com nomes e denominações levaram-me a novos a rela- 
cionamentos com a natureza. A janela da sala onde a maior parte desse livro 
foi escrita abre-se para um campo no qual vejo flores silvestres de várias cores, 
particularmente amarelas e púrpura. Entre as amarelas posso ver touceiras de 
longos hipéricos e as ainda mais longas prímulas da tarde (primroses), pequenas 
cinco-folhas e algumas azedinhas amarelas precoces. Entre as de cor púrpura, 
vejo epilóbios (fireweeds), lisimáquias e ásteres: Vejo também algumas que são 
pontos de interrogação na minha cabeça: notei sua existência, mas não sei o 
que elas são. Há dois anos, vi uma massa indiferenciada de flores lindas. Foi 
um espetáculo bonito. Gostei, mas não era de modo algum, o que estou vendo 
agora. Por mais que tente, não consigo fazer meu olho voltar a vê-las como 
antes . Não consigo mais imaginar como ser ia vê- las como uma massa 
de flores amarelas, sem identidade individual. 
Quero aprofundar um detalhe nesse desenvolvimento como um madelo 
para o processo de aprendizagem. Há dois anos conheci o nome botão-de-ouro 
e apliquei-o corretamente a botões-de-ouro comuns. Não consigo lembrar 
quantas vezes eu teria usado esse nome para outras espécies, mas sei com 
certeza que não dispunha de nenhuma outra palavra para flores amarelas pe- 
quenas. No inicio do verão tomei consciência de outros dois de flores 
silvetres amarelas: cinco-folhas e hipéricos (Saint-John’s wortd8, erva de São 
João). No entanto, meu grau de dislexia floral ficou evidenciado no fato de ter 
que reidentificar essas flores muitas vezes. Como alguém que não consegue 
reter uma melodia, eu não conseguia reter a distinção de um dia para o outro. 
Mesmo assim, algo ocorrera: era como se eu tivesse formado na minha cabeça 
ganchos para três coisas - botões-de-ouro, cinco-folhas e hipéricos. Entretan- 
to, não sabia ainda o que pendurar em cada gancho. Foi como eu tivesse 
encontrado três pessoas e sido informado dos seus nomes, mas não soubesse 
mais nada sobre elas. 
Com frequência, encontro-me nessa situação e fico espantasdo com o modo 
como misturo entidades novas até que um senso gradualmente crescente de indi- 
vidualidade cresceu de forma lenta e heterogênea para os três tipos de planta. 
Não pretendo saber exatamente como esse processo de crescimento ocor- 
reu. Todavia, de fato, sei como não ocorreu. Tentei memorizar as característi- 
cas de cada grupo obtidas de um livro, mas isso simplesmente não funcionou. 
Talvez se tivesse me interesssados por essas três flores, conseguisse memo- 
8 Em inglês, wort é um termo arcaico para planta, ou erva, significativo para a atividade 
mnemônica associativa de um nativo da língua, como o autor. 
A Máquina das Crianças 103
rizar suas caracterizações formais. Contudo, ao me voltar para outras plantas 
e retomar às três amarelas, cometia algum erro de novo. Aos poucos, algo 
diferente da memória mecânica das caracteristicas definidoras dos botânicos 
desenvolveu-se; comecei a construir um tipo mais pessoal de conexões. 
Associo botões-de-ouro (buttercups, "taças de manteiga") à crença popu- 
lar sobre a aparência do queixo de uma pessoa quando um botão-de-ouro é 
colocado próximo. Se o queixo assume a cor amarela por reflexo, nos Estados 
Unidos isso é interpretado como um sinal de gostar de manteiga e, na França, 
como um sinal de estar apaixonado, Devido a essas histórias associo os botões- 
de-ouro a pétalas brilhantes, uma das características que, de fato, os distin- 
guem das outras duas. Outras conexões foram menos diretas. Uma das três 
flores tem estames especialmente cerrados, densos. Eu não conseguia lembrar 
qual. De fato, é a erva de São João (Saint-John’s-wort), porém, quando li que 
esta planta também é conhecida como barba de Arão, associei seu nome com 
os estames cerrados porque eles são como uma barba; e com o nome "erva de 
São João” porque Arão e São João possuem uma conexão bíblica. Sendo as- 
sim, o nome barba de Arão agiu como um tipo de cola para grudar a proprie- 
dade do estame cerrado ao nome erva de São João. Durante o mesmo perio- 
do, notei minha atenção visual desviando-se da flor para a planta, ocasio- 
nando novos tipos de associação. E assim por diante. 
Quanto mais fundo eu mergulhava no meu "affair”9 com as flores, mais 
conexões iam sendo feitas; e mais associações significavam que eu era atraído 
ainda mais fortemente, que as novas conexões apoiavam umas às outras com 
maior eficácia e que elas tendiam cada vez mais a ser duradouras. Além disso, 
o conteúdo da minha aprendizagem espalhou-se em muitas direções: eu esta- 
va aprendendo palavras em latim, adquirindo insights sobre a história da me- 
dicina popular e estava obtendo ou renovando conhecimentos geográficos e
históricos. A Renascença, em seus aspectos artisticos e científicos, assumiu um
novo foco por meio da papel das flores no novo relacionamento com a nature- 
za que se desenvolveu naquela época.
Minha aprendizagem atingira um nível crítico, no sentido do fenômeno 
da massa crítica de uma reação nuclear ou na explosão de uma população 
quando as condições favorecem tanto a taxa de nascimentos quanto a de so- 
brevivência. A moral simples é que a aprendizagem explode quando você per- 
manesse com ela: um ano inteiro se passara antes que o efeito na minha mente 
atingisse um nível crítico para uma explosãode crescimento exponencial. A 
moral mais complexa é que talvez alguns domínios de conhecimento, como as 
plantas, são especialmente ricos em conexões variadas e particularmente pro- 
pensos a originar explosões de aprendizagem. 
9 No prefácio, o autor afirma que no mundo inteiro as crianças assumiram um profun- 
do caso de amor (love affair) com os computadores. Aqui ele utiliza a mesma palavra, 
porém entre aspas. 
104 Seymour Papert
Minha experiência de aprendizagem com as flores iniciou-se com um 
“currículo” muito limitado: aprender a nomeá-las, No final, a experiência am- 
pliou-se deixou-me uma pessoa diferente em mais dimensões da vida do que 
qualquer coisa que seja medida pelos testes behavioristas padronizados com 
os quais os conservadores julgam a aprendizagem Escolar. Isso afetou meu 
fluxo de consciência à medida que eu me movia pelo mundo: vejo mais quan- 
do caminho na rua ou em um campo, O mundo é mais bonito. Meu sentimento 
de unidade com a natureza é mais forte. Minha preocupação com questões 
ambientais é profunda e mais pessoal. E recentemente me surpreendi desfru- 
tando de livros sistemáticos sobre botânica e não encontrando qualquer pro- 
blema em lembrar do que li. É como se eu tivesse feito minha transição, nesse 
domínio, de um estágio concreto para um estágio formal.10 
No início deste capitulo, mencionei uma fraqueza matética na literatura 
sobre o construtivismo. A metáfora de aprender construindo nosso próprio 
conhecimento apresentou grande poder retórico em contraste com a imagem 
de conhecimento transmitido por intermédio de uma tubulação de professor 
para aluno. Isso, porém, é apenas uma metáfora, e uma reflexão sobre a mi- 
nha história das flores consolida meu sentimento de que outras imagens são 
igualmente úteis para entender a aprendizagem como fontes de orientação 
matérita prática. Uma delas é o cultivo: desenvolver meu conhecimento de 
plantas pareceu mais como o trabalho de um horticultor – projetando, plan- 
tando e cuidando de um jardim - do que com o trabalho de uma equipe de 
construção erguendo uma casa. Não tenho dúvidas de que meu conhecimento 
desenvolveu-se até mesmo quando eu não estava prestando atenção! Uma 
outra imagem é a metáfora geográfica de regiões e a ideia de conexões entre 
elas. De fato a descrição "conexionisno"11 encaixa-se na minha história me- 
lhor que "construtivismo". 
Em um nível pragmático, "Procurem conexões!" é um conselho matético 
sólido, e em um nível teórico a metáfora leva a uma gama de perguntas inte- 
ressantes sobre a conexidade do conhecimento. Ela até mesmo sugere que a 
parte deliberada do ato de aprender consiste em estabelecer conexões entre 
entidades mentais já existentes; novas entidades mentais parecem entrar em 
existência de formas mais sutis, que escapam do controle consciente. Seja como 
10 Aqui o autor utiliza a teoria piagetiana de estágios de desenvolvimento cognitivo de 
todo ser humano. No estágio concreto a criança aprende a conhecer o mundo físico 
nos seus vários aspectos. Uma vez construída essa complexa representação, algo que 
leva anos, o individuo atinge o estágio formal, no qual se sobressai o pensamento mais 
abstrato com características da lógica formal (a matematica, os valores, o real e o 
possível), menos dependente de conceitos e imagem do mundo físico. 
11 Conexionismo foi uma das correntes dominantes sobre Aprendizagem, na Psicologia 
norte-americana. 
A Máquina das Crianças 105
for, pensar sobre a interconexidade do conhecimento sugere uma teoria para o 
fato de alguns conhecimentos serem tão facilmente adquiridos sem ensino 
deliberado. No sentido em que se diz que não há dois americanos separados 
por mais de cinco apertos de mão, esse conhecimento cultural é tão interconec- 
tado que a aprendizagem propagar-se-á por migração livre para todas as suas 
regiões. Isso sugere uma estratégia para facilitar a aprendizagem melhorando 
a conectividade no ambiente de aprendizagem, por meio de opções por cultu- 
ras e não por indivíduos. 
106 Seymour Papert
Uma antologia de historias de aprendizagem 
A palavra antologia é adequada para captar um ponto-chave sobre a 
matética: a riqueza de conexidade entre as coisas que conhecemos. No meu 
caso, a etimologia de lupine levou-me a novos relacionamentos com as flores, 
que por sua vez levou-me a aprender várias centenas de palavras completa- 
mente novas e a "aquecer" minha percepção de milhares de velhas conheci- 
das. Em minha época de escola, é provável que eu tenha conhecido a palavra 
antera (a bolsa de pólen do estame de uma flor) e sua raiz grega anthos, que 
significa flor. Eu as conhecia, porém, "friamente". Quando se aqueceram, elas 
incitaram conexões, e comecei a pensar se antologia tinha um sentido remoto 
de "estudar flores". Isso, contudo, confirmou-se como uma falsa analogia com 
palavras como biologia. 
Na verdade, o sufixo logia possui um sentido etimológico mais geral do 
que "estudo de". Sua raiz grega (e indo-européia) significava "coletar", antes 
de significar "estudo", o que poderia ser visto como coletar conhecimento. 
Etimologicamente, antologia é uma coletânea ou um feixe de flores. Pense em 
trilogia, que não é o estudo da tríplicidade (threeness), mas uma coletânea de 
três coisas. 
Este capítulo é uma coletânea de histórias de aprendizagem, cada uma 
prefaciada e posfaciada apenas com algumas das morais que podem ser extraí- 
das delas. As histórias tratam alternadamente de crianças usando tecnologia 
em uma escola e de pessoas "no mundo real". 
DEBBIE APRENDE FRAÇÕES 
Na discussão do meu relacionamento com as plantas, sugeri dois modos 
de aprender. As proposições afirmam de modo claro um fato bem-delimitado, 
como “Potentilla é um gênero da família das rosáceas". As explorações estabe- 
lecem uma teia relativamente confusa de conexões que podem ligar cinco- 
folhas com botões-de-ouro e oenethera e etimologias e repolhos e reis. É prová- 
6
vel que eu tenha dado a impressão de preferir fortemente a teia confusa e não 
a proposição clara. Mantenho essa preferência, pois a teia pode incluir a pro- 
posição, mas esta aqui não inclui aquela. Em termos ideais, deveríamos ser capazes 
de valer-nos de ambos os modos e transitar com desembaraço entre eles. En- 
tretanto, prefiro muito mais ter um entendimento intuitivo confuso de algo 
que não fui capaz de formular em uma proposição incisiva do que ter uma 
proposição limpa, incisiva, sem uma intuição para apoiá-la. Lamentavelmente, 
a preferência da Escola pela proposição testável, delimitável e listável inverte 
essa ordem. O resultado são segmentos isolados de “conhecimento” sem as 
intuições e as conexões que justificariam eliminar essas aspas. 
Durante três meses, Debbie e seus colegas de quarta série passaram uma 
hora por dia engajados em um projeto que reverteu os papéis sobre o uso do 
computador para o ensino automatizado, geralmente conhecido como CAI.1 
Aqui as crianças de quarta série receberam a tarefa de usar o Logo para desen- 
volver um exemplo de software educativo que ensinasse algo sobre frações; 
elas tornaram-se produtoras em vez de consumidoras de software educativo. 
Para o verdadeiro adepto do CAI, essa inversão parecerá tão perversa quanto 
dizer as pessoas que precisam locomover-se do ponto A para o ponto B que elas 
devem construir carros em vez de usá-los. No entanto, o fato é que fazer o 
so f tware ve io a favorece r a aprend izagem de f rações - a s s im como, 
é evidente, a favorecer a aprendizagem de programação Logo e outras habilida- 
des especificamente relacionadas a criação de softwares (Eu não deduziria 
que a mesma inversão aplica-se à construção de carros, embora seja bem pos- 
s ível que construir um também possa contr ibuir para uma pessoa me- 
lhor motorista!) 
O paradoxo da inversão de papéis foi particularmente significativo no 
caso de Debbie. Os alunos eram livres para escolher o que quisessem que seu 
software explicasse sobre frações. Alguns deles escolheram explicar comofa- 
zer os tipos de manipulação que aparecem nos testes escolares - por exemplo, 
converter dois quartos em um meio. Debbie foi um dos aprendizes cujos esco- 
res de teste demonstraram melhora significativa, embora o que ela havia esco- 
lhido explicar fosse mais filosófico e afastado das habilidades nas quais seria 
testada. Ele formulou seu princípio filosófico de várias maneiras, incluindo: 
“Você pode usar frações todos os dias da sua vida" e "Você pode colocar frações 
em tudo”. O que ela quis dizer com essas afirmativas se torna mais claro quan- 
do examinarmos o contexto do seu trabalho. 
Em uma entrevista no início da pesquisa (que foi o ponto central da tese 
de doutorado da minha colega e ex-aluna Idit Harel), perguntou-se às crian- 
ças: “O que é uma fração?" As respostas foram até mais preocupantes do que 
os baixos multados nos testes. Algumas pareceram incapazes de dar qualquer 
1 A discussão sobre CAI (Instrução Auxiliada pelo Computador) foi feita no Capaulo 3. 
108 Seymour Papert
tipo de respostas além de um exemplo, que, em geral, foi “fração é uma meta- 
de”. Uma delas disse: "Nós ainda não vimos isso", evidentemente não signifi- 
cando que não haviam “visto” frações na escola – o que, em relação a essas 
crianças, foi realizado em abundancia -, mas que não haviam lhe infor- 
mado como definir uma fração. Muitos deram uma resposta que poderia ser 
considerada, em si mesma, bastante razoável para uma criança de quarta sé- 
rie:"Uma fração é uma parte, ela é uma parte de alguma coisa”. 
O preocupante com relação a essa resposta surgiu quando a investigado- 
Ra pediu exemplos de frações. Quase todos os exemplos foram apenas de um 
Tipo: pedaço fisico de alguma coisa física, como uma fatia de uma torta. O 
problema com tal tipo de resposta pode scr percebido ao se comparar com o 
que as mesmas crianças disseram quatro meses depois. Após a experiência 
como projetistas de software, os exemplos tornaram se enormememre varia- 
dos: meia hora, 25 centavos, um desconto de 50%, o dia, a noite. Debbie 
corrou a variedade de exemplos com seu princípio geral, resumindo-a a di- 
zer: Por que você fica me pedindo pra dar exemplos específicos de frações?... 
Não percebe que qualquer coisa que você pensar pode ser um exemplo de 
Fração?”. 
A teoria de Debbie sobre frações, em si extraordinária, torna-se mais im- 
pressionante quando contrastada com sua colocação na entrevista inicial. Quan- 
do solicitada a dar um exemplo de fração, ela desenhou um circulo, dividiu-o 
em dois, sombreou a metade direita e disse "Aqui está: isso é uma fração: isso 
é uma metade". Quando o investigador perguntou-lhe sobre o lado não-som- 
breado ela disse "Não, isso não é uma fração, isso não é nada”. Para Debbie, 
uma “fração” não era apenas uma parte de uma coisa fisica, era a parte som- 
breada de um círculo. Além disso, tinha que ser aquela sombreada do lado 
direito. A investigadora, percebendo que seus exemptos eram todos nessa orien- 
ção, girou um dos desenhos de modo que o lado sombreado ficasse para 
cima. “Isso é uma fração?" A resposta de Debbie pelo menos demonstrou que 
ela estava pensando e não simplesmente respondendo sem raciocinar: “Mais 
ou menos", disse ela, "você pode virá-la"; e girou o desenho de volta à posição 
inicial para que novamente se tornassc uma "fração". 
O mais significativo não é que as respostas limitadas de Debbie represcn- 
taram todo o seu conhecimento sobre o assunto. Provavelmente ela teria se 
saído bem em uma disputa com um irmão para divisão de doces. O ponto é 
que o conhecimento formal da escola sobre frações não estava conectado com seu 
conhecimento intui t ivo do dia . O que ela aprendeu na aula era frági l , 
formal e isolado da vida. Tentativas feitas por professores e autores de livros 
didáticos objetivando conectar as frações escolares com a vida real usando 
representações como tortas simplesmente resultaram em umaa nova rigidez. 
