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62 Unidade II Unidade II 5 GOVERNO COSTA E SILVA (1967-1969) Em 15 de março de 1967, Castelo Branco entregou a faixa presidencial a Arthur da Costa e Silva. Seu discurso foi bastante comedido em torno de suas qualidades para o cargo: Trago, pois, para exercício da Presidência, uma larga lição de experiência — propiciada pela ação direta, pela observação e pela reflexão — do trato da coisa política, que requer paciência e tolerância contínuas, e do trato da coisa pública, que impõe esforço constante de inteligência, coragem e tenacidade. Acima de tudo, trago preparados espírito e coração. Confio em que não decairei, jamais, da confiança dos meus concidadãos e da rica herança que recebo das mãos honradas de Vossa Excelência. E peço a Deus que me conceda a graça de ser sempre justo e isento, firme na palavra empenhada e inflexível na ação necessária, e consagre a minha esperança de fazer pelo Brasil o que ele espera e merece (COSTA E SILVA, 1967a). Em 31 de março de 1967, passados três anos do golpe civil-militar, o presidente lançou seu primeiro discurso para a imprensa nacional e internacional. Aqui, apresentou temas de grande impacto: Hoje, 31 de março, completam-se 3 anos da vitória do movimento que, em 1964, irmanou a opinião pública brasileira ao pensamento e à ação das Forças Armadas na tentativa bem-sucedida de salvar a democracia de um naufrágio que parecia àquela altura irremediável. A escolha desta data para o meu reencontro com a imprensa livre de meu País não foi a casual e tem um sentido simbólico a nós que chefiamos o Movimento de 31 de Março no âmbito militar e que teríamos fracassado se não contássemos com a opinião pública e com os órgãos que a exprimem. A data de hoje é, portanto, igualmente dos Senhores e podemos, neste momento, mutuamente nos congratular pelo fato de estarmos comemorando nesta atmosfera de liberdade e confiança que em meu governo será mantida, no que depender de nós, até o último dia do mandato. [...] Se a Revolução como processo heróico está encerrada, o que nela havia de substancial continuará no meu Governo e há de continuar, mercê de Deus, através dos mandatos dos presidentes que me sucederem. 63 DITADURA MILITAR E NOVA REPÚBLICA LIBERDADE DE IMPRENSA Concito os Senhores a que me ajudem a manter bem vivo este propósito, muito mais que uma intenção, um compromisso e um dever. A liberdade de imprensa é um dos pressupostos da democracia e para nós é sagrada. Procuraremos torná-la efetiva na medida em que o Governo assegure, como pretende, o acesso constante às fontes de informação, para que o povo possa saber o que estamos fazendo e julgar mais acertadamente os nossos atos. IMPOSTO DE RENDA A primeira resposta do Presidente foi dada à pergunta relacionada com os planos de Governo para reduzir o ônus que representa para os menos favorecidos a cobrança do imposto de renda. Reafirmou as intenções do Governo de materializar a redução da cobrança do imposto, anunciando que já estava decidida a elevação do teto e a cobrança que atualmente incide sobre os salários, além de 150 cruzeiros novos, e que passará para quatrocentos ou quinhentos cruzeiros novos mensais. ERRADICAÇÃO DO ANALFABETISMO Foi a segunda resposta relacionada com a erradicação do analfabetismo, à qual respondeu o Presidente que tal problema foi a tônica principal de todos os seus pronunciamentos. E afirmou que a situação em que se encontra o Brasil no setor educacional é realmente vergonhosa, pois apresenta o índice alarmante de cinqüenta por cento de analfabetos. E anunciou o lançamento de campanha de âmbito nacional visando a convocar todos os alfabetizados a transmitir seus conhecimentos aos analfabetos. [...] ESTUDANTES E TRABALHADORES Perguntado sobre se tinha planos de conciliação com trabalhadores e estudantes, respondeu afirmando ser desagradável que alguém perguntasse tal coisa. E frisou: — Essa conciliação existe naturalmente. Para que existe o Governo? Não é justamente para proporcionar o bem-estar de todas as classes? E quais são as classes que devem merecer especial atenção do Governo num país jovem como o Brasil, em pleno desenvolvimento? Justamente aqueles que trabalham, a classe dos trabalhadores. Aqueles que estudam. [...] UNIÃO NACIONAL Sobre os objetivos programáticos enunciados por alguns ministros, notadamente os Senhores Hélio Beltrão, Delfim Netto e Magalhães Pinto, 64 Unidade II e os objetivos também programáticos da Oposição, que revelam certa semelhança, respondeu dizendo que o governo de um país não é somente uma parte política, mas é um todo que compreende inclusive, a oposição, porque a oposição é fiscalização, é crítica e ninguém pode ter a pretensão de acertar sempre, e concluiu à resposta afirmando que haverá união nacional em todos os problemas máximos. PODER SOBERANO DO CONGRESSO Ao esclarecer as relações do Executivo com o Legislativo, afirmou não crer que o Executivo precisasse estimular o Congresso para votação e solução de determinadas leis que implicam profundas modificações e com grandes resultados para determinadas classes. [...] GOVERNARÁ DE BRASÍLIA Ao perguntar ao Presidente Costa e Silva se pretendia mesmo governar de Brasília, o Jornalista Heron Domingues afirmou que Brasília era uma ilha sem comunicações. Respondendo, o Presidente disse que mesmo no Rio de Janeiro, às vezes querendo falar com São Paulo, a telefonista pede doze horas de espera. E prosseguiu: Aqui em Brasília não esperarei mais do que meia hora. Esta posição do Governo não representa isolamento. Falo, agora, com Recife, se quiser. Brasília existe, não iremos deixar que Brasília se transforme em tapera (COSTA E SILVA, 1967b). A entrevista é reveladora de alguns pontos e propósitos interessantes que voltam à tona: uma primeira fase da “revolução” associada ao militarismo, ao povo e também pela opinião pública, ou seja, os órgãos de imprensa. Nesse sentido, defende calorosamente a liberdade de imprensa, “um dos pressupostos da democracia e para nós é sagrada”. A justificativa da democracia é dada pela liberdade de imprensa – semelhante ao que fez Castelo Branco. A temática do povo levantada é a da cobrança de impostos (no caso, imposto de renda), reflexo claro dos ajustes feitos pelo Paeg e que resultavam em aumento do custo de vida dos trabalhadores. Ao mesmo tempo, um projeto social importante dos 21 anos dos militares no poder, o fim do analfabetismo, é levantado para acabar com “cinquenta por cento de analfabetos”. Na perspectiva de garantir a governabilidade, argumenta ainda que o governo trabalha para o bem de todos procurando trazer para si os interesses dos trabalhadores e estudantes, gerando, em última instância, uma forte união nacional – até mesmo com projetos semelhantes aos da oposição. Por isso que o próprio Congresso, em suas palavras, não precisa ser estimulado a promover as leis e dá a impressão de que não será necessário intervir no Legislativo. Por fim, o comentário acerca de Brasília revela a capital ainda pouco atuante, em torno da enorme efervescência do eixo Rio-São Paulo em termos socioeconômicos e de forte presença de opositores ao regime militar. 65 DITADURA MILITAR E NOVA REPÚBLICA Figura 16 – A posse do presidente Arthur da Costa e Silva Observação O exercício analítico dos primeiros discursos de Arthur da Costa e Silva contrastam com a imagem tradicional de um militar de linha-dura bastante associado às Forças Armadas. Qual tipo de construção tentava-se fazer aqui? Costa e Silva era, sem dúvidas, completamente diferente de Castelo Branco. Como descreve Boris Fausto: Apesar de ter sido ministro da Guerra de Castelo Branco, Costa e Silva era uma figura estranha ao grupo de Sorbonne. O “tio velho”, como era chamado pelos conspiradores de 1964, fizera uma carreira militar sólida, incluindo desde meses de treinamento nos Estados Unidos até o comando do IV Exército, nos anos tensos de 1961-1962. Seu estilo, porém, não coincidia com o dointelectualizado Castelo. Ele não se interessava por leituras complicadas sobre estratégia militar, preferindo coisas mais leves e corridas de cavalos. Mais significativo do que essa diferença de personalidades era o fato de que Costa e Silva concentrava as esperanças da linha-dura e dos nacionalistas autoritários das Forças Armadas. Estes estavam descontentes com a política castelista de aproximação com os Estados Unidos e de facilidades concedidas aos capitais estrangeiros. Não havia, aliás, incompatibilidade entre ser “linha-dura” e nacionalista. Existia até uma tendência à junção dessas orientações (FAUSTO, 2004, p. 476). 