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AÇOS PARA A CUTELARIA


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AÇOS PARA A CUTELARIA 
No século dezoito e antes dele já se sabia que o carbono era um elemento importante a ser 
adicionado ao ferro para formar os aços e sabia-se que a quantidade de carbono influenciava 
na dureza do aço e na retenção do fio, no entanto, não dominavam a dosagem do carbono a 
ser dissolvido no aço, então usavam o método de colocar o ferro líquido em um cadinho de 
grafite e mantê-lo aquecido por vários dias para que pudesse absorver o carbono das paredes 
do mesmo, dependiam da experiência de pessoas que visualmente avaliavam o ponto correto 
de retirar o aço do cadinho. 
Era complicado pois depois que o aço esfriava o carbono não era homogêneo variando a cada 
batelada e com um gradiente de maiores e menores concentrações de carbono no volume do 
cadinho, o que exigia que o aço fosse trabalhado para ser homogeneizado. 
Pelo final do século dezenove, na Inglaterra, um relojoeiro descontente com a variação de 
qualidade dos aços mola que obtinha dos fornecedores resolveu fazer experiências e 
conseguiu dosar o carbono a ser adicionado a uma porção de ferro fundido criando o primeiro 
cast steel da história. À partir disto os aços evoluíram tremendamente e a cidade de Sheffield 
na Inglaterra, onde ocorreu esta criação do cast steel e que já era um grande centro cuteleiro 
passou a ser o maior centro cuteleiro do mundo com grandes fábricas como a Josefh Rodgers 
que chegaram a ter mais de 2000 funcionários antes da entrada no século vinte. 
Estes aços carbono dominaram por muito tempo, acrescentaram então outros metais em 
diferentes proporções e durante a primeira grande guerra ao fazerem experiências para 
melhorar o aço dos canos das armas os produtores de aço observaram que um aço com 
grande quantidade de cromo não se manchava com facilidade, perceberam que este aço 
poderia ser útil na cutelaria e o forneceram experimentalmente a duas fabricas surgindo o aço 
menos manchavel ou o hoje popular aço inoxidável inicialmente este aço ficou com a fama de 
ser ruim de corte e muito difícil de ser trabalhado. Problemas que estavam equacionados e 
solucionados por volta de 1920. 
O carbono no aço e na cutelaria. 
Se tomarmos uma jarra de água pura e a ela acrescentarmos um corante em pequena 
quantidade, ou uma mistura de pós para suco, ela será modificada em sua totalidade e passará 
a ser algo diferente da água pura, com novas características. Desta mesma forma o ferro puro 
que não se presta a quase nada é modificado por pequenas quantidades de carbono dissolvido 
em sua estrutura, ganhando resistência mecânica importante nas construções civis e de 
equipamentos industriais e para a cutelaria ganhando dureza e manutenção do corte que são 
qualidades procuradas por todos que querem um instrumento de corte. 
Esta mistura de ferro com carbono passa a chamar-se aço e dependendo do percentual de 
carbono teremos características diferentes de dureza e outras propriedades. Para a cutelaria 
costumamos falar que os aços devem ter no mínimo 0,6% de carbono, abaixo disto existem 
aços que podem ser usados para ferramentas específicas como espadas que sofrerão grandes 
golpes e precisam de uma flexibilidade especial. Os aços em uso hoje no Brasil ficam entre 
0,6% e 2,15% de carbono, acima disto existem alguns poucos aços produzidos à partir de pós e 
que chegam por volta de 2,5% de carbono. 
Quanto mais carbono melhor? 
Não é bem assim... muitos procuram sempre o aço mais, o aço plus, o hiper duro, acreditando 
que aços extremamente duros não perderão o corte nunca. 
Aços duros costumam também ser quebradiços. Quanto maior a dureza menor a flexibilidade 
é uma regra que o cuteleiro sempre procura contornar e encontrar meios técnicos de superar 
e existem inúmeros truques para conseguir melhorar esta relação obtendo aços de alta dureza 
no fio mas que tenham a flexibilidade adequada. 
Outro grande problema do aço extremamente duro é na hora de fazer a reafiação. O leigo não 
tem uma lixadeira de cinta em casa como os cuteleiros possuem e na maioria das vezes 
também não possui pedras de afiar cujo abrasivo seja o diamante como muitos profissionais e 
aficcionados possuem, então ocorre o grande drama, uma faca de aço duríssimo perde o corte 
e o seu proprietário fica na mão pois não consegue afiá-la na hora que mais precisa. 
