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a vida cotidiana das palavras


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1C. da APPOA, Porto Alegre, n. 140, outubro 2005
EDITORIAL
Ao batizar a psicanálise de talking cure, Anna O. indicava que a cura deseus sintomas estava fundada na narrativa que fazia de sua história. A partir dessa experiência inaugural, Freud pôde decifrar a trama discursiva
que estrutura as diversas formações do inconsciente. Nossos sintomas, so-
nhos, lapsos, esquecimentos e lembranças carregam consigo uma possibili-
dade narrativa, que pode ser atualizada a partir do trabalho que acontece em
uma análise.
Como afirma Lacan, em uma psicanálise trata-se mais de re-escrever
a própria história do que recordá-la. O trabalho viabilizado pela transferência
torna possível uma nova condição narrativa, a qual permite que um sujeito
possa deslocar o eixo desde o qual conta sua história e fala de seu destino.
Este número do Correio está articulado em torno do eixo temático da
APPOA neste ano: narrativas em psicanálise. Esta questão foi abordada em
nossa Jornada de Abertura, “Inventar-se em análise”, passou pela discussão
do texto “Construções em Análise”, no “Relendo Freud”, e também esteve
presente em outras edições do Correio deste ano. O mês de outubro inicia
com a Jornada Clínica da APPOA, que tem como tema “Narrativa e destino
na clínica psicanalítica”. Os textos que reunimos neste Correio trazem uma
série de elementos para o debate em torno dessa questão.
A clínica: tema tão caro aos psicanalistas. O que se passa ali? Que
experiência impar é essa, de uma análise? Falar, falar, falar, sobretudo, falar.
Mas não uma fala vazia e asséptica, dos modelos publicitários ou científicos,
como nos lembra Jaime Betts em seu texto. Tampouco uma fala sem história,
desenraizada. A narrativa em análise não é literária, e certamente não seria um
romance, como indica Lúcia Pereira. O romance é feito para ser lido só; não há
compartilhamento de uma experiência singular e única. Isto que se passa em
uma análise – e que implica sempre a transferência, esse particular endereço –
é propriedade de uma Narrativa, tal como Benjamin a define.
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EDITORIAL
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NOTÍCIAS
Do endereço ao destino; não é, no entanto, preciso ser psicanalista
para ser tocado por essa intrínseca amarragem. João Guilherme Biehl nos
conta com grande sensibilidade a história de alguém que (quase) virou nin-
guém. A possibilidade de uma escuta se dá a partir da suposição de que só
há destino, construção de um futuro, onde há sujeito. Sujeito do desejo, bem
entendido, este eterno “não realizado”. É a escuta desse sujeito que carac-
teriza o trabalho do psicanalista, o qual Juliana Castro, em seu texto, com-
para ao trabalho de um tradutor.
Essas proposições de trabalho, avançadas pelos textos que com-
põem a sessão temática deste Correio, terão, certamente, muitos desdobra-
mentos em nossas Jornadas.
 “PODE-SE CONTAR ANALITICAMENTE
UMA CURA QUE SE PRODUZIU?”
SOBRE A CONFERÊNCIA DE JEAN JACQUES RASSIAL
No final do mês de agosto, estivemos reunidos, na sede da APPOA,
para ouvir as contribuições de Rassial ao tema que temos nos dedicado
nesse ano de trabalho, especificamente no que diz respeito às possibilida-
des narrativas da clínica.
Partindo da pergunta que coloca como eixo de sua conferência, sobre
qual possibilidade de se contar uma cura analítica, Rassial nos conduz a
caminhos inesperados, questionando a posição do analista enquanto
racionalidade no relato de um caso clínico. De quê, afinal, poderia se tratar
esse relato no a posteriori de uma análise? Diria respeito ao sujeito em
análise, ao analisando, ou a uma certa heurística do autor do relato, o analis-
ta? Ou ainda, qual subjetividade estaria em jogo?
Segundo Rassial, nos relatos de Freud, aparece mais a lógica freudiana
do que propriamente algo que diga das pessoas que transitaram por seu
divã. Já no relato de Lacan (refere o caso Aimé, em que sua posição é a de
psiquiatra), se trataria da presença de sua própria letra na cura.
Tomando como referência o texto de Leclaire, “Mata-se uma criança”,
Rassial avança na proposta de que o relato de um caso possa se escrever, nem
sobre a subjetividade do analista, nem sobre a do analisando, mas a partir de
um testemunho em que a deposição, o de-ser do analista está como condição.
Rassial transita também sobre uma certa análise das razões que
fazem com que “a maioria dos relatos de cura sejam tão ruins”. Nesse
sentido trabalha três pontos onde o relato poderia fazer obstáculo: a trans-
ferência, a interpretação e o fim de análise. Desenvolvendo esses pontos,
me pareceu especialmente interessante o que propõe como uma posição
possível na escuta analítica de uma supervisão, ou seja, ouvir o caso como
se tratasse de um sonho, o sonho do analista em supervisão.
Tecendo relações entre história e esquecimento, Rassial afirma que
de uma análise é possível resgatar muito pouco: algumas palavras, alguma
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NOTÍCIAS NOTÍCIAS
lembrança, um estilo... Sendo a escrita de uma cura uma espécie de ensaio,
em que não é possível distinguir o que vem do paciente do que vem do analista.
Enfim, Rassial nos propõe inúmeras questões muito férteis, nos con-
vidando de forma muito estimulante a seguir trabalhando.
Fernanda Breda
NÚCLEO DE PSICANÁLISE DE CRIANÇAS
Nos dias 27 de agosto e 10 de setembro, estivemos reunidos para o
trabalho do núcleo de psicanálise de crianças. Iniciativa que vem ao encontro
do interesse daqueles que trabalham com esta clínica e constantemente
colocam-se diante de impasses. A possibilidade de compartilhar questões
com colegas produz deslocamentos e aberturas à nossa escuta, sendo que
um espaço como o do núcleo possibilita rever nossa clínica e nos lança
novos desafios frente às diferentes problematizações levantadas pelas diver-
sas experiências dos colegas.
Para nos aquecer nesse início, discutimos, no dia 27, o texto de Sándor
Ferenczi “Confusão de língua entre os adultos e as crianças”. É um texto
histórico que situa uma série de pontos cruciais na clínica com crianças,
aponta para a ética da psicanálise e conseqüentemente para a delicadeza
das questões transferenciais no trabalho com as crianças, o que inclui seus
pais, a escola, etc. Salienta a importância do analista admitir que a resistên-
cia ao tratamento é sua, dizendo que uma das conseqüências de não admitir
suas limitações ao escutar, é o fracasso da análise.
No dia 10 de setembro, em função das discussões que o texto de
Ferenczi suscitou, discutimos dois textos de Patrick De Neuter, que amplia-
ram o debate: “Pai Real, incesto e devir sexual da menina” do livro “O sujeito,
o real do corpo e o casal parental” e o texto “O Pai Real e a sexualidade do
filho” do livro “Neurose infantil versus neurose da criança”, ambos da coleção
Psicanálise de Crianças da editora Ágalma. Entre outros pontos discutiu-se
o lugar do pai atualmente e a relação Lei/realidade, ou seja, que necessida-
de tem a presença do pai da realidade para a instauração da Lei? Questão
que nos leva a percorrer outros pontos da teoria psicanalítica. Temos muito
trabalho e um instigante espaço de discussão e troca de experiências.
O núcleo de psicanálise de crianças da APPOA se propõe como um
espaço sistemático para o desdobramento de interrogações, a partir do es-
tudo e discussão das especificidades levantadas pelo trabalho psicanalítico
com a infância. As reuniões são abertas e acontecem com freqüência men-
sal, no segundo sábado do mês, das 10:00 às 12:00. O próximo encontro
será no dia 08 de outubro, quando teremos a presença de Diana e Mário
Corso, falando sobre seu novo livro: “As Fadas no Divã”, da editora Arte-Med,
com lançamento em 26 de setembro. Os textos encontram-se à disposição
na Secretaria da APPOA. Até lá.
Inajara Erthal Amaral
FEIRA DO LIVRO
A APPOA estará presente na Feira do Livro deste ano, conforme a
seguinte programação:
DIA 2/11 – QUARTA-FEIRA
18h30min – Lançamento e sessão deautógráfos do livro “Masculinida-
de em crise”, org. APPOA, com a presença de Alfredo Jerusalinsky, Ana Cos-
ta, Roseli Cabistani e demais autores.
Local: Pavilhão de autógrafos
19 horas – Mesa-redonda “As histórias que nos contam – um olhar
psicanalítico”.
Participantes: Miriam Chnaiderman (Psicanalista/SP), Maria do Carmo
Campos (Letras/UFGRS), Carmen Backes (Psicanalista/ APPOA).
Coordenação de Robson Pereira (Psicanalista/APPOA)
Local: Santander Cultural
20h30min – Lançamento e sessão de autógrafos do livro “Narrativas
de Brasil”, org. APPOA, com a presença de Miriam Chnaiderman, Maria do
Carmo Campos, Carmen Backes, Robson Pereira e demais autores.
Local: Pavilhão de autógrafos
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NOTÍCIAS NOTÍCIAS
NOVIDADES DA BIBLIOTECA/OUTUBRO 2005
 É com satisfação que divulgamos as novidades da biblioteca no Cor-
reio da APPOA. Lembramos que esse mesmo informativo também é enviado
por e-mail.
Nesse mês, recebemos a doação de livros e, também, através da
permuta com outras instituições, alguns títulos de periódicos.
Agradecemos todas as doações recebidas e lembramos que as doa-
ções são sempre bem-vindas e ajudam a atualizar nosso acervo.
Visite a biblioteca, ela se encontra sempre a sua disposição!!
LIVROS:
1. Biehl, João. Vita : life in a zone of social abandonment. Berkeley:
University of california press, 2005.
2. Viero, Emília ; Betts, Jaime ; Fleck, Lenira Balbueno. Sob o véu
transparente: recortes do processo criativo com Claudia Stern. Porto Alegre:
Território das Artes, 205.
3. Allouch, Jean. Paranóia: Marguerite ou A Aimée de Lacan. Rio
de Janeiro: Companhia de Freud, 1977.
PERIÓDICOS:
1. Primeira Impressão. São Leopoldo, RS: Unissinos, n.23, jul./
2005. 114 p. É real.
