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AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA UNIDADE 1 ANTECEDENTES: A ANTIGUIDADE TARDIA TÓPICO 3 1 INTRODUÇÃO No tópico anterior tratamos da forma como os estudiosos interpretaram a transformação do mundo antigo na sociedade medieval. Agora, conheceremos os eventos que levaram a essa transformação, para podermos, nós mesmos, avaliar o processo. Isso ocorreu no período que se costuma chamar, atualmente, de Antiguidade Tardia: um período situado, de forma imprecisa, entre os primórdios da era Cristã e a quebra do poder político romano, seja com as invasões germânicas, seja com o avanço muçulmano. Você perceberá, à medida que for tomando conhecimento de detalhes dessa transformação, que vários dos preconceitos mais comuns sobre a Idade Média, especialmente no que se refere aos povos germânicos, estão vinculados a esse período, mas não têm razão de ser. No �nal do tópico, as leituras complementares escolhidas reforçarão mais ainda essa nossa a�rmação e trarão um panorama mais amplo sobre o quotidiano dos homens do início do período medieval. Boa leitura! 2 O AUGE E A DECADÊNCIA DO IMPÉRIO ROMANO Prezado(a) acadêmico(a)! Unidade 1 - Tópico 3 Vamos falar sobre o processo de transformação do Império Romano na cultura medieval. Repare, ao longo do texto, que várias das características medievais estão surgindo nesse momento. As conquistas militares sempre estiveram no centro da estrutura do Estado romano e foram elas que possibilitaram a grandeza e a glória do Império. A conquista de territórios possibilitava a ampliação das áreas sob o comando de Roma, garantindo a paz ao livrar as fronteiras da presença dos povos bárbaros. Com as conquistas, eram transformados em escravos (e, geralmente, transferidos para outras partes do Império). Foi essa quantidade enorme de escravos que pôde manter o modo de vida luxuoso dos patrícios romanos. No entanto, como a escravidão era baseada essencialmente nos prisioneiros de guerra, era necessário conquistar terras sem parar, sob risco de o sistema econômico entrar em colapso. No entanto, muitas conquistas signi�cavam muitos problemas. Havia a necessidade de ocupar essas regiões, fundar e manter cidades e garantir o bem- estar dos romanos que lá vivessem. Regiões muito distantes eram de difícil controle e os transportes terrestres não eram tão bons quanto os marítimos. Por esse motivo, o Império Romano pôde desenvolver-se com facilidade ao redor do Mar Mediterrâneo, ao passo que enormes regiões na Europa, ao norte dos rios Reno e Danúbio, permaneceram de fora, servindo de lar a dezenas de povos nômades e externos à cultura romana (chamados ‘bárbaros’ por eles). Com o tempo, a administração dessa máquina militar e administrativa tornou-se excessivamente cara, especialmente pela necessidade de se manter um exército muito grande e muito poderoso, e as conquistas se tornaram inviáveis. O reinado de Trajano assistiu à máxima expansão do Império, com a breve conquista da Armênia e da Mesopotâmia, em 116-177 d.C. A partir desse momento, as conquistas praticamente cessaram e a estrutura econômica baseada no escravismo lentamente entrou em decadência. FIGURA 1 – IMPÉRIO ROMANO EM SUA MÁXIMA EXTENSÃO, SOB TRAJANO (177 D.C.) Unidade 1 - Tópico 3 Fonte: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/0/00/Roman_Empire_Tr ajan_117AD.png/800px-Roman_Empire_Trajan_117AD.png>. Acesso em: 15 fev. 2013. 2.1 POR QUE A DECADÊNCIA? Provavelmente, você vai se perguntar: como é possível que um império tão extenso e poderoso como o romano entrasse em decadência? A resposta é complexa e envolve diversos fatores: sociais, culturais, políticos e religiosos. A própria preocupação que temos com a “decadência” de Roma já é, em si só, signi�cativa: desde Gibbon, pelo menos, essa é uma questão que assombra os estudiosos. Como vimos no tópico anterior, os estudiosos sempre analisam a História a partir de questões com que se deparam em sua própria época. Seria a preocupação com a queda do Império Romano um re�exo do temor de decadência da nossa própria sociedade? Ocorre que o Império Romano era mais frágil do que parecia. Mesmo hoje, as modernas estratégias