A participação de Debbie nesse projeto, por outro lado, levou-a fazer 
conexões mais realistas. A mudança no seu pensamento não foi apenas uma 
questão de habilidades e de conhecimento de fatos. Sua frase:”Você pode 
A Máquina das Crianças 109
colocar frações em qualquer coisa” mostrou uma mudança epistemológíca e 
também uma intenção epistemológica. Ela fez uma passagem de um tipo de 
conhecimento (conhecimento formal de professor) para um outro tipo (co- 
nhecimenro pessoal, concreto, dela mesma). No inicio, uma "fração" era uma 
coisa categórica aprendida de um professor. No final, "frações" significavam 
um modo de ver o mundo. "Colocar frações" significava usá-las como uma 
maneira de pensar acerca de algo, um modo particular de ver qualquer coisa 
onde elas fossem colocadas. 
A maneira como a mudança realmente ocorreu foi mais ou menos assim: 
Debbie estivera tentando desenhar frações na tela do computador. No início 
havia sido fácil: como uma fração era um círculo dividido e parcialmente som- 
breado, ela tinha apenas que dominar os meios necessários para criar tais 
figuras na tela, conforme mostra a ilustração a seguir. 
Tela utilizada por Debbie para representar sua descoberta sobre frações: as fra- 
çôes estão em todo lugar. 
Um incipiente novo interesse levou-a a querer exemplos mais variados e, 
por fim, a que ela anunciasse sua descobert no caderno de anotações sobre o 
projeto que cada um dos estudantes foi solicitado a manter. A ilustração de 
uma página do caderno mostra seu entusiasmo ao fazê-la e a importância que 
ela atribuiu h descoberta. 
110 Seymour Papert
MEUS PLANOS PAPA HOJE 
MEUS PLANOS PAPA HOJE 
Debbie rogistrou seus planos e seu progresso diário no seu caderno de anotações 
do projeto. A anotação no topo da tela diz: "Uma fração é quando você divide 
algo em duos partes ou em metades iguais". 
O que fez a mudança acontecer? O que levou ao despertar do novo inte- 
resse? 
Uma discussão exaustiva trataria de muitos aspectos de uma situação 
complexa. Acredito que um aspecto essencial foi a qualidade de sentir-se leva- 
da a sério - do mesmo modo como ocorreu com meu artigo de jornal e os 
artigos de Piaget quando estávamos na escola ou com a afirmação de orgulho 
A Máquina das Crianças 111
nacional profissional e de gênero das professoras costarriquenhas - o projeto 
de Debbie saiu da categoria de tarefa para ser resolvida o mais rápido possível. 
Tornou-se um empreendimento pessoalmente significativo, capaz de mobili- 
zar energia intelectual. Outras interpretações estão no livro de Harel, Children 
as software designers, com a discussão mais completa que conheço de um úni- 
co experimento sobre crianças usando computadores.2 
O projeto de Debbie de design de software de fato não apresentou essa 
qualidade de engajamento desde o início. Durante as primeiras semanas, ela 
dedicou-lhe pouca atenção, de modo desorganizado dividindo seu tempo no 
computador entre desenhar algumas representações de frações na tela e mui- 
to mais concentração fazendo enfeites animados para poemas que ela escreve- 
ra sobre sentimentos pessoais. Certo dia ela estabeleceu uma conexão seren- 
dipitosa entre as duas atividades. Percebeu que a técnica de programação que 
utilizou para os enfeites podia ser usada para tornar suas representações de 
fração visualmente mais interessantes. Uma coisa levou à outra. Sua tela cha- 
mou a atenção de um colega, que perguntou como ela conseguira programar 
aquele efeito. De repente, a menina, que levava uma vida indiferenciada como 
membro da classe, encontrou-se em demanda como uma expert que possuía 
um conhecimento que os outros desejavam. Sua atitude com relação ao proje- 
to de design de software mudou. Anteriormente, Debbie queria permanecer 
fora dele tanto quanto possível; agora, saboreando seu sucesso, ela desejava 
permanecer nele tanto quanto possível. Foi quando começou a fazer explora- 
ções com frações. 
A partir de então, o projeto de Debbie começou a colocá-la "entre as 
frações" no mundo real ao seu redor, atribuindo-lhes umaexistência que já- 
mais tiveram antes. No início, as frações existiam apenas na sala de aula e, 
mesmo naqueles estreitos limites, eram ainda mais restritas ao quadro-verde 
do professor e às suas folhas de exercício. Não havia qualquer necessidade para 
que as explorasse, para engajar-se com elas; quando deixava a sala de aula, 
2 O livro de Harel foi publicado nos EUA em 1991. Há outra publicação do ano anterior 
com o titulo Children as software designers: a constructionist approach for learning 
mathematics, em The Joumaal of Mathematical Behavior, 1990, 9(1):4. Idit Harel foi 
uma importante colaboradora no desenvolvimento da concepção construcionista de 
aprendizagem (que Papert trata com detalhes no próximo capítulo). Harel também foi 
fundadora da MaMaMedia.com (o nome baseia-se na exclamação italiana Mama mia!, 
que ela usou com o significado de "Mãe de Todas as Mídias", referindo-se ao computa- 
dor). A MaMaMedia objetiva a alfabetização digital de crianças e suas famílias, em uma 
perspectiva construcionista. Harel recebeu vários prêmios pelo seu trabalho desinte- 
ressado por meio de várias outras iniciativas lidando com tecnologia e educação nos 
EUA e em países do terceiro mundo. Nos últimos anos, Harel tem desenvolvido ativida- 
des educacionais e acadêmicas na China. 
112 Seymour Papert
deixava para trás. Não é de admirar que não as visse em lugar nenhum, 
exceto nos diagramas de torta pelos quais lhe eram apresentadas as frações na 
aula. Agora, Debbie, a poeta, gradualmente começava a ver frações em toda 
parte. Ela estava no caminho para construir um novo relacionamento com 
frações, permitindo-lhes entrar em sua teia de interesses reais, em desafio às 
regras compartimentadas da escola, onde poesia é Poesia e matemática é 
Matemática. 
MATEMÁTICA DE COZINHA 
Uma recente "descoberta" feita por etnógrafos mostrou que as mulheres 
dedicadas a tarefas domésticas sabem e utilizam mais matemática do que se 
suspeitaria a partir dos tradicionais testes Escolares. No entanto, elas a sabem 
de formas diferentes daquelas ensinadas pela Escola. A antropóloga cognitivista 
Jean Lave3 observou como mulheres que trabalham na cozinha adaptam recei- 
tas para ajustar as quantidades necessárias. De um ponto de vista Escolar, isso 
parece ser um problema de frações (ou "proporções"), porém as mulheres não 
usaram os métodos numéricos que aprenderam na escola, mas sim métodos 
ad hoc "concretos" baseados em situações específicas. Os resultados da pesqui- 
sa acadêmica de Lave estão em sintonia com minhas próprias experiências 
informais (e certamente com as de muitos leitores). 
Senti-me muito surpreso quando uma amiga com quem estava cozinhan- 
do calculou dois terços de uma xícara e meia de farinha de trigo utilizando o 
seguinte procedimento: medir uma xícara e meia na tábua de massas, espalhá- 
la em círculo, dividir o círculo em três partes formando um padrão simétrico 
de fatia de torta e colocando uma fatia de volta na lata de farinha. Minha 
mente "vê" de modo tão direto um-e-meio como três porções (cada uma igual 
a um-meio) que precisei de tempo para interpretar o problema. Fui ajudado a 
perceber isso em perspectiva quando uma outra amiga, que leu um rascunho 
deste texto, observou que ela "vê" diretamente a identidade das plantas, en- 
quanto eu passo por um ciclo analítico de observar formas de folhas e estrutu- 
ras de flores. Ainda assim, embora ela tenha lido meu relato e feito um comen- 
tário inteligente, ela não "viu" o que eu “vi", já que prosseguiu oferecendo 
uma outra solução para o problema da farinha de trigo, que me deixou sem 
fôLego matemático tanto pelo que ela "viu" como pelo que não "viu". Ela disse 
3 Jean Lave é conhecida pelo seu trabalho com Aprendizagem Situada, em colaboração 
com Etienne Wcnger e depois com Seth Chaiklin. Seu livro mais conhecido é Cognition 
in practice: mind, mathematics and culture in everyday life (learning in doing). Cambridge: 
Cambridge University Press, 1988. 
A Máquina das Crianças 113
( h e s i t a n do e c e r t a me n t e p e n s a n d o à q u e p r o s s e g u i a , m a s c o m u ma 
Voz que expressava segurança): “Eu usaria a medida de um terço de xicaras... 
qualquer cozinha tem uma...você pode usá-la duas vezes para obter dois ter- 
ços de xícara... e então... se você usá-la uma vez, você obterá dois terços 
de meia xícara...então isso lhe dá dois terços de uma xícara e dois terços de 
meia xícara". Seu processo de pensatnento é ilustrado aqui. 
Uma representação do que poderia ter passado pela cabeça de alguém fazendo 
matemática de cozinha. 
114 Seymour Papert
Em minha linguagem de matemático redescrevi isso para mim mesmo 
como uma dedução: dois terços de meia xícara correspondem à metade de 
de dois terços de uma xícara, que correspondem a um terço de xícara. No entan- 
to, quando pedi à minha amiga que explicasse como seu procedimento funcio- 
naria, ela não soube dizer. A insegurança em matemática, herdada da Escola 
há muitos anos, ressurgiu, e ela começou com: “Oh... um meio... isso faz cinco 
terços... não é?", concluindo em voz baixa. A mudança no tom de voz falou 
bem mais alto. A voz forte e a competente matemática de cozinha diziam que 
ela estava no seu território; a voz fraca desmaiada e a incompetente excursão 
à matemática Escolar transmitiam que ela estava em um território que era 
“das outras pessoas" e de modo especial alienante para ela. 
Dois aspectos desse incidente, o epistemológico e o matético, são impor- 
tantes, assim como o relacionamento entre eles. A matemática de cozinha 
realça a futilidade da matemática Escolar de um ponto de vista que vai além 
da crítica dos modos da Escola tentar transmitir conhecimento. O que é ques- 
tionado aqui é o conhecimento em si: não apenas a Escola utiliza métodos de 
ensino defeituosos, mas o que ela ensina não é o que as pessoas utilizam quan- 
do tem de lidar com um problema real. Nenhum de nós, inclusive eu, utilizou 
a abstrata e formal abordagem da matemática Escolar, que seria converter 11/2 
em 3/2 e então fazer algo como: 
2/3 * 2/2 = 6/6 = 1 
A moral epistentológica central é que todos nós utilizamos formas com- 
cretas de raciocínio. A moral matética central é que, ao fazermos isso, de- 
monstramos que aprendemos a fazer algo matemático sem ser ensinado - e 
até mesmos apesar de termos sido ensinados a proceder de modo diferente. 
Esse uso amplamente difundido de métodos matemáticos que não foram 
ensinados não deve servir de motivo para um conformismo educacional. As 
pessoas ainda são limitadas no que podem fazer. A conclusão a ser extraída 
é que elas fazem de qualquer modo e assim não precisam de ajuda, mas 
sim que o que elas aprendem de maneira informal aponta para uma forma de 
saber e aprender que parecem ser naturais para as pessoas, mas que vai contra 
a natureza da Escola. A questão para os educadores é se podemos nos aliar a 
isso em vez de lutarmos contra tal fato. Para tanto, precisamos saber mais 
sobre o que "isso" é. Que tipo de aprendizagem encontra-se por trás do conhe- 
cimento da matemático de cozinha e como podemos promovê-lo e ampliá-lo? 
Poderíamos tornar a matemática de cozinha parte da Escola? 
Erraríamos inteiramente o alvo se fizéssemos isso vestindo os velhos exer- 
cios Escolares com roupagens de cozinha. O que fez a matemática de cozi- 
nha funcionar não foi que ela "pareceu relevante" porque "tratava de farinha 
A Máquina das Crianças 115
de trigo". Ela funcionou porque a ação matemática não foi separada do resto 
do trabalho de fazer um pão. Foi uma extensão das ações sintônicas, com 
sentimento de familiaridade, de manipular os instrumentos e ingredientes da 
cozinha. Poderíamos, de fato, tornar a matemática de cozinha parte da Escola, 
se tomássemos a Escola parte da cozinha. 
Um outro modo é reconhecer as maneiras pelas quais Debbie estava fa- 
zendo algo semelhante à matemática de cozinha. O computador era sua cozi- 
nha para escrever e ornamentar seus poemas, e entãoela pôde tornar o traba- 
lho sobre frações uma continuação sem emendas da poesia. 
MARIA CONSTRÓI UMA CASA 
A história de Debbie e o episódio sobre a farinha de trigo giram em torno 
do sentimento de conexão e desconexão das pessoas com a matemática. Na 
sociedade contemporânea, uma outra questão de dissociação, no final das con- 
tas mais nociva, domina o relacionamento da maioria das pessoas com a 
tecnologia. O capítulo sobre professores mencionou exemplos de melhorias 
nesse relacionamento. A adoção do computador como extensão de um estilo 
pessoal de ensino permitiu algo como a continuidade sem emendas da mate- 
mática de cozinha. Minha próxima história possibilita que uma criança utilize 
um brinquedo conhecido como sua cozinha. 
"Nós vamos brincar mesmo com isso? Aqui na escola?", perguntou ale- 
gremente um menino de quarta série ao entrar em uma sala onde havia mate- 
rial Lego em uma quantidade que ele jamais vira em um único espaço. A sur- 
presa inicial de Francisco ao encontrar esse tipo de coisa na escola em breve 
seria superada por maiores surpresas de como esse material era diferente do 
que ele tinha em casa. Além dos familiares tijolinhos de plástico, havia engre- 
nagens e motores cujos usos ele logo compreendeu, alguns objetos mais miste- 
riosos chamados "sensores" e, mais surpreendente, uma forma de conectar os 
motores e sensores a um computador. Ele foi informado de que, com os sensores, 
poderia fazer modelos Lego capazes de ver e sentir. Embora não acreditasse 
multo nisso, ele tinha certeza de que iria se divertir um bocado. 
Maria,4 uma colega de turma de Francisco, teve uma reação mais com- 
plexa. O prazer de prever que qualquer coisa que acontecesse seria pelo me- 
nos uma mudança da aula habitual para aquela hora teve um toque de apreen- 
são. Realmente, seu sentimento inicial de que aquilo era coisa de meninos foi 
logo reforçado quando a professora, que também não parecia muito confortá- 
4 Nota do autor: Maria é uma colagem interpretativa de várias alunas. No entanto, 
estou convencido de que qualquer uma delas poderia ter agido e pensado do modo 
como a descrevo. 
116 Seymour Papert
vel consigo mesma, mostrou um caminhão construído por outra turma. O ca- 
minhão podia ser colocado em movimento e parado ou colocado em marcha à 
ré digitando-se no computador. A professora comentou com maís entusiasmo 
que o caminhão podia dar ré por conta própria no caso de atingir um obstácu- 
lo: "Todos vocês logo poderão construir algo como isso e passarão a entender 
como muitas coisas funcionam". Maria sentiu um aperto familiar no estóma- 
go. Embora tivesse gostado de entender como muitas coisas funcionam, real- 
mente não conseguia ver-se entusiasmada construindo caminhões. Quando 
ouviu que a classe faria isso durante dois periodos, duas vezes por semana, 
durante seis semanas, seu conflito transformou-se em pânico. 
Na semana seguinte, as Marias e os Franciscos da turma estavam traba- 
lhando com o que aprenderam a chamar de workshop Lego-Logo, criando 
uma versão de quarta série da imagem de "duas culturas" tornada famosa 
por C.P. Snow.5 Francisco escolheu a opção de construir um caminhão e se- 
guiu adiante inventando um mecanismo de câmbio automático para colocar 
seu veículo na primeira marcha quando tivesse que subir uma rampa íngre- 
me. Outros meninos abandonaram a ideia de caminhão para construir ro- 
bós, "animais" fantásticos e outras construções que se mexiam, giravam, ter- 
miam e faziam barulho. 
Do outro lado do divisor cultural, Maria e três de suas amigas estavam 
fazendo algo bem diferente. Bastante aliviadas por descobrir que não seriam 
forçadas a fazer caminhões, elas estavam construindo uma casa. As meninas 
não estavam tentando inventar uma máquina que “faria algo"; estavam, sim, 
fazendo algo que lhes era familiar e que seria "bonito". 
Foi uma continuação daquilo que tinham feito com Lego na época em que 
brincavam em casa quando crianças, antes que sua crescente sofisticação su- 
perasse o limitado estoque de materiais disponíveis. Aqui, um conjunto bem 
maior de peças Lego proporcionou-lhes uma oportunidade para fazer o que 
anteriormente gostariam, porém em uma escala maior, melhor e mais bonita. 
Além da mera quantidade de material, elas não aproveitaram as caracteristi- 
cas especiais desse novo conjunto Lego; não utilizaram motores, sensores ou 
conexóes para o computador. O divisor cultural era dramático, mas bastante 
familiar: tecnologia versus arte, ciência versus humanidades. Aqueles de nós 
que estavam conscientes dessas questões observaram intrigados. Como essas 
crianças lidariam com o problema que C.P Snow considerou insuperável? Elas 
aceitariam o divisor? Teriam condições de transpô-lo? E desejariam fazer isso? 
5 Duas culturas é o título de um livro muito conhecido publicado em 1959 pelo escritor 
inglês Charles Percy Snow. Sua tese é que a quebra de comunicação entre as "duas 
culturas" (ciências versus humanidades) da sociedade contemporânea tornou-se um 
empecilho para a resolução de problemas mundiais. O livro foi publicado no Brasiul com 
o mesmo titulo pela Editora EDUSP (São Paulo), em 1995.
A Máquina das Crianças 117
Levou tempo, mas, no final, Maria e suas amigas encontraram seu pró- 
prio meio de atravessar a lacuna cultural. Sua maneira de fazê-lo é rica em 
insights sobre como o divisor está enraizado em nossas culturas e escolas, 
como está ligado a outras divisões de estilo, gênero e etnias e como isso pode 
ser superado. 
