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VIDA NOVA vontade DIVINA e escolha HUMANA Liberdade, contingência e necessidade no pensamento reformado do início da Idade Moderna Richard A. Muller Este recente estudo do respeitado professor Richard Muller lança nova luz sobre a discussão acerca de como os reformadores e seus sucessores analisaram e conciliaram os conceitos da soberania divina e da liberdade humana. Muller — um dos maiores especialistas na teologia desenvolvida nos períodos da Reforma e pós-Reforma — argumenta que a ortodoxia reformada tradicional (a qual, segundo o autor, foi influenciada pela filosofia e teologia ocidental) defendeu uma teoria robusta que levava em conta uma vontade divina onipotente, bem como a livre escolha humana. Vontade divina e escolha humana fornece uma perspectiva histórica e sistematizada sobre um dos tópicos mais intricados da teologia protestante e certamente enriquecerá o debate a esse respeito. Poucos estudiosos detêm o conhecimento de Richard Muller sobre a teologia moderna e também sua capacidade de analisar com precisão o ensino reformado sobre a questão da causalidade divina e humana. A amplitude, a profundidade e a autoridade da compreensão de Muller a respeito da ortodoxia reformada apresentadas nesse livro são incomparáveis. Assim, tenho certeza de que muito em breve será leitura obrigatória para todos os estudantes da teologia protestante. B Yale Divinity School A forma de Muller tratar a vontade de Deus e nosso livre-arbítrio é exemplar. De forma clara, o autor esmiuça as posições defendidas pelos teólogos reformados medievais e do início da Idade Moderna, em vez de manipulá-las em torno de uma posição ou conclusão preferida. Muller tem amplo domínio das categorias filosóficas clássicas e contemporâneas e relaciona — sem incorrer em anacronismos — posições históricas com os atuais debates filosóficos e teológicos. J ohn Coor Calvin Theological Seminary VIDA NOVA vidanova.com.br Q.A/idanovaedicoes 0@ edicoesvidanova ©@edicoesvidanova Votitade divina e escolha humana exibe todas as características que costumam estar presentes em uma obra de Richard Muller, Por meio de um convincente argumento histórico e de um profundo conhecimento de fontes da Antiguidade, da patrística, da Idade Média e do início da Idade Moderna, Muller demonstra que as categorias contemporâneas do compatibilismo e do libertarismo deixam de captar as ricas e diversificadas abordagens do pensamento reformado do início da Idade Moderna acerca de questões como liberdade humana, necessidade e contingência, O resultado é uma nova perspectiva a respeito do ensino ortodoxo reformado sobre Deus e a providência, com suas possibilidades para uma teologia construtiva. BiÉl Reformed Theologícal Seminary, coautor de Pai, Filho e Espírito Santo (Vida Nova) Finalmente temos à disposição um estudo histórico abrangente da compreensão reformada acerca da vontade divina e da livre escolha humana em sua formulação pré-Jonathan Edwards. A análise de Muller primeiro apresenta aos leitores o estado atual da questão, com um foco especial na contingência sincrônica e em suas diversas interpretações. Muller destrincha quão cedo os reformadores e seus herdeiros, os ortodoxos reformados, trataram de questões como necessidade, contingência e liberdade em relação à vontade divina. Ao analisar o pensamento dos reformadores mais proeminentes (como Calvino, Zanchi, Júnio, Gomaro, Twisse, Owen, Voécio e Turretini), o autor mostra como esses assuntos foram esquecidos ou mal compreendidos nas discussões modernas. A obra de Muller tem o êxito de mostrar como a ortodoxia reformada tece uma vestimenta teológica que não cabe em categorias e nomenclaturas contemporâneas como incompatibilismo (ou libertarismo) e compatibilismo, isto é, o indeterminismo em oposição ao determinismo. Ao fazer isso, Vontade divina e escolha humana está destinado a fomentar o debate teológico nessa área pelas próximas décadas. Míd-America Reformed Seminary (PhD, Duke University) é professor emérito da cátedra P. J. Zondervan de Teologia Histórica no Calvin Theological Seminary e membro do Junius Institute for Digital Reformation Research, Muller também é autor de diversos livros, entre eles Calvin and the Reformed tradition, D ictionary ofLatin and Greek theological terms, The unaccom odated Calvin, After Calvin e Post-Reformation Reformed dogmatics. ------------------------- ---------------- -- + ------------------------------------- — Não existe área mais contestada no estudo da ortodoxia reformada do que aquela que abarca questões como a presciência divina, nosso livre-arbítrio e a natureza da contingência. São assuntos complexos que levantam múltiplas questões de interpretação e recepção, entre elas: de que modo Aristóteles foi manejado por escolásticos medievais como Tomás de Aquino e João Duns Escoto, e como estes foram por sua vez manejados pelos reformados. Quem é novo nesses estudos pode facilmente se sentir sobrecarregado pelo grande volume de obras primárias e pela confusa sutileza dos argumentos. Por isso, Vontade divina e escolha humana é uma contribuição bem-vinda ao corpo de obras sobre o assunto, visto que oferece ao neófito e ao acadêmico uma excelente descrição das várias questões envolvidas, além de uma crítica bem arrazoada do debate contemporâneo. Westminster Theological Seminary vontade DIVINA e escolha HUMANA Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 Muller, Richard A. (Richard Alfred), 1948- Vontade Divina e escolha humana : liberdade, contingência e necessidade no pensamento reformado do início da Idade Moderna / Richard A. Muller ; tradução de Mareio Loureiro Redondo. -- São Paulo : Vida Nova, 2019. 400 p. ISBN 978-85-275-0927-5 Título original: Divine will and human choice: freedom, contingency, and necessity in early modern reformed thought 1. Livre arbítrio e determinismo - Aspectos religiosos 2. Cristianismo - História das doutrinas 3. Igrejas reformadas I. Título II. Redondo, Mareio Loureiro 19-1039 CDD 233.70882842 índices para catálogo sistemático 1. Livre arbítrio e determinismo - Aspectos religiosos VID A MOVA vontade DIVINA e escolha HUMANA Liberdade, contingência e necessidade no pensamento reformado do in ício da Idade M oderna Tradução M areio Loureiro Redondo Richard A. Muller ^2017, de Richard A . Muller Título do original: Divine voill and human choice:freedom, contingency, and necessity in early modern Reformei thought, edição publicada por B a k e r A c a d e m ic , divisão do B a k e r P u b l is h in g G ro up (Grand Rapids, M ichigan, EU A ). Todos os direitos em língua portuguesa reservados por S o c ie d a d e R el ig io sa E d iç õ es Vid a N ova Rua Antônio Carlos Tacconi, 63, São Paulo, SP, 04810-020 vidanova.com.br | vidanova@vidanova.com.br 1.* edição: 2019 Proibida a reprodução por quaisquer meios, salvo em citações breves, com indicação da fonte. Impresso no Brasil / Printed in Brazil D ir eç ã o ex e c u tiv a Kenneth Lee Davis G e r ê n c ia e d it o r ia l Fabiano Silveira Medeiros E d içã o d e t e x t o Leandro Bachega Aldo Menezes P repara çã o d e t e x t o Lucas de M oraes Torres M areia B. Medeiros R ev isã o d e provas Abner Arrais Jonathan Silveira G e r ê n c ia d e pro d ução Sérgio Siqueira M oura D ia gra m a çã o O M Designers Gráficos C apa Wesley Mendonça mailto:vidanova@vidanova.com.br Para E t h a n , M a rlea e A n n e l ie se . SUMÁRIO Prefácio............................................................................................................... 11 PRIMEIRA PARTE LIBERDADE E NECESSIDADE NO PENSAMENTO REFORMADO: O DEBATE CONTEMPORÂNEO Introdução: o presente estado da questão.......................................................... 21 1 O pensamento reformado sobre liberdade, contingência e necessidade: preparando o palcopara o debate..................................... 21 2 Liberdade, necessidade e escolástica protestante: um problema com múltiplas camadas......................................................35 3 Contingência sincrônica: questões historiográficas sobre debate, diálogo e acolhimento na Idade Média e no início da Idade M oderna.................................................................45 1. Pensamento reformado e contingência sincrônica....................................... 53 1.1 O argumento a favor da contingência sincrônica.................................. 53 1.2 A pergunta lógica: acaso a contingência sincrônica resolve a questão da vontade divina e da liberdade humana?............................62 1.3 Questões históricas e historiográficas......................................................74 A. Entendimentos alternativos sobre a história desde Aristóteles até a Idade Média............................................................. 74 B. A questão do escotismo e o pensamento reformado no início da Idade Moderna................................................................81 SEGUNDA PARTE ANTECEDENTES FILOSÓFICOS E TEOLÓGICOS: ARISTÓTELES, TOMÁS DE AQUINO E DUNS ESCOTO 2. Aristóteles e Tomás de Aquino sobre necessidade e contingência............ 95 2.1 Aristóteles, Aquino e o debate sobre contingência sincrônica........... 95 8 VONTADE DIVINA E ESCOLHA HUMANA A. Introdução: as questões históricas — transmissão e acolhimento..95 B. Aristóteles e Aquino no debate atual................................................ 96 2.2 A questão da contingência e a implicação da possibilidade em Aristóteles......................................... 99 2.3 Os antecedentes medievais: Aristóteles, Agostinho, Boécio e o problema da plenitude............... 119 A. Agostinho e o dilema ciceroniano...................................................119 B. Boécio e o acolhimento medieval de Aristóteles.......................... 