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541Uma visão binocular sobre o sonho e o sonhar: o encontro entre psicologia e antropologia os quais eram significativos para o grupo e por isso altamente valorizados (Shamdasani, 2005). Lincoln não concordava com a utilização que Jung fazia do conceito de incons- ciente coletivo para explicar a distinção entre sonhos individuais e os “grandes sonhos”. Segundo Shamdasani (2005), “o fato de que essas visões desapareciam quando uma cultura se desintegrava demonstrava que sua existência dependia de tradições cultu- rais, e não de uma memória racial” (p. 178). Embora seja dado a Lincoln o crédito pelo desenvolvimento de uma tipologia do sonhar baseada na pesquisa etnográfica, os seus resultados têm sido agora considerados etnocêntricos (Tedlock, 1987a). Nos anos 1940 e 1950, a teoria de análise de conteúdo dos sonhos tornou-se muito di- fundida. O grande volume de simbolismo onírico descrito pelos antropólogos permitiu uma abundante compilação de relatos de sonhos manifestos e sua análise transcultural com variáveis culturais e de personalidade. Embora essa abordagem valorizasse o so- nho positivamente como significativo do ponto de vista psicodinâmico e cultural, ela é, como nos aponta Edgar (1994), uma abordagem que descontextualiza os sonhos. A importância da narrativa, o discurso do sonho e a teoria autóctone do sonho, ou seja, aquela concebida pela cultura em questão, foi quase que inteiramente ignorada. Segun- do o autor, o etnocentrismo da escola de análise de conteúdo é baseado em uma episte- mologia que reduz a linguagem à sua função meramente referencial. O desenvolvimento da etnopsiquiatria nos anos 1950 pelo antropólogo e psicanalista húngaro Georges Devereux (1908-1985) é outro marco antropológico na análise do so- nhar. Devereux, em seu trabalho com os índios norte-americanos, procurou integrar a abordagem freudiana no campo antropológico. Ele aplicou os conceitos freudianos de transferência e teste de realidade para relatos de sonhos, fazendo uma análise crítica do conceito de sonho patogênico. Em um estudo de um índio Crow, Devereux foi capaz de utilizar as crenças culturais do paciente de que o acontecimento no mundo do sonho antecipava o comportamento bem sucedido do “paciente” na realidade vígil; ele mos- trou como o índio Crow o aceitou como terapeuta na identidade de um Espírito Crow. Embora tenha facilitado a orientação do paciente à realidade através do uso terapêutico do sonhar culturalmente sancionado, Devereux enfatizou que a manipulação dos sím- bolos étnicos (símbolos pessoais) pode oferecer ajustamento, mas não autoconsciência introspectiva ou insight curativo, com base no pressuposto de que “verdadeiro insight” pode ocorrer somente na sessão analítica, nos moldes preconizados pela psicanálise. Não obstante, Obeyesekere (1990) argumentou que cada cultura possui sua própria 542 reflexividade; o insight que emerge na psicanálise é apenas uma das formas possíveis, abrindo espaço para outros modos culturais de produção de subjetividade. Com a perda de espaço da Escola de Cultura e Personalidade que florescera na América durante os anos 1950, e a despeito do fato de que os sonhos continuassem a ser objeto de estudo dos psicólogos, o sonhar foi marginalizado no âmbito da antropologia (Tedlo- ck, 1987a). Somente nos anos 1970 criou-se um clima intelectual mais aberto, possibi- litando que os sonhos pudessem ser considerados como tema no âmbito dos estudos antropológicos. A partir de então, os sonhos passaram a ser estudados no contexto dos sistemas culturais dos quais eles faziam parte (Edgar, 1994; Tedlock, 1987a, 1991). De lá para cá, os antropólogos continuam a desenvolver o conceito de relato de sonhos como um ato comunicativo. Tedlock (1987a) sugere que o conceito de “conteúdo mani- festo” do sonho deveria ser ampliado para incluir mais do que o mero relato. Deveria incluir a teoria do sonho ou as teorias e modos de compartilhamento, os enquadres discursivos relevantes e o código cultural para a interpretação dos sonhos. A autora des- creve essa perspectiva como uma “teoria comunicativa do sonhar”. Esta teoria considera a narrativa do sonho como um evento comunicativo que envolve três aspectos superpos- tos: o ato e criação da narrativa, a psicodinâmica da narrativa e o enquadre interpretativo “emic”. Lembremos que “emic” refere-se ao paradigma metodológico que trata de re- produzir os conteúdos