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Unidade 3 3.1 Processos circulares No Brasil, a Justiça Restaurativa costuma ser confundida com os processos circulares, metodologia de base ancestral popularizada pela obra homônima da Kay Pranis (2010). Embora seja necessário afirmar que Justiça Restaurativa não é sinônimo de processos circulares, também é preciso reconhecer a extensão e potencialidade restaurativa desse método. A proposta dos processos circulares é de facilitar e promover conexão, construir entendimento mútuo, resolver e transformar conflitos e fortalecer relacionamentos. Para tanto, busca renovar tradições ancestrais como as de se reunir em torno do fogo, ou em volta da mesa da cozinha, promovendo encontros intencionais, circulares, com elementos e ritos próprios. Com inspiração em tradições antigas de povos nativos do continente americano, a proposta metodológica dos processos circulares pauta-se no uso de um objeto chamado “bastão de fala”. Esse objeto passa por todos os participantes do grupo e confere, a quem o porta, o direito exclusivo de falar. Os demais participantes escutam a narrativa. Saber que o bastão de fala chegará em você e que você terá igual oportunidade de responder à pergunta disparadora é fundamental para que se possa aguardar sua vez pacientemente, sem interferir na expressão dos demais participantes. Sem a ansiedade do risco de não ter sua voz considerada, cria-se um ambiente mais propenso para escuta empática e cuidadosa. Conforme relatei em outro espaço (CARVALHO, 2019, n.p): Sempre que uma questão é posta no encontro coletivo, o bastão passa por todos os presentes, dispostos em círculo. Quem porta o objeto tem a oportunidade de falar como se sente e quais suas considerações ou narrativas sobre a questão proposta. Enquanto segura o bastão, tem seu espaço de fala e escuta garantidos. Uma das regras condutoras da prática é a de que todos podem falar desde que portem o bastão; quando não for o caso, devem esperar em silêncio a sua vez. Ao recebê-lo, a pessoa pode optar também por não falar, passando para o participante seguinte ou segurando-o em silêncio pelo tempo que achar necessário. Às vezes, ter seu tempo de silêncio ouvido e considerado pode ser, por si só, transformador e tão ou mais eloquente do que qualquer palavra falada. Como circula por todos os presentes, o bastão garante isonomia nas condições de participação, sendo uma prática democrática simples e de impacto. Ao passar por cada um, demonstra que a perspectiva de todos é relevante naquela questão. No círculo, garante uma compreensão ampliada sobre as causas, fatores, repercussões e pontos de vista envolvendo o tema. É uma prática transformadora da própria maneira de se comunicar. Ao invés de pensar em ação e reação, procura incentivar a escuta atenta e o autocontrole de ansiedade. Ora, sei que terei a oportunidade de fala sobre o tema, mas que isso pode demorar, a depender da ordem em que estou sentada no círculo e do tempo que cada um leve na sua manifestação. Esse tempo de escuta muitas vezes é crucial para que os participantes mudem de opinião, vejam a questão de uma maneira mais profunda, reforcem a perspectiva que defendiam ou mesmo para que optem por não se manifestar, quando alguém já conseguiu expor aquilo que gostariam de dizer. O tempo de o objeto chegar até mim é também uma oportunidade de respirar fundo, acalmar e organizar meus pensamentos. É ainda importante para uma escuta honesta e respeitosa, já que muitas vezes a imediaticidade do diálogo faz com que, enquanto um interlocutor está falando, o outro esteja pouco atento, já pensando nos argumentos que irá apresentar para defender seu ponto de vista. A condução do rito por meio de perguntas guiadas pela passagem do objeto de fala tem as vantagens de: a) demonstrar que as contribuições de todos os participantes são relevantes para o coletivo; b) oferecer igual oportunidade de fala para cada um dos presentes; c) honrar a presença e a dignidade dos participantes; d) oferecer apoio para expressões de sentimentos e necessidades; e) evidenciar a conexão entre as histórias e os sujeitos presentes. Essa proposta de conexão por meio do compartilhamento de narrativas e escuta empática comunica-se diretamente com pressupostos da democracia. Nas palavras de Kay (2010, p. 16), “histórias unem pessoas pela sua humanidade comum e as ajudam a apreciar a profundidade e a beleza da experiência humana”. Por isso, não é de se estranhar a vasta utilização dos processos circulares no ocidente. É possível utilizar-se desse método no sistema