Durante a primeira semana, o grupo de Maria aprendeu como explorar o 
divisor. Cada criança levou para o acervo comum do grupo uma quota de 
partes Lego. Já que a troca com outros grupos foi permitida para que houvesse 
maior flexibilidade nos projetos individuais, um mercado desenvolveu-se, no 
qual as partes mais procuradas eram precisamente os motores e sensores que 
o grupo de Maria não valorizava, enquanto as partes menos valorizadas pelos
agressivos “comerciantes” eram as peças bonitas, mais apropriadas para cons- 
truir casas. Maria estava divertindo-se de muitas formas. Explorar o mercado
para obter materiais para uma bela e espaçosa casa proporcionou-lhe um certo
prazer empresarial; resolver problemas geométricos e técnicos de construção
proporcionou-lhe uma fonte de prazer intelectual e uma forma de ser aceita
devido ao resultado de todo o trabalho; a casa deu-lhe prazer estético. Ela
encontrara um nicho. Agora, a questão que se coloca é: ela iria acomodar-se e
permanecer naquele ponto?
Naturalmente, não! Por volta da segunda semana, havia sinais de anseio 
(yearnings) em outras direções. Um desejo de entrar no mundo da tecnologia 
estava evidenciando-se no modo como as meninas olhavam para os projetos 
dos colegas. Próximo à terceira semana, os observadores identificaram o desse- 
jo em uma forma mais concreta, quando perceberam que havia uma minúscu- 
la luz acendendo e apagando em um cantinho escondido dentro da casa. Era 
como se as meninas desejassem apropriar-se da tecnologia, mas tivessem de 
fazê-lo com muita discrição para vencer as censuras internas. A ideia de fazer 
qualquer coisa tecnológica contrariava diretamente a natureza do senso de 
identidade daquelas meninas de famílias muito tradicionais. Elas queriam apro- 
priar-se da tecnologia e provavelmente sempre desejaram apropriar-se do lado 
tecnológico do mundo, mas tiveram que o fazer, por assim dizer, por trás das 
suas próprias costas, de forma quase invisível tanto para os outros quanto para 
elas mesmas. 
Embora os meninos com seus barulhentos caminhões talvez não tivessem 
considerado uma luz piscando um projeto muito interessante, as construtoras 
da casa estavam orgulhosas da sua conquista, que, de fato, era menos modesta 
em sua aparência do que em sua realização, já que as levou a defrontar-se com 
o computador. É interessante acompanhar detalhadamente a história das es- 
caramuças vencidas por elas, na luta para programar computadores.
A história inicia com um procedimento fácil. A princípio,elas tiveram 
que conectar a luz à caixa de interface, o que não era muito diferente de ligar 
118 Seymour Papert
uma lâmpada, em casa, a uma tomada elétrica. O passo seguinte trouxe grati- 
ficação imediata: fazer a luz acender e apagar digitando no computador as 
palavras LIGA e DESLIGA produziu um sentimento bem diferente de ligar um 
interruptor! Nesse meio tempo, a empolgação era grande, o que era muito 
bom, pois proporcionou ao grupo uma prova do sucesso que as levou a superar 
as dificuldades que enfrentariam. 
Tais dificuldades começaram com o projeto de fazer as luzes piscarem 
acendendo e apagando automaticamente. O instrumento disponível para isso 
era a linguagem Logo, cujos elementos as meninas mal conheciam a partir de 
um trabalho com desenhos iniciado algumas semanas antes. Uma delas sabia 
o suficiente para digitar:
REPITA [LIGA DESLIGA] 
O computador respondeu com uma "mensagem de erro", indicando ser 
necessário dizer quantas vezes. Elas mudaram a instrução para: 
REPITA 10 [LIGA DESLIGA] 
Dessa vez, o computador não reclamou: a instrução foi dada em Logo 
gramatical, e o computador executou-a porém de uma forma que foi uma 
lição sobre como interpretar o ditado de que os computadores fazem exata- 
mente o que lhes mandamos fazer, nem mais nem menos. Isso é verdade em 
certo sentido. Os computadores, de fato, fazem o que se manda que façam. 
Entretanto, quando lhes mandamos fazer algo, nem sempre lhes estamos man- 
dando fazer o que pensamos. Nem o que eles fazem é sempre o que parece ser. 
Nesse caso, o computador não parece ter feito o que foi mandado. A luz 
acendeu e apagou, deixando as impacientes observadoras esperando ansiosa- 
mente que as luzes piscassem novamente, o que não aconteceu. O que estava 
acontecendo? As meninas, surpresas e frustradas, responderam de uma forrna 
análoga ao hábito comum de falar em um tom mais alto, em um país estran- 
geiro, com as pessoas que não entendem uma solicitação na própria língua: 
elas tornaram o comando mais "insistente", aumentando o número de pisca- 
das que pensaram estar mandando o computador fazer: 
REPITA 1000 [LIGA DESLIGA] 
A mudança não resolveu o problema, mas exerceu um efeito que lhes 
proporcionou algo para pensar. A luz ainda acendeu uma vez, mas permane- 
ceu ligada por um período de tempo maior antes de desligar "Ele não sabe a 
diferença entre muitas vezes e uma vez longa", disse uma das meninas: "Ele é 
A Máquina das Crianças 119
burro mesmo'". Todas riram, mas o prazer com sua teoria do comportamento 
do computador em breve foi substituído por frustração; é gratificante culpar a 
máquina e experimentar a sensação de entender seu comportamento descabi- 
do, porém as luzes ainda não estavam piscando. Contudo, a teoria de fato 
levou a ações construtivas. A primeira ação foi tentar confirmar a teoria tem- 
tando REPITA 10000. Sim, de fato a luz permaneceu ligada por mais tempo; 
pela estimativa delas, dez vezes mais tempo, mas ainda realizou apenas um 
ciclo acende-apaga. Sugerir uma experiência é uma boa qualidade para uma 
teoria - e nessa ocasião a experiência funcionou, parecendo confirmar a teo- 
ria. No entanto, a meta de fazer as luzes piscarem não fora atingida. 
De modo interessante, o que as aproximou mais da meta foi uma outra 
qualidade da teoria, talvez até mesmo melhor: originar insight sugerindo per- 
guntas proveitosas. Alguém acreditou suficientemente na teoria para pergun- 
tar: "Mas como isso pode acontecer? Como pode muitas vezes ser confundido 
com uma vez longa?" Novamente a burrice das máquinas divertiu as meninas 
como uma primeira resposta, mas seu atrativo como princípio explanatório 
logo se esgotou. "Eu sei", disse uma delas, "ele vai tão rápido que você não 
consegue ver. Os computadores são muito rápidos. Ele realmente está fazendo 
10 mil vezes, mas todas elas acontecem juntas". Ah! O insight revelou-se útil, 
levando ao prazer e à ação que resolveria o problema. Maria disse "É, ele está 
indo rápido demais; diga-lhe para ir mais devagar". Após rirem um pouco da 
ideia de que 10 mil piscadas poderiam ocorrer tão rápido a ponto de tornarem- 
se invíveis, alguém perguntou "Como?" , e uma outra disse "Espera aí... Ei, é 
isso! Eu lembro que você pode dizer ESPERE em Logo". Então elas digitaram: 
REPITA 10000 [LIGA ESPERE DESLIGA ESPERE] 
Embora elas estivessem no caminho, ao ser resolvido um grande proble- 
ma c r iou- se um pequeno . Mais uma vez , uma que ixa ve io do computado r : 
exa tamente como as meninas hav iam fa lhado an tes em ser especi f i cas com 
relação a quantas vezes repetir , elas agora não disseram durante quanto tem- 
po esperar. Então, conhecendo um pouco das característ icas do Logo , tenta- 
ram “dar um número para o ESPERE”: 
REPITA 10000 [LIGA ESPERE 5 DESLIGA ESPERE 5] 
Elas tiveram sorte. O número era adequado e produziu um efeito intermi- 
tente, o que lhes proporcionou uma outra sensação de sucesso, dessa vez ainda 
maior . Elas ainda não estavam tota lmente sat is fei tas com a maneira como o 
sistema pisca-pisca funcionava, mas estavam demasiado eufóricas para perder 
tempo com isso naquele dia. No dia seguinte, brincararn com os números para 
um ritmo mais agradável de pisca-pisca. As meninas determinaram: 
120 Seymour Papert
REPITA 10000 [ESPERE 4 DESLIGA ESPERE 10] 
Fazer piscar indefinidamente uma única luz no recôndito de uma casa 
feita com Lego foi um pequeno passo no mundo da tecnologia, mas quebrou o 
gelo. Após mais uma sessão, havia muitas luzes piscando na casa. Uma sema- 
na depois as meninas estavam usando todo o seu charme para readquirir um 
motor que haviam antes trocado por peças Lego mais bonitas: elas agora que- 
riam uma árvore de Natal giratória na sala da casa. Isso não era tarefa simples. 
Acertar as engrenagens para isso as levou a outros tipos de dificuldade, dessa 
vez na esfera da engenharia mecânica em vez da programação de computado- 
res. Entretanto, antes que seu tempo com o Lego tivesse esgotado, cruzaram 
também essa barreira técnica e construíram por conta própria, além de uma 
obra de arte e tecnologia, uma primeira ponte, embora ainda tímida, cruzando 
a barreira cultural. 
É uma metáfora útil pensar em Maria como cruzando uma única barreira - 
aquela que a separa de todas as atividades programadas em seu senso de iden- 
dade sob os rótulos “eu não posso fazer isso" e "isso não é para mim". Cada 
vez que ela cruza a linha, aproxima-se mais de entender que esses rótulos não 
são imutáveis. Saber que se pode exercer repetidamente a escolha de dar for- 
ma à própria identidade intelectual pode ser a ideia mais fortalecedora da 
autonomia que alguém possa atingir. A história de Maria tomou-se emblemática 
de algo mais do que essa ideia em sua forma elementar. Ela carrega outras 
mensagens referentes ao exercicio da escolha. Maria poderia, desde o início, 
ter sucumbido pressão cultural, construindo um caminhão como os meni- 
nos. É muito provável que fazer isso a teria levado a uma experiência desagra- 
dável e reforçado ainda mais sua profunda sensação de que aquilo não era 
para ela. Em vez disso, Maria seguiu seus bons impulsos interiores, engajando- 
se em atividades que pareciam ser adequadas para ela, enquanto se mantinha 
aberta para evoluir em uma nova direção. O problema para os educadores é 
como intensificar e ampliar todos os aspectos do que vimos nessa história. 
Projetar o Lego-Logo foi um pequeno, mas construtivo, passo em direção a 
saber como suprir o material que servirá, bem como a infra-estrutula tecnoló- 
gica, para ambientes de aprendizagem adequados. O lado mais importante do 
problema, porém, é nutrir o tipo adequado de cultura de aprendizagem. 
Alguns educadores poderão imaginar que o processo seria mais eficiente 
e mais confortável se um professor tivesse sugerido desde o início o projeto da 
luz intermitente. Há até pesquisadores que sonham em programar um compu- 
tador para “diagnosticar" dificuldades individuais em tais situações e prescre-ver caminhos para a aprendizagem. Minha preocupação é que essa linha de 
pensamento carrega o risco de omitir um fato essencial: o que foi fortalecedor 
para Maria e suas amigas não foi fazer as luzes piscarem, mas descobrir sua 
própria maneira de contornar seus próprios obstáculos internacionalozados. Embor- 
A Máquina das Crianças 121
ra um professor pudesse, evidentemnte, ter dado alguma orientação, é difícil 
imaginar tarela mais delicada, ou mais difícil, do que atribuir a qualquer 
computador, eu veria minha melhor contribuição como sendo reexaminar a his- 
tória depois.de um modo que pudesse consolidar a consciência das alunas de 
quão bem elas saíram-se no problema. 
Por exemplo, gostaria de ter certeza de que as meninas perceberam que 
construir a casa foi uma excelente estratégia para mobilizar seus próprios pontos 
fortes e autoconfiança em uma situação difícil. Os tópicos a discutir não seriam 
Lego, luzes e motores, mas formas de lidar com situações intelectualmente 
Difíceis ou desconfortáveis. Poderia incluir conversas sobre estratégias para 
resolver problemas c administrar projetos. E, se me sentisse suficientemente 
seguro com os alunos em termos emocionais, falaria sobre questões de gênero 
e de etnia. A cxtensáo na qual eu politizaria a discussão dependeria do contex- 
to, mas, se as alunas tomassem a iniciativa, certamente falaria sobre o conteú. 
do político do que elas fizeram, não apenas porque penso que a dimensão 
política não devc ser ocultada, mas também porque sem ela as meninas não 
teriam a exata noção do poder intelcctual do scu próprio trabalho. 
A vantagem educativa do workshop Lcgo-Logo foi prover espaço de traba- 
lho para que os alunos se apropriassem, de forma bem pessoal, daquilo que 
descobriram. Um fator que possibilitou isso foi uma atitude de ensino que 
poderia scr chamada de tolerância cxigcnte: esperava-se que as crianças tra- 
balhassem intensamente em um projeto relacionado aos temas do workshop, 
mas elas dispuseram de amplo espaço para escolher o projeto. Se a tolerância 
fosse o único fator, a mesma atitude de ensino poderia resolver todos os pro- 
blemas educacionais. Ela não foi o único. Um outro tipo de fator é inerente ao 
material Lego-Logo e à cultura de aprendizagem apoiada por ele. Muitos pro- 
fessores esforçam-se para levar para suas aulas tradicionais algo muito seme- 
lhante à atitude de ensino desse workshop. Contudo, a tolerância é enganado- 
ra, mesmo que as intenções sejam boas, se a demanda for para que as crianças 
encaixem-se na camisa-de-força do currículo tradicional, especialmente em 
disciplinas como matemática e ciências, nas quais o espaço de trabalho para 
apropriação pessoal é muito limitado. 
APRENDIZAGEM DIVERTIDA 
Debbie fez conexões com frações, enquanto Maria, com engenharia. Cada 
história teve um enredo principal com um final feliz claramente colocado. 
Todavia, uma tessitura delicada de conexões menores foi igualmente impor- 
tante. Maria achou engraçado que mil eventos pudessem ocorrer em uma fra- 
ção de segundo; mil pode ser um número grande, mas pode ser um minúsculo 
pedacinho de tempo. O conceito é importante em si. Muito mais significativo é 
122 Seymour Papert
o fato de que ela apropriou-se dele porv meio de uma brincadeira ligando ma- 
temática e humor, algo para qual há pouco espaço na matemática Escolar.
A conversa de um amigo com sua filha pequena ilustra como um misto de 
seriedade e humor ocorre espontaneamente em algumas culturas familiares. 
I s s o f a v o r e c e o d e s e n v o l v i m e n t o m a t e m á t i c o , a o c o n s t r u i r u m a 
teia rica de concxões. 
Criança: Papai, você sabe que dois é a metade de quatro? 
Pai: Isso é interessante; sim, eu sei. E você sabe qual a metade de seis? 
Criança: (pensa um pouco): Três. 
Pai: E qual é a metade de três? 
Criança: (pensa por um tempo mais longo): Qual metade? 
Pai: (que dessa vez parou para pensar): A metade grande. 
Criança: Dois. 
Pai: E a outra metade? 
Criança: (como quem diz "quem-você-pensa-que-eu-sou"?): Um, é claro! 
Perderíamos o espírito da história se não conhecêssemos a atmosfera dessa 
família, onde tais coisas são levadas muito a sério mas também tratadas com 
humor. "Que metade?" poderia tornar-se uma piada na cultura familiar, e por 
meio de pequenos incidentes como este os números poderiam ser tecidos na 
cultura familiar como algo para se brincar e fazer piadas. O interessante aqui 
não é que uma criança tenha aprendido o Conceito Importante de que os nú- 
meros pares têm metades exatas e os ímpares não. O interessante é que uma 
família proporciona, no cotidiano, muitas oportunidades para a apropria- 
ção da matemática como uma dimensão carinhosa e aconchegante da vida 
familiar, conectada a outras dimensões com as quais seus membros sentem-se 
à vontade. 
Muitas ocorrências humorísticas em aulas de Logo partilham um pouco 
da qualidade desse incidente familiar. Um exemplo ampliará a perspectiva de 
c o m o o s a m b i e n t e s L o g o p o d e m s e r r i c o s e m c o n e c t a r i n c i d e n t e s . 
Dawn, uma menina da educação infantil, estava brincando com um pro- 
grama Logo que permitia desenhar objetos Logo na tela e colocá-los em movi- 
mento. As linhas de entrelaçamento formaram padrões cinéticos como aque- 
les que fascinaram Brian e Henry (embora, evidentemente, mais simples). A 
velocidade de um objeto era controlada teclando-se um número. Assim, a criança 
poderia constatar que a velocidade dez era muito mais rápida do que a veloci- 
dade dois e até mesmo começar a fazer tentativas em direção à ideia de que a 
velocidade dois é duas vezes mais rápida do que a velocidade um. 
Em pouco tempo, Dawn mostrou-se muito empolgada e chamou a pro- 
fessora e uma amiga para verem o que havia feito na tela. Ela digitou algo com 
o dedo escondido pela outra mão, de modo a ocultar o que estava teclando.
Todos olharam com expectativa. Dawn disse "Vejam!" e nada aconteceu. Dawn
A Máquina das Crianças 123
disse "Vejam, vejam!" e levou certo tempo até que a professora entendesse: 
nada estava ocorrendo porque ela colocara a velocidade zero. Lentamente, 
ficou claro que zero era uma velocidade, de modo que ficar parado é mover- 
se-mover-se em velocidade zero. 
Entendo o que ocorreu com Dawn como uma repetição de um evento 
matemático historicamente significativo. Lembro de ter ouvido, quando esta- 
va na quarta ou na quinta série, que os matemáticos hindus descobriram o zero 
e puseram-se a pensar sobre o seu significado. O que eles descobriram? 
Apenas o uso de um símbolo circular? O que eles - e Dawn - descobriram foi 
que o zero podia ser tratado como um número. Desde então, verifiquei que 
Dawn não foi a única criança a fazer essa descoberta. E para isso não foi neces- 
sário um computador. De fato, uma enquete com os participantes de um en- 
contro de professores mostrou que aproximadamente um em cada dez dos 
que tinham filhos observaram um momento de brincadeira animada do tipo 
"Tem alguma cobra nesta casa? Sim, tem zero cobras".6 
O fato de muitas crianças fazerem descobertas semelhantes sem um compu- 
tador aumenta, em vez de diminuir, meu entusiasmo pelo episódio com Dawn. 