2. Estilos da Clínica. São Paulo: USP, v.10, n.18, jun./2005. 145
p. Dossiê: intervenções no escolar.
3. Percurso: revista de psicanálise. São Paulo: Sedes Sapientiae,
v.15, n.34, jun./2005. 169 p.
PSICANÁLISE E VIDA COTIDIANA
 UM SARAU PARA CURIOSOS, XERETAS E DESAVISADOS
Tema: amor.com/sexo.com
Convidados: Nei Lisboa, Giba Assis Brasil, Diana Corso
Mediador: Mario Corso
Data: 07/10 (sexta-feira)
Horário: 19h.
Local: Sede da APPOA – Rua Faria Santos, 258 – Petrópolis
Valor: R$ 5,00
Informações: Secretaria da APPOA – F: 33332140
Coordenadores do evento: Eduardo Mendes Ribeiro, Mariane Mendes
Ribeiro, Maria Cristina Poli e Simone Rickes.
SEMINÁRIO: O DIVÃ E A TELA
 
Filme: “Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard)”
dirigido por Billy Wilder
Data: 19 de outubro, quarta-feira às 19h30min
Local: Sede da APPOA
Coord: Enéas de Souza e Robson Pereira
 
 O próximo “O divã e a tela” traz para a discussão um clássico do
cinema: “Crepúsculo dos Deuses - uma história de Hollywood”, dirigido por Billy
Wilder e interpretado por William Holden, Gloria Swanson e Erich von Stroheim.
O olhar crítico de um dos maiores mestres do cinema moderno sobre a máqui-
na Hollywood e os efeitos sobre seus artistas, antecipa em vários anos as
concepções sobre a “sociedade do espetáculo” e a subjetividade atual. 
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NOTÍCIAS
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SEÇÃO TEMÁTICA
NOTAS DE LEITURA – O NARRADOR – DE W. BENJAMIN
POR QUE ISSO INTERESSARIA A UM PSICANALISTA?
Lucia Serrano Pereira
 “Onarrador – considerações sobre a obra de Nicolai Leskov” é um texto de 1936, um dos mais importantes da obra de Walter Benjamin. Seeste tema, o da narração, é sempre retomado ao longo de sua obra
não é sem razão. É sob o significante da narrativa e da narração que Benjamin
faz passar as grandes questões de seu tempo. Concentra em si, de maneira
exemplar, os paradoxos de nossa modernidade, aponta Jeanne M.
Gagnebin,(1994).
No âmbito da psicanálise, trabalhar o narrador “benjaminiano” pode
ser uma oportunidade fecunda de pôr em questão, no contato com um estilo
e uma elaboração extremamente interessantes, aquilo que não pára de nos
ocupar: o campo do sujeito e o campo do Outro.
Poderíamos apontar pelo menos três grandes vertentes de trabalho
que o texto permite e propõe interrogar:
– a questão da enunciação – desde onde se fala – na relação à passa-
gem que envolve a modernidade;
– de onde esta fala se autoriza – discussão do lugar da tradição, da
autoridade, dos lugares transferenciais;
– a produção na cultura – a arte, o novo, o ato, as inscrições dos
produtos culturais e seus lugares (associada ao texto sobre a reprodutibilidade
técnica da obra de arte, onde trata do declínio da aura dos objetos na
modernidade).
Vamos escolher um caminho pontual, alguns elementos do texto (o
narrador é desenvolvido em 19 partes) que possam funcionar talvez como
disparadores, notas de leitura, indicações.
Mas primeiro, vale a pena situar, Benjamin vai ligar o termo do narrador a
um autor russo do século XIX relativamente desconhecido para nós, Nicolai
Leskov.
Eda Tavares informa o novo telefone residencial: (51) 3061-2249 e e-
mail: edatavares@uol.com.br
Carla Cumiotto informa o novo endereço residencial: Rua Richard Holetz,
30 - Bairro Bom Retiro - Blumenau - SC, telefone do consultório: (47) 3035-
3987, telefone celular: (47) 8822-0997 e e-mail: carlacumiotto@yahoo.com.br
MUDANÇA DE ENDEREÇO
CICLO DE DEBATES
MACHADO DE ASSIS NA CULTURA
PSICANÁLISE & LITERATURA
Dia: 27 de outubro (quinta-feira)
Hora: 20h
Local: Livraria Cultura (Bourbon Shopping Country – Av. Túlio de Rose, 80 –
Loja 302)
Realização: Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), Livraria
Cultura e Pós-Graduação em Letras da UFRGS
Entrada Franca 
A psicanalista Ana Costa e o professor de literatura Flavio Loureiro
Chaves são os palestrantes deste encontro do ciclo de debates Machado de
Assis na Cultura Psicanálise & Literatura. Encerrando o ciclo deste ano,
Ana Costa fará suas observações a partir do romance “Esaú e Jacó”. O
professor Flávio Chaves, por sua vez, discorrerá sobre tema que ele intitulou:
“Machado de Assis: as duas pontas da vida.
O ciclo de debates Machado de Assis na Cultura – Psicanálise &
Literatura é uma realização da APPOA, do Pós- Graduação em Letras da
UFRGS e da Livraria Cultura. Oferece aos leitores e especialmente aos aman-
tes da obra de Machado de Assis a oportunidade de participar de debates a
partir da produção do escritor: contos, ensaios, romances e poesia.
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SEÇÃO TEMÁTICA
Leskov é o escritor da Rússia antiga, dos contos ligados às narrativas
orais em circulação. Ele viajava pela Rússia reunindo documentos, lendas,
coisas estranhas contadas na linguagem popular.Trabalhava os jogos de pala-
vras que reproduzem os erros de linguagem do povo, o estilo é de um humor
extraordinário, cheio de expressões, trocadilhos, invenções. A crítica contem-
porânea o “descobre” há pouco tempo, relativamente aos outros escritores rus-
sos de sua época. Sua narrativa é, muitas vezes, irônica, como na novela “A
pulga de aço”, onde os russos e os ingleses se corroem na rivalidade – os
ingleses vendem aos russos uma pulga de aço, tamanho natural, quase imper-
ceptível. Dando corda na pulguinha, ela dança a quadrilha. Os russos humilha-
dos e ao mesmo tempo maravilhados com o domínio da engenharia dos ingle-
ses (que por sinal cobram uma fortuna não tanto pela pulga, mas pelo estojo
para carregá-la sem perdê-la) convocam seus melhores artesãos, os ourives de
Tula, que trabalham e reapresentam a pulga modificada: não dança mais. Que
aconteceu? Os artesãos inacreditavelmente haviam conseguido colocar uma
ferradura mais do que microscópica em cada patinha da pulga – e ainda por
cima a assinatura do artista em cada ferradura. Vitória, sinal da superioridade
total dos ourives russos sobre a tecnologia inglesa (estrangeiro x nacional,
tecnologia x artesanal).
Leskov passa também pelo trágico, pelo religioso, pela tensão dra-
mática às vezes alucinada – “Lady Macbeth” de Mzsensk, “Apenas um
retrato de mulher”,O anjo lacrado e outras novelas e contos. Segundo Otto
Maria Carpeaux, Leskov é um clássico russo da maior importância, à altura
de Tolstoi, Tchecov e Dostoievski.
Benjamin escolhe então Leskov para nos dizer que o narrador, “por
mais familiar que nos seja este nome, está longe de ser inteiramente presen-
te, entre nós, em sua atividade viva” (1994, p.197). Assim inicia o texto, e
essa vai ser sua linha de sustentação. A figura do narrador se distancia cada
vez mais nos tempos modernos. A experiência cotidiana permite pensar que
a arte de narrar está em extinção, nos faz falta a faculdade de intercambiar
experiência, o que antes parecia assegurado. No texto “Experiência e pobre-
za” (1933), Benjamin formula uma questão: Qual o valor de todo nosso
patrimônio cultural se a experiência não mais o vincula a nós? O pós-guerra
do início do séc. XX produzia uma geração não mais rica em histórias para
contar, mas uma geração confrontada com o desamparo. Os combatentes
voltavam silenciosos dos campos de batalha, “mais pobres” em experiência
e narração (os mesmos que Freud recebe e que possibilitarão as hipóteses
sobre o trauma – base para seu “Além do princípio do prazer”).
A experiência transmitida oralmente é a fonte na qual beberam os
narradores. Dois estilos de origem são apontados por Benjamin na proposi-
ção de uma linhagem dos narradores: “Quem viaja tem muito o que contar”.
A narrativa que trazia os lugares distantes na figura do marinheiro; e a narra-
tiva de quem nunca saiu de sua terra mas que participa do elo das gerações,
suas histórias e tradições: o camponês. O marinheiro e o camponês são
situados como os primeiros mestres da narrativa. A tradição da Idade Média,
com o sistema corporativo, participa também dessa distribuição nas figuras
dos mestres sedentários e aprendizes migrantes.
Algo que vale a pena remarcar é o fato de que esse saber, essa auto-
ridade que se decanta da experiência do narrador é de um lado de gerações
que se perdem de vista na articulação temporal e, de outro, de terras distan-
tes que também têm seus limites espacialmente difusos. Ou seja, há um
insondável em jogo que nos permite pensar nas formas pelas quais o campo
do Outro se apresenta na relação com a narrativa e com o saber. A autorida-
de que o saber comporta nestes contextos tem relação com a Erfahrung, a
experiência que traz em seu radical fahr, travessia, viagem. O saber, que
vinha de longe, portava uma autoridade válida mesmo que não fosse contro-
lável pela experiência (à diferença da informação, que aspira a uma verifica-
ção imediata). O narrador retira da experiência sua/dos outros o que conta, e
transmite incluindo o narrado na experiência de seus ouvintes. O narrador
marca singularmente a fala, mas a partir de falas que lhe vêm de lugares
outros. O ouvinte não está em uma posição qualquer, as passagens das
narrativas “são salvas da análise psicológica”, quanto mais o ouvinte se es-
quece de si mesmo, mais profundamente a transmissão opera. Grande sa-
cada de Benjamin. A narrativa não está interessada em informar, “ela mergu-
PEREIRA, L. S. Notas de leitura...
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SEÇÃO TEMÁTICA
lha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se
imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do
vaso” (1994, p. 205). O exemplo coincide com aquele que Lacan toma para
falar da relação do simbólico e do real a propósito da ética da psicanálise.