de justiça, nas famílias, escolas, vizinhanças, ambientes de trabalho, centros de assistência social, conflitos societários, dentre tantas outras situações. Os encontros podem abranger desde conflitos difíceis até celebração de realizações ou processamento de perdas. A proposta dos processos circulares não é restrita a conflitos, nem tampouco especifica um rol taxativo de casos para conexão. Particularmente, já trabalhei com o método para composição de danos, transformação de conflitos; celebração de conquistas; fortalecimento de vínculos; processamento de perdas e luto; compreensão de pontos de vista diante de deliberações importantes; compartilhamento de vulnerabilidade e construção de grupos de apoio; construção de equipe de trabalho; reforço no processo de aprendizagem; retorno de um membro a uma família; e tomada de decisões. Além do bastão de fala, são elementos estruturais dos processos circulares: a) presença de facilitador; b) cerimônias de abertura e encerramento; c) checagem de como os participantes estão no início e ao final do rito; d) geração de valores e de diretrizes; e) compartilhamento de histórias e eventual construção de consenso. O formato espacial em círculo também é um símbolo importante, representando igualdade, conexão, partilha, responsabilidade, participação e inclusão com diversidade. A junção desses elementos é intencional, voltada a construir um ambiente em que as pessoas se sintam seguras e consideradas para se expressarem com autenticidade. O estabelecimento de um espaço isonômico é um fator sensível nos processos circulares. Por essa razão, os aportes e narrativas de todos os participantes são considerados, buscando construir uma compreensão do problema e das possibilidades de solução que seja inédita, que reflita todo o grupo. Esse compartilhamento de liderança e responsabilidade é simbolizado pelos elementos estruturais intencionais dispostos no ritual. Basicamente, o passo a passo de um encontro coletivo de processo circular voltado exclusivamente para a conexão tem por base os seguintes momentos, apresentados a seguir na ordem em que ocorrem: ● Cerimônia de abertura; ● Check-in; ● Geração de valores; ● Geração de diretrizes; ● Atividade principal: compartilhamento de narrativas; ● Check-out; ● Cerimônia de encerramento. Quando diante de conflitos, são acrescidas outras etapas no procedimento, que passa a ocorrer na seguinte ordem: ● Cerimônia de abertura; ● Check-in; ● Geração de valores; ● Geração de diretrizes; ● Compartilhamento de narrativas; ● Rodada(s) para identificar como cada participante percebe o conflito; ● Rodada(s) para compreensão dos impactos do ato; ● Rodada(s) para compreender e construir possibilidades de restauração diante dos impactos mencionados; ● Eventual elaboração de plano de ação; ● Check-out; ● Cerimônia de encerramento. Sinalizei com sublinhado as fases que são exclusivas do cuidado com conflitos, para facilitar sua identificação e compreensão na totalidade do procedimento. É preciso salientar ainda que, nos casos conflitivos, os processos circulares não devem ser iniciados pelo encontro coletivo. Nesses casos, estaremos diante da obrigatoriedade de encontros individuaise anteriores com cada um dos participantes. Essa fase é chamada de pré-círculo, embora não necessariamente resultem num encontro coletivo posteriormente. A quantidade e a duração dos encontros com cada um dos participantes variam bastante. O essencial é que, nessa fase, seja possível validar narrativas, mapear o conflito e trabalhar a consciência sobre necessidades e sentimentos diante da situação em questão. Sendo o caso de contexto favorável ao encontro coletivo, marca-se então o círculo restaurativo, composto por cada uma das etapas mencionadas anteriormente. O círculo, contudo, não é o último passo frente a conflitos. Há ainda a fase de acompanhamento, com encontros coletivos chamados de pós- círculos. A seguir, passarei a falar com mais detalhes sobre cada um desses passos e componentes estruturais. O procedimento é conduzido por uma ou mais pessoas, que recebem o nome de facilitadores. Idealmente, os círculos são guiados por uma dupla de facilitadores, em virtude da complexidade e do cuidado que a prática demanda. Sua função é de garantir um espaço respeitoso e seguro, envolver os participantes quanto à responsabilidade partilhada e, conforme o caso, projetar a dinâmica da sessão coletiva, mapear o conflito e oferecer espaço de escuta individual. Todo o processo é marcado pela proposição de questões, que devem ser abertas para evitar respostas