de administração e as tecnologias avançadas de comunicações e transportes nem sempre são su�cientes para garantir a e�ciência do governo de um território tão extenso como era o do Império Romano, que dirá há mais de 1.500 anos! Unidade 1 - Tópico 3 http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/0/00/Roman_Empire_Trajan_117AD.png/800px-Roman_Empire_Trajan_117AD.png http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/0/00/Roman_Empire_Trajan_117AD.png/800px-Roman_Empire_Trajan_117AD.png A aparente pujança do Império era ilusória ou no mínimo uma memória de um passado distante. Toynbee (1986) considerava, como vimos no tópico anterior, que o Império já havia sido criado em um formato politicamente disfuncional e que a autoridade do imperador foi mantida à custa de muito sangue, pois do contrário seria insustentável. Não havia um sistema e�ciente e seguro de arrecadação de tributos, por isso o Império não dispunha de recursos su�cientes para manter uma burocracia funcional. O resultado era uma concentração exagerada de poder e riqueza nas mãos do imperador. No entanto, dependia da força do exército e de conspirações palacianas para manter-se no poder. No momento em que os imperadores decidiram (ou precisaram) interromper as conquistas, cessou o crescimento, cessaram os recursos para o Exército (que já eram mal geridos) e lentamente declinou a autoridade imperial. 2.1.1 O fim das conquistas militares As conquistas não poderiam mesmo prosseguir inde�nidamente. Apesar de sua �nalidade ser a exploração dos recursos e a escravização das populações, conquistar uma determinada região implicava trazê-la para o mundo romano, e, consequentemente, colonizá-la. Isso signi�cava a concessão de terras para colonos ricos, a construção de estradas, a transferência de população para o local, o estabelecimento de uma burocracia e uma estrutura urbana em alguns lugares e a manutenção de tropas legionárias enquanto a região ainda oferecesse riscos de insurreição ou estivesse na fronteira do Império. Por vezes, as legiões �cavam muitas décadas estacionadas na mesma região. Avançar, às vezes, era arriscado. Rios largos como o Reno e o Danúbio eram fronteiras naturais relativamente fáceis de manter, mas conquistar a margem oposta deixaria as novas regiões vulneráveis. A menos que toda a nova região de vastas planícies fosse ocupada até o próximo rio, o custo de manter legiões voltadas para regiões abertas poderia ser proibitivo. Na Bretanha, a solução encontrada foi construir a Muralha de Adriano, para isolar os povos gaélicos do norte. Em outras regiões, como a Germânia, os con�itos eram inevitáveis. A conquista da Dácia (atual Romênia), em 105-106 d.C., demonstrou com clareza essa di�culdade. A região, localizada além-Danúbio, era a única do Império que não tinha uma barreira natural em sua fronteira exterior, e sua colonização foi tarefa complexa e que em poucos anos malogrou. A grande diminuição populacional (os dácios foram escravizados e movidos para outras regiões do império) não foi compensada pelo a�uxo de imigrantes de outras regiões do Império, de modo que a região �cou bastante despovoada. A instabilidade militar e o despovoamento das províncias limítrofes levaram ao seu abandono pelo Imperador Aureliano em 271. Unidade 1 - Tópico 3 2.1.2 A crise do século III No início do século III, o império estava enfraquecido e ameaçado por dois inimigos poderosos: os diversos povos germânicos ao norte, e o Império Sassânida (de origem persa) a leste. A necessidade de garantir a segurança das duas fronteiras gerava gastos extraordinários e uma tensão permanente entre os comandantes militares e o imperador. As di�culdades fariam o Império mergulhar em uma profunda crise econômica durante pelo menos metade do século III (235- 285). O �naldas conquistas militares gerou, como vimos, uma diminuição da oferta de escravos no Império. Apesar de a condição escrava ser hereditária, os escravos conseguiam, aos poucos, libertar-se e a seus descendentes dessa situação, e não havia mais como repor esse tipo de trabalho. Por outro lado, não havia na Roma imperial uma situação econômica que favorecesse o trabalho livre, muito menos o