O contraponto (ao narrador tradicional) é tecido no argumento com
relação ao romancista e sua posição no individualismo, o romance valendo
como paradigma da modernidade. Não que o romance fosse novidade en-
quanto gênero, mas nunca na história havia sido posicionado centralmente,
encontrando com a burguesia ascendente os elementos para seu novo lugar.
A origem do romance é o indivíduo isolado que não pode mais “falar exem-
plarmente sobre suas preocupações mais importantes, não recebe conse-
lhos nem sabe dá-los” (1994, p.201).
Um dos momentos mais bonitos do texto: o narrador é alguém que
sabe dar conselhos. Mas, diz Benjamin, se dar conselhos parece hoje algo
de antiquado, vale lembrar que aconselhar pode ser menos responder a uma
pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história.
E aqui encontramos uma diferença na tradução do texto para a edição
brasileira, que merece ser considerada. No português, temos: “Para obter
essa sugestão, é necessário primeiro narrar a história” (1994, p.200)... No
francês, texto autorizado pelo autor, temos: “Pour qu’on nous le donne, ce
conseil, il faut donc que nous commencions par nous raconter”...
Nous raconter, nos contarmos, ponto nodal. Nos contarmos, nos di-
zermos, dizermos do Outro que nos atravessa, ao mesmo tempo o “se con-
tar” da inclusão, lugar desde onde poder se situar.
Seriam necessárias muitas mediações para pensar as relações entre
o “se contar” da narrativa tradicional com a fala na situação da clínica psica-
nalítica. Não há correspondência nem equivalência, a operação difere (isso
sem falar que psicanalista tem verdadeira ojeriza com o que se chama de
conselho). Mas como estamos em notas de leitura, quem sabe podemos
nos permitir algumas associações. Uma vez que a associação com a ética
já se apresentou, nous raconter termina por evocar o que Lacan aponta quanto
à proposição da ética da psicanálise, quando enuncia: s’y retrouver dans
l’inconscient, dans la structure, se achar na estrutura. Se o narrador
benjaminiano dispensaria a psicanálise, como nos diz Maria Rita Kehl – por
já compor um elo de transmissão no seu contexto –; por outro lado, nos faz
pensar por onde algo da sustentação de uma prática como a psicanalítica
renova a possibilidade de estabelecer uma experiência, travessia, trabalho
que supõe um certo “percorrer”, fala e escuta sustentados por uma relação
transferencial, campo do Outro, inconsciente. A experiência e a narração
“declinam”. O termo do declínio já vem surrado de tanto uso, mas não é
equivalente ao de eliminação. Por quais caminhos se atualizam as condi-
ções de um “percorrer” nos nossos tempos?
Benjamin é nostálgico?
Pode ser, mas esse não é o forte de seu texto. Complexo, supondo
inúmeras interlocuções – Lukács e sua “Teoria do romance”, Montaigne,
Cervantes, Heródoto, situado como o primeiro narrador grego, Kafka,
Dostoievski, Gorki, Paul Valery, e vários autores de sua tradição mais próxi-
ma, a alemã; “O narrador” trabalha muitos cruzamentos, sem se deixar cair
na tentativa de preencher todas as lacunas, de recobrir todas as arestas.
Benjamin traz em especial os limites, limiares como a relação com a morte,
com a temporalidade, a negatividade, essas zonas cujas passagens, (traba-
lho de sua vida), se articulam em cima do real que interroga a cada vez, e a
cada um na constelação discursiva que o recebe. Se a narrativa se trama
com a literatura, é de se levar em conta, como nos diz Márcio Seligmann-
Silva, que ela é sempre marcada pelo real, ou seja, não se trata de trabalho
de ilustração. Real que por outros caminhos, na prática analítica, na relação
com esse se achar na fala, nos concerne.
Referências Bibliográficas
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994 (sé-
tima ed.) Primeira edição – 1985.
BENJAMIN,Walter. Écrits français. Paris: Éditions Gallimard, 1991.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em W.Benjamin. Campinas: Edi-
tora Perspectiva, 1994.
PEREIRA, L. S. Notas de leitura...
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SEÇÃO TEMÁTICA BIEHL, J. A vida cotidiana...
A VIDA COTIDIANA DAS PALAVRAS:
 A HISTÓRIA DE CATARINA1
João Biehl2
“No meu pensamento, as pessoas esqueceram de mim”. Catarina me disse isso enquanto pedalava sua bicicleta de exercícios, seguran-do uma boneca. Essa mulher de trinta e poucos anos tinha um olhar
penetrante e a fala um pouco enrolada. Eu a conheci em março de 1997 aqui
em Porto Alegre,num asilo chamado Vita. Eu lembro de ter me perguntado:
mas para onde ela pensa que vai? Vita é o destino final. Como muitos outros,
Catarina tinha sido deixada lá para morrer.
Vita é conhecido como um centro de reabilitação de drogados, mas
na verdade é um depósito onde famílias e instituições médicas e do estado
abandonam doentes mentais, deficientes físicos, pacientes com AIDS e pes-
soas que cometeram pequenos delitos, jovens e velhos, como se já não
fossem mais seres humanos. Sem direitos, a maioria dos mais de 200 paci-
entes da chamada “Infirmaria” não eram cadastrados formalmente e não re-
cebiam mais do que cuidados alimentares mínimos. Lembro de que de um
homem os voluntários retiraram as larvas dos olhos com uma mistura de
“Pinho Sol” e “Q-Boa”.
Em torno de 50 milhões de brasileiros vivem abaixo da linha da pobre-
za; vinte e cinco milhões são considerados indigentes. À primeira vista, Vita
parecia ser um microcosmo dessa miséria. Mas não só. Uma parte de seus
residentes vinha de famílias da classe trabalhadora e da classe média, eles
mesmos tendo sido operários sustentando suas próprias famílias. Alguns
haviam vivido em instituições públicas das quais foram jogados na rua ou
transferidos diretamente para o Vita.
Nesta fala, eu traço os caminhos que Catarina percorreu para chegar
nessa “zona de abandono social”. Acompanhar o enredo de uma única vida
nos ajuda a capturar a lógica das infra-estruturas cotidianas que fazem com
que certas vidas ganhem forma e outras sejam impossibilitadas. E também
nos ajuda a iluminar este estranho processo subjetivo que faz com que o
abandonado, apesar de tudo, continue antecipando uma outra chance de
vida. Aqui somos confrontados com as realidades que estão entre ou além
das estruturas formais de governo e medicina que determinam o curso de
vida de um número crescente de pobres que não fazem parte de nenhum
mapeamento ou política específica e que lutam para sobreviver em vão.
Suspensa no Vita, Catarina falou de sua ruína humana e também do seu
desejo de reconstruir a vida:
“Eu tenho uma filha, Ana; ela tem oito anos. Meu ex-marido a deu
para o Urbano, o patrão dele. Eu estou aqui porque tenho problemas com
minhas pernas. Para poder voltar, eu tenho que passar por um hospital. É
muito complicado para mim conseguir lugar num hospital, e se eu conse-
guisse, provavelmente iria piorar. Eu não ia gostar porque já estou acostuma-
da a ficar aqui. Meus irmãos e meu cunhado é que me trouxeram pra cá.
Ademar, Armando… eu me exercito que é pra poder caminhar de novo. Ago-
ra eu já não posso mais sair daqui. Eu tenho que esperar um tempo. Eu
consultei com um psiquiatra particular, umas vezes. Quando é preciso eles
também nos dão medicação aqui. A gente fica dependente. A gente já nem
pensa mais em voltar para casa. Mas não é que a gente não queira. No meu
pensamento, as pessoas esqueceram de mim.”
Mais tarde, perguntei aos voluntários se sabiam algo sobre a Catarina.
Eles não sabiam nada sobre a vida dela fora do Vita, disseram que ela falava
coisas sem sentido, que ela era “louca”. Sua voz tinha sido anulada pelo
diagnóstico psiquiátrico. Mas eu tentei pensar nela não como uma doente
mental e sim como uma pessoa abandonada que, contra todos os empeci-
lhos, estava reivindicando sua experiência a seu próprio modo. Ela estava
tentando melhorar sua condição e se virar com as próprias pernas. Catarina
insistia em pensar que o seu problema era fisiológico e que sua estada no
Vita era o resultado de várias circunstâncias relacionais e institucionais que
ela não podia controlar.
1 Palestra proferida na APPOA em 29 de agosto de 2005.
2 Professor Assistente de Antropologia, Universidade de Princeton (EUA).
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SEÇÃO TEMÁTICA
“Para poder ir para casa, vou ter de ir prá um hospital primeiro”, racio-
cinou ela. O hospital era o caminho para a casa que já não mais existia. Mas
o acesso a cuidados médicos adequados era impossível. Catarina também
insinuou que a medicação tinha piorado a condição clínica dela. Esse tipo de
cuidado era também típico do Vita, “eles também nos dão medicação aqui.”
Ela estava se referindo a uma farmacologização da miséria humana. Algo fez
com que o seu retorno para casa se tornasse impossível. Mas o desejo
continuava: “Não é que a gente não queira”.
Os movimentos de Catarina e as lembranças dela no contexto desolador
do Vita ficaram no fundo da minha mente. Ela sabia o que a tinha feito ficar
assim – mas como verificar os fatos do relato dela? Ademais, o grau de
imprecisão ou inabilidade de articulação do seu pensamento não dependia
dela somente – nós, os voluntários e o antropólogo, não tínhamos meios de
entender e avaliar isso. A narrativa e desejos labirínticos dela requeriam for-
mas analíticas capazes de abordar a pessoa que, afinal de contas, não é
completamente subjugada pela trama das instituições e grupos.
Toda vez que eu voltava para o Vita, mais residentes diziam que que-
riam contar “a minha vida”. Eu fiquei pasmo com a condensação e semelhan-
ça dos relatos. Quase todos mencionavam terem sido banidos da vida em
família, falavam do rompimento de relações bem como da perigosa e agora
quase impossível volta para casa. Isso não eram narrativas de doenças vi-
sando à busca de um significado último do tipo “por que isto tinha que acon-
tecer justo comigo, ou por que agora?” Tampouco eram registros
esquizofrênicos, que Gilles Deleuze e Felix Guattari entendiam como fazen-
do paródia social – “nunca fornecendo a mesma explicação de um dia para o
outro.”3 Como pude ouvir e constatar ao longo do tempo, os relatos dos
chamados “loucos” do Vita não estavam sempre em fluxo. Pelo contrário,
fiquei impressionado pela constância, contextualização e veracidade dos
relatos (como constatei ao seguir passo a passo o de Catarina) apesar de os
voluntários dizerem que tais relatos não faziam sentido.
