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Natalia Quintino Dias Obstrução arterial Obstrução arterial periférica (sinônimo de doença arterial periférica) é a manifestação da aterosclerose no território arterial periférico, gerando lesões estenóticas que levam a uma condição de insuficiência vascular no território periférico. Anatomia Sistema arterial dos membros inferiores A irrigação arterial troncular dos membros inferiores compreende a artéria femoral comum e seus ramos. A artéria femoral comum, logo, bifurca-se em artéria femoral profunda, lateral, superficial e medialmente. -- A artéria femoral profunda, que pode ser única ou dupla, também logo se divide, gerando diversos ramos que irrigam a musculatura da coxa e contribuem com a circulação genicular. -- Já a artéria femoral superficial não se divide e não tem importante participação na irrigação da coxa, sendo uma artéria de condução, que origina a poplítea, logo após o canal dos adutores (Hunter). A artéria poplítea tem sua porção supra e infragenicular e se anastomosa com as artérias geniculares. Na porção infragenicular, a poplítea divide-se em artéria tibial anterior, que, após o tornozelo, se torna a pediosa, e em tronco Natalia Quintino Dias tibiofibular, que logo se divide em artéria tibial posterior e fibular. Na transição do pé para o tornozelo, comunicantes anastomosam a fibular com as tibiais. E, no pé, pediosa e tibial posterior unem-se, gerando o arco plantar. Sistema venoso dos membros inferiores Quadro clínico A apresentação clínica é espectral, com manifestação proporcional ao grau da estenose, à extensão do acometimento, ao desenvolvimento de rede colateral e à taxa de atividade do paciente, compreendendo um espectro que inclui: assintomáticos, dor atípica, claudicação e isquemia crítica. As duas principais classificações clínicas usadas são: Rutherford e La Fontaine. Classificação Rutherford 1. assintomático; 2. claudicação leve; 3. claudicação moderada; 4. claudicação grave; 5. dor isquêmica ao repouso; 6. perda tecidual mínima, úlcera não cicatrizada, gangrena focal; 7. perda tecidual maior, gangrena acima do nível transmetatársico. Os estágios de 4-6 correspondem a isquemia crônica com membro ameaçado. Classificação de La Fontaine 1. assintomático; 2. claudicação intermitente: A. leve/limitante (> 200m), B. grave/incapacitante (< 200m). 3. dor isquêmica ao repouso; 4. lesão trófica, gangrena, úlcera. Os estágios 3 e 4 correspondem a isquemia crônica com membro ameaçado. Assintomático Até 50% dos pacientes. Os sintomas podem ser escassos, principalmente quando a instalação da obstrução é lenta, com formação de vasos colaterais, e muitas vezes o paciente já possui comorbidades, as quais o fazem reduzir sua atividade, mascarando sintomas. A importância da detecção nessa fase é a investigação de outros sítios de aterosclerose e redução do risco de IAM, AVC e morte. Claudicação intermitente É uma dor funcional, que aparece após andar uma certa distância, e tende a melhorar com o repouso. A intensidade é crescente e diretamente proporcional ao tempo de marcha, principalmente em panturrilha, mesmo se obstrução mais alta. Não ocorre com o paciente em repouso ou ao assumir alguma posição especial. Sempre vem oriunda de esforço. Com a progressão da doença, há encurtamento da distância de marcha e alongamento do repouso necessário, até cessar a dor. Ao exame físico, os pacientes apresentam ausência de pulsos, conforme obstrução e ausência de dor ao repouso. Em casos mais avançados, pode haver palidez e frialdade das extremidades, que pioram à elevação do membro e melhoram quando pendentes (teste da hiperemia reativa). Em casos de obstrução aorto-ilíaca, pode-se observar a manifestação da Síndrome de Leriche que, além da claudicação intermitente ou isquemia crítica em membro e glúteo, cursa com pulsos todos ausentes e disfunção erétil. Isquemia crítica ou isquemia crônica com ameaça ao membro Inclui pacientes com dor isquêmica ao repouso (Rutherford 4, La Fontaine 3) e alterações tróficas, Natalia Quintino Dias como úlceras e gangrenas/necroses secas ou úmidas, infectadas ou não (Rutherford 5 e 6, La Fontaine 4). Ao exame físico destes pacientes, além dos