122 2.4 Aquino e a interpretação medieval de Aristóteles...............................128 2.5 O pensamento de Tomás de Aquino sobre o poder divino, a necessidade, a possibilidade, a contingência e a liberdade..................139 A. Aquino e o poder de Deus: absoluto, ordenado e totalmente livre..............................................................139 B. Necessidade, possibilidade, contingência e liberdade....................148 3. Duns Escoto e perspectivas medievais tardias sobre a liberdade............ 163 3.1 Duns Escoto na avaliação de estudos recentes.................................... 163 3.2 A distinção entre poten tia absoluta e poten tia ordinata e a questão da contingência..................................... 169 3.3 Contingência sincrônica, potência simultânea e livre escolha........... 172 3.4 A alternativa escotista em seu arcabouço metafísico e ontológico......... 190 3.5 Penúltimas reflexões................................................................................ 201 TERCEIRA PARTE PERSPECTIVAS REFORMADAS NO INÍCIO DA IDADE MODERNA: CONTINGÊNCIA, NECESSIDADE E LIBERDADE NA ORDEM REAL DO SER 4. Necessidade, contingência e liberdade: entendimentos reform ados......213 4.1 Liberdade, necessidade e conhecimento divino no pensamento de Calvino e no início da tradição reformada............... 213 A. O presente debate...............................................................................213 B. O pensamento de Calvino sobre necessidade, contingência e liberdade........................................................................................... 217 C. A liberdade e a necessidade no pensamento de Vermigli............. 227 D. O pensamento de Zanchi e Ursino sobre contingência e liberdade.................................................................... 232 4.2 O Deus eterno e a ordem temporal contingente: abordagens reformadas ortodoxas do problema.................................. 239 SUMÁRIO 9 A. Idéias reformadas do início da Idade Moderna: a formulação básica.......................................................................... 239 B. O desenvolvimento de concepções reformadas de eternidade.....244 5. Abordagens escolásticas sobre necessidade, contingência e liberdade: perspectivas reformadas do inicio da Idade Moderna............................249 5.1 Questões preliminares.............................................................................253 5.2 Júnio, Gomaro e o início do refinamento escolástico ortodoxo..........253 A. As controvérsias de Júnio sobre a livre escolha..............................253 B. O pensamento de Gomaro sobre liberdade e necessidade........... 260 5.3 William Twisse: contingência, liberdade e acolhimento da tradição escolástica.......................................................265 5.4 O pensamento de John Owen sobre contingência e liberdade...........278 5.5 O pensamento de Voécio sobre livre-arbítrio, escolha e necessidade.......................................................285 5.6 O pensamento de Francisco Turretini sobre necessidade, contingência e liberdade humana....................................292 6. Poder divino, possibilidade e atualidade..................................................... 305 6.1. O fundamento da possibilidade: entendimentos reformados.............305 A. Significados de “possível” e “possibilidade”...................................... 305 B. O fundamento da possibilidade........................................................311 6.2 Poder absoluto e ordenado no pensamento reformado do início da Idade Moderna......................... 324 A. O problema historiográfico.............................................................. 324 B. Calvino e a potentia absoluta.............................................................327 C. Ortodoxia reformada e os dois poderes de D eus...........................331 7. Concorrência divina e contingência............................................................. 335 7.1 Abordagens a respeito da concorrência: questões do início da Idade Moderna e o debate acadêmico contemporâneo.................335 A. O debate contemporâneo..................................................................335 B. Questões do início da Idade Moderna........................................... 337 7.2 Concorrência divina no pensamento reformado do início da Idade Moderna...................................................................340 7.3 Concorrência, sincronia e livre escolha: considerações não temporais e temporais............................................. 343 7.4 Contingência sincrônica e providência: as questões ontológicas............................................................................354 10 VONTADE DIVINA E ESCOLHA HUMANA Conclusões.............................................................................................................369 1 Contingência — sincrônica e diacrônica — e a questão da liberdade humana............................................................................... 369 2 A narrativa histórica — e a questão do “escotismo” reformado...........376 3 Ortodoxia reformada, determinismo, compatibilismo e libertarismo................................................................382 índice remissivo.................................................................................................387 PREFÁCIO Este livro é uma daquelas empreitadas que simplesmente crescem por si só. Ele surgiu primeiro como uma proposta de pesquisa que visava a preparação de um texto a ser apresentado como parte de um modelo de workshop educacional no curso avançado que leciono sobre metodologia de pesquisa. Mesmo na fase inicial de proposta de pesquisa — em que se procura apresentar uma hipótese provisória, o estado atual da questão, o problema a ser resolvido, um esboço provisório e uma bibliografia inicial — parecia que, tal qual uma ameba, o texto crescería demais e se dividiría em duas partes, das quais eu desenvolveria uma delas para apresentação em uma palestra. É claro que elaborar um esboço desses que, pensando melhor, se revelaria grande demais para um único texto foi uma ilustração bem apropriada para uma palestra sobre metodologia! Enquanto me concentrava nas partes — cada uma delas por si só uma ameba intelectual — , ocorreram amplia ções e divisões adicionais, mas nenhuma parecia disposta a se desligar da outra. Da proposta de um pequeno estudo desenvolveu-se uma monografia. Desisti de qualquer tentativa de separar as partes como textos independentes e me concen trei no desenvolvimento do todo. Além do mais, a ideia original do projeto remonta a 1999, quando me encon trei com o grupo de pesquisadores do Werkgezelschap Oude Gereformeerde Theologie, na Universidade de Utrecht, na Holanda, e participei de alguns dos debates que conduziram inicialmente ao simpósio publicado com o título de R eform ation and scholasticism : an ecum enica l en terprise [Reforma e escolasticismo: uma empreitada ecumênica] em 2001 e, mais tarde, à publicação de seu trabalho inovador, R eform ed th ough t on fr e ed om [Pensamento reformado sobre a liber dade] em 2010. Durante aqueles anos debatemos diferentes interpretações da compreensão reformada no início da Idade Moderna sobre necessidade e con tingência, bem como a questão do impacto de Duns Escoto e do escotismo na ortodoxia reformada. Meu círculo de interlocutores aumentou em 2003 com o aparecimento da resposta de Paul Helm à compreensão do grupo de Utrecht 12 VONTADE DIVINA E ESCOLHA HUMANA sobre contingência sincrônica como um conceito escotista fundamental intrín seco a formulações ortodoxas reformadas da doutrina da livre escolha humana. Tenho permanecido em diálogo com os dois lados desse debate, e agora, tal como naquela época, me vejo bem firmemente em algum ponto intermediário. Aprendi muito com meus colegas de Utrecht e também aprendi muito com uma longa correspondência com Paul Helm, mas, conforme será prontamente reconhecido por leitores familiarizados com o debate sobre contingência sincrônica, apesar da considerável concordância com os principais aspectos da argumentação de todas as partes envolvidas do debate, cheguei a minhas próprias conclusões. No entanto, sem esses colegas e sem meu diálogo permanente com eles, eu não teria conseguido escrever este estudo. O debate sobre essas questões é importante para entender abordagens tradi cionais da livre escolha humana em sua relação com o conhecimento e a vontade divinos e com o entendimento da tradição reformada em seus desenvolvimentos nos períodos da Reforma e da ortodoxia. A questão de liberdade, contingência e necessidade se presta a um exame atento do pensamento dos reformadores e dos ortodoxos reformados sobre um tópico bem controverso. Oferece também uma janela que permite ver os antecedentes antigos e medievais; os padrões de acolhimento, na tradição reformada, daquela herança mais antiga; e o debate sobre quais elementos da herança — aristotélica, tomista ou escotista — e qual interpretação de tais elementos foram adaptados para uso entre os reformados. Existem, é claro, duas maneiras fundamentalmente diferentes de abordar esse material e essas questões: uma abordagem filosófica positiva e uma aborda gem histórica objetivista. Se as questões fossem tratadas com uma abordagem filosófica positiva, a tarefa do escritor contempoiâneo seria avaliar o sucesso ou insucesso dos argumentos filosóficos encontrados nas fontes. À guisa de exemplo, caso se descobrisse que Tomás de Aquino ou Francisco Turretini defenderam tanto uma vontade divina para todas as coisas quanto uma capacidade humana de escolha genuinamente livre, a tarefa filosófica seria analisar e julgar o sucesso da tentativa deles de fazer justiça aos dois aspectos da questão — o divino e o humano — , presumivelmente com base em métodos e pressuposições filosófi cos modernos. Se, no entanto, as questões fossem tratadas de forma histórica, a tarefa do