Ele mostra que isso não é uma estranha singularidade relacionada com com- 
putadores ; faz par te do desenvolvimento do pensamento matemát ico . 
Certamente o computador contribui para tornar a descoberta mais provável e 
também para torná-la mais rica. Dawn pôde fazer mais do que rir da piada e 
brincar com a professora e a amiga: aceitar zero como um número e aceitar 
ficar parado como sendo mover-se com velocidade zero aumentou seu espec- 
tro de ação. Pouco tempo depois, ela seria capaz de escrever programas nos 
quais um movimento podia ser interrompido pelo comando MUDEVELOCIDADE 
0. Ainda mais interessante, a piada pode ser ampliada. A tartaruga obedecerá
ao comando PARAFRENTE - 50 andando cinquenta passos para trás. Similar- 
mente, o comando para ir para trás uma quantidade negativafará a tartaruga
andar para frente. Então os números negativos também são números, e sua
realidade cresce no decorrer das brincadeiras com a tartaruga.
Observar a delicada tessitura da experiência de Maria mostra tipos dife- 
rentes de oportunidade para a aprendizagem incidental. Um desses é experi- 
mentar. As meninas repetiram uma situação que tem ocorrido repetidamente 
na ciência. A princípio elas ficaram intrigadas - e isso em si tornou a situação 
muito mais real do que o laboratório escolar habitual de experiências científi- 
cas, que tipicamente estuda uma questão que não tem incomodado mais nin- 
guém durante os últimos 100 anos. Elas discutiram hipóteses e eventualmente 
se decidiram por uma que pareceu provável. Montaram uma experiência para 
testar sua hipótese, que em essência foi confirmada, mas requereu alguma 
6 Outras formas desse conceito estão na cultura, como por exemplo zero hora, zero 
quilômetro, ete. 
124 Seymour Papert
modificação. Estreitar a hipótese levou a novos desenvolvimentos que as me- 
ninas perseguirarn. Esse tipo de atividade é muito semelhante à "ciência", po- 
rém muitíssimo diferente da "ciência da Escola". 
Meus relatos sobre Debbie e Maria têm um aspecto "remediador: suas 
protagonistas são apresentadas como melhorando um relacionamento inicial- 
mente pobre com uma área de conhecimento. Ser "remediadora" não é real- 
mente a essência das histórias pois seria possivel lê-las mostrando como um 
relacionamento inicial saudável pode crescer. De qualquer maneira, mostram 
estágios iniciais de um relacionamento saudável com a matemática ou a 
tecnologia. A próxima história apresenta um quadro de um relacionamento 
muito mais desenvolvido. 
A INVENÇÃO DE RICKY 
Ricky era um aluno de quarta série quando veio pela primeira vez ao 
Laboratório de Lego no MIT. Não sei o que ele fez em suas primeiras sessões. 
Tomei consciência de seu trabalho quando ele iniciou um projeto para fazer 
um robô que se movimentasse por vibração. 
A ideia-chave surgiu de algo que a maioria das pessoas já observou algu- 
ma vez: quando as máquinas vibram, elas tendem a movimentar-se. Uma má- 
quina de lavar desequilibrada, além de fazer muito barulho e aparentemente 
tentar partir-se em pedaços, também tende a movimentar-se, a menos que 
esteja firmemente apoiada. Tal fenômeno, às vezes chamado de "trepidação", 
em geral é visto como um incômodo a ser superado, reduzindo-se a vibração 
do aparelho ou apoiando-o de modo mais seguro, Ricky usou um caminho 
diferente. Ele observou uma construção Lego vibrando e pensou em usar a 
tendência a trepidar como um meio de locomoção. Foi um caso típico de 
serendipidade - transformar uma observação acidental em vantagem. Com 
frequência, observa-se que descobertas importantes começam com observa- 
ções acidentais atribuídas à "sorte". No entanto, mesmo que o sucesso na ciên- 
cia e alhures seja 90% sorte, esta não basta sem alguns outros ingredientes, 
como curiosidade para entender e ir ao encalço, energia, persistência, exercí- 
cio de inteligência e, acima de tudo, o sentimento de estar em um ambiente 
que oferece suporte. Ricky apresenta todos eles de uma forma impressionante. 
Tendo observado que um motor Lego desloca se quando vibra, sua pri- 
meira questão foi como aumentar a vibração. Como se pode fazer que ele 
vibre mais, de modo eficaz? 
Um bom principio no qual Ricky mostrou ser um mestre nas muitas ou- 
tras situações em que pude observá-lo em atividade é procurar por aconteci- 
mentos familiares em que o que você busca está bem-representado. Rick en- 
controu uma girando seu braço violentamente. O movimento do braço fez que 
seu corpo se movesse de uma maneira aparentemente aleatória. Se isso ocor- 
A Máquina das Crianças 125
resse mais rápido, seria "vibração". Então, ele começou a providenciar um 
braço para o motor Lego. 
Tal situação obrigou Ricky a considerar a pergunta: "O que é um braço?" 
O braço humano é um sistema complexo, e Ricky simplificou-o. Para seu obje- 
tivo, o relevante era que o braço pudesse rodar no ombro e girar o antebraço 
de uma forma descontrolada. Então ele procurou em volta por peças Lego que 
pudessem simular tais características do braço. A coisa funcionou. O motor 
Lego equipado com esse braço vibrou mais e movimentou-se mais. 
O passo seguinte foi construir um veículo que pudesse usar essa fonte de 
Locomoção. A ideia de Ricky era fazer uma plataforma com pernas, montar o 
motor sobre a mesma e deixá-la vibrar. Essa construção apresentou um defeito 
fatal. Quando o motor foi ligado, vibrou de modo tão violento que a geringonça 
inteira desmontou-se e peças Lego voaram para os lados. 
O que se poderia fazer? Ricky considerou dois cursos de ação: reduzir a 
vibração ou aumentar a resistência da estrutura. É claro, o segundo curso 
pareceu mais atraente. Mas como poderia ser executado? A primeira ideia foi 
acrescentar muitas braçadeiras e fortalecer a coisa toda, mas logo ficou apa- 
rente que isso o tornaria tão pesado que seria improvável que o veículo se 
movimentasse. Então veio a próxima ideia brilhante: torná-lo pequeno e com- 
pacto. 
O motor ainda vibrava. O mecanismo não se desintegrou. Ele até mesmo 
se movimentou um pouco, mas caiu como se estivesse tropeçando em seus 
próprios pés. Rícky parou o motor, colocou-o de pé, tentou de novo, o mesmo 
resultado. E agora? 
A solução veio de um colega de turma. Dê-lhe pés! Por quê? Como? O 
debate rapidamente deu curso à ação. Rodas Lego foram utilizadas como sapa- 
tos, como o leitor pode ver na figura adiante. Houve uma dúvida momentânea 
com relação a se sería ilegal usar rodas, já que era para ser um veículo sem 
rodas. Mas isso foi rapidamente resolvido: as rodas não estariam sendo usadas 
como rodas. Se elas fossem quadradas, teriam servido igualmente bem ao 
propósito, porém o que dispunham eram rodas redondas, então foram utiliza- 
das. Quando a ideia foi aceita, ela foi apreciada com prazer, e o fato de serem 
rodas que não eram rodas tornou-se uma parte saliente da descrição de Ricky 
de seu trabalho, que elc tinha prazer em explicar para quem perguntasse. 
Funcionou! Funcionou até mesmo melhor do que se poderia ter espera- 
do. A pequena máquina não apenas se movia rapidamente, mas fazia um atraen- 
te barulho grave de máquina sem defeitos. 
E agora? Não se deve abandonar um bom projeto apenas porque deu 
certo. Brincar com o robó levou a um novo problema e ao núcleo de uma 
solução. Com o motor funcionando, o dispositivo movimentava-se suficiente- 
mente bem, porém em uma trajetória aleatória. Ele poderia ser guiado? Mais 
uma vez, o momento de descoberta foi perdido no entusiasmo, mas de repente 
126 Seymour Papert
O ambulante vibrador. 
todos ao redor sabiam que, ao se por em movimento, o dispositivo mudava 
ligeiramente de direção. Os físicos têm um nome para a causa do pulo: eles o 
chamam de conservação do momento angular. Na prática, o que isso significa 
é que, quando o motor começa a virar-se para um lado, algo conectado com 
ele tem que virar para o outro. Isso pode parecer inacreditável - o que espero 
seja o caso (exceto para aqueles que estudaram física ou dança), pois a afirma- 
tiva contraria muitas observações comuns. Ricky e seus amigos, porém, não 
pararam para preocupar-se sobre o que os físicos poderiam dizer. Eles tiveram 
a semente de uma ideia. Talvez fosse possível guiar o robô ligando e desligan- 
do o motor. 
Fazer isso requereu alguma habilidade; não obstante, foi uma solução. A 
máquina podia ser guiada! 
Próximo problema: ela poderia guiar-se para andar em uma linha mais 
ou menos reta? Sim, poderia, e Ricky sabia muito bem como fazer isso. Tenho 
certeza de que, se naquele momento ele tivesse tido acesso à tecnologia um 
tanto melhor que temos hoje, teria levado a cabo o projeto de autodireciona- 
mento. Conforme ocorreu, fazer isso com os meios ao seu dispor era demasia- 
do confuso e precisaria de tanta ajuda que ele preferiu voltar seu interesse 
para outras direções. 
AMáquina das Crianças 127
Embora Ricky estivesse trabalhando em um nível mais avançado, seu 
método teve muito em comum com o que vimos nas outras histórias. Assim 
como Debbie e Maria e como as praticantes da matemática de cozinha, ele 
trabalhou intuindo seu caminho. Ricky nâo seguiu um plano exato e, embora 
tivesse uma meta e estivesse determinado a concretizá-la, permitiu que sua 
meta evoluísse enquanto trabalhava. Ricky não construiu um robô com base 
em métodos ou materiais feitos para esse propósito, mas usou o que tinha à 
mão, até mesmo sentindo prazer em utilizar algo feito para um propósito 
inteiramente diferente. 
O modo de trabalhar de Rickv com seus elementos de improvisação e de 
negociação com o trabalho em progresso é um excelente exemplo do que Sherry 
Turkle e eu chamamos de bricolagem, adaptando do francês o termo utilizado 
pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss, cuia tradução mais próxima (porém 
inadequada) poderia ser a palavra inglesa “tinkering".7 
DIRTY DANCING8 
Neste livro, utilizei histórias de muitos tipos diferentes para desenvolver 
concepções de aprendizagem. Algumas são parábolas inteiramente da minha 
imaginação; outras, descrições de eventos reais, e as demais são cenários ima- 
ginários. A história a seguir foi extraída de um filme - um longa-metragem de 
ficção que não foi, pelo que sei, realizado por profissionais especializados em 
aprendizagem. Professores universitários monótonos, a essa altura impacien- 
tes com minha metodologia não convencional, poderiam comentar que real- 
mente estou indo longe demais. Como pode um filme ser uma fonte válida de 
ideias sobre Educação? 
Quero ir além de justificar meu uso de um filme; quero encorajar qual- 
quer um que esteja interessado em aprender a ver a cultura em geral como 
uma fonte de ideias e uma base para discussões, a também ver do mesmo 
modo suas experiências pessoais. Tal recomendação deriva de considerar a 
aprendizagem como uma dimensão da vida, como relacionamentos, espiritua- 
lidade ou sensibilidade estética. Em todas essas dimensões, desenvolvemos 
refinamento e sensibilidade a partir de produtos da imaginação - romances, 
7 O termo está dicionarizado em português como bricolagem, significando, segundo o 
Houaiss Eletrônico (2001), "trabalho ou conjunto de trabalhos manuais feitos em casa. 
na escola, etc., como distração ou por economia " O autor fez o comentário no final 
deste parágrafo porque o termo não está dicionarizado em inglês “Tinkerer" é usado 
em inglês para uma pessoa que gosta de consertar coisas sem ser profissional. 
8 Literalmente, "Dança Suja”. Título do conhecido filme norte-americano exibido no 
Brasil como Ritmo quente (1987). 
128 Seymour Papert
teatro pintura. Essas obras podem em certo sentido ter sido “inventadas”, 
mas, em outro, transmitem verdades tão profundas e com frequência mais 
precisas do que experiências conduzidas por cientistas para iluminar tais tópi- 
cos. Acredito que podemos nprender sobre aprendizagem de uma forma se- 
melhante; e faríamos isso em uma extensão ainda maior se praticássemos a 
discussão critica desse aspecto da arte. 
Há também um outro motivo pelo qual os especialistas em aprendizagem 
deveriam observar seriamente a representação da aprendizagrm na ficção, 
pois, mesmo que decidissem olhar com desdém para a ficção como fonte de 
conhecimento, eles podem ter certeza de que outros, possivelmente de forma 
inconsciente, serão influenciados pelas imagens de aprendizagem predomi- 
nantes na cultura popular. E, se esses outros forem estudantes ou pessoas como 
pais, que influenciam os estudantes, suas imagens de aprendizagem cenamen- 
te afetarão o modo como ela ocorre de fato.9 
O filme Dirty dancing é uma história de aprendizagem no mesmo sentido 
em que Romeu e Julicta é uma história de amor. Em suas cenas iniciais, vemos 
Jennifer Grey no papel de Baby, uma estudante idealista cujo andar c postura 
desajeitados certameme transmitem a mensagem de que ela se ocupava com 
interesscs intelectuais, enquanto seus pares desenvolviam a sensibilidade cor- 
poral e de movimento por meio de atividades físicas. Baby não é nenhuma 
dançarina e conhece tão pouco de dança que parece não ter qualquer ideia da 
magnitude da aprendizagem que seria necessária quando se prontificou a subs- 
tituir o par feminino em um espetáculo de dança a menos de uma semana da 
estréia. Na verdade, um professor crítico poderia atribuir a mesma ignorância 
ao autor de uma história que mostra Baby executando o ato competentemente 
após uma semana de trabalho intensivo com o par masculino (interpretado 
por Patrick Swayze). De minha parte, não sei se essa velocidade é verossímil, 
mas sei que é muito mais plausível que seja atingida por um processo de apren- 
dizagem como aquele mostrado no filme do que pelo tipo de processo pratica- 
do na Escola. 
Seja como for, o connoisseur em aprendizagem terá mais interesse na 
qualidade da experiência de Baby do que em conjecturas sobre o tempo neces- 
sário para atingir sua meta. O que tomou o filme convincente foi a credibilidade 
das caracierisricas de uma boa aprendizagrm que ele colocou sob o centro de 
atenções. O fato de algumas dessas característic as (entre elas possivelmente a 
velocidade da aprendizagem) estarem apresentadas de forma intensificada, 
9 Esse fenômeno tem sido estudado por filósofos sob o nome de imitação; e por teóricos 
de aprendizagem como aprendizagem vicariante, aprendizagem por observação, ou 
simplesmente imitação. Como Papert observa bem, não é necessariamente um fenôme- 
no consciente ou deliberado e tem enormes implicações para a educação formal e 
informal. Piaget estudou minuciosamente esse fenômeno, tendo observado sua ocor- 
rência a partir do primeiro dia de vida, em um berçário. 
A Máquina das Crianças 129
maior do que na vida real, parece-ce me como uma vantagem (certamente não 
uma falha) da obra de arte, do mesmo modo como o intenso drama de ação 
em Romeu e Julieta torna-se, mais, não menos, relevante para as questões hu- 
manas quo encontramos no drama reduzido da nossa própria vida. 
A ação do filme ocorre em um rosort nas Montanhas Catskill,10 onde são 
encontradas duas classes do pessoas, dois tipos do dança e dois tipos de apren- 
dizagem. Os sossegados e abastados hóspedes são agradados na esperança de 
que voltem no ano seguinte. Os funcionários do hotel são disciplinados e inti- 
midados pela ameaça do que eles poderão não voltar. Embora o hotel seja 
estruturado para manter as duas classes tão distantes quanto possível, rara- 
mente essas linhas de segregação são absolutas, e, nesse caso, a ação do filme 
é precipitada por dois cruzamentos. Baby, levada por seus pais àquele lugar 
que não apresentava nenhum atrativo para ela, vagueia irrequieta pela área, 
indo parar no alojamento dos funcionários, onde se depara com uma socieda- 
de impressionantemente diferente de qualquer coisa que tenha encontrado 
em sua existência antes protegida. Lá, encontra uma vitima de outro cruza- 
mento: a dançarina - a quem mais tarde substituirá - está grávida e foi aban- 
donada pelo pai do bebê, que é sobrinho do proprietário; a oferta de Baby 
possibilitará que ela deixe o resort para fazer um aborto. 
O primeiro choque de Baby vem da "dança suja". No salão de festas do 
hotel, os convidados dançam impassivelmente. Alguns arrastam os pés de for- 
ma desordenada no ritmo da música. Outros seguem sequências predefinidas 
de passos: "Para-a-frente...para-a-frente...para-o-lado...junto" e "lento...len- 
to...rápido...rápido...lento". No alojamento dos funcionários, as pessoas dan- 
çam, digamos, de um modo obsceno. Fazem movimentos explicitamente su- 
gestivos de atos sexuais e tocam uns nos outros com erotismo. A meu ver, 
porém, a inspirada expressão "dirty dancing" vai mais fundo que isso. O que é 
na verdade muito forte e profundamente erótico com relação à dança não é a 
referência sugestiva a atos sexuais mecânicos, mas o pleno engajamento do 
corpo, com energia, de modointenso. 
O sentido mais profundo do que é limpo e do que é sujo torna-se mais 
claro quando mudamos o foco do dançar para o aprender a dançar. Quando 
dançar é definido por fórmulas, presta-se a um tipo familiar de ensino que 
10 As Catskill Mountains (ou apenas Catskills) compreendem uma área natural do esta- 
do de Nova York (costa leste dos Estados Unidos) a noroeste da cidade do mesmo 
nome, conhecida como área tradicional de balneários, hotéis de veraneio e locais para 
camping. Vários filmes tiveram o local como cenário. A história de Ritmo quente passa- 
se em um resort da região no verão de 1963 (embora tenha sido filmado em outras 
duas localidades). 
