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RESENHA I – “DR. STRANGELOVE” Arthur Bernardes de Oliveira Há quase sessenta anos atrás, em 1964, estreava “Dr. Strangelove: Or How I Learned to Stop Worrying And Love the Bomb”, uma sátira político-militar seminal e um filme de humor ácido. Baseado no romance Red Alert, de Peter George, o filme nos dá muitos diálogos humorísticos e satíricos como, por exemplo, de Peter Sellers como presidente dos Estados Unidos: “Cavalheiros, vocês não podem lutar aqui. Esta é a Sala de Guerra.” O diretor/produtor Stanley Kubrick produziu uma obra que não apenas entretia os espectadores, mas acabou sendo preditiva sobre as políticas, estratégias e resultados nucleares da Guerra Fria. Na época da produção do filme, com a União Soviética (URSS) e os Estados Unidos (EUA) presos em um impasse na corrida armamentista, tal perspectiva dificilmente seria comédia, mas Kubrick criou um roteiro que cumpriu as promessas do conceito apocalíptico. O filme de Kubrick revela que "Tudo" é apenas um leve exagero. Primeiro, “Dr. Strangelove” pode ser utilizado como um trampolim para ensinar sobre o significado de vários temas valiosos nas tomadas de decisão e negociação como: as sutilezas da dissuasão, o dilema da segurança, corridas armamentistas, percepções errôneas, destruição mutuamente assegurada, preocupações relativas versus ganhos absolutos e transparência. Em segundo lugar, ensina sobre a história da Guerra Fria colocando esses conceitos em seu contexto histórico. Em terceiro lugar, mostra o quão próxima a obra se assemelha a eventos e políticas reais. A obra cinematográfica nos faz rir do que era e é terrivelmente próximo da realidade. "Dr. Strangelove” é uma comédia sarcástica sobre um comandante de uma Base da Força Aérea dos EUA, General Jack D. Ripper, que desvia seus bombardeiros B-52 do alerta aéreo para um ataque à União Soviética com armas nucleares. Isso ameaça desencadear um dispositivo apocalíptico que põe em perigo toda a vida na superfície da Terra. A arma do Juízo Final não é realista. Mas, se, por outro lado, você pensar nisso como análogo à destruição mutuamente assegurada (a destruição quase total dos EUA e da URSS), então quase tudo o que acontece no filme poderia realmente ter acontecido. É uma realidade assustadora em que os EUA e a URSS estavam constantemente prontos para destruir um ao outro em uma hora. Improvável, sim. Possível, também sim. Muitos daqueles que assistem “Dr. Strangelove” hoje podem não ter alcançado a consciência política durante a Guerra Fria. A paranóia exibida por Turgidson e toda a postura de defesa vista no filme não chega a ser exagero. Por exemplo, o senador McCarthy realizou audiências de caça às bruxas para denunciar infiltrados “comunistas” no governo, em Hollywood, etc. Por outro lado, a URSS era de fato muitas vezes mais perversa do que seus oponentes sonhavam (matando seus próprios cidadãos, degradando o meio ambiente, promovendo um enorme programa de guerra biológica, etc). As pessoas costumam pensar na década de 1950 como uma época de pax americana, mas vale lembrar que também foi uma época em que as crianças se escondiam debaixo das carteiras em treinamentos para uma possível resposta a um ataque nuclear. Há duas coisas perversas e tristes que este filme destaca. O primeiro é o impasse nuclear, em que os EUA e a URSS podem destruir um ao outro. A segunda é a gama de procedimentos e estratégias envolvidos na manutenção desse impasse. Como chegamos a uma situação em que havia bombardeiros constantemente no ar, já a caminho de seus alvos? Por que comandantes de bases individuais podem ter autoridade para usar armas nucleares a seu próprio critério? Por que um dispositivo apocalíptico pode parecer um passo lógico? O filme retrata bem o “dilema de segurança” que os Estados enfrentam. Quando os Estados desconfiam profundamente uns dos outros, a natureza de soma zero de sua competição é ainda mais perniciosa. Se cada estado não pode confiar no outro para cumprir os acordos, então nenhum acordo é possível para tentar desestimular suas corridas armamentistas ou tensões. As suspeitas e o dilema da segurança levam os Estados a se preocuparem com sua posição