escritor contemporâneo seria identificar e analisar os argumentos em sua forma e contexto originais com o propósito de esclarecer a intenção do autor original, sem fazer qualquer juízo quanto ao êxito final de seu argumento para um público moderno, visto que os critérios para fazer esse juízo seriam modernos, e não pertenceríam ao material histórico. Usando o mesmo exemplo de Aquino e Turretini, a questão histórica a ser tratada é se esses pensadores propuseram PREFÁCIO 13 argumentos acerca da vontade divina e da liberdade humana, como esses argu mentos operaram em decorrência dos critérios da própria época dos autores e como os argumentos contribuíram para uma tradição de argumentação sobre aquele assunto em particular. No texto que se segue adotarei a segunda abordagem, vendo o assunto histo ricamente, começando com a questão do papel de Aristóteles no debate tradicio nal, atentando para o acolhimento de Aristóteles na Idade Média, especificamente em Aquino e em Escoto, e em seguida passando para um exame do pensamento reformado no início da Idade Moderna. Dado que o que se segue é um exercício de história intelectual, não começo com pressuposições a priori sobre o que tem de ser filosófica ou teologicamente verdadeiro acerca da necessidade, da contingência e da livre escolha. Meu único interesse é analisar o que dizem as fontes. Consi dero imprecisa e confusa a terminologia moderna dos “-ismos”. No que se segue, também não defendo uma perspectiva determinista ou indeterminista, nem uma compatibilista, incompatibilista ou libertária. Não faço pressuposições sobre o que a teologia reformada tenha de asseverar; pelo contrário, tento identificar o que teólogos reformados têm asseverado. Também é importante registrar aquilo que o presente texto não analisa, a saber, a questão da graça e livre escolha na salvação. Este livro não lida com o eterno debate sobre monergismo e sinergismo — e deve estar claro que aquilo que pode ser chamado de determinismo soteriológico não pressupõe nem um deter minismo físico nem um metafísico de todas as ações e efeitos, assim como deve estar claro que a pressuposição de livre escolha em assuntos gerais do cotidiano (tal como decidir comer ou não comer um sanduíche de.pastrami no almoço) não exige uma pressuposição de livre escolha em questões de salvação. Pedro Mártir Vermigli, na era da Reforma, e Francisco Turretini, na era da ortodoxia, apresen taram declarações perspicazes sobre a questão, assinalando que, antes da questão soteriológica da relação da liberdade humana com a graça, havia outras questões fundamentais, a saber, a natureza da necessidade, contingência e liberdade no ser humano e a liberdade contínua de, mesmo em sua condição decaída, os seres humanos fazerem escolhas em sua existência diária. O presente texto se ocupa daquelas questões fundamentais. A questão a ser tratada não é, então, se as idéias de necessidade, contin gência e liberdade constituem, no âmbito da argumentação filosófica moderna, uma argumentação que oferece, quanto à questão da vontade divina e da livre escolha humana, uma solução que atende a uma necessidade filosófica contem porânea. Em vez disso, a questão é se os argumentos encontrados nas obras de Aquino, Escoto e dos reformados no início da Idade Moderna constituíam em 14 VONTADE DIVINA E ESCOLHA HUMANA seus próprios contextos e em vista das preocupações deles próprios uma base para entender que Deus faz de várias maneiras com que todas as coisas existam e sejam aquilo que são e, ao mesmo tempo, criou os seres humanos para terem liberdade de escolha. Espero lançar luz sobre o conceito de contingência sincrô- nica tanto quanto questionar um pouco seu caráter revolucionário, esclarecer o relacionamento dos primeiros reformados modernos com a tradição reformada mais antiga e descrever a natureza do pensamento reformado sobre a liber dade como algo diferente daquilo a que modernos se referem com os termos “compatibilismo” e “libertarismo”.Também espero demonstrar que a solução do debate sobre a posição reformada e sobre contingência sincrônica só pode ocorrer quando a argumentação lógica relativa a liberdade, contingência e necessidade for colocada em seu devido contexto teológico e filosófico, a saber, a compreensão reformada sobre o decreto divino e a concorrência providencial, uma ideia funda mental não registrada no debate entre Vos e Helm. Devo um agradecimento especial a meus colegas em Utrecht, Willem van Asselt, Anton Vos, E ef Dekker, Andreas Beck e outros membros do grupo Werkgezelschap, e a Paul Helm pela ininterrupta correspondência sobre as ques tões levantadas neste texto. Sou profundamente grato a David Sytsma, da Tokyo Christian University, pela leitura bastante atenta e perspicaz do texto inteiro, e a Paul Helm por uma série de comentários sobre o penúltimo rascunho — esforço que, em ambos os casos, levou a melhorias significativas no meu argumento. Por sua participação atenta e pelo excelente debate, também sou grato aos mui tos alunos que assistiram aos estudos avançados de pós-graduação que ministrei no Calvin Theological Seminary durante os anos em que estive trabalhando no projeto. E, conforme as várias notas de rodapé mostram, também tenho uma dívida de gratidão a alunos cujas teses e artigos publicados têm contribuído para meu próprio conhecimento do assunto. Como sempre, proporcionaram ajuda considerável os bibliotecários do Meeter Center e da biblioteca Hekman, e mais recentemente meus colegas que reuniram obras para a Post-Reformation Digital Library (PRDL) [Biblioteca Digital da Pós-Reforma], sem cujos recursos muitas das obras do início da Idade Moderna citadas nas páginas seguintes não estariam facilmente disponíveis. Como comentário final, embora o debate acadêmico tenha avançado além do encontro inicial entre Vos e Helm, registro minha surpresa com a inexistên cia, entre estudiosos, de um debate mais amplo sobre as questões levantadas por Reformed thought on freedom, enquanto o livro e seus argumentos a favor do uso do vocabulário de contingência sincrônica entre os reformados do início da Idade Moderna criaram alguma agitação no mundo tipicamente desinformado e imaturo PREFÁCIO 15 da internet com seus blogueiros e autores independentes. Afinal, há um volume significativo de textos acadêmicos sobre contingência sincrônica e assuntos corre- latos entre filósofos e teólogos medievais — e causa surpresa que a obra cuidadosa e detalhada em que Vos e seus colegas mostram as conexões entre o pensamento reformado do início da Idade Moderna e seus antecedentes medievais não tenha resultado no desenvolvimento de um corpo literário sobre a situação no início da Idade Moderna que se aproxime da densidade da erudição medieval. Em minha pesquisa preparatória para o que se segue, usei vários bancos de dados on-line e aquilo que eu descreveria como recursos legítimos e academi camente confiáveis. Em vez de aumentar ainda mais a confusão e parecer dar credibilidade imerecida aos argumentos e às afirmações de blogueiros e autores independentes, eu não os citei, embora, tendo em vista estes comentários, é possível que concluam que estou ciente de sua existência. R ich a rd A. M u ller Lowell, Michigan Desde toda a eternidade, Deus, pelo sapientíssimo e santíssimo conselho da sua própria vontade, ordenou livre e imutavelmente tudo o que vem a acontecer. Ainda assim, Deus não é o autor do pecado em consequência disso, tampouco a vontade das criaturas é violada, nem a liberdade ou contingência das causas secundárias é tirada, mas, em vez disso, estabelecida. [...] Embora, em relação à presciência e ao decreto de Deus, a Causa primeira, todas as coisas venham a acontecer de forma imutável e infalível, assim mesmo, pela mesma Providência, ele as ordena que ocorram de acordo com a natureza das causas secundárias, seja necessária, seja Uvre, seja contingentemente. Westminster confession offaith1 (1647), 3.1; 5.2 'E d ição em português: A confissão de f é de Westminster (São Paulo: C ultura C ristã, 2017). PRIMEIRA PARTE LIBERDADE E NECESSIDADE NO PENSAMENTO REFORMADO O DEBATE CONTEMPORÂNEO INTRODUÇÃO: O PRESENTE ESTADO DA QUESTÃO 1 O pensamento reformado sobre liberdade, contingência e necessidade: preparando o palco para o debate Estudos sobre a teologia reformada mais antiga, seja sobre Calvino, seja sobre o “calvinismo” — em particular quando o foco da investigação tem sido os deba tes do início da Idade Moderna sobre Armínio, arminianismo e outras formas de teologia sinergista — têm sistematicamente identificado a teologia refor mada como uma forma de determinismo. Nos séculos 16 e 17, quando o termo moderno “determinismo” ainda não havia sido cunhado, os debates sobre a com preensão reformada acerca da predestinação levaram, bem no início, às acusações de que Calvino e escritores reformados posteriores ensinaram uma doutrina do fatalismo estoico e identificaram Deus como o autor do pecado — o que, é claro, eles negaram. Começando no final do século 17 e prosseguindo até o 18, o voca bulário do debate começou a mudar com as alterações na linguagem filosófica, e a teologia reformada passou a ser vista por seus adversários como uma forma de determinismo, ainda que os fundamentos filosóficos das formulações reformadas ortodoxas sobre necessidade, contingência e liberdade não coincidissem com os pressupostos filosóficos de deterministas da época, que seguiam a vertente de Hobbes ou Espinosa. O debate se tornou significativamente mais complexo quando alguns pensa dores reformados do século 18 adotaram as premissas das novas filosofias racio- nalistas e mecânicas e argumentaram abertamente a favor de uma interpretação determinista da doutrina reformada.1 O pensamento de Jonathan Edwards é 'V eja G eorge HiU, Lectures in divinity, obra editada, a partir do m anuscrito pelo autor, por seu filho, rev. Alexander Hill, ministro de