assalariado, em grande escala, de modo que os escravos pudessem simplesmente ser absorvidos em uma economia urbana de mercado. Muito ao contrário, a crise e a concentração de legiões nas fronteiras enfraqueceram as rotas comerciais entre as províncias. O resultado foi uma diminuição do poderio econômico das cidades e um verdadeiro êxodo urbano. Preocupados em garantir sua sobrevivência, muitos romanos buscaram seu sustento no campo, onde poderiam produzir seu próprio alimento, mas deviam oferecer alguma compensação para o chefe local, único capaz de garantir efetivamente sua segurança. Mas, e o Estado? Como vimos, o Estado romano não era forte o bastante para garantir a segurança da população, e os imperadores viviam assolados por conspirações. Em parte, a crise do período entre 235 e 285 foi gerada pela fórmula da sucessão imperial. Como não havia um sucessor direto, a disputa era intensa, e quase todos os imperadores desse meio século (dos 25 imperadores, houve apenas duas exceções) foram mortos em combate ou assassinados. Junte-se a isso e às di�culdades econômicas uma série de epidemias de peste, e torna-se fácil compreender de que forma o império mergulhou em uma crise tão profunda. FIGURA 2 - O IMPÉRIO PERSA DA DINASTIA SASSÂNIDA (226-651) Unidade 1 - Tópico 3 Fonte: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/f/f0/Sassanid_Empire_2 26_-_651_%28AD%29.GIF/769px-Sassanid_Empire_226_-_651_%28AD%29.GIF>. Acesso em: 15 fev. 2013. OS SASSÂNIDAS Os Sassânidas foram uma dinastia persa que reinou no chamado Segundo Império Persa, entre 226 e 651 d.C. Seu primeiro período de apogeu, entre 309-379, coincidiu em grande parte com o período de queda do Império Romano. Seus territórios iam, em sua máxima extensão, da Líbia à Índia, do Iêmen ao lago Baikal (Rússia), chegando a incluir toda a Ásia Menor (atual Turquia). Sua religião era o Zoroastrismo. O Império Persa durou até o momento da grande expansão árabe do século VII, quando, enfraquecido pelos con�itos com o Império Bizantino, não resistiu ao avanço fulminante do Islã. FIGURA 3 - MÁSCARA DE OURO REPRESENTANDO O REI SASSÂNIDA YAZDGIRD III Unidade 1 - Tópico 3 http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/f/f0/Sassanid_Empire_226_-_651_%28AD%29.GIF/769px-Sassanid_Empire_226_-_651_%28AD%29.GIF http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/f/f0/Sassanid_Empire_226_-_651_%28AD%29.GIF/769px-Sassanid_Empire_226_-_651_%28AD%29.GIF Fonte: Disponível em: <http://iranpoliticsclub.net/library/english-library/222-years1/images/Yazdgird%2 0III%20 Sassanid%202.jpg>. Acesso em: 14 nov. 2012. No Oriente, o antigo Império Persa se reorganizava sob os Sassânidas e assustava os imperadores romanos. No norte, os germânicos (chamados de “bárbaros” pelos romanos) começavam a entrar no Império. Mesmo nas províncias africanas havia pressão de povos vizinhos, como os garamantes. O termo “bárbaros” signi�cava, originalmente, estrangeiros – para os gregos, eram os que não falavam seu idioma. Os romanos do �nal do Império viam os bárbaros germânicos com temor, e depreciavam a sua cultura por não terem uma organização social tão so�sticada quanto a do Império. Com o tempo, o termo “bárbaro” ganhou o sentido de violento ou ignorante, de modo que precisamos tomar cuidado com o seu uso. Unidade 1 - Tópico 3 http://iranpoliticsclub.net/library/english-library/222-years1/images/Yazdgird%20III%20%20Sassanid%202.jpg http://iranpoliticsclub.net/library/english-library/222-years1/images/Yazdgird%20III%20%20Sassanid%202.jpg http://iranpoliticsclub.net/library/english-library/222-years1/images/Yazdgird%20III%20%20Sassanid%202.jpg Prezado(a) acadêmico(a), você consegue perceber como é tendenciosa a denominação “invasões bárbaras”? E como é fácil perceber ‘de que lado estava’ quem criou essa denominação? O termo em alemão, para as ‘invasões bárbaras’, pode ser traduzido como “migração dos povos”. (Como você pode imaginar, os alemães, que são descendentes dos povos ‘invasores’, não iriam referir-se como “bárbaros” a seus próprios ancestrais)! 