66 Unidade II Uma demonstração evidente da força do militarismo em seu governo foi a escolha de seus ministros. Dos 18 cargos, 8 foram ocupados por militares. Na atuação econômica, o presidente convidou para o Ministério da Fazenda o economista da USP Antonio Delfim Netto. No geral, manteve a política econômica anterior, mas com uma mudança em dois sentidos, como explica Jennifer Hermann: (1) o controle da inflação passou a enfatizar o componente de custos, em vez da demanda, já que a economia operou em ritmo de stop and go nos três anos de governo do Castelo Branco; e (2) por isso mesmo, o combate à inflação deveria ser conciliado com políticas de incentivo à retomada do crescimento econômico. Essa reorientação atendia à já mencionada necessidade de o governo militar legitimar-se no poder como uma alternativa melhor para o país que a do governo deposto, marcado pela tendência à estagflação (HERMANN, 2011a, p. 64). A economista explica que a política fiscal e salarial foi mantida, mas cresceu a expansão monetária apesar do controle de preços – regulamentado pela Comissão Nacional de Estabilização de Preços (Conep) e depois pela Comissão Interministerial de Preços (CIP). Em 1968 o governo lançou o Plano Estratégico de Desenvolvimento (PED), caracterizado por garantir a estabilização dos preços, fortalecimento das empresas privadas, desenvolvimento da infraestrutura e ampliação do mercado interno. Eram passos importantes para a condução do Estado e para a formação do “milagre brasileiro”. Na atuação política, a ditadura militar já vivia dias de contradições. A perpetuação do militarismo já estava bastante evidente. E isso produziu a mudança de lado de antigos apoiadores. As lideranças civis foram se afastando. Se o golpe de 31 de março era para garantir a democracia, onde ela estava? Juscelino Kubitschek já havia sido cassado – candidato natural às eleições que se esperava em 1965. Das lideranças estaduais, Adhemar de Barros, governador de São Paulo, acusado de corrupção, também foi levado ao mesmo caminho. O antigo apoiador do golpe, Carlos Lacerda, insatisfeito com o fim das eleições diretas, foi o próximo cassado. O importante líder civil de 1964 e ex-governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto, não foi cassado, mas perdeu, completamente, sua força política – se escondeu da vida pública. O descontentamento gerou oposição, como explica Reis Filho: Havia uma oposição democrática moderada, principalmente nos grandes centros urbanos, que defendia a restauração do statu quo anterior. Alinhavam-se aí políticos do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) – único partido político oposicionista legal consentido pela ditadura –, apoiados por organizações da esquerda moderada, como o PCB, e segmentos da intelectualidade, cuja voz era potencializada pela posição que ocupavam em 67 DITADURA MILITAR E NOVA REPÚBLICA meios artísticos e culturais e também nos veículos de comunicação. Havia ainda outras forças que apoiaram o golpe, mas que se afastaram do regime por não se identificarem com seus propósitos e rumos atuais. Aí figuravam profissionais liberais e lideranças religiosas (REIS FILHO, 2014, p. 91). Desse grupo variado, formou-se a Frente Ampla, com a participação de lideranças difíceis de acreditar que poderiam se unir em qualquer outro momento: Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek e João Goulart. Havia sido criada em 28 de outubro de 1966 e partiu da insatisfação de Carlos Lacerda. Na época, obteve o apoio de Jango, exilado no Uruguai, e de JK, voluntariamente presente em Portugal. Tudo ficou pronto em 4 de setembro de 1967. Suas propostas centrais eram a anistia imediata de todos os políticos contrários ao regime militar; a elaboração de uma nova constituição de viés democrático pleno; e a imediata formação de eleições diretas. Conseguiu certa projeção, principalmente no Rio de Janeiro, mas o fato de reunir lideranças muito divergentes, como Lacerda e Jango, gerava grandes debates acerca de sua real eficácia. Durou pouco tempo: Os últimos suspiros da Frente Ampla deveram-se aos arroubos verbais de Lacerda. Já no final do ano estava moribunda. Quando veio sua extinção, por uma portaria do Ministério da Justiça, em 5 de abril de 1968, a Frente tinha pouca importância no cenário político. Foi a última tentativa de oposição civil, democrática, ao regime. O seu fracasso foi também o dobre de finados de João Goulart, Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda. As velhas lideranças não mais conseguiam dar conta da complexa conjuntura, e saíram, ainda que precocemente, da vida política para entrar na história (VILLA, 2014, p. 117). O histórico de repressão e domínio foi uma das mais importantes marcas do regime militar. Um dos elementos centrais, nesse sentido, foi o de Golbery do Couto e Silva. Como analisam Guilherme Mota e Adriana Lopez: O novo governo militar criou um instrumento de inteligência muito temido, que marcou todo o período ditatorial: o Serviço Nacional de Informações (SNI), inspirado pelo general Golbery do Couto e Silva, militar intelectualizado da Escola Superior de Guerra. O SNI multiplicou seus tentáculos por todo o país, passando a vigiar e inspecionar secretamente a vida de muitos cidadãos, até mesmo das Forças Armadas, especializando-se em escutas telefônicas, em seguir “suspeitos” e outros expedientes. “Criei um monstro”, dirá, na virada dos anos 1970, o general Golbery, ele próprio agora vigiado pelos remanescentes da “linha-dura” do regime em crise. Ironias da história (MOTA; LOPEZ, 2015, p. 794). O SNI foi criado ainda no governo Castelo Branco, em 25 de junho de 1964, e seria, nas palavras de Golbery (apud VILLA, 2014, p. 64), “o ministério do silêncio e uma janela aberta aos influxos dos mais 68 Unidade II sutis da opinião pública.” . Nos seus 21 anos de funcionamento, teve cinco chefes, sendo que dois foram presidentes do país: Médici e Figueiredo. Já se nota que a SNI foi um instrumento extremamente importante na construção de um aparato repressivo àqueles que eram contrários ao regime ditatorial militar. A força para ser uma oposição forte a esse poder de opressão não era facilmente encontrada. Um movimento democrático radical teve base com os estudantes. Com apoio de alguns setores da Igreja Católica, associados à teologia da Libertação, ou seja, da ação missionária indo além da mensagem religiosa, em busca da transformação real socioeconômica, cresceram em busca da denúncia da repressão. Uma vertente bastante importante da Igreja nesse sentido foi a atuação de Dom Hélder Câmara. A maior luta que se estabelecia para esse grupo era pelo fim da ditadura. Faziam manifestações nas ruas, esperavam que a mudança seria alcançada. A prisão autoritária, os abusos de poder, o fim das eleições diretas eram exemplos evidentes de que a mudança era mais que necessária. Ao mesmo tempo, essa ação estava associada, diretamente, ao sonho de amplas mudanças que ocorria no mundo dos anos 1960. Estabelecia-se, no dizer de Eric Hobsbawm, uma verdadeira revolução cultural. O mundo que até então era dominado por adultos, passou a ver grandes transformações nas casas, com a propagação de divórcios, de abortos, de pessoas que decidiam viver só ou ainda da homossexualidade. No campo da política, alguns países como Estados Unidos, Grã-Bretanha, Alemanha e França passaram,aos poucos, a baixar a idade eleitoral para dezoito anos. No campo econômico, o rápido avanço tecnológico dava à juventude ampla vantagem em relação aos mais velhos – conseguiam lidar com as novas ferramentas de maneira muito mais breve, o que resultava em melhores resultados para as empresas. Consequentemente, os computadores eram projetados para pessoas de vinte e poucos anos. Daqui, crescem dois elementos indispensáveis à compreensão desse tempo: o rock e o blue jeans. O novo estilo musical, com a morte precoce de grandes representantes, associado ao uso da roupa de destaque criada nas universidades estadunidense para, claramente, diferenciar-se da geração anterior “terminou aparecendo, em dias de semana e feriados, ou mesmo, no caso de ocupações ‘criativas’ e outras avançadinhas, no trabalho, embaixo de muita cabeça grisalha” (HOBSBAWM, 1995, p. 320) Essa luta por autonomia adquiriu feições intelectuais, tendo como exemplo mais forte o movimento estudantil francês. Foi ali, nesse contexto, que o movimento feminista ganhou força, com a queima de sutiãs. A intelectualidade passou também a discutir outros parâmetros de limites impostos pela sociedade. Foi então que surgiu o importante cartaz “é proibido proibir”. “Liberação pessoal e liberação social, assim, davam-se as mãos, sendo sexo e drogas as maneiras mais óbvias de despedaçar as cadeias do Estado, dos pais e do poder dos vizinhos, da lei e da convenção” (HOBSBAWM, 1995, p. 326). 69 DITADURA MILITAR E NOVA REPÚBLICA Figura 17 – Mulher participa de queima de sutiãs No Brasil, todo esse clima fez com que os movimentos estudantis estivessem associados a militantes de esquerda que “queriam não apenas se livrar da ditadura, mas destruir o sistema capitalista. Queriam a revolução social” (REIS FILHO, 2014, p. 92). O relato de Leoncio de Queiroz é fantástico: A cultura que floresceu nos primeiros anos da ditadura, antes de ser sufocada na década de 70, somente foi possível como produto da liberdade existente durante os governos anteriores. Nós, que queríamos reinventar o Brasil e, depois, nos rebelamos contra a tirania entreguista, fomos a geração que leu Monteiro Lobato. Os anos que pegaram os governos do Juscelino e do Jango, com o curto entreato do Jânio Quadros, foram, seguramente, os de mais fecunda criação artística e cultural no Brasil – uma avalanche de talentos que se estendeu e repercutiu até os primeiros tempos da ditadura. O clima de liberdade de criação e edição, a ausência de censura e o elevado crescimento econômico durante o mandato do Juscelino, favoreceram um desenvolvimento sem precedentes das artes, em todas as suas manifestações, e do estudo social, histórico e econômico do Brasil. Nessa época surgiu a Bossa Nova e o Cinema Novo. A música popular constituiu um terreno particularmente fértil, com o surgimento de um grande número de compositores extremamente talentosos, para não dizer geniais, como Chico Buarque, Tom Jobim, João Gilberto, Carlos Lira, Geraldo Vandré, Sérgio Ricardo, Edu Lobo, Gilberto Gil e Caetano Veloso. Na pintura, sobressaíram Portinari e Di Cavalcante. Na arquitetura e no urbanismo, fomentados com a construção de Brasília, Oscar Niemeyer e Lúcio Costa. Na literatura, Jorge Amado, Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto, Érico Veríssimo, Vinícius de Moraes e Clarice Lispector. 