Dailly (Philadelphia: Herm an Hooker, 1842 [texto baseado na segunda edição, publicada em Edim burgo]), p. 599, que cita positivam ente Israel G ottlieb C anz, 22 VONTADE DIVINA E ESCOLHA HUMANA paradigmático desse novo determinismo,2 e à medida que Edwards tem sido identificado como “calvinista”, sua obra explica boa parte da identificação mais recente da teologia reformada como determinista. O problema historiográfico fica ainda mais complicado em virtude da obra de Alexander Schweizer, Heinrich Heppe e J. H. Scholten no século 19, quando a predestinação era identificada como um dogma central a partir do qual teólogos reformados deduziam todo um sistema.3 Entre esses autores, Schweizer também sustentava que a causalidade secundária estava tão dependente da causalidade primária de Deus a ponto de deixar Deus como o único e real ator ou motor. A leitura determinista que Schweizer faz não apenas de Calvino, mas também da ortodoxia reformada posterior, foi amalgamada com o uso que Heppe faz da Tabula praedestinationis, de Beza, produzindo o esboço de um sistema teológico, o que transmite a ideia de que a ortodoxia reformada escolástica é um sistema altamente filosófico e totalmente determinista, tornando-se, em última análise, um prólogo — senão uma forma — do racionalismo do início da era moderna.4 Philosophiae Leibnitianae et Wolfiamae usus in theologia per praecipuafidei capita (Frankfurt: sem edi tora, 1733-1735), 2 vols., e faz referência a obras com o D aniel W yttenbach, Tentamen theologiae dogmaticae methodo scientificopertractatae (Frankfurt: Joh . Benj. A ndreae et Henr. H ort, 1747-1749), 3 vols.; e Johan n Friedrich Stapfer, Grundlegung zur wahren Religion (Zürich, 1746-1753), 12 vols.; ibidem , Institutiones theologiae polemicae universae, ordine scientifico dispositae, 4. ed. (Zürich: H ei- degger, 1756-1757), 5 vols.; ibidem , Theologia analytica (Bern: Typographica Ulust. Reipublicae Bernensis, 1761). 2C £ G eorge Park Fisher, “'lh e philosophy o f JonathanEdw ards”, North American Review, 128/268 (1879), p. 289-93 ; C onrad W right, “Edw ards and the A rm inians on the freedom o f the will”, H arvard Theological Review, 3 5 /4 (1942), p. 241-61 ; com Richard A . M uller, “Jonathan Edw ards and the absence o f free choice: a parting o f ways in the R eform ed tradition”, Jonathan Edw ards Studies, 1/1 (2011), p. 3-22. 3D essa m aneira, especialm ente A lexander Schewizer, D ie protestantischen Centraldogmen in ihrer Entwicklung innerhalb der reformierten Kirche (Zürich: Orell, Fussli, 1854-1856), 2 vols.; J . H . Scholten, De Leer der Hervormde Kerk in hare Grondbeginselen, uit de Bronnen Voorgesteld en Beoordeeld (Leiden: R En gels, 1848-1850), 2 vols., II, p. 2 -12 ; H einrich H eppe, “D er C harakter der deutsch-reform irten Kirche und das Verhãltniss derselben zum Luthertum und zum Calvinism us” , Theologische Studien undKritiken, 1850 (H eft 3), p. 669-706. 4Schweizer, Glaubenslehre I, p. 319-21, citando Zuínglio, Calvino, H yperius, Vermigli, A re- tius, W ollebius, H eidegger, R ijssen, M aresius e A lsted ; cf. Barth , Church dogmatics, I I I/3 , p. 96-7; e observe Tabula, de B eza, conform e reproduzida em H eppe, “C haracter”, p. 672 (em parte); e ibidem , Reformed dogmatics set out and illustrated from the sources, prefácio de K arl Barth ; revisão e edição de E rn st B izer; tradução para o inglês de G .T . Thom son (L ondon : G eorge A llen ôcU nw in, 1950), p. 147-8. Q uanto à questão de ortodoxia e racionalism o, veja E rn st Bizer, Frühorthodoxie undRationalism us (Zürich: E V Z Verlag, 1963); e H an s E m il W eber, Reformation, Orthodoxie und Rationalism us (G ütersloh: G erd M ohn , 1937-1951), 2 vols. em 3 partes. INTRODUÇÃO: O PRESENTE ESTADO DA QUESTÃO 23 O acolhimento e o uso concretos da filosofia pelos escolásticos protestan tes praticamente não foram examinados por esses acadêmicos mais antigos, e, quando investigados, foram apresentados de forma bem superficial, muitas vezes com avaliações dogmáticas altamente negativas.5 Esses exames superficiais têm muitas vezes operado na suposição de que a escolástica protestante pode ser simplesmente considerada uma herança aristotélico-tomista. Além disso, essa herança tem sido associada ao uso da linguagem causai — e essa linguagem tem, por sua vez, sido dogmaticamente interpretada como indicação de um movi mento de afastamento do “cristocentrismo” do período da Reforma na direção de um compromisso com a metafísica determinista. De acordo com essa linha de pensamento acadêmico, enquanto o predestinacionismo de Calvino era contra balançado pelo cristocentrismo, escritores reformados posteriores transformaram a doutrina ao dependerem de Aristóteles e da tradição escolástica, notadamente das trajetórias tomistas daquela tradição.6 Esse tipo de argumentação tem sido repetido em debates sobre a compreen são reformada acerca da predestinação, graça e livre escolha. Os reformados — ou “calvinistas”, conforme são identificados com muita frequência — têm sido vistos como um grupo que combina de forma quase dualista “o nada do homem” com “o poder supremo de Deus”7 e, por conseguinte, que ensina uma teologia fun damentalmente predestinacionista ou determinista — seja em total consonância com o pensamento de Calvino, seja em um desenvolvimento ainda maior e nega tivo desse pensamento. Quando, além disso, tem-se entendido esse determinismo sD essa m aneira, e.g., A . C . M cG iffert, Protestant thought before K ant (L ondon , 1911; reim pressão, N ew York: H arper 8c Row, 1961), p .145-7 ; Brian G . A rm strong, Calvinism andtheAm yraut heresy: Protestant scholasticism and humanism in seventeenth-century France (M adison : University o f W isconsin Press, 1969); E m st Bizer, “D ie reform ierte O rthodoxie und der C artesianism us”, Zeitschriftfür Theologie undKirche (1958), p. 306-72 ; tradução em inglês: “R eform ed orthodoxy and C artesianism ”, tradução para o inglês de C halm ers M acC orm ick , in: Robert W . Funk; Gerhard Ebeling, orgs., Translating theology into the modem age: historical, systematic, and pastoral reflec- tions on theology and the church in the contemporary situation, Journal for Theology and the Church (N ew York: H arper & Row, 1965), vol. 2, p. 20-82. 6A rm strong, Calvinism and the Amyraut heresy, p. 1 2 9 -3 2 ,1 3 6 -8 ,1 6 2 -4 ,1 7 8 -9 ; O tto G ründ- ler,“Thom ism and C alvinism in the theology o f G irolam o Zanchi (1516-1590)” (tese de doutorado em teologia, Princeton Theological Sem inary, 1961), p. 2 1 -3 ,1 2 2 -3 ,1 5 9 , et passim ; posteriorm ente publicado com o D ie Gotteslehre Girolami Zanchis und ihre Bedeutungfür seine Lebre von der Pràdesti- nation (Neukirchen: N eukirchner Verlag, 1965); sem elhantem ente, E m st B izer, Frühorthodoxie und Rationalism us, p. 42, 62; e cf. os com entários sobre B izer em D avid Sytsm a, “C alvin, D aneau, and Physica mosaica: N eglected continuities at the origins o f an early m odem tradition” , Church History and Religious Culture, 95 (2015), p. 457-76 (aqui: p. 460). 7M cG iffert, Protestant thought before K ant, p. 86. 24 VONTADE DIVINA E ESCOLHA HUMANA como um desenvolvimento negativo, tem sido típico associar sua natureza pro blemática com seus padrões escolásticos de argumentação.8 Apesar de existir uma quantidade considerável de estudos acadêmicos que têm reavaliado a teologia reformada ortodoxa, essas interpretações da escolástica, da filosofia aristotélica e da linguagem da causalidade quádrupla têm — jun tamente com a identificação do pensamento reformado como uma forma de determinismo, aliás, como uma metafísica predestinacionista — continuado a ser feitas por aqueles que criticam a teologia reformada mais antiga, sejam arminia- nos, sejam reformados nominais.9 Essa interpretação da compreensão reformada sobre necessidade e liberdade também tem sido confirmada por vários escritores reformados contemporâneos que defendem uma linha determinista ou, como foi identificada mais recentemente, compatibilista de formulação teológica, mui tas vezes nos moldes de Jonathan Edwards.10 Essas suposições sobre a natureza determinista do calvinismo têm sido absorvidas tanto positiva quanto negativa mente em boa parte de textos contemporâneos sobre o tema da vontade divina e sua relação com a livre escolha humana, com o resultado de que o pensamento calvinista ou reformado tem sido descrito, de maneira quase uniforme, tanto por adversários quanto por defensores, como uma espécie de determinismo, 8C £ A rm strong, Calvinism and the Amyraut heresy, p. 30-40, 127-40; Gründler, “Thom ism and C alvin ism in the theology o f G irolam o Zanchi”, p. 2 1 -3 ,1 3 2 -5 1 ,1 5 8 -9 , et passim ; com Jam es D aane, Ihefreedom o f God: a study o f election andpulpit (G rand Rapids: Eerdm ans, 1973), p. 45-73. 9E .g ., W illiam L . C raig , The only wise God, (G ran d R apids: Baker, 1987), p. 15 [edição em português: O único Deus sábio: a compatibilidade entre a presciência divina e a liberdade humana, tradução de W alson Sales (M aceió: Sal C ultural, 2 0 1 6 )]; R oger E . O lson , A gainst Calvinism (G ran d R apids: Zondervan, 2011), p. 15-70 [edição em português: Contra o calvinismo, tradução de W ellington C arvalho M arian o (São Pardo: Reflexão, 2 0 1 3 )]; C lark H . P innock, M ost moved mover: a theology o f G odr openness (G ran d R apids: Baker A cad em ic ,2 0 0 1 ),p . 