Ao invés de entender estes relatos como prova de que os abandona-
dos “se retiram do mundo”4 comecei a vê-los como restos da verdade –
chamemo-los de “códigos de vida” – através dos quais a pessoa abandonada
tenta se agarrar ao real. À medida que os ouvia, eu me sentia desafiado a
tratá-los como evidência da realidade da qual os abandonados são expulsos
e quase nunca voltam a povoar. Como estes fragmentos são uma forma de
articulação de uma ex-humanidade vivida, eles também funcionam como fon-
te e meio pelo qual eles articulam sua experiência passada e presente. Es-
tes relatos são espaços em que seus destinos são repensados e seus dese-
jos ganham uma nova moldura.
Acompanhei o desenvolvimento do Vita ao longo de anos, e recente-
mente terminei um livro sobre este espaço de morte social e seus residentes,
entitulado “Vita: Life in a Zone of Social Abandonment” (Berkeley: University of
Califórnia Press, 2005). O livro começa com a crônica do dia-a-dia neste Cen-
tro, e explora este espaço não como uma exceção, mas como um “fato social
total”. Há mais de 200 instituições como o Vita só em Porto Alegre, a maioria é
eufemisticamente chamada de “casa geriátrica”. Estas instituições hospedam
abandonados de todas idades em troca da aposentadoria ou auxílio invalidez;
um razoável número destas instituições também recebe apoio estadual ou fi-
lantrópico. Zonas de abandono são de fato simbióticas com domicílios e servi-
ços públicos em transição. Elas absorvem indivíduos considerados sem valor e
que não têm mais laços familiares ou recursos para o próprio sustento e tornam
sua reabilitação impossível e sua morte iminente.
No meu trabalho etnográfico entre pobres em áreas urbanas no sul e
no nordeste, eu descobri que mais e mais as famílias são uma espécie de
agente médico do Estado, uma vez que elas fazem a triagem dos cuidados
e do tratamento; e que a medicação tornou-se um instrumento fundamental
das deliberações sobre quem vive, quem morre e a que custo? O aumento de
apelos pela descentralização de serviços e a individualização de tratamen-
tos, como exemplificadopelo movimento da saúde mental, coincidem com
3 Gilles Deleuze e Felix Guattari. Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia. Minneapolis:
University of Minnesota Press, 1983, pp. 15.
4 Vide o ensaio de Robert Desjarlais, “Struggling Alone: The Possibilities of Experience
Among the Homeless Mentally Ill.” American Anthropologist 96(4):886-901.
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os cortes dramáticos nos subsídios na infra-estrutura da saúde e com a
proliferação de tratamentos farmacêuticos. A distribuição gratuita de medi-
camentos (que inclui os psicofármacos) é de fato um componente importan-
te das iniciativas que visam um sistema universal de saúde mais econômico
e eficiente.
Ao se engajar com esses novos regimes de saúde pública e ao alocar
seus já esticados e escassos recursos, as famílias aprendem a agir como
proxy-psychiatrists ou “psiquiatras de fundo de quintal”. As doenças se tor-
nam o ponto focal em que a experimentação e as rupturas nas relações
domiliciares íntimas acontecem. As famílias podem se livrar de seus mem-
bros indesejados, às vezes sem sanção, baseados no fato de que tais indi-
víduos não se submetem aos protocolos de tratamento. Os psicofármacos
são centrais na história de como vidas são forjadas dentro deste momento
de transformação sócio-econômico e vis-à-vis ao que está, burocraticamente
e medicinalmente, disponível à população. Tais possibilidades e a execução
prática de certas formas de vida humana acontecem paralelamente às for-
mas de discriminação por gênero, à exploração de mercado, e a um Estado
administrado no que podemos chamar de estilo gerencial, que cada vez mais
se distancia das pessoas que governa.
O foco principal do livro está em analisar como esta morte social é
experienciada e entendida pelos próprios residentes do centro Vita, em
particular por Catarina. Seu corpo e sua linguagem estavam tomados
pela força dos processos acima descritos; a sua pessoa sendo desfeita
e refeita e destruída.
Quando eu voltei ao Vita em dezembro de 1999, Catarina ainda estava
lá, só que desta vez a encontrei numa cadeira de rodas – e escrevendo.
Parecia confusa, falava devagar e com dificuldade. “Minhas pernas não aju-
dam mais”. Ela disse que estava com “reumatismo” e que de vez em quando
os voluntários lhe davam remédios.
O que tu estás escrevendo?
“É o meu dicionário”, disse ela. “Eu escrevo pra não esquecer as
palavras... todas as doenças que tenho agora, e as que tive quando cri-
ança”. A letra dela revelava uma alfabetização precária. As palavras eram
escritas em maiúsculas e havia poucas frases completas.
Esse foi o primeiro fragmento que li:
“Divórcio, dicionário, disciplina, diagnóstico, casamento grátis, casa-
mento pago, operação, realidade, fazer injeção, pegar espasmo, no corpo,
espasmo cerebral”.
“Por que tu chamas isto de dicionário?”
“Porque não requer nada de mim, nada. Se fosse matemática, eu teria
de encontrar uma solução, uma resposta. Aqui tudo é uma coisa só, do
começo ao fim... Eu escrevo e leio.”
Ela me deixou folhear o dicionário.
“Te ofereço minha vida”. “No ventre da dor”. “O sentido presente”. Entre
as várias referências a consultas, hospitais, e documentos, ela escreveu
sobre “a divisão de corpos”, e sobre as coisas que estão “fora da justiça”.
“Aquele que contradiz é condenado”. “Morto vivo, morto por fora, vivo por
dentro”. Havia também expressões de saudade: “Recuperação de movimen-
tos perdidos”. “Uma cura que encontra a alma”. “Com A eu escrevo Amor,
com L eu escrevo Lembrança”.
Eu voltei a falar com ela várias vezes durante aquela visita. Catarina
enveredou por uma série de lembranças da vida fora do Vita, sempre enrique-
cendo com detalhes o que relatara no nosso primeiro encontro em 1997. O
passado foi ganhando forma à medida que elaborava pensamentos sobre
sua origem em uma área rural e sua migração ao Vale dos Sinos para traba-
lhar nas fábricas de calçados. Ela contou ter tido três filhos, ter brigado com
seu ex-marido; mencionou nomes de psiquiatras, experiências no Hospital
Espírita e no São Pedro – tudo contado em pedacinhos e numa cronologia
de quebrar a cabeça. Catarina insistia que havia uma história e uma lógica
para explicar seu abandono.
“Quando meus pensamentos concordavam com os do meu ex-marido
e sua família, tudo ficava bem. Mas quando eu discordava, aí eu era louca.
Era como se uma parte de mim tivesse de ser esquecida. Minhas pernas
não estavam ‘funcionando’ bem. Eu não queria tomar os remédios.”
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Os médicos alguma vez te contaram o que tu tinhas?
“Não, eles não diziam nada... eu sou alérgica a doutores. Eles que-
rem ser sabidos, mas não sabem o que é sofrimento. Eles não te tocam ali
onde dói”.
De acordo com Catarina, a deterioração fisiológica e o abandono fo-
ram mediados por uma mudança na forma de pensar e de dar significado à
nova economia doméstica e do seu tratamento farmacológico. Subjetividade
tinha se tornado o condutor pelo qual sua exclusão tinha sido solidificada.
Aquele apagamento forçado de uma “parte de mim” impossibilitou-a de achar
seu lugar dentro de uma vida familiar mutante.
Por que, perguntei à Catarina, familiares deixam as pessoas no Vita?
“Eles dizem que é melhor nos deixar aqui do que a gente ficar sozinho
em casa, sem fazer nada... que há mais pessoas como a gente aqui... e que
todos nós juntos formamos uma sociedade.... ‘uma sociedade de corpos’”.
Como ampliar as possibilidades de inteligibilidade social a que Catarina
tinha sido deixada para resolver sozinha? Eu tinha de encontrar uma maneira
de decifrar o real na vida e nas palavras dela e relacionar estas palavras de
volta a pessoas, espaços e eventos específicos dos quais ela fizera parte um
dia – uma experiência sobre a qual ela não tinha mais autoridade simbólica.
Aceitar as palavras e o texto de Catarina pelo seu valor de face me fez
passar por uma jornada semelhante a de um detetive. Com o consentimento
dela, eu coletei protocolos de hospitais psiquiátricos e órgãos locais do sis-
tema público de saúde pelos quais ela passou. Também consegui localizar
membros da família – os irmãos, o ex-marido, os cunhados e filhos – num
distrito industrial do Vale dos Sinos. Tudo o que ela me contou sobre a
família, os caminhos médicos que a levaram ao Vita fechavam com as infor-
mações que eu encontrei nos arquivos e na pesquisa de campo.
Se eu tivesse me contentado com os relatos da própria Catarina lá no
Vita, todas as tensões e associações existentes entre a família, os médicos
e as instituições públicas que deram forma à vida dela teriam permanecido
invisíveis. O que aconteceu com a Catarina não foi simplesmente ter caído
entre as frestas destes vários sistemas domiciliares e públicos. O seu aban-
dono foi dramatizado e executado na justaposição de diversos contextos
sociais. Seguir cada passo do enredo da vida dela ajudou a delinear este
poderoso espaço etnográfico não institucionalizado em que famílias se li-
vram dos membros indesejados. A tessitura desta atividade doméstica de
avaliar e decidir quais vidas merecem continuar e quais não, ainda permane-
ce sem grande investigação, não somente no dia-a-dia da vida, como tam-
bém na literatura sobre as transformações econômicas, estatais e civis em
contextos de desigualdade e democratização tais como o brasileiro. No que
se segue, gostaria de lhes dar uma idéia do que eu descobri neste trabalho
reconstrutivo, particularmente, em relação à realidade da doença mental, à
re-transcrição farmacêutica de laços familiares e subjetividades, e à interface
entre meio-ambiente e expressão genética.