70 Unidade II Na dramaturgia, além da genialidade de um Nelson Rodrigues, o teatro engajado de Oduvaldo Viana Filho, no Rio, e de Gianfrancesco Guarnieri, em São Paulo. No cinema, destacaram-se Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Cacá Diegues, Rui Guerra e outros – havia muitos diretores no Cinema Novo. A Geografia Humana teve seu expoente em Josué de Castro (A Geografia da Fome), a História, em Nelson Werneck Sodré e a antropologia, em Darcy Ribeiro. Resta mencionar os grandes educadores Paulo Freire e Anísio Teixeira e o economista que equacionou o problema do subdesenvolvimento brasileiro e criou a SUDENE – Celso Furtado. Esses homens eram pensadores brasileiros originais e não meros papagaios do que se propalava na matriz norte-americana, como a maioria dos economistas e sociólogos que fizeram carreira sob tacão da ditadura militar. Os nomes mencionados acima não pretendem esgotar o rol dos grandes intelectuais brasileiros, mas apenas relacionar os que foram mais representativos para aqueles tempos. Esses artistas e estudiosos eram, em sua grande maioria, comunistas, socialistas ou homens de esquerda. Ser de esquerda, aqui, significa preocupar-se com as condições de vida do povão e com a subordinação econômica do país. Toda essa efervescência cultural foi, burramente, censurada, combatida, perseguida, dispersada e aniquilada pela ditadura instaurada em 1964. A geração cuja adolescência e juventude coincidiram com esse período, vivenciou um estimulo intelectual, uma colocação de novas ideias e uma sociedade em transformação rápida e positiva como nenhuma outra. Coube a ela questionar os tabus arraigados, preconceitos cristalizados e realizar uma revolução nos costumes e na mentalidade então predominantes. Esta foi a geração do feminismo, do amor livre e do antirracismo. Nos Estados Unidos, foi a geração da contestação pacifista à guerra do Vietnã, do movimento hippie e do poder negro. Foram os moços e moças dos anos 60 que lutaram pela igualdade de diretos entre homens e mulheres, conquistaram a liberdade sexual e começaram a deitar por terra os preconceitos raciais. Pode parecer estranho aos jovens de hoje, mas, em passado recente, as moças eram uma espécie de propriedade de seus pais, que tudo faziam para preservar-lhes a virgindade, como se nela se consubstanciasse toda a honra da família. Uma vez perdida essa condição e sendo impossível solucionar tudo com um casamento, a perda era amiúde incorporada à pessoa, que tornava-se uma “perdida” e era, com frequência expulsa 71 DITADURA MILITAR E NOVA REPÚBLICA de casa pelo pai, precisando muitas vezes recorrer à prostituição para sobreviver. É bem ilustrativo o título do filme de Roberto Farias: Toda Donzela Tem um Pai que é uma Fera. Na verdade, eram covardes, pois temiam a maledicência mais do que amavam a filha. As que conseguiam resistir e preservar o hímen tornavam-se, depois de casadas, dependentes dos maridos, que, não raramente, as proibiam de trabalhar. As mulheres não podiam viajar, nem ter conta bancária sem o consentimento daqueles. Se abandonassem o lar, perdiam o direito à guarda dos filhos. O adultério feminino era punido, não com o apedrejamento, mas quase: com a execração pública, o desquite e a perda da convivência com os filhos, quando não com a morte, pois o assassínio da mulher adúltera era aceito como “legítima defesa da honra”. Havia, nesse tempo, os que tentavam puxar para trás. Rapazes de terno, portando o estandarte do leão rompante, colhiam nas ruas assinaturas “contra o consumismo e o amor livre”. Embora em pequeno número, dispunham de consideráveis recursos. Esse grupo anacrônico autodenominava-se TFP – Tradição, Família e Propriedade – e ainda existe. [...] A revolução cubana e o bravo exemplo de resistência do povo vietnamita contra as potências invasoras serviram de fonte inesgotável de inspiração à juventude daquela época e mesmo aos mais velhos. Aquele grupo corajoso de guerrilheiros sobreviveu ao desembarque do barco Granma, subiu a Sierra Maestra e resistiu aos ataques e ao cerco do exército regular da ditadura do Batista. Ganhou força, com o apoio popular, conquistou a vitória, expulsou os imperialistas e construiu o primeiro país verdadeiramente independente da América Latina. Cuba apresentou-se como um norte a ser seguido por todos os idealistas do continente. Igualmente, a luta indômita daquele povo baixinho do Vietnã contra os gigantes supernutridos da América do Norte, com seu sistema de túneis e de armadilhas na floresta, mostrava que o ser humano, o patriotismo, a unidade e a firmeza ideológica podem maisdo que uma sofisticada máquina de guerra. Essa geração 68, urdida no clima de liberdade intelectual do pós-guerra, submetida a uma criativa renovação cultural e com expectativas de progresso social inspiradas nas realidades cubanas e vietnamita sofreu todo o tipo de perseguição, sequestro, prisão, tortura, morte e desaparecimento. Contra ela, a direita militar, liderada por oficiais que tiveram seus neurônios lavados, escovados e engraxados em bases militares dos Estados Unidos, naquele país e no Panamá, deu dois golpes de Estado: um em 1964 e outro com o AI5. Pertenceram a ela os jovens que, em 1968, se insurgiram na França e na Alemanha e os que, após manifestações, foram massacrados no México, assim como os que protestaram nos Estados Unidos contra a guerra do Vietnã (QUEIROZ, 2011, p. 69-72). 72 Unidade II A análise desse movimento, portanto, é ampla e de enorme riqueza. Como se percebe, está associado à cultura em transformação e, ao mesmo tempo, à ação de destruição do regime militar em busca do socialismo, sobretudo, de inspiração cubana. O elemento a unir a luta por mudanças foi o movimento Calabouço, no dia 28 de março de 1968. Em uma manifestação estudantil em busca de melhorias na alimentação fornecida para estudantes pobres no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, um estudante secundarista de apenas 18 anos de idade foi morto. Era Edson Luís de Lima Souto (conhecido como Edson Luís). Os estudantes levaram seu corpo pelo Rio de Janeiro até as escadarias da Assembleia Legislativa. A missa realizada na igreja da Candelária paralisou a cidade. Cartazes lançavam palavras de ordem como “Mataram um estudante. E se fosse seu filho?” e “PM: Pode Matar”. A indignação tomou conta. O relato de Airton Queiroz, um dos trabalhadores do Calabouço, é extremamente rico e rememora todo o processo: O tiro que atingiu o estudante paraense de 18 anos, Edson Luís, não veio do alto. Eu era comensal do Calabouço, pois, na época, já me tinha tornado um transposto político forçado, sem dinheiro, recém fugido do Nordeste, de onde passara meses na clandestinidade, por causa da perseguição da ditadura e motivado pela “queda” de membros dos Comitês Estadual e Universitário do Partidão (PCB) em Pernambuco, no segundo semestre de 1967. Eu era o Secretário Agitprop (Agitação e Propaganda) do Comitê Universitário. O Calabouço era um complexo estadual de assistência estudantil, localizado em um velho prédio, alongado por um grande galpão ao lado da Avenida Marechal Câmara, no centro do Rio de Janeiro. Compreendia um verdadeiro universo de estudantes carentes de todas as partes do país e reduto de todas as esquerdas universitárias e secundárias. Havia, no seu interior, oficinas de diferentes tipos de artesanato, de produção rústica de livros de poesia, “salas” de aula de tudo quanto era matéria comum e esotérica, cursinhos pré-vestibular, projeção rudimentar de filmes, grupos de teatro popular, de dança, muito namoro e amor livre e, claro, comida barata, que era o principal. No Calabouço, também existia o Instituto Cooperativo de Ensino, no qual, Edson Luís continuava seu curso secundário começado em sua Belém do Pará. Comícios eram feitos quase todos os dias e noites, dentro e fora, num descampado situado à frente do galpão do Calabouço e delimitado pelo Edifício da Legião Brasileira de Assistência (LBA) e por muros de prédios que voltavam suas frentes para a Avenida General Justo. Naquela fatídica quinta-feira, durante o jantar, no dia 28 de março de 1968, quando já passava das 18 horas, os estudantes havíamos marcado um ato de 73 DITADURA MILITAR E NOVA REPÚBLICA protesto e estávamos concentrados no descampado, no que seria seguido de uma passeata, contra o preço das refeições, além das péssimas condições de higiene e a lentidão das obras do Calabouço. Foi, então, que choques da Polícia Militar, de início com cassetetes, cercaram o descampado, vindos pela galeria do Edifício da LBA e pela Avenida Marechal Câmara e atacaram-nos em uma atitude bestial de espancamento com ordens de dispersão e abandono do local. Como não queríamos abandonar a área, corremos para o interior do galpão do Calabouço e, daquele lugar, revidávamos com o varejamento de pedras da obra. A polícia reagiu com rajadas de fuzis e metralhadoras para o alto, como forma de intimidação. Em seguida, baixou a linha de disparos, que eram respondidos com mais pedradas nossas, no que resultou e, vários estudantes feridos e na tragédia da morte do estudante Edson Luís Lima Souto, assassinado com um tiro no peito, de pistola calibre 45, identificada depois, como do tenente Alcindo Costa, que comandava o Batalhão Motorizado da PM no local. Após os tiros que atingiram o Edson, nós entramos em clamor, gritando que mataram um jovem, chamando os policiais de assassinos. Perdemos o medo da morte e avançamos contra eles, carregando o corpo de Edson Luís, quando, finalmente, a polícia, receosa, retirou-se, depois de ter feito outras vítimas, dentre elas o comerciário Telmo Henriques, com um tiro na boca, e um porteiro do INPS que passava pelas imediações e que também tombou morto. Com Edson ainda com vida e sangrando muito, eu tentei influenciar a turba, na confusão do empurra-empurra, para que ele fosse levado, rapidamente, para ser atendido no Hospital da Santa Casa, que fica próximo ao local. Todavia, só consegui meu intento depois de passados alguns minutos preciosos. Ao lá adentrar, o médico, Dr. Luis Fortes, declarou que Edson já estava morto. Seu corpo, então, foi retirado da Santa Casa, sob protestos dos funcionários do hospital e carregado aos brados de “Abaixo a Ditadura Militar” e “Mataram um estudante, e se fosse seu filho?” No trajeto até a Cinelândia, o corpo de