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Capítulo 4 – Não-sonho e enactment Segundo o autor, a ideia de que algo é colocado em cena no setting analítico vem há tempos sendo utilizada pelos psicanalistas ingleses por meio da palavra enactment. Em sentido coloquial o termo significa colocar em cena, agir, representar. É utilizado para se referir à externalização de dramas internos do paciente. Aponta que recentemente, contudo, o termo se transformou em um conceito, embora a definição do mesmo seja objeto de controvérsias e divergências. Para alguns, passou ser utilizado no lugar de acting out. Em linguagem jurídica, é algo que tem que ser feito, uma lei, um decreto. Ou seja, em psicanálise o conceito veicula essas duas ideias: significa algo que é colocado em cena quase que obrigatoriamente. Um aspecto central do conceito, e que o diferencia de acting out, é que no enactment tanto analista quanto paciente estão envolvidos. São ações e comportamentos de ambos os membros da dupla que revelam e escondem ao mesmo tempo aspectos inconscientes. Em outras palavras. Roosevelt conceitua enactment e o diferencia de de acting- out. Diz que, recentemente, o enactment passou a ser um conceito psicanalítico e aponta que há divergências entre diferentes autores sobre o significado do termo. Para alguns, enactment significa o mesmo que acting-out, tendo substituído-o. Não é essa a acepção que Roosevelt dá ao termo, embora leve em consideração sua característica de atuação. Segundo o autor, existe uma diferença importante entre acting-out e enactment, que é o fato de que o último envolve ambos os membros da dupla, analista e paciente, e o primeiro é uma atuação do paciente apenas, que coloca em ação algo que deveria ser lembrado e verbalizado. Nesse caso o analista é um espectador. Já o enactment, portanto, é uma atuação da dupla. O acting out é uma atuação que acontece no lugar de algo que não pode ser lembrado, e, sendo assim, é atuado. Acting out é a tradução inglesa do termo Agieren, de Freud, onde o paciente atua em vez de lembrar, e está intimamente relacionado à transferência. Contudo, os analistas tendem a utilizar o conceito como representando uma descarta impulsiva e imediata. Out significa aquilo que é colocado para fora, no mundo externo. A atuação era vista de forma negativa, como se o paciente fosse culpado de atuar em vez de recordar. Atuar também servia como rótulo para pessoas impulsivas e sociopatas. O aspecto moral e pejorativo se ampliou e atingiu profissionais da saúde mental, que rotulavam alguns pacientes mais transgressores. Essa visão moralista não é boa, uma vez que ignora o fato de que se o paciente atua é porque não pode lembrar. Portanto temos duas definições clássicas de acting out (mesmo no dicionário de Laplanche há uma separação dessa natureza): 1) Quando o paciente dramatiza uma situação na transferência, em vez de lembrar. É o Agieren de Freud. 2) Atos impulsivos e descarregados de uma vez só. O estudo do enactment pode ajudar nessas definições. Alguns analistas reservam os termos acting out e enactment para situações “não desejáveis”, que em vez de comunicarem algum elemento transferencial, ou seja, em vez de possuírem um conteúdo simbólico, servem apenas para pura descarga. Outros autores valorizam o aspecto comunicativo mesmo desses enactment e acting outs intensos. No fundo, se descobre que eles revelam falhas primitivas que não podem ser nem recordadas nem esquecidas, pois jamais foram representadas. Cassorla cita Bateman (1998), para quem o enactment pode apresentar formas leves ou mais intensas, podendo levar o analista a ultrapassar as fronteiras do que seria um tratamento analítico. Uma outra característica citada por Bateman é que o enactment, uma vez compreendido pela dupla, “se constitui numa força positiva para o tratamento.” (p. 82). Cassorla chama a atenção para o fato de que se assim for, o conceito de enactment se confundiria com o próprio processo analítico, uma vez que o analista está o tempo todo tentando se desvencilhar de enactments por meio de compreendê-los e interpretá-los. Por esse motivo, o autor sugere que exista um enactment normal, embora explore o assunto apenas nos capítulos seguintes. Ele diz: O conceito de enactment normal (Cassorla, 2001) se refere à identificação projetiva realística, que ocorre normalmente entre os membros da dupla analítica. Faz parte da transferência não psicótica. Os enactments normais são desfeitos através das interpretações do analista. Nos próximos capítulos voltaremos ao assunto. (p. 83) Ou seja, os enactments normais estariam ligados à