relativa em relação aos outros. Quando as preocupações com a posição relativa são altas, as chances de cooperação diminuem novamente porque a cooperação, por definição, produz resultados de soma positiva. Assim, Estados suspeitos que enfrentam graves dilemas de segurança e preocupados com ganhos relativos são exatamente como os EUA e os soviéticos, conforme retratado no Dr. Strangelove quando: o Embaixador De Sadeski explica porque os soviéticos construíram o dispositivo apocalíptico: "Existem aqueles de nós que lutaram contra isso, mas no final não conseguimos arcar com as despesas envolvidas na corrida armamentista, na corrida espacial e na corrida pela paz ... E, ao mesmo tempo, nosso povo reclamava por mais meias de náilon e máquinas de lavar. Nosso esquema apocalíptico nos custou apenas uma pequena fração do que havíamos gasto em defesa em um único ano. Mas o fator decisivo foi quando soubemos que seu país estava trabalhando em linhas semelhantes, e temíamos uma brecha apocalíptica" Pelo lado americano, o general Buck Turgidson diz: "Puxa, eu gostaria que tivéssemos uma daquelas máquinas do Juízo Final [...] Quero dizer, devemos estar cada vez mais alertas para evitar que eles tomem conta de outra caverna, a fim de procriar mais prodigiosamente do que nós, assim, nocauteando-nos em números superiores quando emergirmos!" As preocupações com ganhos relativos e a natureza de soma zero impediram o controle de armas e a cooperação entre as duas potências. Turgidson resume as preocupações relativas aos ganhos. Por exemplo, ele não vê valor na transparência proporcionada pela presença do embaixador De Sadeski na sala de guerra e sempre calcula as coisas em uma perspectiva de soma zero ou ganhos relativos em relação à URSS. Qualquer vantagem para eles é ruim para nós, e vice-versa. Mesmo depois de 90 anos em uma caverna (esconderijo nuclear), depois que bilhões de pessoas foram mortas, ainda somos “nós contra eles”. O Dr. Strangelove define dissuasão quando diz: "Dissuasão é a arte de produzir na mente do inimigo... o medo de atacar" (55:09). Dissuasão é uma arte, não uma ciência. Isso ocorre porque a dissuasão requer medo. Como e se alguém pode produzir medo depende não apenas de suas próprias capacidades e determinação, mas também dos valores e do estado emocional do adversário (portanto, da mente). Influenciar a mente dos outros é uma arte, em parte porque determinar o que os outros valorizam e sentem não é uma ciência. O Dr. Strangelove poderia ter acrescentado que a dissuasão funciona quando o medo de atacar é suficiente para impedir o ataque. No entanto, a dissuasão só funciona se as ameaças que deveriam causar medo forem comunicadas ao adversário. Se nenhuma ameaça é feita, nenhum medo é criado. Como você assume um compromisso irrevogável? Pode ser através da assinatura de um contrato ou… no caso do filme, uma Máquina do Juízo Final! Porém, um adendo, é preciso que o outro jogador conheça o pré-compromisso. Este ponto é feito pelo Dr. Strangelove quando ele diz: "Sim, mas... todo o objetivo da máquina do Juízo Final... está perdido... se você mantiver isso em segredo! Por que você não contou ao mundo, Eh?" Olhando para a questão do comprometimento irrevogável, que às vezes pode ser "racional ser irracional", especialmente quando a dissuasão exige punição severa e forte credibilidade de que alguém está disposto a punir. A máquina serve a esse propósito, mas deixa pouco espaço para erros. “Dr. Strangelove” termina com uma montagem aparentemente interminável de bombas nucleares detonando em todo o mundo, enquanto a música a “We’ll Meet Again” toca. O filme então escurece silenciosamente, com o mais breve dos títulos finais. Com 94 minutos, o filme se move rapidamente, sem excesso de material narrativo e pouco cansativo. “Dr.Strangelove” é filmado em preto e branco propositalmente para dar um cenário mais sombrio e sério. Embora a ameaça de destruição mútua assegurada pareça ter diminuído desde o colapso da URSS, a perspectiva de uma guerra nuclear em nível mundial continua inabalável, especialmente com a criação de novos dispositivos em que as chances de que algo “dê errado” é grande, principalmente, com líderes cada vez mais populistas.