simplistas que se satisfaçam com “sim” ou “não”. O espaço de segurança do círculo é demarcado no seu início e fim, contando com cerimônias de abertura e encerramento, que podem ser práticas de respiração, música, poesia, atividades com o corpo ou qualquer compartilhamento que estimule a caracterização daquele espaço-tempo de conexão. Isso é importante, por exemplo, pra que as pessoas compreendam quando é seguro expor algo pessoal, sabendo que a confidencialidade estará garantida. É também útil para que os participantes se afastem de distrações exteriores e passem a entrar em contato com o ritmo e o rito daquela cerimônia. Em seguida à abertura, o facilitador apresenta o bastão de fala, enquanto relembra a todos a razão daquele encontro. São oferecidas orientações sobre o ritual e os comportamentos esperados, que partem tanto do facilitador, quanto são construídas pelos participantes. Logo após, dá-se início ao check-in, o momento de checagem de como os sujeitos estão naquele momento. O facilitador lança alguma pergunta disparadora relacionada a compreender como cada um está e todos experimentam pela primeira vez o objeto de fala para, caso queiram, dizerem como estão se sentindo. Uma fase semelhante é feita ao final, com a finalidade de compreender como as pessoas estão saindo daquele encontro. As duas rodadas seguintes são voltadas a construir valores e comportamentos, que os participantes se comprometem a realizar naquela oportunidade e que gostariam que fossem observados pelos demais para que se sintam seguros e confortáveis. Os compartilhamentos das sessões coletivas costumam iniciar com 'contação' de histórias que possam aproximar os participantes, a exemplo de momentos em que tiveram algum medo ou sentiram-se vulneráveis, em que foram felizes juntos, em que criaram algo de que se orgulham ou ainda que superaram um desafio que antes não imaginavam serem capazes de transpor. Essa partilha pretende criar conexões de empatia e alteridade entre os presentes, ultrapassando eventual compreensão limitada que tenham um do outro e superando o perigo da história única.1 Em processos circulares que ocorram com alguma frequência com o mesmo grupo de participantes, não necessariamente essa primeira fase de compartilhamentos ocorrerá. Ela é especialmente importante nos casos de conflitos, ou em que haja polarização, distanciamento ou oposição muito forte entre os interessados. Nos círculos que tratem de conflitos ou de situações desafiadoras, um segundo momento de compartilhamentos volta-se especificamente ao problema ao qual se pretende oferecer resposta ou ampliar a compreensão. Nesse caso, as perguntas norteadoras são voltadas a entender os sentimentos, necessidades, perspectivas e compreensões do mundo dos interessados. O que se pretende, aqui, é entender como cada um se relaciona com aquela história compartilhada e, compreendendo isso, como pode contribuir para transformá-la em algo melhor. 1 Cf. ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo da história única. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=EC-bh1YARsc>. Acesso em: 12 jul. 2016. Embora nesses dois momentos de partilha de histórias e perspectivas seja muito marcante a utilidade da Comunicação Não-Violenta, essa ferramenta pode ser útil durante todo o processo circular. Embora não seja um pressuposto declarado das práticas restaurativas, a Comunicação Não-Violenta é uma técnica que se alinha à raiz da proposta restaurativa. Por essa razão, é importante que um momento preparatório dos encontros coletivos considere a difusão e o exercício desse recurso para a observação sem julgamento; a identificação de sentimentos e de necessidades humanas básicas; a formulação de pedido compreensível e de ação; e, não menos importante, para a escuta compassiva que parte desse mesmo passo-a- passo. Nos casos conflitivos, pode haver ainda um outro momento destinado à construção de consenso. Nesse caso, falamos de elaboração de um plano de ação. Importante frisar que, ao falar em consenso, não se quer defender que todos amem o resultado daquele círculo, mas que seja uma decisão com a qual todos aceitam conviver e propõem-se a implementar. REFERÊNCIAS ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo da história única. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=EC-bh1YARsc>. Acesso em: 12 jul. 2016. CARVALHO, Mayara. Justiça restaurativa na comunidade. Belo Horizonte: Instituto Pazes, 2019. E-book Kindle. PRANIS, Kay. Processos circulares. São Paulo: Palas Athena, 2010.
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