Edson, ainda sangrava. Foi conduzido, deitado, no alto, sustentado por vários braços que se revezavam, por uma multidão enfurecida de estudantes e populares que se incorporavam, pela Rua Santa Luzia. Quando, por volta das 21 horas, seu corpo chegou, foi depositado no saguão da Assembleia Legislativa da Guanabara (hoje Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro), onde foi velado, até o dia seguinte. Seu enterro, no dia 29 de março de 1968, foi acompanhado por um cortejo gigantesco, até o 74 Unidade II Cemitério São João Batista. Deputados estaduais encheram-se de coragem e, em sessão noturna da Assembleia, extraordinariamente convocada, conclamavam o governador Negrão Lima a tomar medidas contra o ato infame e covarde. Vários de nós ficamos com nossas roupas tintas do sangue daquele jovem em plena flor da idade. Durante todo o resto da noite do dia 28, na madrugada e em toda a manhã e tarde do dia 29 de março, uma grande e crescente multidão se comprimia na Cinelândia. Ouviram-se muitos oradores, com os mais candentes discursos a vituperar a ditadura, exigir sua derrubada, reivindicar a volta das liberdades democráticas e denunciar vários outros crimes cometidos pelos golpistas de abril de 64. Notem que estávamos a três dias do quarto aniversário da “gorilada” de 1º de abril, ou a dois dias como entendiam eles, que se fixavam no dia 31 de março, fugir do dia da mentira de que o golpe fora desfechado para restabelecer a democracia no Brasil. DURANTE TODO ESSE TEMPO, NEM SINAL DE POLÍCIA EM TODO O CENTRO DA CIDADE. Tínhamos a impressão de que a ditadura começava a cair. Isso era afirmado em muitos discursos. Que grande ilusão a nossa! Irônica foi a resposta do covarde general Oswaldo Niemeyer, Superintendente da Polícia Executiva (depois demitido pelo Secretário de Segurança, general Dario Coelho, amando do governador Negrão de Lima), ao declarar ao Jornal do Brasil que a polícia estava inferiorizada em potência de fogo, comparada à estudantes (pedras). Aquele foi um crime-símbolo que fez tremer todo o país e abalou a política nacional. Ofereceu-nos a liberdade, por um dia, de protestar sem a presença dos meganhas. Entretanto, constituiu-se, também, em marco da escaladade uma ditadura que marchava pela rota do endurecimento e da repressão crescentes. Dali a nove meses se gestava mais um golpe profundo, o nefando Ato nº 5, parido em 13 de dezembro (QUEIROZ, 2011, p. 161-163). Ao mesmo tempo, em São Paulo, os estudantes organizaram manifestação com milhares na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, no Centro Acadêmico XI de Agosto da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, na Escola Politécnica da USP ou ainda na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Não demorou para que os estudantes associados à Igreja e a representantes da classe média do Rio de Janeiro conseguissem articular uma grande demonstração de força contra o regime militar e sua truculência: foi a passeata dos 100 mil, em 25 de junho de 1968. Destaque-se que o movimento também contou com artistas e intelectuais, como Paulo Autran, Chico Buarque, José Celso Martinez Corrêa, Betty Faria, entre outros. O relato de Dalva Bonet é bastante ponderado e elucidativo do evento: 75 DITADURA MILITAR E NOVA REPÚBLICA Embora permitida, a passeata não deixou de ser vigiada. E também não faltaram os paranoicos, que viam uma bomba em cada esquina. Mas a manifestação foi tão impecável quanto o Festival de Woodstock. Reuniu a todos em um belíssimo protesto pacífico, mostrando ao Brasil e ao mundo que não éramos nós os que buscavam a guerra. Só queríamos de volta nossa legalidade, nossas liberdades democráticas, usurpadas pelos governos militares após o Golpe de 1964. Naquela noite, sim, porque ela durou o dia inteiro, voltamos para casa com a sensação do dever cumprido. Havíamos sido vitoriosos o povo estava nas ruas. Ledo engano... A ditadura militar apertou mais o cerco e, depois de tentar editar outras passeatas do mesmo tamanho e com a mesma repercussão (50 mil, 20 mil, etc.) caímos no vazio do refluxo e fomos enfrentar, em 1969, o chumbo de um Estado terrorista dedicado a quebrar nossa espinha dorsal e a apagar qualquer vestígio de aliança popular. Sem dúvida que perdemos a guerra militar que se seguiu depois. Mas não sem luta. No entanto, a marca indelével da Passeata dos Cem Mil permaneceu, porque povo não se apaga. O resgate histórico ocorreu quando, maltrapilho e maltratado pelos militares, o Estado repressor brasileiro começou a dar sinais de cansaço e um milhão de pessoas se reuniu na Candelária para exigir as mesmas liberdades democráticas sempre perseguidas, desta feita com sucesso, no Comício das Direitas (BONET, 2011, p. 181-183). Figura 18 – Passeata dos Cem Mil – manifestação de artistas, intelectuais, estudantes e trabalhadores contra a ditadura militar, no Rio de Janeiro, em 26 de junho de 1968 Greves, que não surgiam desde 1964, apareceram. No dia 16 de abril de 1968, houve uma greve em Contagem, a 17 km de Belo Horizonte, inicialmente com 1.700 operários da Siderúrgica Belgo-Mineira, mas que, em alguns dias, alcançou 15 mil trabalhadores. Sonhavam com um aumento salarial de 25%. 76 Unidade II O governo se viu forçado a negociar. O ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho, foi diretamente gerir a crise. Houve acordo, apesar da maciça presença de militares, da prisão de alguns operários e do fechamento de sindicatos. O movimento, como explicam Lilia Schwarcz e Heloisa Starling, surpreendeu os militares: A greve inovou na forma de organização, e isso também dificultou a repressão imediata: os grevistas não armavam piquetes, não realizavam grandes assembleias nem tinham liderança ostensiva – conhecidos. Só Ênio Seabra e Imaculada Conceição de Oliveira, do Sindicato dos Metalúrgicos da cidade. A mobilização dos operários ocorria dentro das fábricas, através de comissões semiclandestinas que reuniam de cinco a dez participantes e atuavam em rede. A greve de Contagem terminou quinze dias após seu início, com um abono de 10% e certa esperança de que era possível enfrentar a política salarial do governo (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 452). Logo, o exemplo gerou outro movimento de grande projeção: a greve de Osasco, em 16 de julho. Assim como em Minas Gerais, a paralisação paulista rapidamente angariou milhares: após o primeiro dia havia mais de 10 mil operários parados. O sonho era “desencadear uma onda de reação do movimento operário e sindical em todo o país contra o modelo econômico da ditadura” (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 452). No entanto, o governo agiu diferente: já no outro dia, soldados bem equipados invadiram a siderúrgica, mais de 400 operários estavam presos e a cidade de Osasco, completamente ocupada pela Polícia Militar. Assim, “a violência da repressão funcionou como instrumento tanto de coerção quanto de dissuasão e, nos dez anos que se seguiram, o movimento operário submergiu em todo o país” (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 452). O relato de Alípio Freire, no entanto, revela que a memória ainda trazia o sonho de que a luta dos trabalhadores continuava atuante de alguma forma: Por outro lado, durante os anos pós-golpe e 1968, diversas organizações operárias prosseguem seus trabalhos, enquanto outras são criadas. No primeiro caso, temos, apenas, como um exemplo, a Frente Nacional do Trabalho – organizada pelos cristãos de esquerda. No segundo, temos as oposições sindicais, que se articulam por todo o Brasil, sendo mais conhecida a oposição sindical metalúrgica de São Paulo. Ou seja, a classe operária (e outros trabalhadores assalariados), depois das intervenções dos governos pós-golpe, também se reorganizava. E é nesse movimento que eclodem, em 1968, ocupando brevemente a cena, mas marcando uma virada na concepção de sindicalismo, as greves de Osasco e Contagem, imediatamente sufocadas pelo regime. Essas greves também produzirão importantes quadros para as organizações políticas clandestinas (FREIRE, 2011, p. 232). Entre os dois movimentos grevistas, houve, em 1º de maio de 1968, na Praça da Sé, uma união de estudantes e operários em uma manifestação incialmente organizada pelo governado de São Paulo, Abreu Sodré, que talvez ambicionasse ser sucessor de Costa e Silva. De qualquer maneira, a rebeldia não deu nada certo: 77 DITADURA MILITAR E NOVA REPÚBLICA Ir ao ato – ainda sob o impacto dos acontecimentos de Contagem – seria um meio de mostrar independência do governo federal e simpatia pelo movimento operário. Deu tudo errado. Os discursos foram radicalizando o ato – que tinha a presença de vários grupos de esquerda – até Abreu Sodré ser atingido por uma pedrada. O clima esquentou, e o palanque acabou incendiado. O governador teve de ser retirado às pressas do ato (VILLA, 2014, p. 122). Um último momento importante de manifestação estudantil foi, justamente, de sua divisão: em 3 de outubro de 1968, surgiu a batalha da rua Maria Antônia, em São Paulo. Ali, de um lado, estava localizada a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFCL-USP), em que predominava, em boa medida, a esquerda universitária; do outro, estava localizada a Universidade Mackenzie, em que predominava, por sua vez, a direita estudantil, inclusive, sob a liderança do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) e protegida pela reitoria. Um estudante, José Carlos Guimarães, foi morto no confronto. Não houve grande repercussão política do episódio no momento, mas, claramente, ele revelava um racha e, sobretudo, o afastamento das lutas democráticas em torno da opção, cada vez maior, pela luta armada contra o regime. Saiba mais Uma boa forma de discutir a “Batalha da Maria Antônia” e o movimento estudantil é também assistir a: A BATALHA da Maria Antônia. Dir. Renato Tapajós. Brasil: Laboratório Cisco, 2014. 