Catarina nasceu em 1966, e cresceu num lugar bem pobre da região
oeste do Estado. Na quarta série ela foi tirada da escola. O pai dela abando-
nou a família e ela se tornou a dona de casa enquanto os irmãos mais novos
iamcom a mãe para a roça. Em meados dos anos oitenta, dois de seus
irmãos migraram e encontraram trabalho na indústria calçadista. Aos 18
anos Catarina se casou com Nilson Moraes e um ano mais tarde deu à luz
ao seu filho Anderson.
Quando o Nilson trouxe a foto dela para nós vermos, Sirlei, a irmã de
Nilson, disse: “ela era muito bonita”. Não a pessoa, mas a aparição dela foi
o que primeiro lhes veio à mente quando eu me apresentei aos cunhados de
Catarina. Sirlei foi inflexível ao afirmar que a paralisia de hoje não podia ser
detectada no passado: “Naquela época ela era uma pessoa perfeita como
nós”. Não mais estando naquela imagem da família, ela é passado. Catarina
agora era associada com um corpo se desmembrando: “A mãe dela ‘tam-
bém’ perdeu as pernas e as mãos”.
Os irmãos contaram que também eles estavam começando a ter pro-
blemas para caminhar, mas não sabiam o que era essa doença: “É um mis-
tério”. Nas palavras de Armando, “Quando éramos crianças, ‘Catarina era
normal’”. A esposa dele reiterou a aparência dela: “‘Ela era bem normal’. Eu
lembro das fotos de casamento”. Eu ficava me perguntando o que será que
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queria dizer esta gradação de normalidade e o que na vida ou que interesses
determinavam a aplicação deste rótulo a outros membros da família.
Em todo caso, negócios obscuros, várias colheitas ruins e dívidas
para com os comerciantes locais forçou o jovem casal a vender as terras que
tinham herdado por terem cuidado da mãe doente. E em meados dos anos
80, Nilson e Catarina decidiram juntar-se aos irmãos nas fábricas de sapato.
O Vale dos Sinos tinha se tornado uma espécie de Eldorado, atraindo muitos
dos que estavam em busca de mobilidade social. As estatísticas mostram
que ao final dos anos oitenta, o Vale tinha um dos índices mais altos de
renda per capita do Estado, mas também que mais de um quarto da cres-
cente população estava vivendo em favelas. A situação piorou ainda mais
nos anos 90, quando o Vale passou por uma queda econômica e uma aguda
fase de empobrecimento, principalmente pela inabilidade do País em articu-
lar uma política de exportação mais lucrativa e por causa da competição
com a China no mercado mundial de calçados.
Catarina lembra de gostar de trabalhar na fábrica. “Eu tinha minha
carteira de trabalho e ganhava meu dinheirinho”. O marido encontrou trabalho
como vigia numa Prefeitura. Logo a seguir veio o segundo filho do casal, uma
menina que foi chamada Aline. Catarina também tomava conta da mãe
adoentada, que tinha ido morar com eles. Para complicar as coisas ainda
mais, Catarina começou a ter dificuldades para caminhar. “Eles a despedi-
ram da fábrica, pois começou a cair lá dentro”, relatou a cunhada. Justamen-
te quando ela perde seu valor como trabalhadora, ela também descobre que
Nilson tinha arranjado outra mulher.
Deprimida, ela, às vezes, saía a perambular pela cidade. E o ma-
rido acionou seus contatos na Prefeitura em que trabalhava para que a
polícia fosse atrás dela: “Eles tiveram que algemá-la... e na sala de emer-
gência tiveram que sedá-la para se acalmar”, ele me contou. Isso acon-
teceu algumas vezes e foi aí que Nilson decidiu interná-la em Porto Ale-
gre. No turbulento ano de 1992, a mãe dela já tinha morrido quando ela
deu a luz a uma criança prematura, uma menina chamada Ana. A maior
parte das internações tiveram lugar entre 1992 e 1994, quando o casal já
não vivia mais junto. “Eles lhe deram o melhor tratamento”, disse Nilson.
“Mas ela jogava os remédios no vaso e puxava a descarga. Em casa, ela
não continuou o tratamento. Ela não se ajudava”. Nilson agora trabalha
numa fábrica de sapatos e tem uma nova família. Como os outros, ele
fala abertamente sobre Catarina. “Isso é coisa do passado”, disse ele.
“Ela já nem está mais na minha cabeça”.
Os apontamentos sobre o tratamento médico e as conversas com a
família permitem com que se encontre a voz da paciente, e mais do que isso,
as narrativas das alterações e das condições de sua suposta intratabilidade.
Nos hospitais de Porto Alegre, o diagnóstico dado à Catarina variava de
“esquizofrenia” e “psicose pós-parto” a “psicoses não determinadas” e “de-
sordens de humor”. Ao traçar a passagem de Catarina por essas institui-
ções, eu a vi não como uma exceção, mas sim como uma entidade padrão.
Ou seja, ela era submetida ao típico e incerto tratamento que pacientes
mentais da classe pobre, trabalhadora, urbana, são submetidos. Tecnologias
médicas eram cegamente aplicadas e pouco se calibrava o tratamento à
condição distinta dela. Como muitos, consideravam-na agressiva e por isso
era sedada exageradamente, para que a instituição pudesse continuar suas
funções sem fornecer os cuidados mais adequados a cada paciente.
A instituição, vítima ela mesma de problemas financeiros e da prolife-
ração de novas classificações e tratamentos, exercia uma prática psiquiátri-
ca rotineira que não levava em consideração a condição particular e social
dela. Apesar de o seu diagnóstico ter sido suavizado ao longo dos anos
(imitando as tendências psiquiátricas mais recentes), ela continuou sendo
muito medicada com anti-psicóticos pesados e outros remédios para tratar
dos efeitos colaterais. Em várias ocasiões os enfermeiros relatavam
hipotensão, um claro indicador de supermedicação. Aqui o tratamento co-
meça com uma superdosagem e aí é diminuída por tentativa e erro. À medi-
da que lia os relatórios médicos, sentia dificuldade em separar sintomas de
uma doença psiquiátrica sendo tratada e da medicação que tratava efeitos
colaterais, e ficava estupefato em ver que os médicos pouco se importavam
em diferenciar essas duas coisas no tratamento da Catarina.
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Afirmar que isso seja fruto de uma má prática médica é ignorar a
qualidade produtiva de um automatismo e experimentalismo médico não-
regulamentado: neste contexto, a medicação se encarrega da maior parte
do trabalho, e os efeitos farmacológicos tornam-se o corpo que supostamen-
te está sendo tratado e, neste processo, ganha forma a moléstia que Catarina
chama de “reumatismo”. Como ela escreveu no dicionário: “Querer meu
corpo como remédio, meu corpo”. Enquanto os médicos continuaram fixa-
dos nas suas supostas alucinações, a etiologia das suas dificuldades de
movimentos, relatadas pelos enfermeiros, continuavam sendo ignoradas. Os
relatórios médicos também demonstram a dificuldade de contato com o marido
e a família, pois deixavam números de telefone e endereços falsos, e que em
várias ocasiões ela foi deixada no hospital após ter recebido alta.
O dicionário dela está recheado de referências às deficiências de
movimento, à dor nos braços e pernas, às contrações musculares. Às vezes
Catarina relacionava suas moléstias e a crescente paralisia a um marcador
biológico e aludia a um certo “tipo sangüíneo que levava à deficiência física”
ou a um “cérebro fora do prazo de validade” e a um “crânio envelhecido” que
“impedia a melhora”. Na maioria das vezes, no entanto, Catarina se referia à
sua condição como “reumatismo”, como eu havia mencionado anteriormen-
te, e falava de suas doenças como sendo man made, ou seja, humanamente
fabricadas. Eu segui o verbete “reumatismo” no dicionário dela, prestando
atenção às palavras e expressões circundantes.
“As pessoas pensam que têm o direito de meter as mãos nos fios e
mexer nos nós. Reumatismo. Eles usam meu nome para o bem e para o
mal. Eles usam meu nome por causa do reumatismo”.
O sintoma une os fios da vida. É um nó malfeito; é a matéria que torna
possível o intercâmbio social. Ele dá ao corpo a sua estatura e torna-se o
conduto da moralidade. É a moléstia do corpo de Catarina e não o nome dela
que se converte na mercadoria de troca dentro daquele mundo: “O que eu fui no
passado não tem importância”. Em outro fragmentoela escreve: “Espamos
agudos, espasmos secretos, mulher reumática, a palavra do reumático não
tem valor”. A Catarina sabe que existe uma racionalidade e uma burocracia ao
redor do gerenciamento do sintoma: “Espamos crônicos, reumatismo, têm de
ser carimbados, registrados”. Tudo isso acontece em um contexto democráti-
co: “voto a voto”.
A droga anti-psicótica Haldol (Haloperidol) e Neozine (Levomepromazine),
o mais forte sedativo dos dois, também aparecem no dicionário de Catarina:
“A dança da ciência. A dor transmite a ciência doente, o estudo doen-
te. Cérebro, doença. Buscopan, Haldol, Neozine, Espírito invocado”.
As mercadorias da ciência psiquiátrica tornaram-se tão comuns como
o Buscopan (que pode ser comprado na farmácia sem receita médica, para
o alívio de cólicas estomacais) e tornaram-se parte do dia-a-dia domiciliar.
Como mostra a experiência da Catarina, eles não só agem sobre a doença
como também sobre a mente dela. Esses bens farmacêuticos – que às
vezes funcionam como rituais – convertem-se em espíritos imaginários em
vez de verdades materiais, concretas, que supostamente representam: mer-
cadorias, então, tornam-se sujeitos. Há uma ciência de fazer dinheiro na
moléstia de Catarina. Como transmissores desta ciência, seus sintomas
são típicos. “Preciso mudar o meu sangue com um elixir. Os remédios da
farmácia custam dinheiro. Viver é caro”, escreveu ela.
“A Catarina te contava o que acontecia no hospital?”, perguntei ao ex-
marido.
“Não, ela não se lembrava”.
Para Nilson, Catarina não tinha memória. Pega pela polícia, exami-
nada pelos psiquiatras, e submetida a todo tipo de medicação anti-psicótica,
e tendo se tornado o motivo de piada e deboche entre membros da família e
da vizinhança, a voz de Catarina acabou saindo da sintonia com a realidade
da família dela – não havia mais interesse em dar sentido ao que ela dizia.