130 Seymour Papert
proponho chamar de "ensino limpo". Acho que qualquer um que tenha estado 
em uma tranquila escola de dança de salão sabe como é isso. A informação a 
ser transmitida e nitidamente definida, O passo do quadradinho de fox-trot é 
para frente, arrasta, para-o-lado, junto, para-trás, arrsta para-o-lado, jun- 
to. Pegou? Pratique um pouco e então faremos o passeio (da dança) pelo sa- 
lão. Quando você pegar ambos, praticaremos juntá-los. 
O relacionamento entre aprendiz e professor é "limpo" no sentido de 
que, sob pena de demissão do professor, é restrito a um trabalho técnico im- 
pessoal para dominar um conjunto de passos. Por fim, e mais sutilmente, o 
relacionamento entre o aprendiz e o que é aprendido é como uma asséptica 
cirurgia: o conhecimento novo é absorvido com o mínimo transtorno do que já 
existe e certamente com o mínimo impacto sobre o senso de identidade do 
aprendiz e da sociedade. 
Vemos algo muito diferente quando Baby começa a trabalhar com o ins- 
trutor de dança. Embora o filme não mostre isso explicitamente, pode se inferir 
que sua experiência anterior de lições de dança, na realidade, de lições em ge- 
ral, levasse-a a esperar que o trabalho seguiria o padrão da aprendizagem lim- 
pa. No entanto ela depara-se com algo muito diferente. Aprender “passos” é a 
menor parte, embora haja um pouco disso também. Seu tutor diz-lhe para "es- 
cutar a música como um coração (pulsante)" e utiliza o relacionamento erótico 
que começa a formar-se para conduzi-la a uma percepção diferente do espaço e 
do seu corpo. Ele a faz caminhar perigosamente sobre uma elevada e estreita 
ponte de tronco para desenvolvero senso de equilíbrio, a postura e a autocon- 
fiança. O que ocorre com ela à medida que aprende a dançar não se limita a 
um conjunto limpamente delimitado de habilidades emocionalmente neutras. 
Certamente, não poderíamos descrever tal situação como um "programa" em 
qualquer sentido comum da palavra. A situação inclui entrar em um novo 
relacionamento consigo mesma. Inclui mudar seu relacionamento com a auto- 
ridade, com seu pai e com o mundo superficial no qual sua família vive. 
É razoável perguntar se os modelos contrastantes de aprendizagem que 
chamei de "limpo" e "sujo" no domínio da aprendizagem para a dança apli- 
cam-se a outros domínios considerados mais abstratos e intelectuais. Para ter- 
mos uma noção da resposta, examinaremos até que ponto é possivel fazer um 
paralelo com áreas mais ligadas ao domínio da Escola, começando pela mais 
abstrata, que é a matemática. 
Em alguns aspectos, do lado limpo, o paralelo funciona facilmente. A 
aprendizagem limpa reduz a dança a fórmulas descrevendo passos e reduz a 
matemática a fórmulas que descrevem procedimentos para manipular símbo- 
los. A fórmula para um passo de fox-trot é estritamente análoga à fórmula 
para somar frações ou resolver equações. Os outros componentes de limpeza 
nas lições de dança também se aplicam diretamente à matemática escolar As 
emoções são excluídas. O relacionamento entre professor e aluno é confinado 
A Máquina das Crianças 131
à troca de informaçôes sobre o tópico que estiver sendo estudado. Certamen- 
te, nada próximo do erótico é considerado como tendo qualquer papel. 
Do lado da aprendizagem suja, o paralelo poderia parecer menos claro. 
Ao representar a aprendizagem de Baby como "suja", referi-me ao envolvimento 
do corpo, à superação do medo e a questões de classe social. Poderia parecer 
que tais questões estão associadas de forma intrínseca à dança, mas não fazem 
parte daquilo que é realmente a matemática. Concordo que parece ser assim 
se aceitarmos os modelos prevalentes da matemática escolar. Não obstante, 
também pode parecer que a dança não está relacionada a essas questões, se 
permanecermos com os modelos de dança e de aprendizagem de dança que 
prevalecem nos salões de festas sociais ou no modelo de educação de dança 
de salão de Arthur Murray.11 É necessário fazer uma pequena desconstrução para 
distinguir os aspectos da matemática embutidos na construção feita pela Escola 
daquilo que é a matéria e aqueles que reivindicam bem mais para a disciplina. 
Se aceitarmos como matemática o que Brian e Henry estavam fazendo, a 
distância entre matemática e dança é reduzida pelo menos um pouco, pois 
eles estavam fazendo algo de ambos ao mesmo tempo. Eles certamente esta- 
vam colocando bem mais de si mesmos na situação do que aquilo que se pre- 
tende em uma aula de matemática limpa. Maria estava desafiando um papel 
social. Debbie estava mudando sua percepção de si mesma, como, de fato, 
Brian e Henry. O que penso estar bastante claro é que, nessas situações, vemos 
as crianças movendo-se em direção à posição delineada pela aprendizagem de 
Baby. Se elas não vão tão longe, não é porque as disciplinas escolares são 
intrinsecamente diferentes da dança, mas porque Baby estava em uma situa- 
ção para viver seu relacionamento com a dança mais plenamente do que se 
 poderia esperar acontecer nas escolas de hoje. 
11 Nos Estados Unidos, o nome de Arthur Murray é associado como ensino convencio- 
nal, socialmente familiar, de dança de salão. Seu negócio tipo franquia floresceu na 
primeira metade do século passado, ao treinar instrutores de dança para atuarem nos 
salões de uma cadeia de hotéis. Depois atuou com programas em cadeias de televisão 
e foi tema de mais de um filme. Em Dirty dancing, Johnny, o par masculino, diz a Baby 
que foi treinado nos estúdios de Arthur Murray. 
132 Seymour Papert
Instrucionismo versus construcionismo 
Prometi, no início, escrever o máximo possível em um estilo que pode ser 
descrito como concreto. Chegou o momento de mudar, apenas neste capítulo, 
para um estilo um pouco mais acadêmico e abstrato, de modo a permitir com- 
parações e intercâmbio com outros pontos de vista. Ao fazê-lo, tentarei preci- 
sar e formalizar (o que não significa, necessariamente, melhorar) ideias maté- 
ticas que introduzi até agora sobretudo por meio de histórias. 
Minha preferência por um estilo concreto de escrever não é apenas uma 
tática literária para dizer o que poderia ter apresentado em uma linguagem 
mais abstrata. Ao contrário, é um exemplo de transformar o meio em mensa- 
gem.1 Um tema central da minha mensagem é que a tendência dominante a 
supervalorizar o abstrato é um sério obstáculo ao progresso na educação. Uma 
das várias formas pelas quais minha concepção de que aprender pode tornar- 
se muito diferente é que isso poderá acontecer por uma inversão epistemológica 
para formas mais concretas de conhecer - uma inversão da ideia tradicional 
de que o progresso intelectual consiste em passar do concreto para o abstrato. 
Vejo a necessidade dessa inversão não apenas no conteúdo do que é aprendi- 
do, mas também no discurso dos educadores. Usar um modo concreto de ex- 
pressão permite-me mostrar e também dizer o que quero comunicar com isso, 
e contribui para um senso mais rico daquilo que torna o pensamento concreto 
mais poderoso. Todavia, não é de surpreender que o conceito que mais neces- 
sita de uma formulação mais abstrata seja o da própria "concretude". 
No discurso da educação, a palavra concreto é empregada com frequên- 
cia em seu sentido comum. Quando os professores falam em usar materiais 
concretos para apoiar a aprendizagem da ideia de números, entende-selogo 
que isso engloba métodos como usar blocos de madeira para formar padrões 
1 Certamente aqui o autor refere-se à frase “o meio (médium) é a mensagem”, de Marchall 
McLuhan, autor do livro Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo, 
Cultrix, 1971; original norte-americano, 1964. 
7
de números A palavra, porém, também adquiriu sentidos mais especializados, 
dos quais o que se salienta com maior frequência associa-se intimamente à 
famosa (ou, em alguns círculos, mal-afamada) teoria dos estágios de Piaget. 
Infelizmente os dois tipos de uso continuam a scr confundidos: é fácil 
cair na armadilha de ler Piaget como se a palavra tivesse seu sentido comum, 
e a falácia é apoiada por muitos livros escritos para professores em um tom de 
superioridade, no estilo "Piaget Fácil de Entender". De fato, Piaget faz algo 
mais complexo e muito mais interessante quando descreve o pensamento de 
crianças em idade escolar como "concreto”. Isso é um termo técnico, do mês- 
mo modo como os físicos usam a palavra força, ou os psiquiatras a palavra 
depressão. Em alguns casos os significados serão malcompreendidos, a menos que 
a pessoa perceba que as palavras adquirem um sentido especial nas teorias, 
não sendo raro contrariar a narureza do senso comum. 
O conceito piagetano de "inteligencia concreta" retira seu sentido de 
uma perspectiva teórica que surgiu aos poucos"e nem sempre de forma consis- 
tente, no decorrer de um programa de pesquisa enormemente produtivo, que 
durou uma vida inteira Teremos que desembaraçar esse revelador conceito, 
separando-o de certos aspectos mais problemáticos das construções teóricas 
de Piaget, em particular de sua noção de "estagio”. A oposição entre filosofias 
da educação que compôem o titulo deste capítulo provê um bom contexto 
para a apreensão do que significa “inteligência concreta” na estrutura teórica 
de Piaget. 
O sufiro ismo indicador de algo abstrato, e sua presença no título refle- 
te a minha mudança de estilo intelectual. Com a palavra instrucionismo, minha 
intenção é expressar algo bastante diferente de pedagogia, ou a arte de ensi- 
nar. Ela deve ser lida em um nível mais ideológico ou programático, expres- 
sando a crença de que o caminho para uma melhor aprendizagem deve ser o 
aperfeiçoamento da instrução - ora, se a Escola é menos que perfeita, então é 
sabido o que fazer: ensinar melhor. 
O Construcionismo é uma filosofia de uma família filosofias educacio- 
nais que nega esta “verdade óbvia”. Ele não pôe em dúvida o valor da instru- 
ção como tal, pois isso seria uma tolice: mesmo a afirmativa (endossada, quando 
não originada por Piaget) de que cada ato de ensino priva a criança de uma 
oportunidade para a descoberta, não é um imperativo categórico contra ensi- 
nar, mas um lembrete expresso em uma maneira paradoxal para manter o 
ensino sob controle. A atitude construcionista no ensino não é, em absoluto, 
dispensável por ser minimalista - a meta é ensinar de forma a produzir a 
maior aprendizagem a par t i r do mínimo de ensino, enquanto se deixa 
todo o resto inalterado. A outra mudança principal é necessária assemelhar-se 
a um provérbio africano: "se um homem tem fome, você pode dar-lhe um pei- 
xe, mas é melhor dar-lhe uma vara de pescar. 
134 Seymour Papert
A educação tradicional codifica o que pensa que os cidadãos precisam 
saber e parte para alimentar as crianças com esse “peixe". O construcionismo 
é construído sobre a suposição de que as crianças farão melhor descobrindo 
(“pescando”) por si mesmas o conhecimento específico de que precisam: a 
educação organizada ou ínformal poderá ajudar mais se certificar-se de que 
elas estarão sendo apoiadas moral, psicológica, material e intelectualmente 
em seus esforços. O tipo de conhecimento que as crianças mais precisam é o 
que as ajudará a obter mais conhecimento. É por isso que precisamos desen- 
volver matética. Evidentemente, além de conhecimento sobre pescar, é tam- 
bém fundamental possuir bons instrumentos de pesca - por isso precisamos de 
computadores - e saber onde existem águas férteis - motivo pelo qual precisa- 
mos desenvolver uma ampla gama de atividades mateticamente ricas, ou 
“micromundos". 
Consideremos a matemática novamente para observar a questão geral 
em sua forma mais extrema. E óbvio que, como sociedade, nós, nos Estados 
Unidos (e na maioria dos lugares do mundo), apresentamos baixo desempe- 
nho em matemática. Também é óbvio que a instrução em matemática é, em 
média, bastante fraca. Não se infere daí, porém, que a única via para melhorar 
o desempenho seja o aperfeiçoamento da instrução. Um outro caminho passa
por oferecer às crianças micromundos verdadeiramente interessantes onde
elas possam usar matemática como Brian, ou pensar sobre ela, como Debbie,
ou brincar com ela, como fez Dawn. Se as crianças realmente desejam apren- 
der algo e têm a oportunidade de aprender com o uso, elas fazem-no mesmo
quando o ensino é fraco. Por exemplo, muitos aprendem difíceis videogames
sem nenhum ensino formal! Outros usam o sistema de linhas telefônicas dire- 
tas da Nintendo ou lêem revistas sobre estratégias de jogos para encontrar o
tip de conselho para videogames que obteriam de um professor se isso fosse
uma disciplina escolar. Além disso, já que um motivo para a má instrução é
que ninguém gosta de ensinar crianças relutantes, a via construcionista torna- 
rá o ensino melhor, assim como menos necessário, extraindo, desse modo, o
melhor de ambos os mundos.
Debbie proporciona um bom exemplo de um pouco da instrução certa 
produzindo bons resultados. Instruí-la a programar o computador e a pensar 
sobre como desenvolver um projeto complexo foi como ensiná-la a pescar. 
Com tais habilidades ela pôde construir seu software e transformar sua com- 
cepção de frações, aprendendo algo muito diferente do que lhe foi ensinado. 
Isso é muito diferente daquilo que se costumava chamar de aprendizagem 
processual. Na década de 1960, quando o movimento da Matemática Moderna 
atingiu seu ápice, estava na moda dizer que era mais importante ensinar “o 
processo do pensamento científico" do que qualquer conteúdo cientifico espe- 
cífico. A diferença significativa é que o processo científico divorciado do seu 
conteúdo é muito abstrato. As habilidades de programação que Debbie apren- 
A Máquina das Crianças 135
deu foram até mesmo mais sensatas e concretas em todos os sentidos possíveis 
do que o conhecimento sobre frações que ela adquiriu usando-os. 
O sucesso de Debbie no teste sobre conhecimento de frações contraria a 
ideia instrucionista de que a única forma de melhorar o conhecimento de um 
estudante sobre o tópico X é ensinar sobre X. Qualquer um que tenha dúvidas 
sobre preverencia dessa ideia faria bem em ler Deschooling society, de Ivan 
Illich,2 mais uma vez no espirito de ver uma ideia em sua forma mais extrema. 
Illich expõe de modo eloquente sua alegação de que a principal lição que a 
Escola ensina é a necessidade de ser ensinado. O ensino Escolar cria uma 
dependência da Escola e uma devoção supersticiosa aos seus métodos. No 
entanto, embora a lição da Escola em causa própria tenha impregnado a cultu- 
ra mundial, o mais fascinante é que todos nós temos experiências e conhe- 
cimento pessoais que depõem contra isso. Em algum nível, sabemos que, se 
nós envolvermos realmente com uma área de conhecimento, nós a aprendere- 
mos - com ou sem a Escola e, de qualquer modo, sem a parafernália de currí- 
culo testes e segregação por faixa etária que ela toma por axiomática. Tam- 
bém sabemos que, se não nos envolvermos com a área de conhecimento, tere- 
mos problemas em aprendê-la com ou sem os métodos da Escola. Na contexto 
de uma sociedade dominada pela Escola, o princípio mais importante da 
matética pode ser o incitamento à revolta contra a sabedoria estabelecida, 
pois sabemos que podemos aprender sem sermos ensinado e, com frequen- 
cia, aprender melhor quando se é menos ensinado. 
A matemática de cozinha aponta para a mesma moral:mostra que um 
grande número de pessoas aprendeu a fazer algo matemático sem instrução – 
até mesmo apesar de ter sido ensinado a fazer algo diferente. De fato, pode 
até sugerir que, afinal, não há crise real na educação, já que as pessoas resolu- 
tas encontram um meio de aprender o que precisam! 
Naturalmente, essa sugestão de conformismo não é séria. Apontar para o 
uso de métodos matemáticos que foram de algum modo desenvolvidos sem 
ser ensinados não pode justificar uma acomodação educacional: a matemática 
de cozinha e similares são excelentes demonstrações da capacidade matética 
das pessoas, mas são extremamente limitadas. A conclusão a ser tirada não e 
que as pessoas conseguem de qualquer modo, e então não precisam de ajuda, 
mas, antes, que essa aprendizagem informal aponta para uma rica forma de 
aprendizagem natural que depõe contra a natureza dos métodos da Escola e 
requer um tipo diferente de apoio. A questão para educadores é se podemos 
trabalhar com esse processo de aprendizagem natural em vez de trabalhar 
2 Publicado no Brasil com o título Sociedade sem escolas (1973), pela Editora Vozes 
(Petrópolis, RJ). Ivan Illich austriaco, publicou mais de uma dezena de livros sobre 
educação, medicina, trabalho, ecologia, entre outros temas. Foi religioso, professor da 
Universidade Gregoriana do Vaticano, depois nos Estados Unidos, em porto Rico, na 
Alemanha e no México. 
136 Seymour Papert
contra ele - e, para fazer isso, precisamos saber mais sobre processo. Que 
tipo de aprendizagem encontra-se por trás do conhecimento matemático culi- 
nário e como podemos fomentá-lo e ampliá-lo? 
Tais perguntas levam-nos ao segundo pólo da expressão "instrucionismo 
versus construcionismo". A escassa reflexão sobre a Escola é um aspecto me- 
nor daquilo que se pode observar na matemática culinária. O aspecto principal 
não é o fracasso da Escola, mas o sucesso das pessoas que desenvolveram seus 
próprios métodos para resolver tais problemas – não o que a Escola falhou em 
transmitir-lhes, mas o que elas construíram por si mesmas. 
As metáforas “transmissão" versus "'construção" são temas que permeiam 
um movimento educacional maior e mais diversificado dentro do qual situo o 
construcionismo e ressalto isso pelo jogo de palavras no nome. Para muitos 
educadores e para todos os psicólogos cognitivos, minha palavra evocará o 
termo Construtivismo, cujo uso educacional contemporâneo em geral remete à 
concepção de Piaget que o conhecimento simplesmente não pode ser "trans- 
mitido” ou "transferido pronto" para outra pessoa. Mesmo quando parece es- 
tarmos transmitindo com sucesso informações dizendo-as, se pudéssemos ver 
os processos cerebrais em funcionamento, observaríamos que nosso interlocutor 
está "reconstruindo" uma versão pessoal das informações que pensamos estar 
“transferindo". 