76 min. Procure, a seguir, discutir as diferentes formas de interpretação: a memória, o documentário e o seu diálogo com o contemporâneo da produção. Em que medida podemos observar caminhos de interpretação? A última tentativa de ação de impacto dos estudantes foi em 13 de outubro de 1968. Foi o XXX Congresso dos estudantes, localizado em Ibiúna. Acredita-seque cerca de mil jovens iriam se encontrar lá. A organização foi feita pela UEE paulista, sob a liderança de José Dirceu. O relato de Jean Marc von Weid revela aspectos importantes: 68, a Geração que Queria Mudar o Mundo Eu não tinha falado na plenária por achar desgastante o debate sobre credenciamento, mas me inscrevi para a primeira fala da manhã seguinte e pretendia abrir com a discussão sobre as concepções militaristas que levaram a montar um congresso que parecia um acampamento guerrilheiro de mentirinha. Ia contrapor com a nossa proposta de um congresso aberto no CRUSP e alertar a todos sobre o imenso risco de sermos todos presos e até pior, mortos no mato sem qualquer defesa. 78 Unidade II Fui tentar achar algo para comer na escuridão da noite chuvosa e fui abordado por um cara que eu não conhecia e tinha uma voz rouquíssima inesquecível. Era um jornalista (o único a entrar no congresso) do JB do Rio de Janeiro, Eduardo Pinto, o Dudu, de quem fiquei muito amigo ao voltar do exílio onze anos depois. - Jean Marc? Preciso falar com você, urgente! – Saímos para um lado menos movimentado e ele me mostrou um recorte de jornal. Era o Estado de São Paulo ou da Folha da Tarde e dizia apenas em uma micro nota: “II Exército iniciará, nos próximos dias, exercícios de contraguerrilha na região de Ibiúna”. A data era do próprio dia. Olhei para ele perplexo: - Passou isto para a segurança? - Eles estão muito seguros de que não haverá repressão – disse ele – não levaram a sério. Agradeci a informação e procurei o Travassos. Ele conseguira um sanduíche de mortadela, não sei como, e dividiu comigo. Comi quase em êxtase embora detestasse mortadela, cardápio obrigatório de reuniões clandestinas junto com ovo cozido. Em aparelhos fechados, o efeito dos gases decorrentes era mais catastrófico que o estufa. - Há algo de estranho nesta confiança deles nas condições de segurança, mas não há nada que possamos fazer. É melhor tentar dormir, pois amanhã será um dia decisivo – Ele não podia imaginar quão decisivo seria para ele. [...] Nesse momento ecoou um tiro, repercutindo nas colinas ainda envolvidas em névoa. - E isto, Cândido, é o que? - Pode ser um caçador – disse ele, empalidecendo. Seguiu-se uma rajada de metralhadora e vimos um bando de soldados fardados com capacetes azuis correndo na direção da cancela da fazenda. - Vão matar passarinhos assim na puta que os pariu - disse eu. Estávamos razoavelmente longe da plenária e da casa, ambas próximas da cancela. Os soldados chegaram atirando por cima das duas, mas as balas passavam perto de nós, fazendo barulho nas pedras e no mato. - Vamos fugir – gritou Cândido, mas o grupo estava paralisado, abaixando-se para escapar dos tiros. Calculei as minhas chances. Com a notícia trazida pelo Dudu das operações anti-guerrilha do II Exército eu imaginei que estes soldados eram para-quedistas (não sei por que esta hipótese, acho que estes capacetes azuis a inspiraram). Pensei que uma operação 79 DITADURA MILITAR E NOVA REPÚBLICA militar não deixaria de cercas a área e que se entrássemos na mata nos arriscávamos de sermos presos isoladamente e eu temia ser morto se fosse reconhecido. Preferi ser preso junto com os outros e me dirigi devagar para a casa, que ficava no alto de uma colina. O pessoal do PCBR me acompanhou. Encontramos no caminho um dos garotos da segurança com uma pistola na mão perguntando em desespero: - Que é que eu faço com isso? - Não atire de jeito nenhum. Esconda a arma para vir busca-la mais tarde – disse eu. Ele lançou-a no lago e seguiu para a casa da fazenda. Quando chegamos no sopé da colina, um agente a paisana surgiu no alto e ordenou: “levantem as mãos” e escorregou no lameiro deslizando até quase os nossos pés. Deu vontade de rir, mas a acara de ódio do homenzinho não dava margem para gracinhas. Ficou coberto de lama e, ainda mais bravo, distribuiu coronhadas a torto e a direito. Na porta da casa, os que lá dormiam vinham saindo em pânico, espancados pelos soldados. Foi nesta hora que vi o meu erro. Eram soldados da Força Pública de S. Paulo, não do exército. Havia perdido a chance de correr para o mato, pois era claro que não havia cerco ao local. Fomos tangidos para a plenária onde ficamos todos sob a mira das metralhadoras dos guardinhas e proibidos de falar ou levantar. Travassos e Wladimir chegaram escoltados por outros guardas e ele sentou-se a meu lado dizendo que foram presos tentando correr para o mato. Pouco depois o Dirceu apareceu escoltado por agentes do Dops que o reconheceram imediatamente. Travassos colocou um cobertor sobre a cabeça como se fosse para proteger do frio e com isto escapou de ser identificado logo. [...] Nunca se soube o que ocorreu nos bastidores da repressão, o porquê da inércia da polícia paulista até o ataque à Ibiúna, o significado da nota do exército anunciando manobras antiguerrilha exatamente naquele local. O mistério ainda não foi desvendado. Travassos, Dirceu e Wladimir só seriam soltos quase um ano depois, com o sequestro do embaixador americano. Eu consegui uma fuga quase miraculosa disfarçando-me e misturando-me com os estudantes do Paraná que foram mandados para Curitiba escoltados pelo Dops de lá. As circunstâncias rocambolescas desta fuga dariam outro longo artigo e não cabem aqui. Zé Luis conseguiu fugir de ônibus que o levava junto com os estudantes de Minas Gerais. Quase todos foram libertados por força dos habeas corpus e pela imensa mobilização do ME em todo país, provando que, mesmo sem as principais lideranças, aquilo era um movimento de massas e capaz de reagir aos golpes recebidos. A consigna inventada naquelas manifestações por um militante anônimo é, até hoje, uma marca da história do ME: A UNE somos nós, nossa força e nossa voz. Fonte: Weid (2011, p. 199-221). 80 Unidade II É interessante notar que seria bastante difícil que os militares não obtivessem informações de um movimento estudantil dessa magnitude. Ao mesmo tempo, o sonho e a esperança de luta dos estudantes saltam aos olhos, mas, para alguns, ao mesmo tempo, revelam também certa inocência e desorganização – em torno das diversas ideias de esquerda possíveis, mas, no geral, associadas à discussão da luta armada ou não. Lembrete Nos anos 1960, a Guerra Fria atingiu sua maior dimensão, com a crise dos mísseis em 1962. A presença dos mísseis soviéticos em território cubano gerou 13 dias de grande tensão no mundo, pois as duas superpotências não se entenderiam a partir dali. Paralelamente a essa questão, a América Latina convivia com a expectativa de a esquerda propagar o exemplo de luta guerrilheira de Cuba em seus países. Muitos acreditavam que seriam capazes de traduzir os mesmos esforços de Che Guevara e Fidel Castro, a fim de atingir o sistema socialista, pelo fim da propriedade, desigualdade e exploração capitalista. Tudo isso também fervilhava na mente e no coração de estudantes. Além disso, os constantes relatos de bravura e força dos vietcongues contra os Estados Unidos, na Guerra do Vietnã, somavam a expectativa de que a coragem, a intrepidez, poderiam fazer com que pequenos grupos obtivessem grande vitória. Associada a esse amplo movimento estudantil e também apoiada pelos operários, havia a luta de guerrilha da esquerda. O relato de Elio Gaspari é bastante interessante para adentrarmos nessa importante análise: Na manhã de 25 de julho de 1966 algumas dezenas de pessoas esperavam-no no aeroporto dos Guararapes, no Recife. Havia gente querendo a revolução, disposta a matar para fazê-la. Um cidadão entrou na banca de jornal do saguão com uma maleta e saiu sem ela. Pouco depois o serviço de alto-falantes anunciou que o avião em que viajava o candidato, que estava em João Pessoa, sofrera uma pane e ele chegaria de automóvel a outro ponto da cidade. O jornaleiro notou a maleta deixada no chão e pediu a um guarda-civil que a levasse para a sala de achados e perdidos. O guarda apanhou-a e tinhadado uns poucos passos quando ela explodiu. Costa e Silva deveria ter chegado às 8h30. A maleta detonou às 8h50. Guardava uma bomba feita com um pedaço de cano e que fora acionada pelo mecanismo de um relógio. Morreram no aeroporto um almirante da reserva e um jornalista. O guarda teve a perna amputada, 81 DITADURA MILITAR E NOVA REPÚBLICA e o secretário de Segurança de Pernambuco perdeu quatro dedos da mão esquerda. Treze pessoas ficaram feridas, inclusive uma criança de seis anos. No mesmo dia explodiram duas outras bombas, uma no serviço de divulgação do consulado dos Estados Unidos e outra na União Estadual de Estudantes, ferindo um funcionário. As três explosões de julho não foram as primeiras a acontecer no Recife. Em março haviam sido detonadas duas outras bombas, uma das quais diante da casa do comandante do IV Exército. Como de hábito, logo depois do atentado de Guararapes se prendeu um suspeito – um peruano desconexo – e se achou um mandante: Fidel Castro. [...] Surgira o terrorismo de esquerda. Não vinha das dissidências radicais do Partido Comunista, onde funcionavam as velhas máquinas revolucionárias, nem do brizolismo, com seus pelotões de sargentos cassados. A bomba saiu da Ação Popular, a AP. Entre 1950 e 1967, num processo surpreendente, a militância católica das universidades movera-se da direita para o centro, do centro para a esquerda, da esquerda para o marxismo e dele para a luta armada. Desde 1960 a esquerda católica, coligada com o PCB, fornecia o presidente da União Nacional dos Estudantes. Com uma mensagem cristã e socialista, era a organização com maior número de militantes no movimento estudantil e, portanto, a que mais sofria com a repressão que o clandestinizara. No seu processo de radicalização tinha circuitos ligados com o brizolismo, com Havana e com Pequim (GASPARI, 2014a, p. 241-242). Observação Uma importante análise em História tem que ver diretamente com os termos empregados para descrever determinados grupos e ações. Nesse sentido, há uma extensa discussão acerca do termo terrorismo para os grupos armados de esquerda. Gaspari, como vimos, decidiu por adotar essa designação. O jornalista explica que, apesar de o termo conter certa noção pejorativa (como hoje mantém), o utiliza, pois era designação comum entre os militantes. Em abril de 1968, o Comando da Libertação Nacional, declarava: “o terrorismo, como execução [...] deverá obedecer a um rígido critério político”. Carlos Marighella, em seu Manual do Guerrilheiro, apontava que “ser terrorista é uma condição que enobrece qualquer homem de honra” (apud GASPARI, 2014a, p. 241-242). Frise-se, contudo, como o próprio Gaspari defende, que o terrorismo aqui estabelecido não era, em termos gerais, para atingir “indiscriminadamente a população”. 