Eu a questionei sobre as vozes que dizia estar ouvindo: ‘É verdade,” disse
ela. “Eram gritos... eu estava sempre triste... eu pensava que as vozes
vinham do cemitério, de todos aqueles corpos mortos”.
Um enredo complexo se desenrolou. Depois de conversar com todas
as partes, entendi que, dados alguns sinais físicos, o marido, os irmãos e
suas respectivas famílias acreditavam que Catarina se tornaria uma inválida
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como a própria mãe. Eles não tinham o menor interesse em participar da-
quele script genético. O corpo “defeituoso” de Catarina então, tornou-se uma
espécie de campo de batalha no qual decisões eram tomadas sobre a sua
sanidade e humanidade, a partir do entrelaçamento de relações familiares,
com vizinhos, médicos e órgãos de saúde pública. Despersonalizada e
supermedicada, algo ficou impregnado, quase que preso, na pele de Catarina
– os determinantes de vida dos quais ela não mais conseguia se desprender.
Já mais perto do desfecho dessa história, Nilson arrumou uma outra
mulher com a qual teve outro filho, e um juíz lhe concedeu a separação legal
de Catarina – ela nunca assinou os papéis do divórcio. O ex-marido também
acabou passando a guarda da filha mais jovem, Ana, ao patrão, Seu Urbano,
mas insiste em dizer que foi a Catarina que a “passou adiante”. O Nilson e
sua mãe ficaram com os outros dois filhos, que hoje ajudam no orçamento
doméstico. No auge do desespero da Catarina, o irmão e a cunhada a fize-
ram aceitar um negócio de eles se mudarem para a casa dela e ela ficar no
barraco deles, mais para o interior do bairro. Quanto aos irmãos, já que a
Catarina tinha sido passada para Nilson e eles dois “jogado fora” as terras da
família, não se sentiam na obrigação de cuidar dela. Esse é o tecido econô-
mico e sexista do seu pensamento moral, que ultrapassava o domínio dos
laços sangüíneos. Em mais de uma maneira, Catarina estava repetindo o
roteiro da doença da mãe: em ambos os casos, o desenvolvimento da doen-
ça estava entrelaçado com a separação conjugal, o abandono das mulheres
com a doença, e alegações de prejuízo sobre bens materiais.
Para a completa devastação de Catarina, no final de dezembro de
1994, o barraco dela pegou fogo, e ela foi hospitalizada de novo. Desta vez,
um tal de doutor Viola escreveu: “Eu sou contra sua admissão. A paciente
requer avaliação neurológica”. Mas segundo os arquivos médicos, ela foi
internada e tratada com medicamentos anti-psicóticos prescritos ao azar.
Quando recebeu alta, foi da casa de um irmão a outro. Em um dado momen-
to “eu dormi um mês inteiro”, lembra-se Catarina. Apoiados por um psiquia-
tra local, familiares e vizinhos estavam experimentando nela uma gama de
drogas em dosagens variadas. Como disse a mãe adotiva de sua filha Ana:
“O doutor explicou como lidar com ela. Disse para a gente dar uma dose e se
não melhorasse, simplesmente ir dobrando as doses”.
As famílias tornam-se psiquiatras caseiros, e os produtos farmacêuti-
cos constituem o registro do que é a verdade. Assim sendo, segundo as
palavras de Catarina, a gente entra num caminho “sem saída”. O abandono
de membros improdutivos e inúteis da família é mediado e legitimizado por
psicofármacos, tanto pelo valor de verdade científica que conferem ao que
está acontecendo, como também pelas alterações químicas que ocasio-
nam. Essas drogas acabam funcionando como tecnologias morais – na rea-
lidade fazem com que as perdas de laços sociais sejam irreversíveis. Neste
registro de morte social sancionado relacionalmente e burocraticamente, o
humano, o mental e o químico tornam-se cúmplices: seu entrelaçamento
expressa um senso comum que autoriza que alguns vivam e outros não.
“No fundo, a ética que a família implementa ao redor do sofrimento
mental garante a própria existência física deles”, disse-me a diretora do ser-
viço psicosocial pelo qual Catarina também passou no Vale dos Sinos.
Catarina tinha se transformado em “sucata” doméstica, que se montava e
desmontava, que ganhava formas novas e se deformava, através de interações
intricadas. Ela era o valor negativo, o componente desnecessário de uma
cultura urbana pobre de imigrantes. Finalmente, em 1996, depois de ouvir
falar no Vita através de um programa de rádio, os irmãos a deixaram lá.
Como falar no mal que foi feito e no bem que devemos fazer quando nos
deparamos com a enfermidade em condições tão precárias? Para o irmão Ar-
mando e outros membros da família, essa questão é abordada através de uma
pergunta retórica para a qual a resposta sempre é a mesma: “nada”. “É difícil,
fazer o quê?” No final, Catarina é pensada como se fora um tratamento fracas-
sado que, paradoxalmente, permite a vida, os sentimentos e os valores de
alguns a continuar em um violento campo econômico e social.
Eu não estou aqui dizendo que as desordens mentais são basica-
mente uma construção social, mas sim que elas ganham forma naquele
nexo mais pessoal que liga o sujeito à sua biologia e à recodificação técnica
e intersubjetiva do que vem a constituir normalidade no mundo local. É nesse
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sentido que os representantes do senso comum e da razão estão imbrica-
dos nas desordens mentais e é sua responsabilidade dar conta desta
imbricação no desdobramento das desordens.
Depositada no Vita para morrer, Catarina escreve que o seu desejo
perdera valor de troca humana:
“Catarina chora e quer viver. Desejo. Chorado, molhado, rezado. Sen-
timento de lágrimas, medroso, diabólico, traído. Desejo não tem valor. Dese-
jo é farmacêutico. Não é bom para o circo”.
A droga Akineton (biperideno) usada para controlar os efeitos colaterais
dos antipsicóticos está presente no novo nome que Catarina se deu no dicioná-
rio: CATKINE.
Quatorze anos depois de entrar no enlouquecedor mundo psiquiátrico,
Catarina finalmente foi vista pela doença que tinha. Em 2002, eu a ajudei a
acessar o serviço genético do Hospital de Clínicas. Testes molecularesrevela-
ram que Catarina sofria da Doença de Machado-Joseph, uma forma de ataxia
espino-cerebelar. 5 Fiquei extremamente feliz em ouvir os geneticistas dizendo
que Catarina “tinha consciência da sua condição, passado e presente, e que
não apresentava nenhuma patologia”. Dra. Laura Jardim é inflexível ao afirmar
que “não há doença mental, nem psicose, nem demência conectada à essa
desordem genética. Na doença Machado-Joseph, a inteligência do indivíduo se
mantém clara e cristalina”. Obviamente, biopsiquiatras poderiam argumentar
que Catarina pode ter tido dois processos biológicos concomitantes, mas para
mim a descoberta da Doença de Machado-Joseph ajudou a historicizar como
ou porque a condição dela se desenvolveu da forma acima descrita.
Uma vez diagnosticados, pacientes de Machado-Joseph sobrevivem em
média 15 a 20 anos, morrendo, na maioria dos casos, de pneumonia, presos a
cadeiras de rodas ou restritos ao leito. Uma coisa que os cientistas consegui-
ram estabelecer é que quanto mais séria a mutação genética, mais rapidamen-
te a doença começa a aparecer. Em 60% dos casos, a gravidade da mutação
genética explica a idade de início da doença. Mas em 40% dos casos, disse
Dra. Jardim, “há fatores desconhecidos que tanto postergam ou antecipam o
início da doença.” Entre irmãos, continuou ela, a idade em que a doença surge
é mais ou menos a mesma”. Como então explicar o fato de que no caso da
Catarina a doença já apareceu ao redor dos 20 anos, enquanto que no caso de
Armando, os primeiros indícios só apareceram perto dos 30 anos?
Os vários processos relacionais e médicos em que a biologia de
Catarina estava inserida e através dos quais “experimentavam” com ela apon-
tam para estes 40% ainda não conhecidos, eu arrisquei dizer a Dra. Jardim,
ou seja, a ciência social da mutação genética. A isso ela respondeu dizen-
do: “No pico do sofrimento dela, eles a estavam desmembrando... esta carne
morrendo foi só o que restou”.
No seu pensar e escrever, Catarina retrabalha essa literalidade.
“Eu não sou uma farmacêutica“, ela disse certa vez. “Eu não sei que
medicação cura uma doença, eu não sei dizer o nome do fármaco, mas o
nome da doença eu sei... Como dizê-la?”
Silêncio.
Ela então disse: “Minha é uma doença do tempo”.
“O que tu queres dizer com isso?”
“O tempo não tem cura”.
A subjetividade da Catarina é construída através do ato de furungar nos
labirintos da própria vida. Ao tentar comunicar, recordar e escrever ela preserva
algo único, sobrevive ao intolerável e não se submete ao impossível. Num lugar
onde o silêncio é a norma, Catarina luta para transmitir seu senso do mundo e
de si. No Vita então – para além do parentesco, do direito de viver e do tabu
contra matar – emerge a figura social de Catarina. A sua linguagem, beirando a
poesia, autopsia o que é humano hoje e fundamenta uma ética:
“A caneta entre os meus dedos é trabalho.
Estou condenado a morte.
Eu nunca condenei ninguém e tenho o poder.
Este é o pecado maior.
Uma sentença sem remédio.
O pecado menor é tentar separar o meu corpo do meu espírito.”
5 Jardim, LB., M.L. Pereira, I. Silveira, A. Ferro, J. Sequeiros, and R. Giuliani. “Machado-
Joseph Disease in South Brazil: Clinical and Molecular Characterizations of Kindreds.” Archives
of Neurology (2001) 104:224-231.
BIEHL, J. A vida cotidiana...
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SEÇÃO TEMÁTICA BETTS, J. Narrativa ou...
NARRATIVA OU VERBALIZAÇÃO?
Jaime Betts
“Quer se pretenda agente de cura, de formação ou de sondagem, a psi- canálise dispõe de apenas um meio: a fala do paciente. A evidência desse fato não justifica que se o negligencie. Ora, toda fala pede uma
resposta”1.
Qual a função da fala no campo da linguagem? A psicanálise dispõe
como meio apenas da fala do sujeito, seja ele paciente, colega ou simples-
mente alguém que se pronuncia. Toda fala pede uma resposta... Ora, o quê
pode fazer com que se perca isso de vista? É tão óbvio!