Há que se ter um equilíbrio entre dureza e flexibilidade e um limite de dureza que permita a 
reafiação com o uso de ferramentas “normais”, ou até mesmo improvisadas conforme o uso 
da faca ( sobrevivência, pescarias, acampamentos ... ). 
Aço carbono ou aço inox? 
Aqui entra muito o gosto particular da pessoa que irá usar a peça. 
As facas em aço carbono são mais tradicionais, podem assumir acabamentos rústicos ou 
mesmo contrastes interessantes entre o rústico e o polido espelhado e quando bem polidos 
estes aços formam uma bela pátina acinzentada durante o uso que acabam por denotar o zelo 
de seu proprietário pois se logo após o uso a faca é lavada e seca formará uma pátina brilhante 
e uniforme já se após o uso a faca for abandonada sobre a pia, suja de sal e limão para ser 
lavada no dia seguinte ela certamente terá pontos de ferrugem e a pátina que irá se formar 
será toda manchada, o que também é apreciado por alguns. O sabor do alimento cortado por 
uma faca de aço carbono pode ser diferente do sabor do mesmo alimento cortado por uma de 
aço inox, segundo os paladares mais requintados, assim para certas iguarias como os sashimis 
certas culturas recomendam o uso do aço carbono. 
O aço inox é um aço menos manchavel e que exige menores cuidados no dia a dia, aceita ficar 
um tempo sem a limpeza desde que não seja exagerado e conserva seu brilho de cromo por 
mais tempo. 
O inox pode ser a melhor escolha para tarefas que envolvam água salgada como facas de 
mergulho, não que o aço carbono não desempenhe esta função mesmo porque pode ser 
utilizado com coberturas protetoras como teflon ou epóxi mas o inox exigirá do usuário menor 
cuidado com a peça. 
Certos países, como o Brasil, exigem legalmente que facas de uso em açougues e restaurantes 
sejam de inox e com cabos injetados para dificultar a entrada de partículas contaminantes 
entre a lâmina e o cabo, já outros países não fazem estas exigências podendo o profissional da 
alimentação usar facas de aço carbono com cabos de madeira e outros materiais já que 
existem métodos simples de se fazer a higienização de uma faca antes e após o uso. 
No Brasil temos poucas opções comerciais de aços inoxidáveis levando alguns cuteleiros a 
importarem uma variedade maior destes aços para suas peças. 
Faca forjada ou somente desbastada? 
A forja é uma ferramenta onde pelo uso de calor e pressão o cuteleiro pode modelar o aço 
conforme sua necessidade e/ou vontade. 
Não se consegue, ou fica muito caro e trabalhoso, produzir uma faca integral gaúcha usando 
apenas o método de desbaste no entanto usando-se a forja o cuteleiro aquece o aço e o 
modela em uma bigorna com suas marretas dando-lhe o formato desejado. 
Em outras situações a faca a ser produzida tem ondulações, curvas, fazendo com que para a 
sua produção por desbaste o cuteleiro necessite de uma chapa larga de onde recortar a peça. 
Se esta chapa larga não está disponível o cuteleiro forjador pode lançar mão da forja e partir 
de uma chapa mais estreita, fazer as curvas necessárias. São casos típicos em que a forja é 
indispensável. 
 
Facas à partir de pistas ou esferas de rolamento, muito comuns no Brasil só são possíveis por 
forjamento. 
Para certos aços, em especial os aços carbono, o forjamento bem executado melhora as 
propriedades do mesmo para o corte promovendo um refinamento dos grãos. 
E existem os aços de alta liga que pouco ou nada se beneficiam do forjamento e ainda 
situações em que o uso da forja pode ser um risco para as características técnicas originais do 
aço. Existem assim cuteleiros que só fazem facas forjadas, cuteleiros que só fazem facasdesbastadas e cuteleiros que fazem facas forjadas e facas desbastadas tudo depende da linha 
de trabalho a que ele se dedica. 
A alma do aço. 
A alma de uma faca é formada pelos seus tratamentos térmicos que podem incluir o 
recozimento e a normalização durante o trabalho do cuteleiro sendo o recozimento para 
amolecer o aço e a normalização para aliviar as tensões acumuladas e que podem traduzir-se 
em trincas ou deformações na hora do tratamento térmico principal. 