82 Unidade II Toda essa relação política estava associada, diretamente, ao crescimento das manifestações artísticas. Relação, diga-se de passagem, composta em todo o mundo. Não à toa, o Festival de Woodstock promovia uma ampla manifestação pelo fim da Guerra do Vietnã e, com isso, a imediata promoção da paz para uma juventude que não via sentido algum no combate daquela região distante e sem qualquer relação com os Estados Unidos. Figura 19 – Festival de Woodstock e uma concepção de vida baseada no lema “paz e amor” No Brasil, à medida que a repressão tentava controlar as manifestações artísticas, os opositores ao regime ganharam projeção com a esquerda em diversos meios culturais. Como explica Marcelo Ridenti: O tempo que vai do Golpe de 1964 à edição do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em dezembro de 1968, caracterizou-se pela superpolitização da cultura, associada ao fechamento dos canais de representação política institucional. Muitos buscaram participar da vida política inserindo-se em manifestações artísticas contestadoras, ainda toleradas com relativa liberdade de expressão até o AI-5. Havia militantes e simpatizantes de esquerda nos meios intelectuais e artísticos, que sofreram repressão comparativamente menor que os trabalhadores, graças a seu prestígio social e a sua origem de classe média, na maior parte apoiadora do Golpe de 64. Roberto Schwarz chegou a falar na época em uma relativa hegemonia cultural de esquerda, perceptível no Cinema Novo, na música popular, nos teatros de Arena, Opinião e Oficina, em mostras de artes plásticas, na literatura, e assim por diante, como atestavam, por exemplo, os artigos de artistas e intelectuais na Revista Civilização Brasileira (RIDENTI, 2014, p. 241). Essa força cultural da esquerda estava presente na dramaturgia com o Teatro Arena. Seu enfoque era criticar os problemas sociais e políticos, formando uma peça despojada e simplificada. Ao mesmo tempo, era participativo, a fim de quebrar os limites de público e atores – formava o conceito de que todos estabeleciam um só espetáculo. 83 DITADURA MILITAR E NOVA REPÚBLICA No cinema, havia um claro declínio dos modelos das chanchadas e dos musicais ingênuos dos anos 1950. O Cinema Novo, na década de 1960, atuava em busca de um autêntico cinema brasileiro. O maior expoente, sem dúvida, foi Glauber Rocha. Seu lema era: “uma câmera na mão, uma ideia na cabeça”. Como analisa Ridenti: [...] o ano de 1964 viu chegar às telas a trilogia clássica do Cinema Novo: Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos, inspirado a obra de Graciliano Ramos; Deus e o Diabo na terra do Sol, de Glauber Rocha; e Os fuzis, de Rui Guerra. Os três usavam a câmera na mão, a montagem com cortes abruptos, e a luz agressiva nas imagens em branco e preto para denunciar a miséria e criticar o latifúndio; o que os aproximava das interpretações dominantes da esquerda da época, e do imaginário sobre o rural da cultura dos anos 1960, num contexto de afirmação da nacionalidade e do povo que perpassava todas as artes (RIDENTI, 2014, p. 252). De qualquer maneira, destacou-se o filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, de 1967. Em uma fantástica construção, o diretor contrapõe a fusão entre o fantástico e o real, fazendo alusão ao regime militar no Brasil em torno de um país imaginário, o Eldorado, e logo apresenta diferentes correntes, inclusive a esquerdista. Na música, surgiram importantes e famosos movimentos. Um deles foi o programa Jovem Guarda. Seu mais proeminente ícone foi Roberto Carlos, impulsionado pelo sucesso, já em 1964, com a canção “É Proibido Fumar” (junto com Erasmo Carlos). Apesar de considerado alienado pela esquerda, Roberto Carlos era ambicioso e aceitou o desfaio, formando o trio do programa com Erasmo e Vanderléa. Figura 20 – Programa Jovem Guarda, em São Paulo, 1966 Na realidade, a atração, inicialmente, deveria preencher o espaço do domingo à tarde da TV Record (que acabara de perder os direitos de transmissão do futebol). No entanto, seu ritmo, o iê-iê-iê, bastante associado ao rock dos Beatles, associado a certas formas brasileiras, até mesmo a bossa nova, lançava o romantismo com tons de rebeldia – tudo bastante de acordo com os valores da década de 1960. 84 Unidade II A Tropicália, por sua vez, estava ligada, diretamente, a uma sociedade de massa e na contracultura do movimento hippie estadunidense. Propunha o choque entre o arcaico e o moderno, a cultura de massa e a necessidade da massificação. Propondo-se a instituição de uma cultura de massa, “consumível” e popular, que fosse recorde de vendas e, ao mesmo tempo, expressasse o anacronismo social em que o país se encontrava, com uma política que não condizia com o progresso cultural e intelectual da sociedade, a Tropicália impôs-se no cenário artístico brasileiro. Entre seus temas, figuravam as relações com o exterior, especialmente os EUA, com os movimentos hippie e do rock’n’roll, uma retomada atualizada do modernismo, o choque entre o autoritarismo arcaico do Brasil e a modernidade, além da crítica contra a direita e da esquerda do país, pela incapacidade política (vale notar que recebeu exatamente a mesma crítica dos movimentospolíticos de esquerda). Figura 21 – Caetano Veloso e Gal Costa no início da Tropicália Saiba mais Para conhecer melhor, segue a indicação de um bom balanço do movimento da Tropicália, com imagens e canções, além dos depoimentos dos envolvidos, no documentário: TROPICÁLIA. Dir. Marcelo Machado. Brasil: Imagens Filmes, 2012. 87 min. Com uma linguagem agressiva e irreverente nas mais diversas formas de expressão, a Tropicália desenvolveu uma estética fragmentada dirigida mais especialmente para jovens e para a esquerda, criticada por tentar dialogar com o povo sem saber quem era o povo. Expressão do estado psicológico de identidade do povo brasileiro, no teatro e no cinema, ao contrário dos burgueses, que buscavam identificação com o público, os tropicalistas, por exemplo, no teatro Oficina, queriam uma “desidentificação” do público, causar uma sensação de desconforto. 85 DITADURA MILITAR E NOVA REPÚBLICA É o que se observa no filme O Bandido da Luz Vermelha, o qual, pelo anacronismo, ironicamente, mostra o desespero brasileiro de não ter mais uma identidade concreta. Segundo o próprio autor, Rogério Sganzerla [s.d.]: “Falo como espectador comum, agredido pela burrice institucionalizada. [...] afirmando minha ruptura ao movimento de elite, aristocrático, paternalizante e acadêmico denominado Cinema Novo”. O Cinema Novo com quem aqui dialoga era justamente mais afeito a temas políticos, o que mostra um desencanto de Sganzerla com a política. De qualquer forma, sem dúvida, os famosos festivais televisivos tiveram enorme força nos anos de 1960. Ali, havia, claramente, segundo Ridenti, “a mistura entre politização de esquerda e indústria cultural, engajamento e mercado” (RIDENTI, 2014, p. 256). Estava associado ao início da difusão da televisão no país (apesar da primeira transmissão no Brasil ser de 1950), como explica Jairo Severiano: Ainda sem contar com boas verbas publicitárias, nossas emissoras pioneiras só tinham condições de oferecer uma programação modesta, praticamente calcada na que se fazia no rádio. E, como no meio radiofônico, um de seus maiores trunfos era a apresentação dos grandes cantores e cantoras da época (SEVERIANO, 2013, p. 347). Figura 22 – Rita Lee e Mutantes, no Festival Internacional da Canção, Rio de Janeiro, 1968 Foi então formado um grande ícone do que se convencionou chamar de Música Popular Brasileira (MPB): Chico Buarque. A canção de protesto trazia referências a comunidades do campo, como “Arrastão”, vencedora do I Festival de Música Popular da TV Excelsior, ou ainda alienação religiosa, a vida dura do nordestino e a utopia revolucionária, como em “Viramundo”, de 1965. Geraldo Vandré, então, tornou-se o mais célebre em 1968, com a canção “Pra Não Dizer que Não Falei das Flores”. Ela era um claro desafio de ataque ao militarismo e engajava as manifestações para enfrentar os militares, assim como já faziam os guerrilheiros, como a Ação Libertadora Nacional, de Carlos Marighella: 86 Unidade II Pra Não Dizer que Não Falei das Flores Caminhando e cantando E seguindo a canção Somos todos iguais Braços dados ou não Nas escolas, nas ruas Campos, construções Caminhando e cantando E seguindo a canção Vem, vamos embora Que esperar não é saber Quem sabe faz a hora Não espera acontecer Pelos campos há fome Em grandes plantações Pelas ruas marchando Indecisos cordões Ainda fazem da flor Seu mais forte refrão E acreditam nas flores Vencendo o canhão Vem, vamos embora Que esperar não é saber Quem sabe faz a hora Não