Continuando. “Não há fala sem resposta, mesmo que depare apenas
com o silêncio, desde que ela tenha um ouvinte”.Ter um ouvinte: outra
obviedade. Como podemos nos esquecer disso? Uma fala, um ouvinte, uma
resposta. É esse o cerne da função da fala na análise, diz Lacan. A fala
institui o ouvinte ao endereçar-lhe um apelo. O quê pode induzir o analista a
ignorar que é isso que se dá na função da fala?
Lacan se explica. Há dois apelos de resposta na fala do sujeito: há
um “apelo à verdade em seu princípio” e há um “apelo próprio do vazio, na
hiância ambígua de uma sedução tentada sobre o outro, através dos meios
em que o sujeito coloca sua complacência e em que irá engajar o monu-
mento de seu narcisismo” 2.
Eis um ponto fundamental. O apelo contido na fala do sujeito passa
primeiro pela demanda de uma resposta que confirme o monumento vazio (cas-
telo de cartas persistente, diga-se de passagem), erguido em nome do seu
narcisismo. Ou seja, primeiro vem a demanda de confirmação do narcisismo.
Só depois, à medida que o sujeito se convence de que não tem outro jeito,
pedra por pedra, as certezas vão dando lugar às verdades parciais do sujei-
to. Nesse sentido, Lacan afirma que “a arte do analista deve consistir em
suspender as certezas do sujeito, até que se consumam suas últimas mira-
gens”, uma vez que “a fala constitui a verdade”··3.
Qual verdade? Ora, a verdade que resulta da castração. Ou seja, de
que a verdade desejante é sempre parcial, de que o monumento fálico do
narcisismo é falho, de que o desejo é causado pelo objeto que falta, e que
ele, o indivíduo, não é o objeto fálico que garantiria a integridade do monu-
mento narcísico da mãe.
A questão colocada ao analista é conseguir distinguir onde no discur-
so do sujeito está o termo significativo do semi-dizer dessa verdade desejante.
Onde está a palavra cheia perdida no meio de tanta fala vazia que demanda
a confirmação narcísica do indivíduo como alguém digno de ser amado?
A função da fala vazia na análise expõe no limite a vã tentativa do
sujeito de falar de alguém que lhe é semelhante, mas que nunca se aliará à
assunção de seu desejo. Temos aqui um início de resposta às nossas per-
guntas. Quando a fala é tomada somente em sua vertente de fala vazia e
respondida enquanto tal, acaba levando à “depreciação crescente de que a
fala tem sido objeto na teoria e na técnica”.
Por quê? Por mais que o sujeito demande uma confirmação narcísica,
ele despreza qualquer fala que se comprometa com esse equívoco, em fun-
ção de que seu desejo se encontra alienado nesse monumento. O monu-
mento narcísico do qual falamos é o ego do sujeito, miragem que toma forma
na fase do espelho em que o sujeito se identifica com a imagem que lhe
antecipa uma unidade que a imaturidade de seu corpo ainda não organizou.
O ego, nesse sentido, “é frustração em sua essência” 4, uma vez que o
ego gira em torno dessa imagem especular que vem do outro. Não se trata aqui
de frustração de um desejo do sujeito, “mas de um objeto [o ego] em que seu¹ LACAN, Jacques. Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise (1953). In:
Escritos. Rio de Janeiro: Jorje Zahar Editor 1998, p.248.
No presente artigo, retomaremos vários pontos desenvolvidos por Lacan neste texto angu-
lar de sua produção, de modo a refletir sobre o tema narrativa e destino na clínica psicana-
lítica.
2 Op. cit., p. 249.
3 Op. cit., p. 253.
4 Op. cit., p. 251.
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SEÇÃO TEMÁTICA
desejo está alienado” 5. Por mais que o sujeito possa atingir sua semelhança
ideal, ao conseguir isso, simplesmente confirma o gozo do outro.
É a partir dessa inevitável frustração que se desencadeia a
agressividade e violência. Trata-se da agressividade do escravo que respon-
de com um desejo de morte à frustração de seu trabalho de construção
imaginária da imagem de si: todos percebemos de alguma forma que nos
reencontramos assim com a alienação fundamental do ego construído “como
um outro”, “para um outro”e que está predestinada a “ser furtada por um
outro” 6.
“O desejo, para ser satisfeito no homem, exige ser reconhecido, pelo
acordo da fala ou pela luta de prestígio, no símbolo ou no imaginário” 7. Vê-se
que a violência está intimamente ligada com a tentativa de fazer com que um
ato no real obtenha reconhecimento simbólico do outro, superando a aliena-
ção imaginária frustrante. Evidentemente o sujeito fracassa nesse caminho.
Encontramos aqui o ponto de articulação com os discursos que orga-
nizam a sociedade contemporânea e seus sintomas sociais: a surpreenden-
te facilidade com que se elimina a palavra do sujeito em nossa cultura. Dian-
te desses discursos que atravessam todos, sempre cabe questionar, como
fez Lacan no texto que estamos comentando, se a psicanálise e os psicana-
listas persistirão no desejo de dar lugar à mesma.
Segundo Roudinesco, “A era da individualidade substituiu a da subje-
tividade: dando a si mesmo a ilusão de uma liberdade irrestrita, de uma
independência sem desejo e de uma historicidade sem história, o homem de
hoje transformou-se no contrário de um sujeito” 8.
A autora argumenta que a hegemonia da era do indivíduo impôs uma
grave derrota ao sujeito, fazendo com que o sofrimento psíquico se manifes-
te atualmente sobretudo sob a forma da depressão9. A sociedade dos indiví-
duos enterra seus sujeitos. O sujeito do desejo grita como pode através de
seus sintomas tentando se fazer ouvir e, com isso, ser reconhecido por uma
palavra que o signifique, inserindo-o numa rede de significantes coletiva. Uma
vez que fracassa, seu sintoma predominante é a depressão.
O sujeito é derrotado nas duas pontas da lógica significante que o
produz. Em primeiro lugar, a sociedade que produz os indivíduos se caracte-
riza justamente pela facilidade com que elimina a palavra, destituindo-a de
qualquer valor nas trocas inter-humanas. Assim, a condição humana se vê
privada do seu meio de humanização: a dignidade ética da palavra. O sujeito
é asfixiado num ambiente rarefeito em que os significantes que poderiam
representá-lo para outros significantes são sistematicamente eliminados.
Como conseqüência, na outra ponta, o sujeito se defronta com dificuldades
para encontrar uma escuta que responda com palavras de reconhecimento
que signifiquem seu desejar para o outro. É verdade que o indivíduo descrê
no valor da palavra e tende a procurar soluções que o poupem da angústia de
aproximar-se do seu desejar tão cuidadosamente excluído do cenário con-
temporâneo.
Na tentativa desesperada de superar o vazio de seu desejo agonizan-
te, o sujeito vê-se à beira de um vácuo provocado pela exclusão dos
significantes do seu desejar que ameaça tragá-lo de vez. E ele procura
tamponar a voracidade desse vácuo com toda sorte de objetos oferecidos
pela sociedade do consumo, incluindo-se aí a forçagem do convite ao consu-
mo de drogas - legais ou ilegais, prescritas ou não - como solução para o
crescente mal-estar de viver.
No fundamento da derrota do sujeito estão os dois discursos que or-
ganizam a sociedade do consumo10, ou a sociedade dos indivíduos11, ou
ainda a sociedade do espetáculo12 narcísico. São três formas de caracterizar
o mesmo mal – o contemporâneo - segundo o discurso desde cuja ótica se
opte por enfocar a questão. Os indivíduos das sociedades contemporâneas
são necessariamente seres frustrados. Poderíamos ainda re-nomear a soci-
edade contemporânea de sociedade dos egos frustrados.
5 Op. cit., p. 251.
6 Op. cit., p. 251.
7 Op. cit., p. 281.
8 ROUDINESCO, Elisabeth. Por quê a Psicanálise? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2000.
p. 14.
9 Op. cit.
10 BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade de Consumo. Lisboa: Edicões 70. 2003.
11 ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1994.
12 DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto. 1997.
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SEÇÃO TEMÁTICA
Na sociedade de consumo, os efeitos da mercantilização dos laços
humanos por efeito do discurso do capitalista se fazem notar pelo fato do
consumo surgir como “modo ativo de relação (não só com os objetos, mas
ainda com a coletividade e o mundo), como modo de atividade sistemática e
de resposta global, que serve de base a todo o nosso sistema cultural”. Isso
faz com que o conjunto das relações sociais do homem já não seja tanto o
laço com seus semelhantes quanto a recepção e a manipulação de bens e
mensagens, afirma Baudrillard13. Os indivíduos se afirmam segundo seu lu-
gar no espetáculo das aparências, demonstrando sua independência e auto-
nomia segundo as marcas dos produtos que escolhem consumir!
Atualmente há vários comerciais de automóveis que evidenciam esse
ponto. São direcionados ao público consumidor feminino, que é hoje quem
decide a maior parte das compras. A mensagem é de que para as mulheres
consumidoras independentes, o homem não tem o menor interesse, inclusi-
ve atrapalhando a foto que quer tirar do carro, seu objeto/sonho de consumo.
O que interessa são os objetos; as pessoas, os homens, atrapalham: me-
lhor se ficam de fora da foto.
Por outro lado, está o discurso tecnológico-científico. Cada vez mais,
o discurso da ciência se faz hegemônico, determinando os meios do gozo
com que fazemos sintoma. Aqui o passado é obsoleto, a historicidade é
sem história, e a liberdade é prometida através da eliminação dessa falta
incômoda chamada desejo. Nesse discurso somos cada vez mais cobaias
de nossa própria invenção, somos transformados em puros objetos, pois a
exclusão da palavra do sujeito está no fundamento do mesmo.
O discurso da ciência tem por ideal ser uma linguagem sem fala14. Por
que uma linguagem sem fala? Talvez porque a propriedade fundamental da
fala seja o fato de singularizar o lugar de onde se fala. O lugar de enunciação
é sempre singular. Ninguém fala do mesmo lugar que um outro. Conforme diz
o ditado popular, somente cada um pode dizer onde o sapato aperta. Essa
singularidade do lugar de enunciação é considerada um viés para a pretensa
objetividade e universalidade visadas pelo discurso científico; logo, deve ser
eliminada.