O principal tratamento térmico é a têmpera, seguida do revenimento. A têmpera irá endurecer 
o aço, é um choque térmico controlado que pode sofrer inúmeras variações conforme o aço e 
a técnica dominada e escolhida pelo cuteleiro. Pode-se pré aquecer ou não o meio de têmpera 
que na maioria das vezes é constituído por um óleo fino, pode-se temperar a peça toda 
igualmente ou apenas parte dela ( têmpera seletiva ) o que permite deixar o fio muito duro 
mas o restante da lâmina flexível, pode-se usar meios de têmpera que irão resfriar a peça em 
diferentes e importantes velocidades como água, água com sais, óleos diversos, parafinas, etc.. 
Não cabe aqui discutirmos os detalhes metalúrgicos do que ocorre durante a têmpera, basta 
saber que ela é o principal tratamento térmico de uma faca e se o artesão não a dominar deve 
entregar a peça a empresas ou outros profissionais pois pode nesta fase destruir todo o 
trabalho realizado e se domina as técnicas necessárias poderá dar à peça uma bela alma e 
personalidade. 
O revenimento é um aquecimento a temperaturas mais baixas do que a têmpera e tem por 
objetivo eliminar as tensões causadas pela têmpera. Se a peça não for adequadamente 
revenida depois da têmpera poderá ficar quebradiça partindo-se com uma simples queda da 
faca ao solo. Usa-se fazer revenimentos simples duplos ou triplos conforme a necessidade do 
aço em uso. No revenimento pode-se também calibrar a dureza da lâmina deixando-a 
adequada para uma fácil reafiação. 
O sub-zero é como uma continuidade da têmpera que então não para à temperatura 
ambiente, serve para promover uma maior transformação das estruturas moles em estruturas 
duras dentro do aço. Usa-se sub-zero à setenta graus negativos, feito com gelo seco e acetona, 
e sub-zero à cento e noventa e seis graus negativos, feito com nitrogênio líquido. Este 
tratamento deve ser subseqüente à tempera, ou seja, deve ser realizado em poucas horas 
após a têmpera. Não acredite em sub-zero feito semanas após a têmpera, ele irá apenas 
congelar e descongelar a lâmina sem promover qualquer modificação na estrutura do aço que 
já estará estável. O sub-zero é útil em particular para os aços de alta liga e os inoxidáveis. 
Alguns aços usados na cutelaria: 
Existem inúmeras nomenclaturas para designar os aços pois além das nomenclaturas técnicas 
oficiais cada fabricante tem uma forma diferente de identificar suas diferentes ligas e a 
bagunça é grande, não queira entender tudo de uma vez, vá absorvendo as informações aos 
poucos, um aço de cada vez. 
Os aços “simples”, ou seja, aqueles cujos componentes importantes são apenas ferro e 
carbono são designados por números que começam pelo algarismo um e cujos algarismos 
finais definem o percentual de carbono assim: 
1020 é um aço simples com 0,2 % carbono. Este aço não se presta à cutelaria mas é muito 
usado na construção mecânica de maquinas e nos dispositivos das oficinas como bancadas e 
gabaritos e mesmo para o cuteleiro fazer cabos e soldar nas peças que irá forjar quando não 
usa tenazes. 
1045 tem 0,45% de carbono. Já começa a “pegar tempera” se feita em água. Pode ser uma 
opção para algumas espadas e facões mas existem outros melhores. 
1070 com 0,7% de carbono já começa a ser usado na cutelaria, principalmente em sanduíches 
com outros aços para formar aços tipo damasco. 
 
1095 com 0,95% de carbono é o aço padrão das limas de boas marcas e dá boas facas para 
quem gosta de um aço tradicional à moda antiga. Muito bom para fazer facas de época, 
réplicas de facas antigas, por exemplo. Também muito usado em combinação com outros para 
fazer aço damasco. É um bom aço para o cuteleiro iniciante praticar o forjamento. 
Quando o primeiro número muda ele indica elementos de liga no aço assim os aços que 
começam com o digito cinco são os que tem um pequeno percentual de cromo em sua liga. Os 
números finais continuam indicando o percentual de carbono assim: 
5160 é um aço com 0,6% de carbono e pequeno percentual de cromo. Muito usado em molas 
automotivas é sem dúvida o principal aço do cuteleiro forjador iniciante e a preferência de 
muitos forjadores experientes. É um aço bom de se trabalhar e que apresenta resultados 
ótimos seja para uma espada seja para facas pequenas como skiners ou facas médias e 
grandes. Tudo dependerá da alma ( tempera e revenimento ) que receber. 