espera acontecer Há soldados armados Amados ou não Quase todos perdidos De armas na mão Nos quartéis lhes ensinam Uma antiga lição De morrer pela pátria E viver sem razão Vem, vamos embora Que esperar não é saber Quem sabe faz a hora Não espera acontecer 87 DITADURA MILITAR E NOVA REPÚBLICA Nas escolas, nas ruas Campos, construções Somos todos soldados Armados ou não Caminhando e cantando E seguindo a canção Somos todos iguais Braços dados ou não Os amores na mente As flores no chão A certeza na frente A história na mão Caminhando e cantando E seguindo a canção Aprendendo e ensinando Uma nova lição. Fonte: Vandré (2000). A canção era um claro chamado à união e à ação. As desgraças eram grandes e muitos ainda estavam “indecisos”, mas, ao mesmo tempo, a esperança poderia vencer o medo dos canhões. Os soldados, ainda que com um pretenso patriotismo, são levados a “viver sem razão”. Portanto, o movimento de 1968 precisava da “certeza na frente, a história na mão”. A música imediatamente empolgou a plateia, que passou a defender sua vitória no III Festival Internacional da Canção Popular (fase nacional). No entanto, a canção ficou em segundo lugar, gerando grandes vaias. Toda essa efervescência cultural escancarava um Brasil inteligente e em busca de mudanças no regime militar. Ao mesmo tempo, os mais alertas estavam preocupados com uma possível reação proveniente dos quartéis. E ela chegou brutalmente. O estopim para a reação dos militares foi o discurso de Marcio Moreira Alves, deputado do MDB, pela sua oposição à invasão da UnB e contra o militarismo que estaria associado ao desfile tradicional de 7 de setembro. Sua fala aconteceu em 2 de setembro: Sr. Presidente, Srs. Deputados, Todos reconhecem ou dizem reconhecer que a maioria das forças armadas não compactua com a cúpula militarista que perpetra violências e mantém este país sob regime de opressão. Creio ter chegado, após 88 Unidade II os acontecimentos de Brasília, o grande momento da união pela democracia. Este é também o momento do boicote. As mães brasileiras já se manifestaram. Todas as classes sociais clamam por este repúdio à polícia. No entanto, isto não basta. É preciso que se estabeleça, sobretudo por parte das mulheres, como já começou a se estabelecer nesta Casa, por parte das mulheres parlamentares da ARENA, o boicote ao militarismo. Vem aí o 7 de setembro. As cúpulas militaristas procuram explorar o sentimento profundo de patriotismo do povo e pedirão aos colégios que desfilem junto com os algozes dos estudantes. Seria necessário que cada pai, cada mãe, se compenetrasse de que a presença dos seus filhos nesse desfile é o auxílio aos carrascos que os espancam e os metralham nas ruas. Portanto, que cada um boicote esse desfile. Esse boicote pode passar também, sempre falando de mulheres, às moças. Aquelas que dançam com cadetes e namoram jovens oficiais. Seria preciso fazer hoje, no Brasil, que as mulheres de 1968 repetissem as paulistas da Guerra dos Emboabas e recusassem a entrada à porta de sua casa àqueles que vilipendiam-nas. Recusassem aceitar aqueles que silenciam e, portanto, se acumpliciam. Discordar em silêncio pouco adianta. Necessário se torna agir contra os que abusam das forças armadas, falando e agindo em seu nome. Creia-me Sr. Presidente, que é possível resolver esta farsa, esta democratura, este falso impedimento pelo boicote. Enquanto não se pronunciarem os silenciosos, todo e qualquer contato entre os civis e militares deve cessar, porque só assim conseguiremos fazer com que este país volte à democracia. Só assim conseguiremos fazer com que os silenciosos que não compactuam com os desmandos de seus chefes, sigam o magnífico exemplo dos 14 oficiais de Crateús que tiveram a coragem e a hombridade de, publicamente, se manifestarem contra um ato ilegal e arbitrário dos seus superiores (ALVES, 1968). A palavra de ordem do discurso foi boicote em dois pontos centrais ao militarismo: o nacionalismo e o seio familiar, já que as noivas dos cadetes não deveriam dançar com seus pares no baile da festa de Independência. O discurso não foi feito em um momento de grande participação na Câmara. No entanto, a indignação dos militares foi tamanha que entregavam cópias nas unidades das Forças Armadas. Em pouco tempo os ministros militares passaram a exigir um processo criminal contra o deputado, porém, a Constituição de 1967 garantia imunidade aos parlamentares. Assim, era necessária autorizaçãoprévia do Congresso. Uma primeira vitória chegou no dia 11 de dezembro: depois de algumas manobras com deputados, a Comissão de Justiça aprovou o pedido do ministro da Justiça para a continuidade do processo. No dia seguinte, no entanto, para surpresa dos militares, por 216 votos a 141, foi negada a suspensão da imunidade de Márcio Moreira Alves. Menos de 24 horas depois, houve uma reunião decisiva entre Costa e Silva e seus ministros, como narra Elio Gaspari: 89 DITADURA MILITAR E NOVA REPÚBLICA O presidente abriu a reunião com um discurso em que se denominou “legítimo representante da Revolução de 31 de março de 1964” e lembrou que com “grande esforço [...] boa vontade e tolerância” conseguira chegar a “quase dois anos de governo presumidamente constitucional”. Ofereceu ao plenário “uma decisão optativa: ou a Revolução continua, ou a Revolução se desagrega.” Batendo na mesa, anunciou que “a decisão está tomada” e pediu que “cada membro diga o que pensa e o que sente”. Era o primeiro discurso desconexo daquela sessão presidida pela determinação de proclamar uma ditadura. O marechal suspendeu a reunião por vinte minutos, para que cada ministro lesse o texto, e desculpou-se pela pressa. Com um preâmbulo de seis parágrafos, o Ato tinha doze artigos e cabia em quatro folhas de papel. Costa e Silva retirou-se debaixo de aplausos (GASPARI, 2014a, p. 336). Todos foram favoráveis, com exceção do vice-presidente, o civil Pedro Aleixo. E, logo a seguir, foi lançado em 13 de dezembro de 1968 o AI-5: O PRESIDENTE DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e CONSIDERANDO que a Revolução Brasileira de 31 de março de 1964 teve, conforme decorre dos Atos com os quais se institucionalizou, fundamentos e propósitos que visavam a dar ao País um regime que, atendendo às exigências de um sistema jurídico e político, assegurasse autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana, no combate à subversão e às ideologias contrárias às tradições de nosso povo, na luta contra a corrupção, buscando, deste modo, “os. meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direito e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa pátria” CONSIDERANDO que o Governo da República, responsável pela execução daqueles objetivos e pela ordem e segurança internas, não só não pode permitir que pessoas ou grupos anti-revolucionários contra ela trabalhem, tramem ou ajam, sob pena de estar faltando a compromissos que assumiu com o povo brasileiro, bem como porque o Poder Revolucionário, ao editar o Ato Institucional nº 2, afirmou, categoricamente, que “não se disse que a Revolução foi, mas que é e continuará” e, portanto, o processo revolucionário em desenvolvimento não pode ser detido; CONSIDERANDO que esse mesmo Poder Revolucionário, exercido pelo Presidente da República, ao convocar o Congresso Nacional para discutir, votar e promulgar a nova Constituição, estabeleceu que esta, além de 90 Unidade II representar “a institucionalização dos ideais e princípios da Revolução”, deveria “assegurar a continuidade da obra revolucionária” CONSIDERANDO, no entanto, que atos nitidamente subversivos, oriundos dos mais distintos setores políticos e culturais, comprovam que os instrumentos jurídicos, que a Revolução vitoriosa outorgou à Nação para sua defesa, desenvolvimento e bem-estar de seu povo, estão servindo de meios para combatê-la e destruí-la; CONSIDERANDO que, assim, se torna imperiosa a adoção de medidas que impeçam sejam frustrados os ideais superiores da Revolução, preservando a ordem, a segurança, a tranqüilidade, o desenvolvimento econômico e cultural e a harmonia política e social do País comprometidos por processos subversivos e de guerra revolucionária; CONSIDERANDO que todos esses fatos perturbadores da ordem são contrários aos ideais e à consolidação do Movimento de março de 1964, obrigando os que por ele se responsabilizaram e juraram defendê-lo, a adotarem as providências necessárias, que evitem sua destruição, Resolve editar o seguinte ATO INSTITUCIONAL Art. 1º – São mantidas a Constituição de 24 de janeiro de 1967 e as Constituições estaduais, com as modificações constantes deste Ato Institucional. Art. 2º – O Presidente da República poderá decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, por Ato Complementar, em estado de sitio ou fora dele, só voltando os mesmos a funcionar quando convocados pelo Presidente da República. § 1º – Decretado o recesso parlamentar, o Poder Executivo correspondente fica autorizado a legislar em todas as matérias e exercer as atribuições previstas nas Constituições ou na Lei Orgânica dos Municípios. § 2º – Durante o período de recesso, os Senadores, os Deputados federais, estaduais e os Vereadores só perceberão a parte fixa de seus subsídios. § 3º – Em caso de recesso da Câmara Municipal, a fiscalização financeira e orçamentária dos Municípios que não possuam Tribunal de Contas, será exercida pelo do respectivo Estado, estendendo sua ação às funções de auditoria, julgamento das contas dos administradores e demais responsáveis por bens e valores públicos. 