achados nos claudicantes, pode-se haver atrofia muscular, xerose, pele brilhante, alopecia e espessamento ungueal. Em casos mais avançados ou tardios, podem surgir petéquias por lesão capilar isquêmica e alterações neurológicas, por neurite isquêmica crônica. Dor isquêmica ao repouso Dor nas porções mais distais há mais de 2 semanas – geralmente pior no pé –, sem melhora com analgésicos simples, pior à noite e à elevação, melhora o membro pendente. Ao contrário do que ocorre na claudicação, na isquemia crítica, pode haver melhora da dor ao deambular, devido ao efeito gravitacional. Lesão trófica Úlcera arterial e/ou gangrena. Úlcera arterial: em geral, são rasas, dolorosas e não sangrantes. Elas iniciam-se como pequenas feridas traumáticas que não cicatrizam pela irrigação arterial insuficiente. Já as úlceras sem antecedente de trauma ocorrem em ramos arteriais terminais. Nos diabéticos, úlceras ocorrem, geralmente, em pontos de pressão óssea. As localizações mais frequentes são: maléolo lateral, áreas de pressão, pododáctilos e pré-tibiais. A úlcera apresenta-se com borda bem delimitada e baixa, base com granulação pálida ou capa necrótica, seca, muito dolorosa. A complicação associada mais frequente é a infecção secundária (celulites, que podem ser de repetição, e osteomielite). Gangrena: inicia-se com palidez, em geral em pododáctilos e antepé. Pode evoluir para cianose não fixa e cianose fixa, e depois necrose, que pode ser seca, dura, bem delimitada, ou úmida, associada a edema, vesículas e flogismo. Cianose distal em pododáctilos em pés quentes sugere “Síndrome do dedo azul”, condição resultante de ateroembolismo proximal, geralmente ilíacas com ateromatose, mas também pode ocorrer em aneurismas aorto-ilíacos e femoro-poplíteos, com oclusão de artérias digitais. Diagnóstico É clínico, através da queixa da paciente + ausência de pulsos + déficit de perfusão + índice tornozelo- braquial (ITB) alterado. ITB: apresenta alta sensibilidade e especificidade para DAOP, o valor é obtido através da PAS, em território tibial, dividida pela PAS braquial. Técnica: esfigmomanômetro ou USG-Doppler (Doppler de onda pulsada), com paciente em decúbito dorsal horizontal, aquecido, após repouso por 15 min; > 1,4 = calcificação vascular; 0,9-1,4 = valor normal, sendo 0,9-1 = limítrofe; < 0,9 = DAOP, sendo < 0,5 associado a isquemia crítica. Obs.: pode estar falsamente normal ou elevado em idosos, diabéticos e em renais crônicos, pela pouca compressibilidade arterial, devido à calcificação da camada média, sendo o IPB (índice pododáctilo- braquial) preferencial nesses casos. Manejo Tratamento clínico Está indicado para todos os pacientes com doença arterial periférica, inclusive os assintomáticos. Mudanças do estilo de vida + terapia medicamentosa. Mudanças do estilo de vida Cessação de tabagismo, sendo a medida mais importante, pois reduz progressão da doença, aumenta distância de marcha, reduz risco Natalia Quintino Dias cardiovascular. Deve ser oferecido encaminhamento para serviço especializado, terapia medicamentosa e terapia cognitivo- - comportamental. Dieta balanceada, controle pressórico e glicêmico, controle das comorbidades (HAS, DM, DLP, obesidade – meta HbA1c < 7%, LDL < 70, IMC normal). Prática regular de atividade física. -- Para os claudicantes: • Caminhadas supervisionadas ≥ 30 min (ou pelo menos até desencadear a claudicação) ≥ 3/semana, estimulando neoangiogênese, redução da inflamação e ganho dedistância de marcha livre de dor. • Associar exercícios resistivos. • Acompanhamento evolutivo pode ser feito tanto por exames de avaliação objetiva da distância de marcha como por testes realizados em esteiras ou pistas que avaliam a real distância de marcha (e não a referida pelo paciente). Terapia medicamentosa O esquema preconizado é estatina + antiagregante, pois altera a história natural da aterosclerose, reduzindo a morbimortalidade cardiovascular. Demais medicamentos são mais sintomáticos. -- Estatina: estabiliza aterosclerose. Deve ser prescrita em dose moderada ou alta (evidência 1A), como atorvastatina e rosuvastatina. -- Antiagregante: em geral, AAS: atua inativando, de forma rápida (minutos), e irreversivelmente (durante toda a