O construcionismo também possui a conotação de "conjunto de peças 
para construção", iniciando com conjuntos no sentido literal, como o Lego, e 
ampliando-se para incluir linguagens de programação consideradas como "con- 
juntos” a partir dos quais programas podem ser feitos, até cozinhas como "con- 
juntos" com os quais são construídas não apenas tortas, mas receitas e formas 
de matemática-em-uso. Um dos meus princípios matéticos centrais é que a 
construção que ocorre "na cabeça" ocorre com frequencia de modo especial- 
mente prazeroso quando é apoiada por um tipo de construção mais pública, 
'no mundo" - um castelo de areia ou uma torta, uma casa Lego ou uma empre- 
sa, um programa de computador, um poema ou uma teoria do universo. Parte 
do que tenciono dizer com "no mundo" é que o produto pode ser mostrado, 
discutido, examinado, sondado e admirado. Ele está lá fora. 
Assim, o construcionismo, minha reconstrução pessoal do construtivismo, 
apresenta como principal característica o fato de examinar mais de perto do 
outros ismos educacionais a ideia da construção mental. Ele atribui espe- 
cial importância ao papel das construções no mundo como um apoio para o 
ocorre na cabeça, tornando se assim uma concepção menos mentalista . 
Também atribui mais importância à ideia de construir na cabeça, reconhecen- 
do mais de um tipo de construção (algumas delas bastante longe de constru- 
ções simples, como cultivar um jardim) e formulando perguntas a respeito dos 
métodos e materiais usados. Como pode alguém tornar-se um especialista em 
construir conhecimento? Que habilidades são necessárias? Essas habilidades 
são as mesmas para tipos diferentes de conhecimento? 
A Máquina das Crianças 137
O nome matética confere a tais questões o reconhecimento necessário 
para serem levadas a sério. Para começar a respondê-las examinarei e de cer- 
to modo adaptarei às finalidades presentes as ideias de dois pensadores, Jean 
Piaget e Claude Lévi-Strauss, que foram mais longe do que quaisquer outros 
ao idenrificar grandes bolsões de conhecimentos que não se aprendem no es- 
tilo da Escola e não se adaptam ideia da Escola sobre o que é conhecimento 
adequado. Meu propósito ao discutir esses dois autores é extrair deles um 
sentido técnico da noção de concretude, permitindo-me afirmar que a habili- 
dade matética importante é aquela para construção de conhecimento concre- 
to. Posteriormente uso esse insight para uma outra formulação do que está 
errado com a Escola - que seu comprometimento descabido de passar tão 
rápido quanto possível do concreto para o abstrato resulta em dedicar um 
tempo mínimo para a realização do trabalho mais importante. 
Em seu livro de 1966, The savage mind 3 (cujo título em francês, La penseé 
sauvage, deveria ser lido tendo em mente que em francês flores silvestres são 
chamadas de fleurs sauvages), Lévi-Strauss emprega a palavra francesa intra- 
duzivel bricolagem para referir-se ao modo como as sociedades "primitivas" 
conduzem uma "ciência do concreto". Ele considera isso como diferente da 
"ciência analítica" dos seus colegas, de uma modo que se assemelha à diferença 
entre a matemática culinária e a matemática escolar. Esta, assim como a ideo- 
logia da ciência moderna (embora não necessariamente sua prática), baseia- 
se no da genera l i dade - o ún ico método un ive r sa lmente cor re to que 
funciona para todos os problemas e para todas as pessoas. Bricolagem é uma 
metáfora para os modos de ação do antigo João-faz-tudo, que batia de porta 
em porta oferecendo-se para consertar qualquer coisa quebrada. Face a uma 
tarefa, o consertador remexia em sua sacola de ferramentas heterogéneas bus- 
cando uma que se adaptasse ao problema à mão; se uma ferramenta não fun- 
cionasse para a tarefa, ele simplesmente tentava outra sem jamais se pertur- 
bar, nem mesmo de leve, pela falta de generalidade do instrumento. 
Os princípios básicos da bricolagem como metodologia para a atividade 
intelectual são: use o que você tem, improvise, vire-se. E para o verdadeiro 
bricolador as ferramentas na sacola são selecionadas durante um longo tempo 
3 Publicado no Brasil com o título O pensamento selvagem, Editora Papirus (Campinas, 
SP). Recomendo ao leitor outro belo livro de Lévi-Strauss, Triste Trópicos, em esmera- 
da edição da Companhia das Letras, 1996 (original 1955). É um retrato, feito pelo 
criador Antropologia Estrutural, de culturas indígenas no Brasil da primeira metade 
do século passado. Com belas fotos em preto e branco, é um misto de narrativa de 
viagem e ensaio cientifico, com rigor lógico mas ao mesmo tempo poesia, certa ironia 
e melancolia A comparação entre mente selvagem e flores "selvagens" é oportuna, no 
sentido mais denso de algo da natureza, parte de uma ecologia evoluída no decorrer do 
tempo natural; algo belo e rico em vários sentidos. 
138 Seymour Papert
por meio de um processo que vai além da utilidade pragmática.4 Tais ferra- 
mentas mentais tornam-se gastas e confortáveis, do mesmo modo como as 
ferramentas físicas do consertador ambulante, transmitindo uma sensação de 
familiaridade, de estar à vontade consigo mesmo; elas serão o queIllich cha- 
ma de “convivenciaus”5 e, em Mindstorms chamei de “sintonicas”. Uso o concei- 
to de bricolagem para servir como uma fonte de ideias e modelos visando 
melhorar a habilidade de fazer - e consertar e melhorar - construções men- 
tais. Reafirmo que é possível trabalhar sistematicamente para tornar-se um 
melhor bricolador e ofereço isso como uma exemplo de desenvolvimento da 
habilidade matética. Percebe-se mais diretamente o espírito do verdadeiro 
bricolador na história da engenhosidade (e deleite) de Ricky em usar peças 
Lego para propósitos que jamais foram imaginados por seus fabricantes: uma 
roda como sapato, um motor como vibrador. Vê-se também nesse uso do 
Lego-Logo um micromundo fortemente conducente às habilidades da bricolagem. 
E vejo isso na minha experiência com as plantas. 
A matemática de cozinha oferece uma demonstração clara de bricolagem 
em sua conexão sem emendas, integrada com uma atividade adjacente em 
andamento, que provê de artificios e ferramentas a sacola do consertador. O 
oposto da bricolagem seria deixar o "micromundo da atividade de cozinha” 
por um "mundo da matemática" para trabalhar o problema de frações usando 
uma calculadora ou, mais provavelmente, nesse caso, a aritmética mental. No 
entanto, o praticante da matemática de cozinha, como um bom bricolador, não 
pára de cozinhar para voltar-se à matemática; ao contrário, para um observa- 
dor externo, as manipulações matemáticas dos ingredientes seriam indistinguí- 
veis das manipulações culinárias. Assim, a matemática de cozinha apresenta a 
qualidade de encadeamento e continuidade que apresentei várias vezes como 
poderosamente condutora da aprendizagem. 
4 Nessa metodologia para atividade mental, situam-se o que Jean Piaget chama de 
operações, ou esquemas gerais de ação, resultantes da prática, do viver no mundo. Em 
uma perspectiva evolucionista, em essência, para Piaget, uma ação mental não difere 
de uma ação física - pensar é agir. Essa mesma referência a Lévi-Strauss e seu pensa- 
mento sobre bricolagem foi feita por Sherry Turkle em 1983, no 3º capítulo do livro The 
second self (ver nota 6 do capítulo 4), ao falar de crinças como programadores. No 
origitral bricoleur (bricolador) ou bricoleuse, o termo refere-se àquele (ou aquela) que 
pratica a bricolagem. 
5 Esse conceito foi aprofundado por Illich no livro A convivencialidade. (Lisboa, Publica- 
ções Europa - América, 1976). É uma concepção acerca dos limites naturais de cresci- 
mento da sociedade contemporânea, industrializada em excesso, que cria e multiplica 
necessidades. Nesse contexto a escola cria campos de conhecimento que se incorporam 
ao mecanismo industrial da educação organizada. 
A Máquina das Crianças 139
Essa integração esclarece muito bem o relacionamento entre a questão 
matética do instrucionismo versus construcionismo e a questão epistemológica 
da ciência analítica versus bricolagem. Princípios analíticos como multiplicar 
1 e 1/2 por 2/3 são rotineiramente ensinados via instrução direta em matemá- 
tica. No entanto, a íntima associação da matemática de cozinha com a cozinha 
sugere que tal instrução não é natural, mesmo que seja possível, "ensinar" 
bricolagem matemática (ou qualquer outro tipo de bricolagem) como uma dis- 
ciplina separada. O contexto natural para aprender seria pela participação em 
outras atividades e não pela matemática em si. 
Uma comparação entre Debbie e a matemática de cozinha deixa claro o 
papel especial do computador para se fazer isso. Não tenho dúvida de que 
maior habilidade e autoconfiança resultariam para muitas pessoas se elas se 
engajassem em conversas mais sérias e reflexivas sobre seus próprios processos 
de aprendizagem em culinária, jardinagem, tarefas domésticas, jogos e partici- 
pação em esportes como jogadores ou espectadores. Nada disso requer de modo 
algum computadores. O que vemos em experiências como as de Debbie, Maria 
ou Brian é como o computador, de um modo simples, porém muito significati- 
vo, amplia a gama de oportunidades para o engajamento como bricolador ou 
bricoladora em atividades com conteúdo científico e matemático. 
As fases da experiência de Debbie mostram uma medida em expansão do 
engajamento e competência por intermédio de um tipo de apropriação com 
características de bricolagem. Na primeira fase a vemos engajada em uma ati- 
vidade familiar minimamente transformada por ser feita no computador. Ela 
escreve poemas usando o computador como pouco mais do que um processador 
de textos. Em seguida enfeita seus poemas de um modo semelhante àquele de 
decorar uma página de papel. Somente depois de sentir-se plenamente con- 
fortável é que começa a realizar algo interessante com frações. Então a vemos 
engajada em atividades relacionadas às frações. No entanto, do mesmo modo 
como a matemática de cozinha não está separada do cozinhar, suas atividades 
não são distinguíveis, em forma, do trabalho de poesia. E é precisamente essa 
continuidade do familiar para o novo que provoca seu grande avanço quando 
conecta frações com "tudo". 
Esse louvor do concreto não deve ser percebido com uma estratégia de 
usá-lo como trampolim para o abstrato. Isso deixaria o abstrato plantado imó- 
vel corno a forma mais elevada de conhecer. Quero externar algo mais contro- 
verso c mait sutil na tentativa de demover o pensamento abstrato do lugar de 
"recheio verdadeiro" do funcionamento da mente. Com maior frcquencia (quan- 
do não sempre), em última análise o pensamento concreto é mais merecedor 
dessa descrição e os princípios abstratos assumem o papel de ferramentas que 
servem, como muitar, outras, para intensificar o pensamento concreto. Para o 
bricolador convicto, os métodos formais estão à mão, não no topo. Na cozinha, 
140 Seymour Papert
a multiplicação formal de 1 e 1/2 por 2/3 é um método perfeitamente aceita- 
vel, nem pior nem melhor do que improvisações com espátulas e xícaras de 
medição. 
Afirmativas como essa provocaram contra mim acusações de "agressão à 
lógica”. A questáo, porém, é realmente de equilibrio. Sou um matemático e 
conheço em primeira mão as maravilhas do raciocínio abstrato - seus prazeres 
como também seu poder. Também sei quão ineficaz ele pode ser quando utili- 
zado de forna indiscriminada. Nossa cultura intelectual tradicionalmente tem 
sido tão dominada pela identificação do bom pensamento com o pensamento 
abstrato que a conquista de equilíbrio requer constantemente estarmos aten- 
tos a formas de reavaliar o concreto, poder-se-ia dizer, como um equivalente 
epistemológico do favorecimento de minorias discriminadas. Isso também re- 
quer estar atento a formas traiçoeiras de abstração que podem não ser reco- 
nhecidas como tal pelos que as usam. Por exemplo, estilos de programação 
que, com frequencia, são imposto como se fossem simplesmente “a maneira 
certa” expressam um forte julgamento de valor entre os modos abstrato e con- 
creto de fazer coisas. 
No livro The second self, Sherry Turkle6 descreve estilos de programação 
utilizados por crianças que tiveram acesso suficiente a computadores e um 
suficiente sentimento de liberdade para desenvolver um estilo pessoal: 
Jeff é o autor de um dos primeiros programas para representar um ôni- 
bus espacial. Ele o elabora, como faz com a maioria das outras coisas, 
fazendo um plano, Fará um foguete, propulsores uma viagem pelas es- 
trelas, uma aterrissagem. Ele concebe o programa globalmente e depois 
o fragmenta em pedaços manejáveis: "Eu escrevi as partes por extenso
em um grande pedaço de cartolina, Em uma noite eu vi a coisa inteira
na minha mente e mal podia esperar para vir à escola e fazê-lo funcio- 
nar". Os cientistas de computação reconhecerão essa estratégia "de cima
para baixo", “divida e domine” como um "bom estilo de programação”.
E todos nós reconhecemos em Jeff alguém que se adapta ao nosso este- 
reótipo de uma "pessoa de informática" ou um engenheiro - alguém que
é bom em máquinas, bom em ciências, alguém organizado que aborda o
mundo das coisascom segurança e propósito firme, com a determhação
de fazê-las funcionar.
Kevin é um tipo de criança muito diferente. Enquanto Jeff é meticu- 
loso em todas as suas ações, Kevin é sonhador c impressionista. Naquilo 
em que Jeff tende a impor suas ideias para outras crianças, a cordialida- 
de de Kevin, sua natureza dócil e interesse nos outros o tornam popular. 
Os encontros com Kevin com frequência foram interrompidos por cha 
6 No Capítulo 4 (nota 6), o trabalho de Sherry Turkle foi comentado. 
A Máquina das Crianças 141
mados para ensaiar umaa peça da escola Escola. A peça era Cinderela, e ele 
recebera o papel de Príncipe Encantado... 
Kevin também está fazendo uma cena de espaço, porém o modo 
como ele trabalha não é, de forma alguma, a abordagem de Jeff, que 
não se importa muito com o detalhe da forma do foguete espacial; o 
importante é fazer um sistema complexo funcionar como um todo. Kevin, 
porém, importa-se mais com a estética dos desenhos e dedica bastante 
tempo à forma do foguete. Ele abandona sua ideia original, mas conti- 
nua a "garatujar", criando novas formas. Ele trabalha com um plano, 
experimentando, jogando diferentes formas na tela. Com frequência, 
afasta-se para ver melhor seu trabalho, observando-o de diferente ân- 
gulos, finalmente se decidindo por uma forma em vermelho contra uma 
noite escura – um design aerodinâmico, futurístico. Kevin cntusiasma-se 
e chama dois amigos; um admira o vermelho sobre o preto; o outro diz 
que a forma vermelha "parece com fogo". Jeff por acaso passa pela má- 
quina de Kevin a caminho do recreio e automaticamente confere a tela, 
já que está sempre procurando novos artifícios para acrescentar ao seu 
kit de ferramentas para construir programas. Ele dá de umbros:”Isso já 
foi feito”. Não há nada novo ali, nada tecnicamente diferente, apenas 
uma bolha vermelha. 
No dia seguinte, Kevin tem um foguete com uma chama vermelha na 
parte c inferior: "Agora eu acho que deveria fazê-lo mover-se...movimen- 
to e asas... ele deveria ter movimento e asas". As asas saem fáceis, ape- 
nas mais alguma experimentação com o desenho. No entanto, ele está 
menos conf ian te quanto ao de ob ter o movimento cor re to . Kevin 
sabe programar, mas seus programas surgem, elc não está interessado 
em impor sua vontade sobre a máquina. Ele interessa-se principalmente 
em criar efeitos visuais empolgantes e permite-se ser levado pelos efei- 
tos que produz. 
A supervalorização do abstrato bloqueia o progresso na educação, sob 
formas que se reforçam mutuamente na prática e na teoria. Na prática da 
educação, a ênfase no conhecimento formal-abstrato é um impedimento dire- 
to à aprendizagem - e já que algumas crianças, por motivos relacionados à 
personalidade, cultura, género e política, são prejudicadas mais do que ou- 
tras, é também uma fonte de seria discriminação, quando não de opressão 
direta. Kevin tem a sorte de estar em um ambiente onde lhe é permitido traba- 
lhar em seu próprio estilo. Em muitas escolas, ele estaria sob pressão para 
fazer as coisas "direito", e, mesmo que sua maneira de trabalhar fosse tolera- 
da, poderia haver um senso malicioso de que isso é porque ele e "artista", dito 
em um tom insinuando que ele não é um aluno sério. Por exemplo, em entre- 
vistas relatadas em um artigo escrito comigo, uma aluna externou a Sherry 
Turkle que a pressão para seguir o tipo de estilo "duro" de Jeff era tão forte e 
tão contrária ao seu senso de identidade que ela "decidiu tornar-se outra pes- 
soa” a fim de sobreviver a um modo de ação obrigatório. Outros, em situação 
semelhante, simplesmente desistem. 
142 Seymour Papert
Além disso, a supervalorizacão do pensamento abstrato vicia a discussão 
de questões educacionais. O motivo é que os educadores que defendem impor 
aos estudantes estilos abstratos de pensar quase sempre praticam o que pre- 
gam – como tentei fazer adotando um estilo concreto de escrever - porém com 
resultados muitos diferentes. 