8 -9 ;Ja c k W . C ottrell, ‘" lh e nature o f the divine sovereignty”, in: C lark H . Pinnock, org., Thegrace o f God, the w ill o f man (G ran d R ap ids; Z ondervan, 1989), p. 97-119 ; O tto W eber, Foundations o f dogmatics, tradução para o inglês de D arrell G u der (G ran d R apids: Eerdm ans, 1981-1982), 2 vols., I , p. 602; II , p. 420-1 ; e Thom as F. Torrance, The ground and gram m ar o f theology (Charlottesville: U niversity Press o f V irginia, 1980), p. 146. “ Q u an toa argum entos favoráveis ao com patibilism o ou determ inism o, veja W illiam H astie, The theology o f the Reformed church in its fundam ental principies (Edinburgh : T & T C lark, 1904), p. 142-66; H . H en ry M eeter, The fundam ental principie o f Calvinism (G ran d R apids: Eerdm ans, 1930); Joh n S. Feinberg, “G o d , freedom and evil in C alvin ist thinking”, in: Thom as E . Schreiner; Bruce A . W are, orgs., The grace o f God, the bondage o f the w ill (G ran d R ap ids: Baker, 1995), 2 vols., II , p. 459-83 ; Steven B . C ow an, “C om m on m isconceptions o f evangelicals regarding C alvinism ”, Journal ofthe Evangelicallheological Society, 3 3 /2 (1990), p. 189-96 (aqui: p. 193-5); e, tanto a C al- vino quanto a Turretin, Paul H elm , “The A ugustin ian-C alvin ist view ”, in: Jam es K . Beilby; Paul R . Eddy, orgs., Divineforeknowledge:four views (D ow ners Grove: InterVarsity, 2 001), p. 161-89. INTRODUÇÃO: O PRESENTE ESTADO DA QUESTÃO 25 frequentemente como compatibilismo ou determinismo brando — com nenhuma ou quase nenhuma preocupação com a possível aplicação anacrônica dos termos.11 Em suma, entender a teologia reformada dos séculos 16 e 17 como uma varie dade de fatalismo ou determinismo tornou-se, apesar de afirmações em contrário feitas por alguns reformados do início da era moderna, a linha dominante de pensamento no debate contemporâneo. É plausível que essa Unha de pensamento prevaleça por causa da perda de fluência no vocabulário escolástico pelos reforma dos do início da era moderna, em particular as distinções usadas para conciliar a vontade divina de todas as coisas, a soberania da graça e a providência divina total com a contingência e a liberdade, entendida não apenas epistemologicamente, mas também onticamente como a possibilidade de coisas e efeitos serem de outra forma. Além disso, não são poucos os defensores e críticos da doutrina reformada da livre escolha e da vontade divina que têm confundido a determinação especifi camente soteriológica da doutrina reformada da predestinação com um “determi nismo divino de todas as ações humanas”, presumivelmente incluindo ações como passar manteiga na torrada no café da manhã ou dar aquilo que Jeremy Bentham certa vez chamou de “circungiro anteprandial” pelo jardim.12 Trabalhos mais recentes sobre a escolástica protestante têm pintado um qua dro um pouco diferente. Vários estudiosos têm defendido um desenvolvimento razoavelmente contínuo do pensamento ocidental entre a Idade Média Tardia e o início da Idade Moderna e têm defendido que há uma clara continuidade doutrinária entre a Reforma e as teologias ortodoxas posteriores, em particular quando examinadas da perspectiva dos escritos confessionais da época. Nesses estudos tem sido típica a atenção que dedicam à natureza real da escolástica como basicamente um método, e não um determinador de conteúdo doutrinário.13 Os estudiosos também têm reconhecido que o método escolástico foi um fenômeno bem flexível com suas próprias linhas de desenvolvimento — com o resultado n N o lado positivo, cf., e.g., Joh n S. Feinberg, “A n d the atheist shall lie down w ith the Calvi- nist: A theism , 12A expressão é de Bruce R . Reichenbach, “Freedom , justice, and m oral responsibility”, in: Pinnock, org., Grace o f God the w ill o f man, p. 291 ; cf. m eus com entários em Richard A . M uller, “G race, election, and contingent choice: A rm inius’ gam bit and the Reform ed response”, in: Schrei- ner; W are, orgs., Grace o f God, the bondage o f the will, p. 251-78 (aqui: p. 269-77). 13A questão, é claro, não é se é possível fazer um a nítida distinção entre m étodo e conteúdo, m as, em vez disso, d iz respeito à natureza do m étodo em si e às m aneiras em que ele influi ou não no conteúdo: veja Richard A . M uller, Calvin and the Reformed tradition: on the work o f Christ and the order o f salvation (G ran d Rapids: Baker A cadem ic, 2012), p. 24-33 ; observe tam bém ibidem , Christ and the decree: Christology andpredestination in Reformed theology from Calvin to Perkins, republicado com um novo prefácio (G ran d Rapids: Baker A cadem ic, 2008), p. ix-x, 11-2. 26 VONTADE DIVINA E ESCOLHA HUMANA de que a escolástica do século 17 não pode ser vista como um simples retorno a modelos medievais.14 Também tem se dado atenção à natureza da tradição reformada como algo que está totalmente enraizado na Reforma e se desenvolve em um movimento bastante diversificado, ainda que dentro de limites confessio nais,15 com a consequência de que se tem questionado a caracterização ingênua da teologia reformada como “calvinista” e sua avaliação quase exclusivamente com base em sua relação com as Institutas de Calvino.16 Além disso, vários desses estudos têm explorado o conceito de “contingência simultânea” ou “sincrônica” para defender que a teologia reformada em desen volvimento no século 17 esposava uma teoria bastante robusta da livre escolha humana em continuidade com várias linhas de argumentação encontradas entre os escolásticos medievais tardios e os dominicanos do início da era moderna.17 14Veja , e.g., C arl Truem an; R . Scott Clark, orgs., Protestant scholasticism: essays in reassessment (C arlisle: Paternoster Press, 1999); R ichard A . M uller, After C alvin: studies in the development o f a theologicaltradition (N ew Toric: O xford University Press, 2003); W illem J . van A sse lt com T. Theo J . Pleizier; Pieter L . Rouw endal; M aarten W isse , Introduction to Reformed scholasticism, tradução para o inglês de A lbert G ootjes, prefácio de Richard A . M uller (G rand Rapids: Reform ation H eritage Books, 2011). 15Veja os textos em M ich ae l A . G . H aykin; M arkJon es,orgs.,D ra™ ra into controversie:Reform ed theological diversity and debates within seventeenth-century Britishpuritanism (G ottingen : Vande- nhoeck & Ruprecht, 2011). 16As institutas, tradução de W aldyr Carvalho L u z (São Paulo: C ultura C ristã, 2006), 4 vols.; A instituição da religião cristã, tradução de C arlos Eduardo Oliveira; Jo sé C arlos Estêvão; Elaine C . Sartorelli; O m ayr J . de M oraes Jr. (São Paulo: E d itora U nesp, 2008), 2 vols. C f. Richard A . M uller, “D em oting Calvin? The issue o f Calvin and the Reform ed tradition”, in: A m y N elson Burnett, org., John Calvin: myth and reality: images and impact o f Genevas Reformer (Eugene: W ip f & Stock, 2011), p. 3-17; ibidem , “W as Calvin a Calvinist?” , in: M uller, Calvin and the Reformed tradition, p. 51-69. 17M ais notadam ente, W illem J . van A sselt; J . M artijn Bac; R o elfT . te Velde, tradutores, orga nizadores e com entário, Reformed thought on freedom: the concept offree choice in the history o f early- -modern Reformed theology (G rand R apids: Baker A cadem ic, 2010), p. 36-8 , citando Philip van Lim borch , Theologia christiana adpraxin pistatis acprorrw, e tam bém T. Theo J . Pleizier, “D ependent freedom . Francesco Turrettini (1623-1687) on hum an freedom: ananalysis o f ‘choice,'‘freedom’ and ‘necessity’ in L ocu s T en o f the Elenctic institutes” (dissertação de m estrado: U niversity o f Utrecht, 2001); D avid S y tsm a ,“The harvest o f thom ist anthropology: Joh n W eem ses Reform ed portrait o f the im age o f G o d ” (dissertação de m estrado em teologia, C alvin Theological Sem inary, 2008), p. 144-54; Jeongm o, Yoo, “Joh n Edw ards (1637-1716) on the freedom o f the will: the debate on the relation betw een divine necessity and hum an freedom in the seventeenth century and early eighte- enth century E n glan d” (tese de doutorado, C alvin Theological Sem inary, 2011). U m a vez que os capítulos em Reformed thought on freedom têm diferentes autores, as subsequentes referências cita rão o título do capítulo, seu autor específico e as respectivas páginas em Reformed thought on free dom, e esta obra aparecerá abreviada com o R T F. H á algum as diferenças de ênfaseentre os autores, ainda que constatem que Reformed thought on freedom m aterializa “os resultados m ais im portantes INTRODUÇÃO: O PRESENTE ESTADO DA QUESTÃO 27 Também não se deve pressupor que a teologia reformada em desenvolvimento fosse monolítica sobre a questão — entre os reformados havia definições variadas de liberdade e apropriações diversas da tradição mais antiga.18 A identificação da abordagem reformada escolástica à liberdade humana com as idéias compatibi- listas de Jonathan Edwards também tem sido questionada.19 Essas idéias divergentes sobre Calvino, calvinismo e ortodoxia reformada correspondem a mudanças, na historiografia, acerca da natureza e do caráter da ortodoxia confessional, seu método escolástico e sua relação com a tradição cristã mais antiga em seu acolhimento da filosofia aristotélica ou peripatética. Boa parte de estudos acadêmicos mais antigos tem apresentado a teologia dos reformadores como diametralmente contrária à escolástica e à filosofia aristotélica e oposta a várias formas de especulação e argumentação filosófica. Por consequência, a rela ção razoavelmente positiva da escolástica protestante do início da era moderna com formas tradicionais de filosofia cristã (em grande parte peripatéticas) tem sido tipicamente apresentada em termos igualmente negativos com base nos pressupostos idênticos de que a Reforma rejeitou a velha relação entre teologia e aquilo que pode ser imprecisamente chamado de aristotelismo cristão e de que o apelo fundamental, identificável entre os teólogos protestantes escolásticos do final do século 16 e início do 17, a essa forma mais antiga de diálogo, debate e formulação entre teologia e filosofia era pouco mais que uma volta problemática às normas de uma tradição rejeitada.20 Associado à interpretação mais antiga da escolástica protestante encontra-se o pressuposto, também representativo de estudos acadêmicos mais antigos, de que o pensamento reformado do início da era moderna tendia filosoficamente na direção de uma forma de determinismo filosófico — talvez associado a uma interpretação determinista de Aristóteles ou, pelo menos, a uma compreensão do inovador projeto de pesquisa de [A ntonie] Vos” (p. 17). Referências aos textos traduzidos na obra o citarão com o Reformed thought onfreedom. 