vida das plaquetas – 10d) a COX das plaquetas, impedindo a síntese da TXA2, que estimula vasoconstrição e uma das vias de ativação plaquetária; o efeito perdura durante a vida da plaqueta (7-10d para restituir ação plaquetária, 2d para restituir TS). AAS bloqueia também reversivelmente a COX endotelial, com redução de prostaciclina e subsequente vasodilatação e antiagregação; porém esse efeito é menor do que o plaquetário. • Considerar associação com rivaroxabana em baixa dose (evidência 2B). • Pode ser considerado clopidogrel, como alternativa ao AAS (evidência 2B), mas a dupla antiagregação plaquetária é indicada somente nos pós-operatórios de angioplastia, em especial nos casos de reintervenções. -- Analgesia deve ser otimizada, considerando horário: dipirona, opioide, gabapentina, amitriptilina. Tratamento cirúrgico Indicado para os pacientes com isquemia crônica, com membro ameaçado (antiga “isquemia crítica”), ou seja, todos aqueles com dor isquêmica de repouso, necrose ou gangrena e úlceras arteriais. As possibilidades incluem revascularização, seja por técnica endovascular ou aberta, que podem incluir alguma amputação, e amputação primária, sem revascularização. A conduta cirúrgica deve ser guiada pela apresentação da isquemia crítica, com o WIFI, e pelas condições clínicas gerais do paciente, calculando-se o risco cirúrgico. Classificação de WIFI WIFI (wound, ischemia, foot infection) – do inglês, ferida, isquemia e infecção do pé, um escore que avalia risco de amputação primária e benefício de revascularização, sendo esse resultado avaliado a partir de tabela tridimensional, contendo os seguintes critérios: WOUND/FERIDA 0. apenas dor ao repouso. 1. pequena úlcera rasa distal, se exposição óssea: apenas falange distal, sem necrose (membro pode ser salvo com amputação digital ou cobertura de pele). 2. úlcera profunda com exposição óssea, além de falange distal, mas não calcâneo, ou exposição de articulação ou tendão, necrose apenas de dedos (membro salvo com amputação simples de ≥ 3 dígitos ou transmetatársica / TMA). 3. úlcera extensa e profunda, que pode expor calcâneo (membro salvo com reconstrução complexa ou não tradicional TMA). Natalia Quintino Dias ISCHEMIA/ISQUEMIA FOOT INFECTION/INFECÇÃO DO PÉ 0. sem infecção; 1. celulite com eritema ao redor da úlcera ≤ 2 cm, secreção purulenta; 2. celulite com eritema ao redor da úlcera > 2 cm, infecções mais profundas (abscesso, osteomielite, artrite séptica, fasciíte) sem repercussão sistêmica; 3. com repercussão sistêmica. Risco cirúrgico Avaliado caso a caso, conforme comorbidades e idade, calculando-se mortalidade perioperatória e expectativa de vida em 2 anos. Alto risco: pacientes com previsão de mortalidade perioperatória ≥ 5% e/ou expectativa de vida ≤ 50% em 2 anos. Para os demais, considera-se risco padrão. Amputação primária Nível a ser definido no intraoperatório, conforme vitalidade dos tecidos, guiado na avaliação pré- operatória, com a palpação de pulsos, não sendo obrigatório haver exame de imagem. Está indicada em infecções graves, em membros não salváveis, com acometimento local extenso e/ou manifestações sistêmicas, como guiado pelo WIFI. Todavia também deve ser considerada e oferecida a pacientes acamados e/ou com baixa expectativa de vida. Revascularização Deve ser oferecida aos pacientes sem indicação de amputação primária e que apresentem benefício de revascularização, conforme o WIFI. Para a escolha entre endovascular ou aberta, deve ser levado em consideração os fatores clínicas e anatômicos. Pacientes de alto risco -> endovascular, se possível. Pacientes com risco padrão -> deve ser avaliado e manejado considerando as comorbidades e anatomia das lesões, baseadas em arteriografia (padrão-ouro). -- Técnica endovascular: angioplastia da estenose arterial com balão, com implante de stent autoexpansivo, em casos selecionados. -- Técnica aberta: endarterectomia (incisão no vaso ocluído e retirado o trombo juntamente com o endotélio vascular) com fechamento com patch, para evitar restenose ou by-pass ou ponte, que pode ser feita com prótese ou enxerto autólogo, preferencialmente veia safena magna ipsilateral.
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