Um exemplo simples pode ser visto na formulação de perguntas de pes- 
quisa. Na minha frente encontra-se uma pilha de artigos eruditos repletos de 
numeros, tabelas e fórmulas estatísticas, com títulos como “Uma avaliação do 
efeito do computador na aprendizagem". Seus autores ficariam indignados 
com a sugestão de que o trabalho é "abstrato", Certamente diriam que estou 
enganado, pois eles produziram "dados numéricos concretos” em nítido con- 
traste com meu "filosofar anedótico abstrato". Contudo, por mais concretos 
que sejam seus dados, qualquer questão estatística sobre "o efeito"do “compu- 
tador” é irremediavelmente abstrata. Isso se deve ao fato de todas essas ques- 
tões dependerem do uso do que é comumente chamado de “método científi- 
co” na forma de experiências destinadas a estudar o efeito de um fator que é 
variado enquanto se realiza um esforço meticuloso de manter todo o resto 
igual. O método pode ser perfeitamente adequado para determinar o efeito de 
uma droga sobre uma doença. Quando pesquisadores tentam comparar pacien- 
tes que receberam a droga com os que não a receberam, eles se esforçam 
nuito para ter certeza de que nada mais seja diferente. Entretanto, nada pode- 
ria ser mais absurdo do que uma experiência na qual os computadores são 
colocados em uma sala de aula onde nada mais é modificado. A principal 
questão dos exemplos que dei é que os computadores cumprem ao máximo 
sua função quando possibilitam que tudo mude. 
A questão do pensamento abstrato é isolar dos detalhes de uma realidade 
Concreta – abstrair - uma fator essencial na sua forma pura. Em algumas ciên- 
cias, isso foi feito com resultados formidáveis. Por exemplo, Sir Isaac Newton 
conseguiu entender os movimentos da terra e da lua ao redor do sol represen- 
tando cada um desses complexos corpos por meio de uma "abstração” concre- 
tamente ilógica - tratando cada corpo como uma particula com toda sua mas- 
sa concentrada em um ponto, ele pôde aplicar suas equações de movimento. 
Embora tenha sido o sonho de muitos psicólogos ter uma ciência da aprendi- 
agem semelhante, até o momento nada desse tipo foi produzido. Creio que 
tal fato ocorre porque a ideia de uma "ciência" nesse sentido simplesmente 
não se aplica aqui. Contudo, mesmo que eu esteja errado, enquanto espera- 
mos o nascimento do Newton da educação são necessários diferentes mo- 
dos de compreensão. Especif icamente , a meu ver , precisamos de uma 
metodologia que nos possibilite permanecer próximos a situações concretas. 
Não faz muito tempo, essa sugestão teria sido vista como inconsistente 
com a própria ideia do método científico. Contudo, nas últimas décadas, os 
antropólogos foram mais diligentes do que Lévi-Strauss, examinando o com- 
portamento real de cientistas em seus laboratórios com o mesmo rigor que ele 
A Máquina das Crianças 143
aplicou ao estudo dos estilos de vida em aldeias distantes. Bruno Latour,7 uma 
das figuras centrais desse movimento, considera que a linha teórica entre a 
ciência do concreto e a ciência analítica é tênue e, não-raro, é transgredida por 
modos de pensar e agir mais próximos daquilo que Lévi-Strauss descreve como 
pensée sauvage do que da "ciência analítica". O conceito que nos ensinaram na 
escola, de um método cientifico muito rigoroso e formal, é realmente uma 
ideologia proclamada nos livros, ensinada nas escolas e discutida pelos filóso- 
fos, porém amplamente ignorada na prática real da ciência. Para Latour, "a 
'grandiosa dicotomia’ de Lévi-Strauss, com sua certeza inabalável, deveria ser 
substituida por muitas linhas divisórias incertas e inesperadas". 
Comentários críticos como esse vieram de muitas outras fontes – inclusive 
de scholars feministas, que demonstraram que a ciência tradicional é fortemente 
androcêntrica, e por Sherry Tarkle e eu, que observamos que alguns dos me- 
lhores programadores profissionais trabalham em um estilo mais semelhante 
ao de Kevin do que ao de Jeff. Esses dados devem ser levados a sério pelos 
educadores, pois apresentamvárias implicações para se pensar sobre a Escola. 
A observação mais simples e mais imediata, de um ponto de vista instru- 
cionista, é a necessidade de oferecer às crianças uma imagem mais moderna 
da natureza da ciência. A questão aqui discutida não é apenas atualizar o 
conteúdo da ciência escolar, o que está sendo feito, mesmo de modo muito 
lento, mas sim dar as crianças uma melhor noção da natureza da atividade 
científica, uma meta que não se encaixa com facilidade na Escola, sendo por- 
tanto quase inteiramente negligenciada. E importante promover essas mudan- 
ças na educação científica tanto pelo motivo louvável de respeito à verdade 
em educação quanto, especialmente, pela simples razão de que a imagem tra-
dicionalmente apresentada afasta aqueles alunos que seriam atraídos para a 
atividade científica se apenas soubessem como ela realmente é, e para o pen- 
samento científico, se eles realmente soubessem quanto tal modo de pensar é 
parecido com o deles. 
De um ponto de vista construcionista, há uma implicação mais profunda, 
que introduzo reabrindo a discussão de algumas importantes observações de 
crianças feitas por Jean Piaget e colaboradores. Essencialmente, Piaget fez a 
mesma observação que Lévi-Strauss, exceto que, enquanto o antropólogo ob- 
servou la pensée sauvage em sociedades distantes, Piaget observou la pensée 
sauvage perto de casa, nas crianças. O que ambos viram foi um pensamento 
que diferia das "nossas" normas e ainda assim apresentava um grau de coerên- 
7 Bruno Latour é filósofo da ciência e professor do Centre de Sociologie de l’Inomotton 
(CSI), em Paris. Certamente Papert refere-se ao livro de Latour em colaboração com S. 
Woolgar (1989), La vie de laboratoire: la production des faits scientifiques. Paris, Pandore. 
Seu livro mais conhecido, publicado no Brasil, é A ciência em ação. São Paulo. UNESP, 
1999 (original 1990). 
144 Seymour Papert
cia interna que tornava impossivel descartá lo como apenas erróneo, Ambos 
viram seu achado como uma importante descoberta de uma forma até então 
desconhecida de pensar e deram um nome ao que viram, cada qual usando a 
palavra concreto – em um caso "a ciência do concreto" e no outro "o estágio de 
operações concretas". Ambos começaram a investigar mecanismos do, pen- 
samento concreto confrontando-os com a investigação das leis do pensamento 
abstrato que tinha sido estudado desde a Antiguidade grega. Ambos nos pro- 
porcionaram valiosos insights sobre os mecamsmos de uma forma não-abstra- 
trata de pennsar, e ambos apresentaram o mesmo ponto cego: eles falharam em 
reconhecer que o pensamento concreto que descobriram não estava confinado 
aos subdesenvolvidos - nem às sociedades "primitivas" de Lévi-Strauss, nem à 
criança ainda "não-desenvolvida” de Piaget. As crianças utilizam-no, as pesso- 
as em aldeias no Pacífico e na África também e, igualmente, as pessoas mais 
sofisticadas em Paris ou Genebra. 
Além do mais, e isso é o mais importante, os sofisticados não recorrem ao 
“pensamento concreto” apenas em seus tateios preliminares quando tentam 
resolver um problema ou quando estão funcionando como novatos fora de 
suas áres de especialização- Conforme observei ao citar Latour, característi- 
cas do que Lévi-Strauss e Piaget identificaram como "concreto" estão presen- 
tes no âmago de importantes e sofisticados empreendimentos intelectuais. 
É dificil dar exemplos sem uma digressão muito ampla na discussão técnica 
de uma ciência em particular. As intelectuais feministas que desejam enfarizar 
um ponto semelhante, sustentando que a supervalorização do abstrato é 
androcêntrica, gostam de citar a biografia de Evelyn Fox Keller sobre Barbara 
McClintock, bióloga ganhadora do prémio Nobel.8 O relato de Keller confere 
um papel importante a um incidente que é facilmente citável em linguagem 
não-técnica: McClintock tornou-se mais famosa por dizer que estudou as plantas 
ao conhecê-las como indivíduos e as células por entrar nelas do que pelas 
importantes descobertas genéticas que fez. A imagem de McC1intock encolhen- 
do-se para entrar em uma célula é de tal clareza que transmite uma sensação 
de abordagem antiabstrata, mas, para apreciar o ponto em uma forma além 
do superficial, é necessário ler o livro de Keller ou procurar pot novos acrésci- 
mos à área em pleno desenvolvimento da crítica à epistemologia tradicional. 
Poderia ser mais acurado descrever o ponto cego que atribui a Piaget e a 
Lévi-Strauss como exemplos de "resistência, " no sentido utilizado por Freud, 
8 Evelyn F. Keller é física, autora feminista, professora de História e Filosofia da Ciencia 
no MIT. O relato ao qual Papert se refere deve ser o livro A feeling for the organismo: the 
life and work of Barbara McClintock. Nova York. Freeman, 1983. Barbara McClintock 
(1902-1992), norte-americana, doutora em Botânica, tornou-se conhecida ao estudar 
a citogenetica do milho, entre outros. Ganhou o prêmio Nobel em 1983 pela descober- 
ta da transposição genética. Keller é autora de outros livros sobre gênero e ciência. 
A Máquina das Crianças 145
explicando a relutância em aceitar suas teorias como uma manifestação do 
que a teoria prevê - uma repressão dos conteúdos agressivo e sexual inaceitá- 
veis do inconsciente. No caso de Piaget, o inaceitável é a possibilidade de que 
o bom pensamento poderia não se adaptar aos padrões que foram estabeleci- 
dos por gerações de epistemologista. A repressão consiste em aceitar a exis- 
tencia e a eficácia de tal pensamento, mas relega-lo às crianças. Os leitores
que já se defrontaram com a obra de Piaget poderiam até mesmo dar um
passo adiante comigo, especulando que ele está protegendo a si mesmo do
reconhecimento de que o seu próprio pensamento possui mais do bricolador
do que dos padrões formais e analiticos da epistemologia dominante. Seja
qual for o motivo final, o fato é que Piaget ocultou o mérito de sua melhor
descoberta sob o abrigo da teoria dos estágios.
Em linhas gerais, a teoria de Piaget apresenta o desenvolvimento intelec- 
tual como dividido em grandes períodos, os quais (por coincidência ou 
não) coincidem aproximadamente com os três períodos principais na agenda 
da vida conforrne vista pela Escola. O primeiro período, chamado "estágio 
sensório-motor”, corresponde aproximadamente ao periodo pre-escolar. É um 
periodo de pré-lógica no qual as crianças respondem a sua situação imediata. 
O segundo periodo, que Piaget chama de estágio de "operações concretas", 
corresponde aproximadamente aos anos da escola de ensino fundamental. 
Esse é um periodo de lógica concreta no qual o pensamento vai muito além da 
situação imediata, mas ainda não trabalha por meio da operação de princípios 
universais. Ao contrário, seus métodos estão ainda ligados a situações especí- 
ficas, como as de um especialisra em matemática de cozinha que é incapaz de 
lidar com uma prova de papel e lápis sobre frações. E, finalmente, há o “está- 
gio formal”, que engloba o ensino médio - e o resto da vida. Nessa etapa, 
finalmente, o pensamento é dirigido e disciplinado por princípios de lógica. 
dedução, indução e pelo princípio de desenvolvimento de teorias por meio de 
teste de verificação e refutação empírica. 
Esse nítido quadro de estágios sucessivos suscitou reaqs positivas e 
negativas tão fortes que os debates subsequentes obscureceram a contribuição 
realmente importante de Piaget. Sua descrição das diferentes formas de co- 
nhecer é muito mais importante do que criar caso sobre se elas seguem perfei- 
tamente uma à outra em termas cronológicos. E o que é especiamente signifi- 
cativo é a descrição da natureza e desenlvolvimento do estágio intermediário 
das operações concretas. Essa tarefa à qual ele dedicou a maior parte de sua 
vida madura é o tópico dos mais de cem livros que escreveu (com exceção de 
alguns) sobre como as crianças pensam em uma surpreendente gama de do- 
mínios, incluindo lógica, números, espaço, tempo, movimento, vida causali- 
dade, máquinas, jogos e sonhos. 
As descriçõesde Piaget de milhares de conversas com crianças encaixam- 
se bem na imagem do bricolador feita por Lévi-Strauss. Em termos de lógica, a 
criança trará para uma determinada situação um modo de pensamento que 
146 Seymour Papert
poderá ser muito diferente do modo de pensar um problema equivalen- 
te. Onde Piaget tem algo muito diferente a acrescentar é em seu foco sobre a 
mudança ao longo de períodos de anos. Por exemplo, ele conversou com crian- 
ças até mesmo de 4 anos a respeito de situações envolvendo números. 
Os exemplos mais conhecidos são as chamadas experiências de conserva- 
ção. Em uma destas, as crianças cujas idades variam de 4 a 7 anos é mostrada 
uma fileira de suportes de ovos cada um contendo um ovo e a elas faz-se se a 
pergunta se há mais ovos ou mais suportes. A resposta tipica em todas as 
idades é “não" ou "o mesmo". Os ovos são então retirados dos suportes e espa- 
lhados em uma fila espaçada, enquanto os suportes são reunidos um aglo- 
merado compacto, tudo feito à vista da criança. A mesma pergunta é colocada. 
Isso foi feito em frequencia c condições suficientemente variadas para ser afir- 
mado com segurança que virtualmente todas as crianças de 4 ou 5 anos dirão 
“mais ovos". Elas defenderão essa posição sob detalhado interrogatório e até 
mesmo quando são pressionadas a mudar de opinião, como por exemplo sen- 
do informadas de que três outras crianças disseram não haver mais ovos ou 
pedindo-lhes para contar os ovos e os suportes. A maioria das crianças resis- 
tirá a alinhar-se com as outras (uma delas comentou claramente após con- 
tar. “É o mesmo número, mas tem mais ovos"). A primeira observação extra- 
ordinária dessa experiência é que as crianças parecem manter uma visão con- 
trária a algo que é absolutamente óbvio para qualquer adulto - de fato, tão 
óbvio que ninguém parece ter percebido antes de Piaget que as crianças não 
compartilham da nossa verdade auto-evidente. O ponto não é simplesmente 
que as crianças não conhecem a resposta adulta à pergunta e confundem-se 
pela ignorância; a questão é que, firme e consistentemente, elas dão uma ou. 
resposta. 
Uma objeção simples que esclarece o que está realmente sendo aprendi- 
do é que as crianças tendem mais a ter entendido mal a pergunta do que a 
manter a opinião esquisita "não-conservativa": elas pensam que estão sendo 
indagadas sobre o espaço ocupado e não sobre o número. Em certo sentido, 
tal objeção deve ser verdadeira. Se as crianças realmente entendessem a per- 
gunta como nós, elas responderiam como nós. Todavia, em vez de banalizar, 
aprofunda a experiência de Piaget. Pode haver de fato um mal-entendido, mas 
não um “mero nâo-entendimento verbal". Isso reflete algo profundo com rela- 
ção ao mundo mental das crianças. Se suspeitássemos que um adulto apresen- 
tasse essa incompreensão, diríamos: "Não, refiro-me ao número, não ao espa- 
ço”. No entanto, dizer isso para uma criança de 4 anos não servirá de nada, 
pois ela não sabe como fazer a distinção. Número é o que você vê (no progra- 
ma de televisão) no "Vila Sésamo", e espaço é onde você se senta. Nenhum dos 
dois é relevante para a distinção sobre ovos e suportes de ovos. A possibilidade 
do não-entendimento revela o estado do desenvolvimento dessa área do co- 
nhecimento de uma criança. O trabalho sendo realizado no período concreto é 
o de desenvolver gradualmente as entidades mentais relevantes e dar-lhes
A Máquina das Crianças 147
conexões para que as distinções tornem-se significativas. Quando ou eu 
vemos seis ovos, o “caráter seis" faz tanto parte do que vemos quanto a bran- 
cura ou as fonnas dos objetos individuais. Como para Debbie, para nós os 
números (como as frações) são algo que "colocamos sobre" tudo. Devemos, 
porém, "té-los” antes que possamos fazer isso, e tudo indica que para uma 
criança sensório-motora ou pré-operatória isso não é possível ou, como nas 
primeiras frações de Debbie, está ancorado com demasiada rigidez para ser 
manipulado. 
Seguindo esse pensamento, vejo fenômenos que Piaget atribui ao estágio 
de operações concretas como modelos para compreendermos como as frações 
desenvolveram-se para Debbie ou como o "caráter flor' e o "caráter família" 
(no sentido botânico) desenvolveram-se para mim. Adotando essa concepção, 
as implicações educacionais das ideias de Piaget estáo invertidas. A maioria 
dos seus seguidores na educação parte para acelerar (ou pelo menos consoli- 
dar) a passagem da criança para além das operações concretas. Minha estraté- 
gia é fortalecer e perpetuar o processo concreto tipico até mesmo na minha 
idade. Em vez de pressionar as crianças a pensarem como adultos, faríamos 
melhor nos lembrando de que elas são grandes aprendizes e tentando seria- 
mente nos tornar mais parecidos com elas. Enquanto o ensino formal pode ser 
capaz de fazer grande parte daquilo que ultrapassa o escopo dos métodos 
concretos, os processos concretos têm seu próprio poder. 
E impossivel não se sentir frustrado ao pensar sobre a natureza do conhe- 
cimento concreto considerando as vantagens desfrutadas pela epistemologia 
t radicional . Sua unidade de conhecimento é uma ent idade c laramente 
demarcada - uma proposição -, e há uma linguagem bem desenvolvida e am- 
plamente aceita para se falar sobre isso. Parte da lacuna que encontramos 
para desenvolver qualquer epistemologia alternativa é o resultado do tempo: 
iniciando de novo, estamos essencialmente em desvantagem. Parte da lacuna 
tende provavelmente a ser permanente, pois uma epistemologia baseada em 
pluralismo e conexão entre domínios está fadada a ser menos definida, mais 
complexa. 