18C £ os com entários em Richard A . M uller, “G oad in g the determ inists: Thom as G o ad (1576- 1638) on necessity, contingency and G o d s eternal decree”, Mid-America Journal ofTheology, 26 (2016), p. 59-75 (aqui: p. 6 4 -5 ,6 9 -7 0 ). 19C £ M uller, “Jonathan Edw ards and the absence o f free choice”, p. 3-22; com Fisher, “Ph i- losophy o f Jonathan Edw ards”, p. 289-293 ; W right, “ Edw ards and the A rm inians on the freedom o f the will” . p. 241-261 ; e N orm an F iering , Jonathan Edw ards s moral thought and its British context (C hapei H ill: University o f N orth C arolina Press, 1981), p. 272-71 20C £ , e.g., A rm strong, Calvinism and theAmyraut heresy, p. 3 1 -3 ,1 2 9 -1 3 2 ,1 3 6 -1 9 ; Thom as F. Torrance, “Know ledge o f G o d and speech about him according to Joh n Calvin”, in: lheology in reconstruction (G ran d R apids: Eerdm ans, 1966), p. 76; e, m ais recentem ente, C harles Partee, The theology ofjohn Calvin (Louisville: W estm inster/John Knox Press, 2008), p. 3 ,4 ,2 5 ,2 7 . 28 VONTADE DIVINA E ESCOLHA HUMANA determinista da causalidade, conforme definida pelo paradigma aristotélico padrão de causas eficiente, formal, material e final.21 Deixando de lado a questão bastante debatida sobre a continuidade ou descontinuidade entre Calvino e o cal- vinismo posterior, o entendimento tem sido que os pressupostos filosóficos aris- totélicos dos reformados ortodoxos desenvolvem e consolidam o entendimento já determinista que Calvino tinha da predestinação e da livre escolha ou atraem o predestinacionismo de Calvino a uma metafísica determinista. Escritores que defendem essa avaliação dogmática negativa e o pressuposto correlacionado de uma clara ruptura com o passado filosófico e teológico ela borado pelas duas primeiras gerações de reformadores têm sido vagarosos em absorver quase meio século de estudos acadêmicos revisionistas que rejeitam a ideia de uma clara linha divisória entre a Idade Média e a época da Reforma.22 Esses estudos revisionistas têm identificado importantes antecedentes medie vais — quer teológicos, quer filosóficos — do pensamento protestante, tanto no período da Reforma quanto da pós-Reforma. Identificam continuidades no desenvolvimento doutrinário entre a Reforma e o período protestante da orto doxia pós-Reforma e documentam não apenas a manutenção mas também o desenvolvimento positivo da tradição peripatética na filosofia cristã no século 17.23 Outros estudos recentes têm demonstrado as complexas e muitas vezes sutis relações entre o pensamento reformado do início da era moderna e as variadas 21 Ver, e.g., W alter Kickel, Vernunft und Offenbarung bei Theodor Beza (Neukirchen: N eukirch- ner Verlag, 1967); B asil H all, “C alvin against the C alvinists” , in: G ervase D uffield, org .,John Cal vin (A ppleford: Sutton Courtnay Press, 1966), p. 19-37; Johannes D antine, “D as christologische Problem in Rahm en der Prâdestinationslehre von Theodor Beza”, Zeitschriftfür Kirchengeschichte, 77 (1966), p. 81-96; e ibidem , “L e s Tabelles sur la doctrine de la prédestination par Théodore de B èze”, Revue de théologie et de philosophie, 16 (1966), p. 365-77. Para bibliografia adicional e um a crítica dessa posição, veja M uller, After Calvin, p. 11-3, 63-102; e ibidem , “The use and abuse o f a docum ent: B ezas Tabulapraedestinationis, the Bolsec controversy, and the origins o f R eform ed orthodoxy”, in: C arlT ru em an ; Scott C lark, orgs., Protestant scholasticism: essays in reassessment (C ar- lisle: Paternoster Press, 1999), p. 33-61. 22V ejaJaroslavPelikan , The Christian tradition: a history o f the development o f doctrine, Reforma- tion o f church and dogma (1300-1700) (C hicago: University o f C h icago Press, 1984), vol. 4 [edição em português: A tradição cristã: uma história do desenvolvimento da doutrina. A reforma da igreja e o dogma. 1300-1700, tradução de L e n a A ranha; R egina A ranh a (São Paulo: Shedd, 2016), vol. 4]; Stephen E . O zm ent, The age ofReform, 1250-1550: an intellectual and religious history o f late Medie v a l andReform ation Europe (N ew H aven: Yale University Press, 1980); am bos os autores descartam a noção de que o início do século 16 foi a entrada em um novo período na história. 23 Veja C harles B . Sch m itt,“Tow ards a reassessm ent o f renaissance A ristotelianism ”, History o f Science, 11 (1973), p. 159-93; ibidem , Aristotle and the Renaissance (C am bridge: H arvard University Press, 1983). INTRODUÇÃO: O PRESENTE ESTADO DA QUESTÃO 29 trajetórias filosóficas da época — solapando ainda mais a associação simplista do pensamento reformado com a escolástica e da escolástica com o aristotelismo.24 Estudos recentes sobre o uso medieval e no início da era moderna dos termos “contingência simultânea” ou “contingência sincrônica”— o que, conforme já assi nalado, acrescenta outra dimensão à reavaliação da ortodoxia reformada — têm levantado uma série de importantes questões relativas à natureza e ao conteúdo do pensamento medieval tardio e sua recepção por pensadores protestantes dos sécu los 16 e 17. Tendo aceitado como deterministas as interpretações frequentemente contestadas de Aristóteles e de formuladores posteriores do aristotelismo cristão, como Tomás de Aquino, esses estudos têm defendido um importante momento de transição no entendimento da necessidade e da contingência ocorrido no final do século 13 ou início do 14, especificamente no pensamento de João Duns Escoto. Nas palavras de Antonie Vos, que é um desses estudiosos, Escoto resolveu o “pro blema principal” do pensamento ocidental. Vos também tem defendidoque a solução escotista desse problema serviu de base para praticamente todo o debate adicional sobre necessidade e contingência ao longo do início da Idade Moderna.25 É preciso assinalar que a interpretação de Vos sobre Aristóteles, Aquino e Escoto está em consonância com o trabalho de Jaakko Hintikka e Simo Knuuttila sobre a lógica modal na Idade Média Tardia.26 Além disso, de acordo com Vos, a solução de Escoto para o problema passou para a ortodoxia reformada como a característica identificadora central da ortodoxia — o que, nas palavras de outro escritor nessa linha de pensamento, tornou a ortodoxia reformada uma “teolo gia da vontade perfeita”, entendida como uma variante escotista da tradição da “teologia do ser perfeito” caracterizada por um entendimento mais nuançado da ação divina.27 24Ver A za G oudriaan , Reformed orthodoxy and philosophy, 1625-1750: Gisbertus Voetius, Petrus van M astricht, and Anthonius Driessen (L eiden : E . J . B rill, 2 0 0 6 ); ib idem , org ,,Jacobus Revius: a theological exam ination o f Cartesianphilosophy; early criticisms (1647) (L eiden : E . J . Brill, 2 0 0 2 ); D av id Sytsm a, Richard Baxter and the mechanicalphilosophers (N ew York: O xford U niver- sity Press, 2017); e observe R ichard A . M uller, “ R eform ation , orthodoxy, ‘C h ristian A ristotelia- n ism ,’ and the eclecticism o f early m o d em philosophy”, Nederkands A rchief voor Kerkgeschiedenis, 81/3 (2001), p. 306-25 . 25A ntonie Vos, “A lw ays on tim e: the im m utability o f G o d ”, in: G ijsbert van den Brink; M ar cei Sarot, orgs., Understanding the attributes o f God (Frankfurt: Peter L an g , 1999), p. 65; cf. ibidem , The philosophy ofjohn Duns Scotus (Edinburgh : Edinburgh University Press, 2006), p. 611. 26 Ver em particular Jaakko H intikka, Time and necessity: studies in A ristotlês theory o f modality (O xford: Clarendon Press, 1973); e S im o Knuuttila, M odalities in M edieval philosophy (London : Routledge, 1993). 27Jacobus M artinus Bac, Perfect w ill theology: divine agency in reformed scholasticism as against Suárez, Episcopius, Descartes, and Spinoza (Leiden : E . J . Brill, 2010), p. 5 -6 ,1 2 -2 1 , et passim . 30 VONTADE DIVINA E ESCOLHA HUMANA A mais recente e importante contribuição aos estudos sobre a questão de liberdade e determinismo na teologia reformada mais antiga é Reformed thought on freedom , obra organizada por Willem J. Van Asselt, J. Martin Bac, Roelf T. te Velde e uma equipe de colaboradores. A importância do volume surge do fato de que adotou uma abordagem diferente aos aspectos materiais e, por conseguinte, alterou de forma bem radical o campo de debate. Esses estudiosos têm defen dido que a teologia reformada ortodoxa escolástica do início da Idade Moderna, conforme exemplificada por autores como Francisco Júnio, Francisco Gomaro, Gisberto Voécio e Francisco Turretini, não era uma forma de determinismo ou de compatibilismo, nem mesmo uma forma de libertarismo. Eles assinalam que arminianos que criticavam a teologia reformada mais antiga haviam defendido que contingência e necessidade são totalmente opostas e irreconciliáveis.28 Os autores argumentam que, se essa crítica arminiana era procedente e se necessidade e contingência eram totalmente opostas, a pessoa seria “obrigada a ser libertária ou determinista”. Mas os escolásticos reformados rejeitaram a crítica e sua premissa, esposando uma ideia que distinguia entre necessidade absoluta e necessidade relativa e defendendo a total dependência das criaturas em Deus, uma ordem contingente do mundo e a livre escolha humana.29 Os organizadores da obra des tacam desde o início de seu estudo que um pensador ortodoxo reformado como Francisco Turretini pôde afirmar, sem ressalva e sem descartar suas doutrinas da predestinação e da providência, que “nós [os reformados] demonstramos a livre escolha bem mais verdadeiramente do que nossos adversários”.30 Além disso, eles defendem que a abordagem reformada ortodoxa mais antiga de conciliar 28W illem J . Van A sselt; J . M artin Bac; R o e lf T. te Velde; M arin us Schouten, “Introduction”, in: R T F, p. 36-8 , citando Philip van Lim borch, Iheologia christiana adpraxinpistatis ac promotionem pacis christianae unice directa (A m sterdam : H enricus W etstenius, 1686), II.viii.13: “Contradictoria sunt, libere seu contingenter quid & necessário fieri; nam Übere ac contingens sit, quod potest non fieri, necessário autem quod non potest non fieri: H aec itaque nullo respectu conciliari potest.” 