2.2 OS REFORMADORES: DIOCLECIANO E CONSTANTINO Diocleciano (284-305) pôs �m à maior parte dos con�itos ao iniciar reformas profundas, que teriam consequências muito importantes para o futuro do Império. Fortaleceu o exército, permitindo o recrutamento dos bárbaros, neutralizou o Senado e, em 286, dividiu o império em uma parte ocidental, entregue ao seu grande amigo Maximiano, e uma parte oriental – que daria origem ao Império Bizantino –, que conservou para si. Essa divisão marcava uma profunda distinção que já havia entre as metades do Império e que se acentuariam muito nos séculos seguintes. FONTE: Disponível em: <http://go.hrw.com/venus_images/0304MC05.gif>. Acesso em: 20 maio 2012. FIGURA 4 - A DIVISÃO DO IMPÉRIO ROMANO POR DIOCLECIANO, 395 D.C. Unidade 1 - Tópico 3 http://go.hrw.com/venus_images/0304MC05.gif Fonte: Disponível em: <http://go.hrw.com/venus_images/0304MC05.gif>. Acesso em: 15 fev. 2013. S O Império Bizantino será estudado na Unidade 2 deste Caderno de Estudos. Além disso, nomeou dois césares, para auxiliar os imperadores: Constâncio foi o César de Maximiano e Galério, o de Diocleciano. Este sistema, conhecido como tetrarquia, só foi e�ciente durante o reinado de Diocleciano, devido em parte às relações de amizade entre os governantes. A partir de 305, com a renúncia dos imperadores em favor dos césares, o sistema entrou em crise. No ano seguinte, Constantino, �lho de Constâncio, foi proclamado imperador por suas tropas. Dentre suas realizações, fundou a cidade de Constantinopla e tornou-a capital do Império. Constantino também é conhecido por suas ações em relação ao Cristianismo: em 313, liberou o culto e, anos mais tarde, tornou-se ele próprio um cristão. S Unidade 1 - Tópico 3 http://go.hrw.com/venus_images/0304MC05.gif Com a conversão de Constantino, a Igreja passou a desfrutar de uma posiçãobastante poderosa na política romana, como veremos no Tópico 4 desta unidade. 2.3 AS ORIGENS REMOTAS DO FEUDALISMO Como dissemos anteriormente, a divisão do Império consolidava uma cisão que já existia entre as partes ocidental e oriental. Essa divisão não era simplesmente geográ�ca: havia muitas diferenças entre as duas partes do Império. Uma das principais diferenças era econômica. A parte oriental era muito mais rica do que a ocidental, por ter ocupação muito mais antiga e intensa, um comércio mais vigoroso e cidades mais populosas. Por mais que tentassem preservar o seu ouro, os imperadores do Ocidente, ao contrário de seus equivalentes orientais, não conseguiam conter a fuga ou a estocagem de recursos, e o resultado foi uma séria crise in�acionária. Com o dinheiro perdendo praticamente todo o seu valor, cada vez mais a economia monetária, baseada no ouro e em outros metais, foi sendo substituída por uma economia natural no Império ocidental. Economia natural: é o nome que se dá a uma forma de produção que não envolve o uso do dinheiro. Nesse tipo de produção, as pessoas em geral se dedicam à subsistência, e os poucos produtos restantes são trocados por mercadorias de valor equivalente. Isso gerou tremendas consequências para o Império. Os impostos e salários começaram a ser pagos in natura, o que era muito vantajoso para os soldados e os funcionários civis. O desperdício na cobrança de impostos que a cobrança in natura causava forçou o Imperador Diocleciano a reforçar o exército com os bárbaros, que eram pagos em terras. Os colonos mais pobres �cavam arruinados com a exigência de pagamentodos impostos e ameaçavam abandonar suas fazendas, pondo em risco a produção agrícola. Unidade 1 - Tópico 3 Antes de continuar a leitura, imagine que atitudes os imperadores romanos poderiam tomar para tentar conter esse abandono das fazendas. A solução encontrada foi obrigar os trabalhadores a permanecerem para sempre em suas atividades e, mais tarde, tornar hereditária essa condição. Dessa forma, os colonos pobres, tanto os pequenos proprietários como os arrendatários, se tornavam cada vez mais dependentes de um senhor poderoso e presos à terra em que viviam: começavam a tornar-se servos. Servo é um termo que vem do latim servus, ‘escravo’. Apesar disso, os servos não eram escravos: estavam presos não a um senhor, mas à terra em que viviam. Mesmo assim, ao contrário do que se costuma pensar, a escravidão continuou existindo na Europa durante a Idade