parte não psicótica da personalidade, e seriam relacionados à transferência neurótica apontada por Freud. São desfeitos no dia a dia da análise pelas interpretações. O texto continua da seguinte forma. Embora o conceito de enactment, na literatura, se refira geralmente a situações agudas, a performance da dupla no campo analítico pode durar mais tempo, convertendo-se numa colusão prolongada, não percebida suficientemente pelo analista. Trata-se do enactment crônico. Paciente e analista representam comportamentos, como uma espécie de teatro mímico, ou cinema mudo. Podemos considerar o enactment crônico como similar a Agieren [de Freud] com a diferença que o analista também está envolvido. Portanto, o enactment crônico é um conluio prolongado que envolve a dupla analítica. O enactment agudo, por sua vez, corresponde a comportamentos abruptos que, num primeiro momento, parecem ser apenas descargas. Sugere ser acting-out, mas como envolve ambos membros da dupla seria um acting-out a dois. No entanto, essa comparação não está correta. Veremos adiante que o enactment agudo envolve não só descargas mas também não sonhos sendo sonhados e sonhos revertendo para não sonhos. (p.83) Os enactments crônicos substituem as comunicações verbais. Ocorrem com mais frequência em configurações borderline, em que a comunicação verbal é menos frequente. Como envolve os dois membros da dupla, o conceito vai além do acting out e do Agieren, que pertencem ao paciente. Os enactments agudos são abruptos, embora nem sempre ruidosos, e parecem ser apenas descargas. Não é uma atuação a dois, pois não envolve apenas descargas, mas também não sonhos sendo sonhados. Cassorla dá sequência à sua definição de enactment. Ele diz: Como no enactment ambos os membros da dupla estão envolvidos o conceito vai para além de acting-out e Agieren, descritos como pertencendo ao paciente. (P. 84). Importante ressaltar que os membros da dupla não têm consciência de que está ocorrendo um enactment crônico. A simbolização está prejudicada, e mesmo as palavras podem significar como instrumentos de descarga e não como processo de elaboração. A palavra funciona como um ato. Examinando minuciosamente enactments verifica-se que a performance é iniciada por um membro da dupla analítica, em geral o paciente. Seu comportamento envolvente pressiona o outro membro a responder em forma complementar, recrutado por identificações projetivas. O fenômeno ocorre em sentido duplo, analista e paciente influenciando-se mutuamente. Verifica-se que no enactment está envolvido algum aspecto do analista que o torna mais vulnerável à indução pelo paciente. Este, por sua vez, sofre indução do analista e, muitas vezes, não se sabe quem iniciou o enactment. Alguns autores (Gabbard, 1995) enfatizam mais o papel do analista, utilizando o termo enactment contratransferencial. (P. 84). O enactment crônico resulta de identificações projetivas cruzadas em que ambos representam papéis a dois. (P. 85). Concordo plenamente com a definição do autor, ao considerar o enactment como fruto de identificações projetivas cruzadas. Penso que o que acontece é que paciente e analista ficam confundidos um com o outro. Na linguagem de Ogden, o terceiro formado a partir de uma duplaque se encontra dentro de um enactment seria o terceiro subjugador, ou seja, fruto da identificação projetiva. Portanto, o não-sonho-a- dois seria gerado por um tipo de funcionamento mental, a identificação projetiva. O funcionamento por identificação projetiva cria uma confusão entre sujeito e objeto e empobrecimento da rede simbólica. Esse fenômeno, presente de forma visível nos enactments crônicos, pode ser observado em outras manifestações. Por exemplo, quando na análise de crianças, adolescentes e pacientes graves, os pais e familiares são envolvidos, pode-se criar uma rede de identificações projetivas cruzadas que dificulta a percepção dos fatos e simbolização. Outros exemplos do que pode acontecer quando a identificação projetiva está em ação são: maltrato de pacientes pela equipe de saúde de pacientes somatizadores e suicidas, pelo fato de projetarem de volta os aspectos agressivos neles projetados; algumas falhas do analista, como esquecer o nome do paciente, horários, utilização de ironia, alteração no tom da voz, atitude sedutora, etc. O autor dá o seguinte exemplo para definir e diferenciar o enactment crônico e do agudo. Uma situação marcante ocorreu antes de tornar-me analista. Um paciente me disse, ao final da sessão, que havia esquecido o cheque e que me pagaria na próxima sessão. Eu lhe disse que deixasse o cheque na portaria, no