29Van A sse lt et al., “Introduction”, in: R T F, p. 1 5 ,3 7 . E sse entendim ento da contingência ou não é percebido ou é com preendido de form a totalm ente errada por D avid En gelsm a, Review A rti- cle [Resenha]: Reformed thought on freedom, Protestant Reformed Theological Journal, 49/1 (2015), p. 94-106 (aqui: p. 106), o qual pressupõe que essa confirm ação da contingência indica que D eus depende de decisões hum anas. 30Van A sselt, et al., “Introduction”, in: R T F, p. 15, citando Francisco Turretini, Institutio theo- logiae elencticae, in qua status controversiaeperspicue exponitur, praecipua orthodoxorum argumentapro- ponuntur, & vindicantur, & fontes solutionum aperiuntur (G eneva: Sam uel de Tournes, 1679-1685), 3 vols., X .i.3 ; tradução em inglês: Institutes o f elenctic theology, tradução para o inglês de G eorge M usgrave G iger, organização de Jam es T. D ennison (Phillipsburg: Presbyterian & Reform ed Publishing, 1992-1997), 3 vols. INTRODUÇÃO: O PRESENTE ESTADO DA QUESTÃO 31 necessidade com contingência e liberdade decorre da lógica modal de teorias medievais tardias de contingência simultânea ou sincrônica.31 Conforme ficará claro no que se segue, a constatação feita por Van Asselt e seus colaboradores em Reformed thought onfreedom de que a antiga abordagem reformada não é uma forma de compatibilismo nem uma forma de libertarismo, nem mesmo uma espécie de incompatibilismo determinista, mas uma teoria de “liberdade dependente”, ocupando ela própria um lugar importante no debate. A importância da constatação é que ela rejeita o paradigma moderno padrão de analisar a questão da liberdade humana e da divina determinação e, em con sequência, altera os termos do próprio debate, opondo-se a uma tendência de afirmar o paradigma moderno e sua terminologia e de reduzir a uma versão de libertarismo o argumento a favor da contingência sincrônica. Boa parte da abordagem alternativa à questão da contingência e da liber dade em Reformed thought on freedom depende de um argumento histórico de que os ortodoxos reformados do século 17 não apenas empregaram bastante a teologia escolástica medieval, conforme já tem sido prontamente reconhecido em grande parte de estudos acadêmicos recentes, mas mais especificamente empre garam pensamento escotista para entender a lógica da vontade divina, conforme analisado primeiramente na obra magistral de Antonie Vos.32 Na descrição do pensamento medieval tardio feita por Vos, o pensamento de Duns Escoto sobre a contingência, especificamente a contingência sincrônica, marcou uma época na teologia e filosofia ocidentais, ao finalmente pôr de lado a sombra do deter minismo filosófico antigo e ao demonstrar como a liberdade radical de Deus em sua vontade para o mundo assegura a contingência do próprio mundo e abre espaço para uma verdadeira liberdade às criaturas. O entendimento de Vos sobre 31Van A sselt, et al., “Introduction” , in: R T F , p. 28, 30-43. Existem várias m aneiras de definir “contingência sincrônica” ou, com o tam bém foi identificada, “sim ultânea” e as form as alternativas “contingência diacrônica”, “tem poral” ou “estatística” . E m consequência, “contingência sincrônica significa que por um instante há um a verdadeira alternativa para a situação que de fato acontece” (ibidem , p. 41). N essa explicação, a contingência sincrônica pode ser definida com o contingência inteligívelque tem origem em um a presente potência de ser de outra form a (ou não ser); e con tingência diacrônica com o contingência inteligível com raízes em um a possibilidade passada de ser de outra form a: a pressuposição é que, de acordo com a contingência sincrônica, o m om ento presente é contingente, ao passo que, de acordo com a contingência diacrônica, o presente m om ento é necessário no sentido estrito de que não pode ser de outra form a. O m odificador “sincrônico” é usado especificam ente para indicar um a ideia de contingência que é um a alternativa à teoria que restritivam ente identifica a contingência com a m udança tem poral. C f. sem elhantem ente, Antonie Vos, “A lw ays on tim e” , p. 70-3. 32M ais preem inentem ente em A ntonie Vos, The philosophy o f John Duns Scotus (Edinburgh : Edinburgh University Press, 2006). 32 VONTADE DIVINA E ESCOLHA HUMANA liberdade e contingência está por trás da argumentação de Reformed thought on freedom e, mais recentemente, forneceu boa parte da base conceituai para um estudo da vontade divina por J. Martin Bac, bem como para um esboço da dou trina reformada de Deus por Roelf Te Velde e para as análises da teologia de Richard Baxter e da ética de Samuel Rutherford feitas por Simon Burton.33 Essa interpretação da antiga doutrina reformada tem sido duramente cri ticada, principalmente por Paul Helm o qual tem defendido longa e detalha damente que Calvino sustentava uma ideia compatibilista da vontade divina e da liberdade humana.34 Ele entende que há uma continuidade significativa de pensamento entre Calvino e os ortodoxos reformados e, por consequência, tem defendido tanto que os ortodoxos reformados não adotaram a teoria da contin gência sincrônica quanto também que o conceito em si não fornece nenhuma explicação satisfatória para a liberdade humana e a determinação divina.35 A argumentação de Helm nesses moldes tem relação com sua antiga ideia, em con sonância com boa parte de recentes estudos acadêmicos revisionistas sobre a tradição reformada, de que não é possível contrastar tão facilmente o pensamento de Calvino com o pensamento “calvinista” posterior.36 Ademais, o debate entre os colaboradores de Reformed thought on freedom e Paul Helm é complicado pelo que parece ser uma discordância fundamental sobre as bases do debate em si. A pressuposição dos organizadores do livro é que as categorias modernas de libertarismo e compatibilismo (em que este é 33Bac, Perfect voill theology, R oelf T. te Velde, Paths beyond tracing out: the connection o f method and content in the doctrine o f God, examined in Reformed orthodoxy, K art Barth, and the Utrecht School (Delft: Eburon, 2010); e Sim on J. G . Burton, The hallowing oflogic: the Trinitarian method ofRichard Baxters methodus theologiae (Leiden: E . J . Brill, 2012); e ibidem, “Sam uel Rutherford’s Euthyphro dilemma: a reform ed perspective on the scholastic natural law tradition”, in: A aron Denlinger, org., Reformed orthodoxy in Scotland: essays on Scottish theology, 1560-1775 (Edinburgh: T & T Clark, 2014), p. 135-6. 34Paul H elm , “Necessity, contingency and the freedom o f G o d ”,,Journal o f Reformed Theology, 8 (2014), p. 243-62 ; ibidem , John Calvin s ideas (N ew York: O xford U niversity Press, 2004), p. 157- 83; ibidem , Calvin at the centre (N ew York: O xford U niversity Press, 2010), p. 227-72 ; e tam bém ibidem , “C alvin and Bernard on freedom and necessity: a reply to Brüm m er”, Religious Studies, 30 (1994), p. 457-65. 35T al com o em Paul H elm , “ Synchronic contingency in Reform ed scholasticism : a note o f caution”, Nederlands Theologisch Tijdschrift, 57 /3 (2003), p. 207-22 ; ibidem , “Reformed thought and freedom: som e further thoughts” Jo u rn al o f Reformed Theology, 4 (2010), p. 185-207; ibidem , “Struc- tural indifferenc ed,Journal o f Reformed Theology, 5 (2011), p. 184-205; e ibidem , Resenha de Perfect voill theology, por J . M artin Bac, Themelios, 36 /2 (2011), p. 321-33. 36Paul H elm , Calvin and the calvinists (C arlisle: Banner o f Truth, 1982); ibidem , “C alvin and the covenant: unity and continuity”, Evangelical Quarterly, 55 (1983), p. 65-81; e ibidem , “W as C alvin a federalist?”, Reformed TheologicalJournal, 10 (1994), p. 47-59. INTRODUÇÃO: O PRESENTE ESTADO DA QUESTÃO 33 entendido com um sentido determinista) não esgota o assunto: na opinião deles, a antiga doutrina reformada não corresponde nem à definição libertária nem à compatibilista/determinista. Por outro lado, parece que os argumentos de Helm aceitam a premissa de que a necessidade e a contingência causai ou ôntica, enten dida como a possibilidade inerente de coisas e acontecimentos serem de outra forma, são incompatíveis e que, portanto, não há nenhuma terceira categoria de explicação entre as opções libertária e compatibilista. Por consequência, Helm conclui que, ao negarem que os ortodoxos reformados eram compatibilistas, os escritores de Reformed thought on freedom têm, em última instância, de situar os reformados no campo libertário,37 uma conclusão que, como já vimos, eles negam. A abordagem de Helm à ortodoxia reformada também encontrou argumen tos históricos, ilustrados por avaliações no século 18 e controvérsias no século 19 sobre a filosofia de Jonathan Edwards, com o resultado de que houve uma importante mudança em entendimentos fundamentais sobre necessidade e con tingência no pensamento reformado no final do século 17 e início do 18.38. Esses argumentos entendem que Edwards era determinista nos moldes de Hobbes e Locke, que descartaram a contingência genuína na ordem do mundo e, também nesse sentido, reduziram a liberdade humana à espontaneidade da vontade e à ausência de coerção. Entende-se, portanto, que a ideia de Edwards sobre a liber dade humana distingue-se da afirmação reformada tradicional de contingência e liberdade, a qual — segundo se alega — não limita a liberdade à espontaneidade e à ausência de coerção, mas as define da perspectiva de possibilidades alterna tivas reais pertencentes às faculdades humanas. A resposta de Helm a essa linha de argumentação foi oferecer uma análise cuidadosa do pensamento reformado posterior, basicamente o de Francisco Turretini, que indica uma continuidade de pressupostos filosóficos entre Turretini e Edwards, sendo Turretini entendido, à semelhança de Edwards, como um compatibilista que nega a alternatividade.39 37H elm , Resenha de Perfect w ill tbeology, p. 322. 