Média; apenas era mais rara. Geralmente, os escravos eram capturados de povos estrangeiros, especialmente muçulmanos, e havia muitos cristãos escravizados em terras islâmicas. No �nal do século IV, a situação havia melhorado um pouco. A tendência à economia natural e à feudalização pôde ser revertida no Oriente, onde o dinheiro voltou a ser utilizado para pagar os impostos e salários, mas isso não foi possível no império ocidental. Em parte, isso pode ser explicado pela capacidade que o Império oriental tinha de resistir à pressão dos povos bárbaros. Como dispunha de muito dinheiro, o imperador de Constantinopla podia pagar aos invasores para que fossem embora, coisa que o imperador do Ocidente não conseguia fazer. Observe que, até esse momento, as explicações para o colapso do Império Romano praticamente não �zeram menção aos bárbaros. Isso mostra que a ideia, muito comum, de que o Império teria caído simplesmente por causa das invasões bárbaras não é totalmente correta. O Império Romano do Unidade 1 - Tópico 3 Ocidente já estava em franca decadência quando as invasões do século V ocorreram. 3 OS BÁRBAROS NO IMPÉRIO DO OCIDENTE Desde o �nal do século II, os povos bárbaros vizinhos ao Império Romano estavam sendo progressivamente assentados como colonos em terras imperiais, na condição de foederati (federados), uma estratégia diplomática romana para conter os invasores, ao garantir a sua submissão (em latim, foedus). Esses povos federados ganhavam o direito a ter um governo próprio e estavam isentos dos impostos romanos, mas deviam fornecer soldados ao exército quando necessário. Os romanos que vivessem em regiões dos foederati continuavam sujeitos às leis romanas. Dentre os povos federados nos séculos III e IV estão os francos, os godos (divididos em dois ramos, os ostrogodos e os visigodos), os alamanos, os saxões, os vândalos e vários outros. Perceba que não estamos falando de pequenos bandos, mas de tribos inteiras, às vezes, milhares de pessoas, assentadas em terras romanas e mantendo sua autonomia e sua cultura no interior do Império! Havia problemas, porém, nessa aliança, para os romanos: os germânicos entendiam a condição de foederati como um contrato assinado entre líderes, não entre estados. Portanto, a aliança vencia, no seu entendimento, quando da morte do imperador romano. Isso se tornou problemático, especialmente nos séculos IV e V, quando os povos federados começaram a sofrer uma pressão intensa de um novo e terrível inimigo: os hunos. O terror inspirado por esse povo nômade levou diversos povos a atravessarem as fronteiras do Império e lá se �xarem, inicialmente com a concordância dos romanos. Os godos, que tiveram seus dois reinos nas estepes ao norte do Mar Negro destruídos pela presença dos hunos, foram os primeiros, em 376. Dois anos depois, eles entraram em confronto com as legiões romanas na Batalha de Adrianópolis. A vitória dos godos, atribuída à força de sua cavalaria e aos sérios erros estratégicos do exército imperial, é considerada um dos grandes marcos da decadência �nal do poderio romano. A partir deste momento, diversos povos Unidade 1 - Tópico 3 germânicos se estabeleceriam dentro do Império e começariam a constituir seus domínios. Como você provavelmente já sabia ou já percebeu, o que chamamos de reinos bárbaros (que serão vistos com mais detalhe no próximo tópico) surgiram dos domínios que os germânicos passaram a conquistar. O grande sentido de lealdade dos germânicos a seus líderes lhes deu o status de reis, e as leis próprias que eles podiam seguir lhes davam autonomia como reinos. Posteriormente, a associação desses reis com a Igreja consolidou a aura de divindade que estava associada à nobreza. Uma tentativa de invasão da Itália foi rechaçada pelo general Estilicão (que era de origem vândalo-romana). Após a morte de Estilicão, o chefe godo Alarico comandou um cerco a Roma e, em 410, tomou a cidade e saqueou-a durante três dias. São Jerônimo descreveria o saque de Roma em tom de lamentação, da seguinte forma: Quem acreditaria que Roma, edi�cada pelas vitórias sobre todo o universo, viesse a cair; que tivesse sido simultaneamente a mãe das nações e o seu sepulcro; que as costas do Oriente, do Egito e da África, outrora pertencentes à cidade dominadora, fossem ocupadas pelas hostes dos seus servos e servas; que em cada dia a santa Belém recebesse como mendigos pessoas de um e outro sexo que haviam sido nobres e possuidoras de grandes riquezas? (apud ESPINOSA, 1981, p. 9). À medida que os povos germânicos invadiam com mais intensidade o Império, os hunos começaram a se tornar cada vez mais ameaçadores ao próprio Império Romano. 