52100 é o aço com 1% de carbono e um pouco de cromo de que são feitos a maioria dos 
rolamentos. Encontrável em barras redondas e chatas e reciclado de pistas de grandes 
rolamentos ou esferas de grandes diâmetros tem se transformado em uma grande preferência 
dos cuteleiros brasileiros, principalmente para o forjamento. É um aço de excelente custo 
benefício e que apresenta afiação e retenção de fio excelentes. Outros aços com diferentes 
nomenclaturas são comumente usados como: 
O1 – ( diz-se ó um e não zero um ) com 0,9% de carbono e que tem ainda Mn, Si, Cr e W em 
sua composição, produz excelentes facas de fácil reafiação e ótimo fio. Também encontrado 
sob a denominação de VND. 
D-2 – já chega à 1,55% de carbono, tem 12% de cromo e ainda Vanádio e Molibdênio em sua 
composição é um aço mais complexo para o cuteleiro mas produz excelentes facas. 
K-100 ou VC-130 é um aço ferramenta com 2% de carbono, difícil de desbastar, exige uma 
técnica mais apurada em sua têmpera como o pré aquecimento do óleo e um bom 
revenimento mas produz facas excelentes quando bem trabalhado. Se mal trabalhado pode 
gerar facas muito quebradiças e de dificílima reafiação doméstica. Normalmente K-100 é a 
denominação do importado da Alemanha e VC-130 do similar nacional. 
D-6 , VC-131, K-107 e Sverker 3 também são aços similares apenas de procedências diferentes 
e com cerca de 2% de carbono. 
Aços inoxidáveis 
Os aços inox comercializados no Brasil são poucos concentrando-se basicamente em dois. 
420 – que possui diferentes percentuais de carbono conforme a origem mas sempre por volta 
de 0,3 a 0,4% e 12% de cromo, é um aço marginalizado por muitos cuteleiros mas se bem 
trabalhado pode chegar a 54HC de dureza que é uma dureza suficiente para muitas facas de 
cozinha e outros usos menos severos. É bem resistente à oxidação e de baixo custo. 
440-C – é seguramente o aço inox mais usado no Brasil, com seus 0,95% de carbono quando 
temperado adequadamente e passando por um tratamento sub-zero proporciona uma 
excelente durabilidade do fio bem como uma afiação muito boa. Dependendo da origem pode 
ter um polimento mais difícil para chegar no espelhado. 
Sandvik 12 C 27, VG-10, ATS-34, BG-42, 154-CM, S30V são alguns outros bons aços inox 
importados usados pelos cuteleiros brasileiros com certa freqüência e aplicados a suas peças. 
Existem vários outros aços e os cuteleiros estão sempre experimentando e procurando aços 
que proporcionem bom fio, fio durável, flexibilidade da lâmina, fácil reafiação e outras 
qualidades que alidadas à beleza possam ser usados em suas criações. 
Outros materiais: 
Não é usual mas também encontramos laminas em talonite, cerâmicas de alumina ou zircônia, 
titânio e outros materiais. 
Aços Damasco são aços compostos por caldeamento de outros diferentes aços. O cuteleiro 
pode fazer obras de arte fantásticas com esta técnica e produzir aços que aliem beleza, 
flexibilidade e poder de corte excepcionais. Pela complexidade destes aços deixaremos para 
explicá-los em capitulo à parte. 
Conclusão 
Pode-se ter uma boa faca feita por aços carbono oupor aços inoxidáveis mas não basta o aço 
correto, a habilidade e o conhecimento técnico do cuteleiro são imprescindíveis para colocar 
uma boa "alma" na lâmina. Uma faca sem alma será apenas um pedaço de aço com um 
desempenho sofrível já uma faca com uma bela alma, proporcionada por uma boa técnica de 
forjamento ou de desbaste com os tratamentos térmicos adequados será um objeto de arte 
utilitário que trará enorme satisfação a seu usuário. 
Esperamos tê-lo auxiliado fornecendo informações básicas úteis para que tome uma boa 
decisão e compre a ferramenta adequada a sua necessidade no entanto se ainda tiver dúvidas 
entre em contato. 
Sobre o autor 
 Marcos Soares Ramos Cabete 
Cuteleiro desde 2003 
Iniciou-se na forja com o mestre já falecido Fabio Codignolli 
Ministra cursos de cutelaria basica gratuitamente 
Contato: cabete@brascopper.com.br