91 DITADURA MILITAR E NOVA REPÚBLICA Art. 3º – O Presidente da República, no interesse nacional, poderá decretar a intervenção nos Estados e Municípios, sem as limitações previstas na Constituição. Parágrafo único - Os interventores nos Estados e Municípios serão nomeados pelo Presidente da República e exercerão todas as funções e atribuições que caibam, respectivamente, aos Governadores ou Prefeitos, e gozarão das prerrogativas, vencimentos e vantagens fixados em lei. Art. 4º – No interesse de preservar a Revolução, o Presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, poderá suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais. Parágrafo único - Aos membros dos Legislativos federal, estaduais e municipais, que tiverem seus mandatos cassados, não serão dados substitutos, determinando-se o quorum parlamentar em função dos lugares efetivamente preenchidos. Art. 5º – A suspensão dos direitos políticos, com base neste Ato, importa, simultaneamente, em: I – cessação de privilégio de foro por prerrogativa de função; II – suspensão do direito de votar e de ser votado nas eleições sindicais; III – proibição de atividades ou manifestação sobre assunto de natureza política; IV – aplicação, quando necessária, das seguintes medidas de segurança: a) liberdade vigiada; b) proibição de freqüentar determinados lugares; c) domicílio determinado, § 1º - O ato que decretar a suspensão dos direitos políticos poderá fixar restrições ou proibições relativamente ao exercício de quaisquer outros direitos públicos ou privados § 2º – As medidas de segurança de que trata o item IV deste artigo serão aplicadas pelo Ministro de Estado da Justiça, defesa a apreciação de seu ato pelo Poder Judiciário. Art. 6º – Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de: vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções por prazo certo. 92 Unidade II § 1º – O Presidente da República poderá mediante decreto, demitir, remover, aposentar ou pôr em disponibilidade quaisquer titulares das garantias referidas neste artigo, assim como empregado de autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista, e demitir, transferir para a reserva ou reformar militares ou membros das polícias militares, assegurados, quando for o caso, os vencimentos e vantagens proporcionais ao tempo de serviço. § 2º – O disposto neste artigo e seu § 1º aplica-se, também, nos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios.Art. 7º – O Presidente da República, em qualquer dos casos previstos na Constituição, poderá decretar o estado de sítio e prorrogá-lo, fixando o respectivo prazo. Art. 8º – O Presidente da República poderá, após investigação, decretar o confisco de bens de todos quantos tenham enriquecido, ilicitamente, no exercício de cargo ou função pública, inclusive de autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista, sem prejuízo das sanções penais cabíveis. Parágrafo único – Provada a legitimidade da aquisição dos bens, far-se-á sua restituição. Art. 9º – O Presidente da República poderá baixar Atos Complementares para a execução deste Ato Institucional, bem como adotar, se necessário à defesa da Revolução, as medidas previstas nas alíneas d e e do § 2º do art. 152 da Constituição. Art. 10 – Fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular. Art. 11 – Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos. Art. 12 – O presente Ato Institucional entra em vigor nesta data, revogadas as disposições em contrário. Brasília, 13 de dezembro de 1968; 147º da Independência e 80º da República (BRASIL, 1968). Lançamos o documento completo aqui, já que é o mais importante de todo o período estudado. Nas suas prerrogativas, rememorando inicialmente o AI-2, garante que os ideais revolucionários continuarão; ao mesmo tempo, citando o AI-4, é defendida a “obra revolucionária” e considera os 93 DITADURA MILITAR E NOVA REPÚBLICA mecanismos jurídicos capazes de acabar com todo o projeto para preservar a ordem e a segurança contra a subversão, gerando a concentração completa de poderes nas mãos do presidente. Era uma revolução dentro da revolução. Ou, se preferir, um golpe dentro do golpe. Sem prazo legal, vigorou até 1979. Como visto, o presidente poderia fechar o Congresso, intervir nos estados e municípios, inclusive nomeando seus interventores. Era possível ao presidente, mais uma vez, cassar e suspender direitos políticos, além de decidir por aposentar ou demitir qualquer funcionário público. Com a garantia do fim do habeas corpus, era possível manter na prisão quem fosse necessário e pelo tempo que o governo julgasse necessário. Assim, a tortura só aumentava. Além disso, havia a suspensão da garantia de liberdade de expressão, o que foi feito na surdina, sem agentes evidentes, sempre acobertados, agindo na imprensa, nos meios de comunicação, ou ainda nas escolas e universidades. Sintetizava o sentimento dos militares a fala do general Guedes: “aqueles que não amam a revolução, pelo menos devem temê-la”. Figura 23 – A legislação de exceção, em que proliferaram os Atos Institucionais, foi uma das características marcantes do Estado Autoritário Há de se destacar que o então ministro da Fazenda, Antonio Delfim Netto, em 1988, argumentou acerca da crise de 1968: Naquela época do AI-5 havia muita tensão, mas no fundo era tudo teatro. Havia as passeatas, havia descontentamento militar, mas havia sobretudo teatro. Era um teatro para levar ao Ato. Aquela reunião foi pura encenação. O Costa e Silva de bobo não tinha nada. Ele sabia a posição do Pedro Aleixo e sabia que ela era inócua. Ele era muito esperto. Toda vez que ia fazer alguma coisa dura chamava o Pedro Aleixo para se aconselhar e, depois, fazia o que queria. O discurso do Marcito não teve importância nenhuma. O que se preparava era uma ditadura mesmo. Tudo era feito para levar àquilo (GASPARI, 2014a, p. 341). 94 Unidade II Saiba mais Uma ótima fonte de informações acerca da ditadura militar, suas operações e análises é o site: http://memoriasdaditadura.org.br/ O endereço virtual conta com ampla pesquisa documental das informações na imprensa e nos documentos liberados do regime militar, tudo separado por nomes. Há um grande acervo dos desaparecidos. Além disso, para nós, educadores, há ótimas propostas de análises desse período histórico utilizando diversos tipos de visões para os alunos. Vale muito a pena conferir. Estava evidente a ditadura militar. Se antes de 1968 os militares ainda falavam em uma pretensa restauração democrática, se tentavam manter uma “aparência” do sistema de participação popular, agora não havia mais nada disso. Já no dia seguinte, 14 de dezembro de 1968, o Jornal do Brasil estabeleceu em sua previsão do tempo uma belíssima crítica: “Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos; máxima de 38º, em Brasília; mínima de 5º, nas Laranjeiras.” A metáfora não poderia ser melhor: a censura e o autoritarismo estavam, no dizer de Elio Gaspari, escancarados. A repressão passou a ganhar uma proporção muito maior. O SNI era o mecanismo central. O Centro de Informações do Exterior (Ciex) foi criado ainda em 1966 para atuar nas embaixadas dos países em que os exilados foram sendo enviados. O projeto era reunir informações sobre o que esses brasileiros estavam fazendo por lá. Na estrutura estadual, aproveitou-se dos Departamentos de Ordem Política e Social (Dops). Em 1967, foi criado o Centro de Informações do Exército (CIE), que coletava informações e também poderia agir diretamente. Existiam também centros de informação da Marinha (Cenimar), estabelecido em 1957 (e muito utilizado para a tortura), e da Aeronáutica (Cisa), formado em 1969. São diversos os casos que hoje conhecemos acerca da atuação desumana operada nesse contexto. De qualquer maneira, longe de considerar que outros casos são menos importantes, é passível de nota que vários cidadãos foram sendo sumariamente desaparecidos. Em maio de 1969, [...] o padre Antônio Henrique Pereira Neto, auxiliar direto de d. Helder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife, e reconhecido internacionalmente como um símbolo da luta em defesa dos direitos humanos, foi sequestrado, torturado e morto no Recife. Era a primeira vez que no país se assassinava um padre por motivos políticos (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 461). 95 DITADURA MILITAR E NOVA REPÚBLICA Não à toa, a Igreja Católica procurou usar seus recursos possíveis contra a tortura no Brasil. Em 1970, uma igreja em Paris exibiu um Cristo algemado, com um tubo na boca e um magneto no topo da cruz. Em cima, inscrevia-se: “Ordem e Progresso”. Nesse sentido, devemos compreender que a ação dos militares resultou, em um primeiro momento, na multiplicação das forças armadas contra o regime, em 1969. Eram vários os grupos existentes. Os mais fortes eram: a Aliança de Libertação Nacional (ALN), liderada por Carlos Marighella, que propunha a ação autônoma de grupos revolucionários guerrilheiros apoiados por camponeses e operários contra a burguesia – assim, defendiam que “a nossa luta é de libertação nacional e antioligárquica, por isso mesmo anticapitalista” – e ligados diretamente com Cuba em termos de treinamento militar e solidariedade (mas não com recursos financeiros); o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), inicialmente com a proposta da formação de um partido de linha leninista, mas que em 1969 se subdividiu em três setores (setor armado, operariado e classe média); e a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), com a presença de vários militares de esquerda contra o capitalismo e a burguesia, tendo como figura mais proeminente Carlos Lamarca (antes capitão do Exército). Mas, afinal, existia uma luta das esquerdas por democracia? Há um amplo debate historiográfico acerca do tema, inclusive, porque está bastante associado à memória e à construção da história contemporânea do Brasil e suas ideologias – áreas sempre delicadas e das quais o historiador precisa se desprender para fazer uma análise ampla e crítica. Para adentrarmos nessa problemática, ainda que brevemente, percorramos a década de 1960 e sua discussão em torno da defesa, ou não, da democracia. Diversas eram
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