3.1 OS HUNOS Há muitas controvérsias sobre a unidade étnica e linguística desse povo – como, de resto, também entre os povos germânicos. Os hunos eram uma confederação de povos nômades, provavelmente originários das estepes da Ásia Central (região entre o Mar de Aral e a Mongólia), que falavam uma língua provavelmente aparentada ao turco. Unidade 1 - Tópico 3 O historiador de origem grega Amiano faz uma descrição dos hunos que dá uma demonstração clara do terror que esses homens infundiam nos romanos: Todos eles têm membros compactos e �rmes, pescoços grossos, e são tão prodigiosamente disformes e feios que os poderíamos tomar por animais bípedes ou por toros desbastados em �guras que se usam nos lados das pontes. Tendo, porém, o aspecto de homens, embora desagradáveis, são rudes no seu modo de vida, de tal maneira que não têm necessidade nem de fogo nem de comida saborosa; comem as raízes das plantas selvagens e a carne semicrua de qualquer espécie de animal que colocam entre as suas coxas e os dorsos dos cavalos para as aquecer um pouco. Vestem-se com tecidos de linho ou com as peles de ratos silvestres cosidas umas às outras, e esta veste serve tanto para uso doméstico como de fora. Mas uma vez que meteram o pescoço numa túnica desbotada, não a tiram ou mudam até que pelo uso quotidiano se faça em tiras e caia aos pedaços. (apud ESPINOSA, 1981, p. 4-5). FIGURA 5 - COMPARAÇÃO ENTRE UM SOLDADO GERMÂNICO (ESQUERDA), UM OFICIAL HUNO (CENTRO) E UM GUERREIRO HUNO (DIREITA) Fonte: Disponível em: <http://www.ernak-horde.com/huns.jpg>. Acesso em: 18 out. 2012. Além de assustadores em sua aparência e seus modos, os hunos amedrontavam os romanos por serem extraordinários guerreiros: sob o comando de Átila (406- 453), ameaçaram a unidade do Império do Oriente, chegaram às portas de Constantinopla e de Roma (embora não tenham saqueado nenhuma das duas Unidade 1 - Tópico 3 http://www.ernak-horde.com/huns.jpg cidades) e, entre os dois eventos, chegaram a colaborar com o Império do Ocidente na luta contra os visigodos. Os hunos chegaram a criar um império nômade que se estendia da atual Alemanha até os montes Urais (na Rússia, no limite tradicional entre a Europa e a Ásia), e do Mar Negro e rio Danúbio até o Mar Báltico, ao norte. Com a morte de Átila, os hunos foram rapidamente dominados e seu império desmoronou. FIGURA 6 - OS DOMÍNIOS HUNOS EM 450 D.C. Fonte: Disponívelem: <http://www.emersonkent.com/images/maps/roman_hunnic_empire_450.jpg>. Acesso em: 18 out. 2012. Os domínios dos hunos, em sua máxima extensão, estendiam-se do rio Reno (na fronteira da Alemanha) até as proximidades do mar Cáspio, e da atual Estônia até o rio Danúbio. 3.2 A QUEDA DE ROMA O colapso do império huno coincidiu com um enfraquecimento cada vez maior do Império Romano, que não conseguia mais honrar os acordos ou pagar os tributos que devia aos foederati. Em 476 d.C., Odoacro, líder dos hérulos, depôs Rômulo Unidade 1 - Tópico 3 http://www.emersonkent.com/images/maps/roman_hunnic_empire_450.jpg Augusto (ou Augústulo, como foi muitas vezes chamado, em alusão ao seu caráter fraco, o último imperador romano) e abriu caminho para a desagregação completa do império do Ocidente. A partir daí, consolidam-se os vários reinos comandados por germânicos, e novas ondas de imigração tornariam irreversível o processo de feudalização da Europa. Prezado(a) acadêmico(a), apresentamos na Leitura Complementar a seguir o início do 4º Capítulo do livro Origens da Idade Média, de William C. Bark, onde o autor discute em linguagem informal as modi�cações pelas quais o mundo romano passou nos primeiros cinco ou seis séculos da nossa Era. Repare que, em um certo trecho do texto, o autor se dedica a atacar a teoria de Henri