mesmo dia, porque eu tinha um pagamento que venceria no dia seguinte. Senti-me constrangido tanto com exposição como com a cobrança. Na sessão seguinte o paciente me disse que nunca imaginaria que eu precisasse de dinheiro. A partir desse fato pudemos trabalhar sua fantasia que eu era uma espécie de seio inesgotável que estava ali só para satisfazê-lo, sem ter vida própria. Não foi difícil perceber que ambos estávamos envolvidos num conluio de gratificação e submissão, em determinadas áreas da relação. Tratava-se do que, anos após, chamaria enactment crônico. Ele foi desfeito quando foi feita a cobrança. O contato traumático com a discriminação self/objeto, enactment agudo, terminou por ser produtivo. Somente me dei conta do conluio anterior após esse fato. (p. 85 - 86). Percebemos, na citação acima, que um enactment agudo também não precisa ser intenso do ponto de vista aparente. No caso em questão, diferentemente daquele no qual a paciente se exaspera com o analista, o enactment crônico foi rompido sem alardes, embora de uma hora para a outra, o que caracteriza a existência do enactment agudo. O maior problema do enactment crônico é que ele é mudo, silencioso e imperceptível para a dupla. Ele pode existir ainda que a análise caminhe razoavelmente bem em outras áreas. Contudo, tendemos a imaginar que a área defendida, preservada, deve ser de maior relevância. Como vimos, o enactment agudo rompe bruscamente o crônico, embora nem sempre de forma intempestiva. Para Roosevelt, o enactment crônico é produto de não-sonhos-a-dois. Os enactments crônicos portanto indicam conluios entre os membros da dupla, sempre no sentido de manter uma relação idealizada. Os enactments agudos rompem esse conluio, trazendo a dupla à relação triangular. E é só quando isso acontece que o analista se dá conta de que estava envolvido em um enactment crônico. A ideia de um enactment crônico também explica situações sociais nas quais líderes carismáticos recrutam emocionalmente seguidores, que se envolvem sem serem capazes de pensar, constituindo conluios perversos. Podemos ver que a mente, de forma geral, tem enorme tendência a funcionar por identificação projetiva. É ela, por exemplo, que leva ao fanatismo, preconceito, intolerância. Breuer e Anna O. constitui o primeiro conluio da psicanálise. Enactments crônicos são fruto de não sonhos a dois. Mesmo a associação livre, é no fundo uma narrativa morta, semelhante a uma ação, as cenas são não cenas e os enredos não enredos. Em seguida o autor faz uma afirmação que me parece importante. Ele diz. O estudo do enactment crônico me tem levado a vê-lo não somente como resultado da incapacidade de simbolização por parte de paciente e analista, mas também como consequência da necessidade de se reviverem mecanismos vinculares iniciais. Nessa revivência o paciente recebe função alfa do analista, mesmo que este o faça inconscientemente. Quando ela se torna suficiente o enactment crônico, simbiótico, é desfeito bruscamente, como enactment agudo. Os não- sonhos são transformados em sonhos, com ressignificação retroativa. (P. 87). Há aqui um aspecto interessante. O enactment crônico tem um aspecto de normalidade, saudável e necessário. Da mesma forma que uma identificação projetiva massiva pode ter a finalidade de ataque ao vínculo com fins defensivos e, também, com a finalidade comunicativa, ou seja, colocar estados mentais no outro como forma de utilizar maneiras primitivas de comunicação; o enactment crônico pode estar a serviço de um processo de elaboração inconsciente, devido ao fato de não ser hora, ainda, de ser desfeito. Isso aconteceria quando a dupla estivesse pronta para ascender à relação triangular. O autor diz que o acompanhamento minucioso do enactment crônico e seu dissolvimento nos permite ver “em statu nascendi” a maneira pela qual o simbolismo pode ser desenvolvido a partir de uma relação intersubjetiva. O autor levanta a questão de se seria necessário um novo termo para expressar essas obstruções analíticas, ou seja, o enactment crônico. Acha que sim, por quatro motivos: 1) Chama a atenção para algo que embora já descrito, não estava nomeado claramente 2) Não tem o aspecto pejorativo do termo acting out, e vai além deste. 3) Enfatiza o aspecto intersubjetivo. 4) Permite maior aprofundamento do estudo, uma vez que define o termo. Recentemente o termo passou a fazer parte do uso comum e é utilizado por psicanalistas de várias correntes teóricas. De início foi visto com desconfiança, mas com o tempo passou a ser aceito. O uso tem se ampliado, mas um estudo mais aprofundado ainda precisa acontecer.