Um terceiro tipo de lacuna, de natureza mais sutil, é o relacionamento do 
conhecimento com os meios (media). A epistemologia tradicional baseia-se na 
proposição, intimamente ligada à midia do texto escrito e especialmente do 
impresso. Bricolagem e pensamento concreto sempre existiram, mas foram 
marginalizados em contextos eruditos pela posição privilegiada do texto. À 
medida que passamos para a era da informática e que meios novos e mais 
dinâmicos forem surgindo, isso mudará. Embora possa ser fútil conjeturar so- 
bre afastamentos tão radicais das maneiras de lidar com o conhecimento, será 
interessante manter a questão em mente agora, quando iremos debruçar-nos 
na análise mais direta de alguns aspectos da história dos computadores com 
relação à epistemologia e à aprendizagem. 
148 Seymour Papert
Computadoristas1 
Os pioneiros que construíram os primeiros computadores sabiam exata- 
mente que tipo de trabalho as máquinas fariam e a qual estilo de mente elas 
serviriam. Vivia-se a década de 1940, e o mundo estava em guerra. Cálculos 
complexos tinham que ser feitos sob pressões de tempo normalmente não 
sentidas pelos matemáticos: cálculos numéricos relacionados à criação e ao 
uso de armas, manipulações lógicas para romper códigos cada vez mais comple- 
xos antes que as informações se tornassem obsoletas. Os pioneiros eram 
matemáticos e construíram máquinas à sua própria imagem. É improvável que 
tenham tido até mesmo um pensamento passageiro com relação a tornar os 
computadores amigáveis para usuários com estilos mais suaves que o deles. As 
condições estavam estabelecidas para o desenvolvimento de uma cultura de 
computadores sem qualquer espaço para o pluralismo; suas normas epistemoló- 
gicas seriam firmemente plantadas na mais analítica tradição. Era inevitável- 
mente uma cultura de "rígidos" (hards). 
As condições de guerra não foram o único fator a moldar a cultura do 
computador dessa forma. O estágio de desenvolvimento da tecnologia atuou 
na mesma direção. O próprio surgimento das primeiras máquinas infligiria 
terror aos tecnologicamente acovardados. O primeiro computador que vi (o 
ACE britânico, projetado pelo próprio Alan Turing) parecia mais a biblioteca 
de um robô - com prateleiras de válvulas no lugar de livros - do que uma 
máquina.2 Nenhum modo de usá-lo o teria tornado agradável a uma professo- 
ra tecnofóbica explorandohesitantemente seu primeiro relacionamento com 
uma máquina! 
1 O termo computerists no original refere-se aos entusiastas, dedicados a computadores. 
2 ACE, sigla de Automatic Computer Engine, foi lançado no início de 1946. O matemáti- 
co Alan Turing desenvolveu o chamado Teste de Turing: uma máquina é inteligente se 
uma pessoa, sem ver, não for capaz de dizer se foi o programa ou um ser humano que 
respondeu às suas perguntas. 
8
Além da aparência, a fragilidade técnica das máquinas contribuiu para 
forçar uma forma muito rígida de usá las. Interfaces como as de hoje, que 
tornam o computador mais "amigável " requerem considerável excesso de 
potência das máquinas. Naquela época era necessário que se espremesse a 
última gota de força da máquina para se fazer até mesmo trabalhos muito 
simples, e isso, com frequência, significava efetuar, mentalmente, malabares- 
mos com matemática computacional. Lembro-me de minhas primeiras experiên- 
cias de programação assemelhando-se mais à resolução de problemas em teo- 
ria dos números do que à atividade auto-expressiva que atribui a Debbie a 
Brian ou aos professores costarriquenhos. O que quero ressaltar não é simples- 
mente que aquilo era uma cultura matemática (o que de fato era), mas um 
tipo particular de cultura matemática no qual o cálculo acurado desempenha- 
va o papel dominante, e o técnico e o analítico tinham mais peso do que o 
intuitivo e o experimental. 
Assim, muitos fatores conspiraram para moldar a cultura inicial do compu- 
tador na rígida e analitica forma que, para maioria das pessoas, até mesmo 
hoje, permanece sinônimo da palavra computador. Depois da Guerra, o com- 
putador lentamente saiu dos ambientes fechados da alta ciência e do exército 
para entrar no mundo mais amplo dos negócios, da pesquisa industrial e uni- 
versitária. Quando o fez, levou consigo sua cultura e, assim, a imagem popular 
do computador como um "engenho lógico-analítico" cresceu e criou raízes. O 
mais interessante é como elementos da cultura original do computador persis- 
tiram até mesmo quando a tecnologia não mais os requereu ou favoreceu. 
Uma vez lançada, a cultura adquire uma lógica própria. Embora alguns dos 
extremos matemáticos das primeiras formas de controlar os computadores 
tenham sido gradualmente suavizados, o cerne de rigidez permaneceu. 
Quando programei o ACE, tive que expressar instruções como sequencias 
de 0 e l, literalmente codificados por meio da perfuração de orifícios, um a 
um, em um cartão IBM. Não me lembro do código, porém códigos semelhan- 
tes ainda existem para os computadores modernos: por exemplo, a sequência 
1100001011101011100000100011100 poderia ser uma instrução para o 
processador central adicionar os números em duas posições de memória de- 
terminadas. Embora tais códigos ainda tenham importância teórica, alguém 
que hoje esteja escrevendo um programa raramente os utiliza como um meio 
real de expressão. 
Expressar instruções como números binários é algo muito opaco e en- 
tediante para que até mesmo um matemático considere confortável. Não le- 
vou muito tempo para que as linguagens de computador fossem desenvolvi- 
das objetivando permitir que uma instrução fosse expressa de uma forma mais 
semelhante a z = x + y, significando que os números nas posições de memória 
x e y são somados e o resultado colocado na posição de memória z. Um dos 
fatos intelectualmente poderosos com relação aos computadores é que eles 
podem manipular seus próprios programas: já que o computador pode ser 
150 Seymour Papert
programado para traduzir z = x + y no número binário adequado, o único 
momento em que é absolutamente necessário utilizar código binário é para 
escrever o programa que faz a tradução. 
O desenvolvimento de formas de expressão mais transparentes e não apro- 
priadas não significou um fim para o inflexível estilo analítico de programar; 
isso apenas suavizou suas manifestações mais salientes. A marca do matemá- 
isso ainda estava lá na forma algébrica da instrução e estava estampada na 
cultura da programação de formas mais profundas do que essa. Como seria de 
se esperar, foram os matemáticos de pensamento conservador os mais inclina- 
dos a criar as teorias sobre a estrutura adequada de um programa e a empre- 
ender esforço para estabelecer padrões para o processo de escrever um pro- 
grama. O resultado foi consolidar sua concepção de programação como a úni- 
ca certa. Assim, um novo tipo de fator tornou-sc visível, o qual ainda hoje apóia 
a cultura inflexível da informática. Os conservadores (hards) levam vantagem 
na capacidade e no desejo de oferecer justificativas teóricas para suas maneiras 
de fazer as coisas. Um fator autopemetuante semelhante funciona por meio do 
recrutamento de pessoas. O predomínio do estilo inflexível na cultura atrai no- 
vos recrutas que pensam da mesma maneira, desencorajando os que tendem a 
inpelir seu desenvolvimento em uma outra direção, mais suave (softer). 
Quando o computador propagou-se para mundos de aplicação mais am- 
plos, a ideia de usá-lo na educação estava fadada a surgir. De fato, no inicio da 
década de 1960, um conjunto de atores desconhecidos tornou-se visível na 
periferia do cenário da educação. A tecnologia que trouxemos conosco (pois 
fui um desses compuradoristas que foram atraídos pela perspectiva de mudan- 
ças na educação) era extraordinariamente primitiva. Um típico projeto da época 
sentaria uma criança na frente de uma ruidosa máquina teletipo3 conectada a um 
computador distante que era demasiado grande e dispendioso para trazer 
até a criança. Não havia nenhum dos desenhos, cor, ação e sons que contribuem 
para o fascínio dos computadores de hoje que as crianças conhecem e adoram. 
Muito pouco do que se fazia ou aprendia sob tais circunstâncias é diretamente 
aplicável no momento atual. No entanto, em contraste com a transitoriedade 
das formas tecnológicas daqueles dias, encontra-se a resiliência das orienta- 
ções teóricas - as ideologias - que trouxemos conosco da cultura mais ampla 
da informática. 
3 Teletipo (ou TTY, de teletypewriter) foi um sistema de terminais do tipo máquina de 
escrever, conectados de ponto a ponto por um canal simples de comunicação, nomal- 
mente um par de fios. Por ser eletromecânico, ouvia-se o barulho ao se teclar de um 
lado ou receber a mensagem impressa do outro. A primeira rede global chamava-se 
Telex, estabelecida em 1920 com fins comerciais, tendo funcionado até o final do sécu- 
Io passado, quando começou a ser substituida por fax e e-mail. Usava cabos telefônicos 
e era operada geralmente por empresas de telefonia. Tinha a vantagem de garantia de 
entrega imediata e autenticidade. 
A Máquina das Crianças 151
O aspecto importante e duradouro do que fizemos foi plantar a sêmen- 
te de uma cultura de computadores especificamente educacional. O tema 
deste capitulo o desenvolvimento dessa semente em uma árvore com tantos 
galhos que terei de ser seletivo ao discuti-los. Ao selecionar os que me parece- 
ram mais importantes, concentrei-me naqueles em que fui mais ativo. Espero 
que isso não tenha ocorrido por ter enxergado importância apenas onde tra- 
balhei: prefiro acreditar que é porque tentei trabalhar nas áreas mais impor- 
tantes. 
A maneira mais fácil de contar a história do computador na educação é 
quantitativa. Na década de 1960, havia um pequeno grupo de professores uni- 
versirários que tinha se desviado de outras áreas: por exemplo, Patrick Suppes 
era da filosofia e da psicologia: John Kemeny (inventor da linguagem BASIC),4 
da física e da administração universitária: Donald Bitzer, da engenharia (que 
desenvolvcu o sistema PLATO);5 e eu, da matemática e do estudo da inteligên- 
cia. Houve também alguns empresários que perderam dinheiro em tentativas 
prematuras de comercializar a área. 
No começo da década de 1970 formávamos um grupo maior. A grande 
ruptura surgiu com o advento do microcomputador em meados da década. No 
inicio de 1980, o número de pessoas que dedicavaboa parte do seu tempo 
profissional aos computadores e à educação disparara de uns cem para deze- 
nas de milhares. Hoje esse número está em centenas de milhares, a maioria 
deles professores, embora muitos milhares estejam engajados nos setores de 
pesquisa e de comércio do mundo dos computadores na educação. 
A história mais dificil de contar, porém a mais importante de se saber, é 
subjetiva e sociológica. Refere-se ao que crescente número de pessoas 
pensa e ao modo como o desenvolvimento dessa cultura relaciona-se com ten- 
dências mais amplas na sociedade. Minha mensagem ampla para quem queira 
influenciar ou apenas entender o desenvolvimento da informática na educa- 
ção (parafraseando um ditado sobre o modo da escola ensinar história) não é 
4 A linguagem BASIC foi criada em 1963, no Dartmouth College, EUA, para ensino de 
programação. Surgiram várias versões nas décadas seguintes, constituindo uma famí- 
lia de linguagens. Era uma linguagem relativamente fácil de dominar, em relação às 
outras da época. Uma versão recente é a Visual BASIC. As versões anteriores à interface 
Windows não tinham nada de visual. 
5 PLATO em inglês significa Platão, o filósofo grego autor dos diálogos socráticos, asso- 
ciado ao nome academia. Assim, o nome foi escolhido pela sua ligação com a educa- 
ção. Foi o primeiro grande sistema CAI, precursor dos ambientes virtuais de aprendiza- 
gem de hoje. Inicialmente foi utilizado na Universiy of Ilinois e depois pela empresa 
Control Data Corporation (CDE). Passou por várias versões e funcionou até 2006. PLATO 
foi pioneiro em vários recursos da internet, cujo valor Papert certamente reconheceria 
hoje, tais como fórum, chat, avaliaçio em tempo real, e-mail, mensagens online, etc. 
152 Seymour Papert
acerca de uma droga de produto após o outro.6 Sua essência esta no cresci- 
mento de uma cultura, e ela pode ser influenciada construtivamente apenas 
quando entendemos e fomentamos tendências nela presentes. 
O primeiro passo significativo para um entendimento além do nível quan- 
titativo foi a tentativa de classificar os modos de uso do computador na 
educação . O título de uma das primeiras antologias de artigos na área é uma 
engenhosa formulação dessa abordagem. O livro de Ed Taylor (professor no 
Columbia Teacher's College e criador do primeiro programa de mestrado em 
computadores e educação nos EUA) intitulava-se The computer in the school; 
tutor, tutee, tool.7 A intenção do primeiro e do último termos do subtítulo 
corresponde de modo bem próximo a concpções populares do que os compu- 
tadores podem fazer em educação. 
Exemplos dos usos dos computadores como ferramentas (tools) são fa- 
miliares a todos. Um processador de textos é considerado uma ferramenta; 
também o é um programa que permite que se estude ecologia por meio de 
simulações e, também programas para se utilizar o computador como uma 
calculadora. O termo "tutor" designa a imagem mais comum do computador 
na educação. A palavra tutee (aprendiz) , por outro lado, refere-se a uma metá- 
fora que empreguei frequentemente ao pensar sobre como “ensinar” o compu- 
tador, programando-o para fazer algo. Todo professor sabe que um bom modo 
de aprender um assunto é dar um curso sobre ele; sendo assim, meio de brin- 
cadeira, sugeri que uma criança poderia obter um pouco do mesmo tipo de 
beneficio "ensinando", ou seja, programando o computador. 
Uma classificação um pouco diferente que foi utilizada com frequência – 
cujo autor não consegui identificar - fala sobre “aprender com o computador, 
aprender do computador e aprender sobre o computador". O termo “com” 
corresponde perfeitamente à ferramenta, e "do”, ao tutor. O relacionamento 
entre “sobre" e "aprendiz" é menos direto, mas ainda existe, no sentido que de 
ser capaz de programar um computador é sinônimo de aprender mais densa- 
mente sobre seu modo de funcionamento do que o requerido pelos outros dois 
modos de uso. 
Neste capítulo, contudo, em vez de classificar modos de utilização, exa- 
minarei o desenvolvimento das formas de pensar sobre seus usos. Sugiro uma 
maneira de pensar sobre períodos sucessivos de sua história definindo-os como 
“clássico", "romântico", "burocrático" e, finalmente, "moderno". 
6 Papert refere-se a um ditado comum atribuído a Henry Ford: History is one damm 
thing after another. “Produto”, no sentido de mercadoria, referindo-se aos softwares 
tipo CAI que inundaram o mercado educacional norte-americano na época, visando ao 
segmento de escolas. 
7 O computador na escola: tutor, tutelado (ou aprendiz), ferramenta. Um dos artigos 
dessa coletânea foi escrito por Papert. 
A Máquina das Crianças 153
Em retrospectiva penso no período mais antigo (aproximadamente a 
década de 1960) do desenvolvimento da informática na educação como "clás- 
sico” em um sentido curiosamente próximo à definição do dicionário Webster: 
“conformidades com tratamentos, gostos ou padrões críticos cstabclecidos... 
atenção à forma... regularidade, simplicidade, equilíbrio, proporção e emoção 
controlada (contrastada com a romântica)". 
Havia conformidade em um duplo sentido. Cada um de nós entrou na 
educação a partir de uma outra área estabelecida, e continuamos a sujeitar- 
nos a um conjunto de métodos, gostos e padráes críticos que eram uma mistu- 
ra da cultura conservadora predominante da informática e das nossas próprias 
disciplinas originais. Ao mesmo tempo, talvez por nos sentirmos como hóspe- 
des ou imigrantes, estruturamos nosso trabalho de forma a não desafiar as 
suposições fundamentais da Escola. Até mesmo eu, que era um Yearner de 
longa data e um dissidente da comunidade inicial, formei minhas ideias sobre 
o que agora vejo como um modelo notavelmente Escolar. Prosseguindo com a
lista de características do Webster, a emoção era controlada; de fato, ela não
era nem mesmo reconhecida como uma categoria relevante para se pensar
sobre educação. A cultura de computação predominante favoreceu a manu- 
tenção do nosso foco firmemente no lado cognitivo da educação.
Uma apreciação rápida dos três participantes do inicio da cultura da compu- 
tação educacional - Suppes, Kemeny e eu - será suficiente para mostrar como 
seu "classicismo" permeou as ideias e debates sobre as formas de uso dos com- 
putadores na educação. Patrick Suppes tornou-se o pai intelectual do CAI (Ins- 
trução Auxiliada pelo Computador), uma frasc que se tornou sinônimo de 
modo de uso do computador que caracterizei, com um exagero questionável, 
como o uso do computador para programar o estudante. John Kemeny foi um 
dos pais da linguagem BASIC e, portanto, um pilar de apoio para uma visão 
muito diferente do computador: o estudante programando a máquina e, as- 
sim, tornando-a uma ferramenta que auxilia a aprendizagem, em vez de ser 
um professor-robô que auxilia o ensino. 
Assim, ao longo de uma eixo, Suppes e Kemeny posicionavam-se em extre- 
mos opostos. Em outros eixos relevantes, porém, eles estavam muito próxi- 
mos, pois partilhavam uma ênfase virtualmente exclusiva do lado cognitivo da 
aprendizagem: eles viam a aprendizagem em termos de fatos c habilidades a 
serem adquiridos; não tinham qualquer interesse explicito quanto a sentimen- 
tos, personalidade ou desenvolvimento do individuo em um nível que não 
fosse redutível a essas particulas especificas de aprendizagem. Eles tinham em 
comum uma aceitação da Escola. Mantinham suas concepções sobre educação 
separadas do seu engajamento com politica, gênero e raça. Em muitos desses 
aspectos, eles eram distintos do espirito do período "romântico", que traria 
questões sociais mais relevantes e aspectos mais "íntimos" do computador para 
a vanguarda do interesse. E eu situava-me neste contexto. 
154 Seymour Papert
Eu era cetamente o barulhento dissidente do grupo. Discordei tanto do 
CAI quanto do BASIC e desenvolvi o Logo como uma alternativa para ambos. 
No entanto, seriam necessários cinco anos para entender as implicações 
anticlássicas das ideias que eu estava encarando. Nesse

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