Pirenne sobre a permanência do mundo romano com os germânicos. Você consegue identi�car onde? Releia o trecho correspondente no Tópico 2, se for necessário. LEITURA COMPLEMENTAR ORIGENS DA IDADE MÉDIA William C. Bark Se Júlio César ou Adriano, que muito viajaram pelo mundo civilizado de suas respectivas épocas, tivessem podido visitar a Europa do século V ou VI, teriam encontrado muitas alterações intrigantes na aparência externa do mundo que conheceram. Essas modi�cações, bastante acentuadas no Oriente, no Ocidente teriam sido ainda mais evidentes, especialmente no estado das cidades, grandes e pequenas, na composição e disposição dos exércitos, o caráter do transporte e do comércio, as ocupações quotidianas e mesmo a roupa do povo. Ambos teriam sem dúvida considerado o Ocidente romano como inteiramente decadente. Mesmo assim, o teriam reconhecido. Embora César sem dúvida se pudesse aborrecer com o estado das armas romanas e Adriano entristecer-se com a sorte de suas grandes cidades, a “deterioração” que teriam encontrado seria pelo menos a deterioração de um ambiente, mais ou menos familiar, de criações e costumes romanos. Muito mais surpreendente teria sido a descoberta, se lhes fosse possível fazê-la, de que por maiores que parecessem as modi�cações externas, eram pequenas se comparadas a certas alterações mais sutis da perspectiva, dos valores, dos modos de pensar e das aspirações. A evolução política, econômica e social [...] foi um movimento de repulsão às velhas práticas romanas, mas no qual ainda se identi�cavam as antigas instituições que haviam provocado. As demais modi�cações representavam um movimento no sentido de alguma coisa nova e inteiramente estranha à experiência de um César ou um Adriano, e dentro em Unidade 1 - Tópico 3 breve se expressariam no comportamento externo, bem como no pensamento e no sentimento. Os edifícios, ruas, teatros, obras de engenharia de uma grande cidade, nem sempre desaparecem quando os que foram capazes de planejá-los e executá-los já não existem. O túmulo de um imperador pode durar vários séculos, servindo posteriormente como palácio papal, e um palazzo pode continuar existindo como casa de cômodos. Mesmo assim, ainda há modi�cações: a roupa lavada é pendurada nas janelas da casa de cômodos, minaretes são acrescidos à Santa So�a. As modi�cações no reino do pensamento são mais difíceis de perceber. O sentido verdadeiro de uma instituição como o exército, ou o sistema de administração política, pode sofrer uma transformação vital sem se revelar em ajustes de nomes e aspectos. Nessas circunstâncias, uma organização social aparentemente vigorosa, uma religião, por exemplo, ou um sistema �scal, pode tornar-se mera casca que não denuncia externamente a profunda alteração que sofreu. A função do estudo histórico é interpretar a modi�cação como um todo, manter especi�camente os sentidos internos que não se mostram na aparência externa. Não é necessário dizer que isso nem sempre é fácil. Como já vimos, o vinho sírio era transportado para a França no século II, e também no século VI. O produto era o mesmo, o meio de transporte o mesmo, a fonte e o destino os mesmos: nada mais provável, portanto, que as condições continuassem as mesmas, que as circunstâncias predominantes no Mediterrâneo perdurassem. A história não pode ser escrita sem analogias semelhantes, baseadas nesse tipo de fatos. Não obstante, nessa interpretação o historiador pode deixar de identi�car novas evoluções de aspecto não familiar, pode passar sobre o trigo para ir ocupar- se do joio. Pode estar descrevendo o lado de fora de uma casca, deixando a impressão de que se trata mais do que de uma simples casca. O objetivo deste capítulo é examinar quatro aspectos diferentes do novo mundo que se formava atrás da casca do velho, e era parcialmente obscurecido por ela. A modi�cação que marcou época, ou a série de modi�cações, ocorridas entre os séculos IV-V e IX-X, foram tanto internas como externas: 1) na forma pela qual os homens pensavam e nos objetos de seus pensamentos; 2) na forma pela qual viviam e se expressavam; 3) naquilo que julgavam compensador fazer; e 4) na forma pela qual o faziam. O que estava realmente