Retornemos à questão de como responder ao apelo contido na fala do
sujeito sem reforçar a vertente da fala vazia e frustrante do narcisismo.
No outro extremo da experiência analítica, temos a realização da fala
plena. Nesta, segundo Lacan, o sujeito mais que simplesmente narra o acon-
tecimento, ele o verbaliza, no sentido de que ele “o fez passar para o verbo,
(...) para o epos15 onde relaciona com o momento presente as origens de sua
pessoa”16. Portanto, “A análise só pode ter por meta o advento de uma fala
verdadeira e a realização, pelo sujeito, de sua história em sua relação com
um futuro”17.
É nos momentos de verbalização que uma análise permite uma
reordenação da história do sujeito, em que a compulsão à repetição dá lugar
à rememoração. A narrativa é, nesse sentido, resistencial, pois o “sujeito vai
muito além do que o indivíduo experimenta ‘subjetivamente’: vai exatamente
tão longe quanto a verdade que ele pode atingir”18.
Assim, “o efeito de uma fala plena é reordenar as contingências pas-
sadas dando-lhes o sentido das necessidades por vir, tais como as constitui
a escassa liberdade pela qual o sujeito as faz presentes”19.
“Isolado entre aspas no fio da narrativa”20. do paciente, podemos tes-
temunhar a realização da fala plena enquanto o “nascimento da verdade na
fala e, através disso, esbarramos na realidade do que não é nem verdadeiro
nem falso”21.
O fio da narrativa é tecido pelo ego, pelo indivíduo que se considera
autônomo, senhor das palavras, da verdade o do destino. Entretanto, é nos
13 Op. cit., p. 11-15.
14 LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 2. O eu na teoria de Freud e na técnica da psicaná-
lise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1985.
15 Epos: segundo o dicionário Aurélio, a palavra vem do grego, significando palavra, fala,
canção, causo, promessa, dito, mensagem.
16 Op. cit., p. 256.17 Op. cit., p. 303.
18 Op. cit., p. 266.
19 Op. cit., p. 257.
20 Op. cit., p. 256.
21 Op. cit., p. 257.
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momentos de tropeço, dos lapsus, das formações do inconsciente, que po-
demos reconhecer o autor. “Todo ato falho é um discurso bem sucedido”.22 O
momento de autoria é o da colocação em ato do inconsciente. O sujeito se
faz verbo e, assim, a verdade pode ser resgatada, uma vez que já está escri-
ta em outro lugar, como no corpo, nas lembranças da infância, na evolução
semântica, nas tradições, lendas, nos vestígios das distorções exigidas na
re-inserção do capítulo censurado na narrativa. Lacan define aqui o inconsci-
ente como sendo “o capítulo de minha história que é marcado por um branco
ou ocupado por uma mentira: é o capítulo censurado”23.
Ou seja, o que interessa no fio da narrativa do sujeito é o momento da
fala onde o desejo se faz verbo, relacionando o momento presente de sua
vida com as suas origens. Dito de outra forma, o que nos interessa na narra-
tiva é o momento em que o sujeito se faz verbo. “É justamente essa assunção
de sua história pelo sujeito, no que ela é constituída pela fala endereçada ao
outro, que serve de fundamento ao novo método a que Freud deu o nome de
psicanálise”24.
Quais são as relações entre a fala e a escrita na psicanálise? A histó-
ria do sujeito, que se reordena através da fala endereçada ao interlocutor, na
medida em que haja escuta, se reescreve. É possível rememorar a história
do sujeito e resgatar sua verdade porque ela está escrita em outro lugar,
como mencionado acima. Mas é preciso que seja falada para que o que está
escrito possa se reescrever. A questão nos remete à instância da letra no
inconsciente. A letra tem uma borda simbólica e outra real. É a realização
simbólica da letra na fala plena o que faz com que a letra faça instância e se
reescreva no real do corpo. Essa mudança operada pelo discurso do analista
resulta para o sujeito na produção de um novo S1 ou de um S1 em nova
posição, ou seja, em novo lugar de enunciação de seu desejar.
Parafraseando Freud, lá onde o narrador ergue o monumento ao
narcisismo, o autor deve advir.
22 Op. cit., p. 269.
23 Op. cit., p. 260.
24 Op. cit., p. 258.
O ANALISTA-TRADUTOR
Juliana de Miranda e Castro1
Propomos uma reflexão sobre a prática do analista, o seu fazer, enquanto uma tradução. Como nos diz Freud, trata-se, no trabalho analítico, da tradução do inconsciente: “O conhecemos [o inconsciente]
apenas como consciente, depois que sofreu uma transposição ou tradução
ao consciente.” (FREUD, 1915, p.161). O analista é um tradutor e, como tal,
ele está confrontado com a dimensão do impossível e da perda, digamos, do
impossível de tudo traduzir, da correspondência perfeita, do acesso à “pura
língua”.
A tradução está na passagem de uma língua a outra, no íntimo relaci-
onamento entre elas. Benjamin (2001) teoriza sobre a “pura língua”, a qual
seria inatingível pelas línguas isoladamente. Pensamos esse acesso como
pontual e parcial, na íntima relação entre as línguas, que a tradução tende a
expressar. Ela não é capaz de revelar ou instituir essa relação oculta das
línguas entre si, mas pode atualizá-la de modo germinal ou intensivo. Isso
porque as línguas são a priori afins naquilo que querem dizer e não estranhas
umas às outras. Ou seja, trata-se de algo não alcançável separadamente por
nenhuma delas, “mas somente na totalidade de suas intenções reciproca-
mente complementares: na pura língua. Pois enquanto todos os elementos
isolados – as palavras, frases, nexos sintáticos – das línguas estrangeiras
se excluem, essas línguas se complementam em suas intenções mesmas”
(BENJAMIN, 2001, p.199). Podemos pensar a pura língua na dimensão do
intransponível e do inacessível.
Assim, o que acompanha o trabalho do tradutor, com o que ele se
confronta em sua tarefa, é o tema da integração das várias línguas em uma
única e verdadeira, na qual as línguas, completas e reconciliadas, coincidiri-
am entre si. Nessa língua, se ela existisse – posto que não é alcançável, ela
1 Membro do Tempo Freudiano Associação Psicanalítica, Rio de Janeiro, RJ. Doutoranda
em Teoria Psicanalítica, UFRJ.
CASTRO, J. M. O analista-tradutor
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SEÇÃO TEMÁTICA
é impossível –, frases isoladas jamais se entenderiam e portanto dependeri-
am da tradução. Nessa verdadeira e pura língua “estão guardados sem ten-
são e mesmo silenciosamente os últimos segredos que o pensamento se
esforça por prosseguir” (Ibid. , p.205). É essa pura língua que está intensa-
mente oculta nas traduções.
Nesse ponto, em que encontramos a pura língua como o que opera
oculto, vamos fazer uma aproximação com a enunciação, que deixa traços
no enunciado. Podemos pensar a enunciação do lado da língua pura e tam-
bém o sujeito, sujeito da enunciação, como próximo do narrador, nos termos
em que coloca Benjamin. Nesse sentido, vale lembrar Calvino, quando se
refere a Leskov: “Como sempre ocorre em Leskov, é a ‘voz’ do narrador que
faz o conto; e este é um desses casos em que essa ‘voz’ consegue alcan-
çar-nos ainda que por meio de uma tradução” (CALVINO, 2004, p.333). Ou
seja, a voz do texto é a do narrador, do sujeito da enunciação, e é esta voz
que se trata de transmitir na tradução. Em sua tarefa, o tradutor se apaga.
Benjamin fala do elemento não-comunicável como o que resta: “Em to-
das as línguas e em suas construções resta, para além do elemento comuni-
cável, um elemento não comunicável” (BENJAMIN, 2001, p.211). O autor afirma
que quanto mais uma obra é comunicação, menos a tradução pode se benefi-
ciar dela, até ser inviabilizada pela predominância total do sentido. E quanto
maior sua poética, mais ela permanece traduzível, mesmo no contato mais
fugidio com seu sentido. Assim, na tradução, não se trata de comunicação e
sentido mas, voltamos a afirmar, de enunciação. Pensamos que é esse ele-
mento não-comunicável que opera, esse resto que opera oculto.
Lo Bianco (2005), a partir de Freud (1939), traz à tona a diferença entre
a tradição herdada – próxima da enunciação – e a tradição comunicada. Trata-
se, na primeira, de algo transmitido a despeito das transcrições. Como o narrador
de Leskov, que aparece apesar das traduções. O herdado, ao contrário do
comunicado, é de difícil apreensão. Pensamos que o não comunicável, do qual
nos fala Benjamin, é marcado pela descontinuidade, pela ruptura, pela lacuna,
ele opera oculto, é da ordem do incomunicável, do enigma, que causa o sujeito.
Essa ruptura é o que permite um novo entendimento.
Justamente por não se tratar de comunicação é que o texto psicana-
lítico permanece vivo. “A cada vez que esses traços são reanimados, são
atualizados, a cada nova tentativa de retomá-los, de conquistá-los, encontra-
mos a transmissão em operação” (LO BIANCO, 2005). Encontramos nesses
traços o enigma herdado. Lo Bianco lembra que Freud dá às marcas o valor
de fóssil. Vem à idéia a colocação de Benjamin a respeito de Heródoto: “Seu
relato é dos mais secos” (BENJAMIN, 1996, p.204). É por isso que, até hoje,
causa espanto e reflexão. Benjamin marca uma semelhança entre o texto
seco de Heródoto e as sementes de trigo que ficaram fechadas por milhares
de anos nas pirâmides e ainda conservam sua “força germinativa”. O que
está em jogo na tradução é justamente transmitir a força germinativa do
texto, a enunciação, que está nas lacunas, no enigma. A secura do texto é
o que o mantém vivo, o que o impulsiona. É ao que o analista-tradutor tem
que estar com os ouvidos bem atentos para ler, na fala do paciente, nas
linhas do texto. Na clínica, o analista não pode se perder na profusão de
sentido da fala do paciente, para poder escutar o texto, enxuto. E se trata,
na tradução, de buscar não apagar ou encobrir essa marca para emudecer o
texto. Pois a secura, o silêncio, a lacuna causam, operam. O outro lado

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