38C f. Fisher, “Philosophy o f Jon ath an Edw ards”, p. 289-93 ; W right, “Edw ards and the A rm i- nians on the freedom o f the will” , p. 241 -6 1 ; com M uller, “Jonath an Edw ards and the absence o f free choice”, p. 3-22. 3,Paul H elm , “Jonath an Edw ards and a parting o f the waysT , Jonathan Edw ards Studies, 4/1 (2014), p. 42-60 . A in da assim H elm reconhece de fato diferenças filosóficas entre a tradição refor m ada m ais antiga e Edw ards; ver Paul H elm , “A different kind o f C alvinism ? Edw ardseanism com pared w ith older form s o f R eform ed thought”, in: O liver D . C risp ; D ouglas Sweeney, orgs., A fter Jonathan Edw ards: the courses o f the New England tbeology (N ew York: O xford University Press, 2 012), p. 91-103. Veja ainda R ichard A . M uller, “Jonathan Edw ards and Francis Turretin on necessity, contingency, and freedom o f will. In response to Paul H elm ", Jonathan Edw ards Studies, 4/3 (2014), p. 266-85 ; e a resposta dada em H elm , “Turretin and Edw ards once m ore”, Jonathan 34 VONTADE DIVINA E ESCOLHA HUMANA Mais recentemente o debate se ampliou para incluir uma proposta feita por Oliver Crisp de que alguns teólogos reformados ortodoxos na verdade defendiam uma forma de libertarismo, ou pelo menos que o libertarismo não é incompatível com as definições encontradas na Confissão de Fé de Westminster. Crisp asse vera que a teologia reformada “não está necessariamente comprometida comum determinismo rígido” e permite “livre-arbítrio em algum sentido”, dificilmente uma afirmação revolucionária. Mas então ele passa a defender que um “calvinista libertário” afirmará que Deus “ordena o que quer que venha a se passar”, mas não determina nem causa todas as coisas: alguns atos humanos são simplesmente previstos e permitidos.40 Como Crisp reconhece, o entendimento de que alguns atos humanos são previstos e permitidos estaria fora das fronteiras confessionais da teologia reformada e se encaixaria naquilo que é normalmente considerado arminianismo e, acrescentamos, provavelmente indicaria uma noção de permissão indesejada que Calvino havia explicitamente repudiado. Crisp menciona que Reformed thought onfreedom defende, de modo parecido, que pelo menos parte da teologia reformada não é determinista. Ele então passa a sugerir que “boa parte da teologia reformada [...] parece” também “ser coerente com o compatibi- lismo teológico”, ao mesmo tempo que identifica Jonathan Edwards e Francisco Turretini como “deterministas rígidos”, apesar da argumentação dos autores de Reformed thought on freedom a respeito de Turretini e dos estudos acadêmicos que têm apontado para diferenças significativas entre Turretini e Edwards.41 A impressão resultante é que, pelo menos de acordo com Crisp, variantes do pen samento reformado poderiam ser deterministas rígidas, deterministas moderadas (ou compatibilistas) e libertárias. Com exceção da intenção declarada de Crisp de provocar debate e defender uma tradição reformada mais ampla do que a que tem sido normalmente reconhecida (tudo isso é bastante positivo), ele deixa de tratar do argumento apresentado pelos autores de Reformed thought onfreedom de que os entendimentos reformados do início da Idade Moderna acerca de necessidade, Edw ards Studies, 4 /3 (2014), p. 286-96 ; e observe, m ais recentem ente, Paul H elm , “Francis Turretin and Jonathan Edw ards on contingency and necessity”, in: Richard Snoddy; Jo n Balserak, orgs., Learningfrom thepast: Essays on reception, catholicity and dialogue in honour o f Anthony N . S. Lane (L ondon : B lo o m sb u ry T & T C lark, 2 015), p. 163-78. 40O liver D . C risp , D eviant Calvinism : broadening Reformed theology (M inneapolis: Fortress, 2014), p. 71. 41C risp , D eviant Calvinism , p. 64; tam bém observe ibidem , “The debate about Reform ed thought and hum an free will”,Journal o f Reformed Theology, 8/3 (2014), p. 237-41 ; e ibidem , “John G irardeau: Libertarian C alvin ist?” , ibidem , p. 2 84-300 ; o argum ento de C risp não é convincente, em particular porque ele deixa de harm onizar um a clara com preensão do “libertarism o” com aquilo que G irardeau propõe com o o rum o do início do pensam ento reform ado moderno. INTRODUÇÃO: O PRESENTE ESTADO DA QUESTÃO 35 liberdade e contingência não se encaixam facilmente nas categorias de liberta- rismo ou de compatibilismo, para não mencionar o determinismo rígido — e, por consequência, pressiona fórmulas variantes encontradas no pensamento refor mado a se encaixarem em uma ou outra das categorias contemporâneas. Uma solução alternativa ao dilema construído de forma um pouco artificial por Crisp é, acompanhando os autores de Reformed thought on freedom , defender que nem a tradição reformada nem a maior parte da tradição filosófica e teológica anterior se encaixa nessas categorias. As questões levantadas por esse debate têm implicações profundas para a compreensão da teologia reformada tradicional tanto quanto para a questão mais ampla da compreensão filosófica e teológica sobre a liberdade humana em geral. Conforme Keith Stanglin declarou a respeito em sua resenha de Refor med thought on freedom , “Essa investigação histórica faz um desafio implícito a calvinistas modernos, especialmente àqueles que subscrevem um determinismo metafísico que traz consigo conclusões teológicas intoleráveis”, como a identifi cação de Deus como o autor do pecado e a remoção da responsabilidade moral humana.42 E ainda, faz também um desafio aos arminianos críticos do calvinismo — cujas condenações podem realmente não entender o pensamento reformado tradicional sobre a livre escolha. 2 Liberdade, necessidade e escolástica protestante: um problema com múltiplas camadas O debate contemporâneo sobre a natureza e o caráter da escolástica protestante, mais recentemente sobre os antecedentes tradicionais e sobre padrões de aborda gem do problema da liberdade e necessidade entre os pensadores ortodoxos refor mados do início da Idade Moderna, tem se tornado um campo de pesquisa rico e com vários níveis, indo além da questão mais geral de continuidades, descontinui- dades e desenvolvimentos no período que vai da Idade Média Tardia até a era da Reforma e da pós-Reforma e ocupando-se de uma série de questões muito mais nuançadas sobre trajetórias específicas de argumentação: algumas com raízes nos intensos debates interconfessionais do final do século 16 e início do 17; outras exi gem um exame minucioso das distinções escolásticas acerca da relação entre Deus e o mundo, onipotência divina e liberdade, necessidade e contingência, conforme esses conceitos foram usados e debatidos na Idade Média Tardia; e ainda outras se estendem por quase todo o período da história intelectual ocidental. 42K eith D . Stanglin , Resenha de Van A sselt et al., Reformed thought on freedom, Calvin Theo- logicalJournal, 46 /2 (2011), p. 421. 36 VONTADE DIVINA E ESCOLHA HUMANA Especificar essas questões de certo modo a minimis ad maximis também produz uma série de sobreposições — de problemas acadêmicos, de histórias da pesquisa acadêmica e de estados da pesquisa, e — pelo que sei — até agora várias dessas questões não foram analisadas conjuntamente. A semelhança da série de questões históricas que acabei de assinalar, a situação da pesquisa em estudos acadêmicos contemporâneos sobre o problema da liberdade e necessidade no início do pensamento reformado do começo da Idade Moderna tem ela própria múltiplas camadas. Em primeiro lugar, perguntas acerca da relação do pensamento dos reformadores com o de seus sucessores na era ortodoxa a respeito da ques tão da liberdade e necessidade mantêm alguns dos contornos do velho debate “Calvino versus calvinistas”. O desenvolvimento foi contínuo ou descontínuo? Quais foram os reformadores da primeira e da segunda geração (se é que houve algum) que forneceram as bases diretas para o desenvolvimento protestante? Acaso a ascensão da escolástica protestante com seu amplo acesso à tradição mais antiga altera o ponto de vista da doutrina reformada? Foi uma altera ção formal provocada pela introdução do método escolástico ou uma alteração substantiva no conteúdo doutrinário? E, caso tenha sido uma questão de con teúdo, essa alteração foi na direção de um modelo mais determinista ou predes- tinacionista ou na direção oposta? Em segundo lugar, admitindo-se que escritores reformados do século 17 tiveram acesso detalhado e cada vez mais específico à mais ampla tradição patrís- tica e medieval da teologia e filosofia,43 surge uma série de perguntas relativas ao acolhimento e apropriação. Como escritores reformados tiveram acesso a padrões de argumentação mais antigos, muitas vezes escolásticos, tendo em vista sua ati tude fundamentalmente diferente da tradição de sua contraparte católico romana e também considerando os variados antecedentes dos reformadores anteriores em diversas ordens religiosas, movimentos intelectuais e trajetórias filosóficas da Idade Média Tardia e do Renascimento? Quais foram as preferências teológicas e filosóficas dos vários escritores reformados ou do movimento confessional refor mado como um todo — a tendência era tomista ou escotista, ou mesmo eclética? 43O bserve os textos pertinentes em Irena Backus, org., The reception o f the church fathers in the West:from the Carolingians to the M aurists (Leiden : E . J . Brill, 1997), 2 vols.; veja
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