ocorrendo nesse período — isto é, o que os homens faziam e os pensamentos que os levavam a tal ação — era muito diverso do que ocorrera na época do poderio romano. [...] A tese primordial [...] deste trabalho como um todo é a de que algo novo, distinto e essencialmente original começou na parte europeia ocidental do Império Romano, que seus elementos são identi�cáveis a partir do século IV, e alguns até mesmo Unidade 1 - Tópico 3 RESUMO DO TÓPICO O Império Romano estava desgastado com o �m das conquistas militares no século II, e iniciou um longo processo de decadência. Apesar de revertido parcialmente em alguns momentos, esse processo levou a uma ruralização progressiva da sociedade romana. Os imperadores Diocleciano e Constantino �zeram reformas profundas na tentativa de salvar o Império da decadência. Dentre elas, a divisão do Império antes. Esse “algo de novo” talvez se compreenda melhor como uma nova atitude para com a vida. Nos séculos de sua formação, ela é parcialmente obscurecida pelas aparências externas dos remanescentes romanos, mais familiares e mais evidentes, pela turbulência da época e pela escassez de nossas fontes. Grande parte das informações que mais gostaríamos de ter não pareceu aos contemporâneos como merecedora de ser preservada, sob qualquer forma; outra parte perdeu-se para nós em incêndios, guerras, mau trato. Talvez a pior ameaça de todas tenham sido certas ideias �xas poderosas: a preocupação com a imensa epopeia do declínio e queda, a opinião “autorizada” de que o princípio da Idade Média foi uma época de ignorância supersticiosa e letargia geral, animada apenas por instantes de violência e crueldade bárbaras. [...] Sabemos agora que a Idade das Trevas não foi de trevas. Ignorância, letargia, desordem, existiram então como hoje, e longe estiveram de predominar numa época ansiosa de conhecimento, vigorosa em seu modo de viver e de se expressar, e idealista nas suas construções. Talvez não seja demais dizer que a sociedade medieval tinha formas funcionais com que a idade antiga nem sonhara, formas essas que levaram a �ns jamais imaginados em épocas anteriores. Por “funcional” entendo que era uma sociedade ativa, trabalhadora, experimentadora, cometendo erros frequentemente, mas também utilizando a energia de seu povo muito mais integralmente que suas predecessoras, e �nalmente permitindo a esse povo um desenvolvimento muito maisamplo e mais livre. O fato de que as condições, acontecimentos e povos se tivessem reunido de tal forma no princípio da Idade Média foi extremamente feliz para os atuais herdeiros da tradição ocidental. FONTE: BARK, William C. Origens da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 97-101. Neste tópico você viu que: Unidade 1 - Tópico 3 em Oriental e Ocidental e a aceitação de bárbaros no exército. Os bárbaros passaram a ser assentados no interior do Império na condição de federados, tendo direito a seguir suas próprias leis e com grande autonomia em relação a Roma. Os hunos foram um povo especialmente temido por bárbaros e romanos, e a pressão que eles faziam acelerou a queda do Império. AUTOATIVIDADES Responder UNIDADE 1 - TÓPICO 3 Tente imaginar a vida moderna baseando-se nas trocas de produtos e em pagamentos in natura. Seria possível? Se o dinheiro não circulasse entre nós, seria viável vivermos em cidades? Como as pessoas fariam para sobreviver? De que formas as alianças com os foederati representavam um indício de fraqueza do Império Romano? Tente pensar em todas as razões que puder. Unidade 1 - Tópico 3 Responder Responder 1 Explique a relação entre a crise do escravismo e a decadência do Império Romano. 2 Estabeleça uma relação entre a pressão dos bárbaros e as crises políticas do Império. Unidade 1 - Tópico 3 Responder Responder Tópico 2 Tópico 4 Conteúdo escrito por: 3 Como foi dito no tópico anterior, William C. Bark acredita que o Império Romano caiu por causa das tentativas de mantê-lo. Encontre neste tópico elementos que permitam con�rmar essa teoria. Unidade 1 - Tópico 3 Todos os direitos reservados © Prof. Fabiano Dauwe Prof. Thiago Juliano Sayão Prof. Itamar Siebert Unidade 1 - Tópico 3
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