culturais tal como parecem às pessoas ou à cultura de referência, em contraste com “etic” que trata de reproduzir ou fixar coordenadas desses conteúdos culturais a partir de fatores que não são percebidos como internos pelos membros dessa cultura (Diccionario Filosófico, http://www.filosofia.org/filomat/df237.htm). A análise do sonho é considerada, assim, como mais do que um texto hermenêutico. Ela é também um processo social e cultural ou uma atividade com resultados expressivos e instru- mentais. Quando isso acontece, podemos compreender a proposição de Herdt (1987) de que a cultura pode alterar a experiência dos sonhos ou que a produção do sonho pode ser absorvida e transformada em cultura. A teoria comunicativa do sonhar alerta-nos para a importância da psicodinâmica, do contexto social e do quadro de referência interpretativo dos participantes. Este quadro estrutura, necessariamente, tanto a narrativa quanto a interpretação do sonho. Nessa perspectiva, os antropólogos não fazem mais relatórios sobre sonhos como se eles fos- sem objetos etnográficos que deveriam ser arranjados, manipulados e quantificados http://www.filosofia.org/filomat/df237.htm 543Uma visão binocular sobre o sonho e o sonhar: o encontro entre psicologia e antropologia como itens pertencentes à cultura material. Mais do que fazer comparações tipológi- cas ou estatísticas entre os sonhos das assim chamadas sociedades “ocidentais” e “não ocidentais”, os antropólogos culturais têm dirigido sua atenção para estudar as teorias dos sonhos e os sistemas de interpretação como complexos eventos psicodinâmicos comunicativos. Estudando o compartilhamento dos sonhos e a transmissão das teorias sobre sonhos no contexto total das sociedades onde eles ocorrem, os antropólogos têm constatado que ambos, o pesquisador e o sujeito de pesquisa, criam uma realidade so- cial que os conecta de maneiras importantes (Tedlock, 1991). O�Encontro�dos�Vértices Mas, ainda que nós antropólogos tenhamos subscrito o método da observação partici- pante, choca-nos quando descobrimos o quão importante é nossa participação na cria- ção daquilo que estamos estudando (Tedlock, 1987a, p. 23)59. Em extensão ao conceito bioniano de “vértice”, evocamos a ideia de Bion sobre “visão binocular”, útil para a compreensão da articulação dos vértices antropológico e psicoló- gico sobre o sonhar. Bion nos explica que na experiência psicanalítica paciente e analista assumem cada qual o vértice que lhe é próprio. Estes vértices precisam manter certa distância útil e adequada, ou seja, que não sejam nem tão distantes, a ponto de impe- direm a correlação entre os respectivos vértices, nem tão próximos, que impeçam uma diferenciação e causem uma consequente estagnação na investigação do objeto psicana- lítico. É somente a partir de uma distância adequada que será possível que ambos façam correlações e confrontações entre os recíprocos vértices, assim atingindo o que Bion chama de ‘visão binocular’ (Zimerman, 2004, p. 246). A possibilidade de estabelecer correlações binoculares entre vértices distintos de per- cepção não se restringe a duas pessoas, tal como é o caso da relação analítica, mas 59 No original: “But even though we antropologists have long subscribed to the method of participant observation, it still comes as a shock to us when we discover how important our participation is in helping to create what we are studying.” (Tedlock, 1987a, p. 23) 544 aplica-se igualmente a uma mesma pessoa, “naqual, conforme a distância dos vértices intrapessoais, tanto pode gerar nela um estado confusional como uma eficaz visão bino- cular” (Zimerman, 2004, p. 247). Aplica-se também, e de modo bastante oportuno, às diferentes perspectivas sobre o sonhar, como se pretende neste estudo. Bastide (2001), ao apontar a necessidade de se desenvolver uma sociologia dos sonhos critica seu próprio campo de estudo, dizendo que “a sociologia somente se interessa pelo homem desperto, como se o homem adormecido fosse um cadáver”60. Para ele, há motivos para se crer que uma forte influência das condições sociais atua sobre o incons- ciente e sobre a vida afetiva. Em um estudo intitulado “Materiais para uma Sociologia do Sonho”, publicado originalmente em 1932, lembrava que, para Freud, a influência da sociedade sobre os sonhos assumiria um duplo caráter. Por um lado, a sociedade teria uma influência negativa, impondo uma seleção das imagens que surgem do incons- ciente, de modo que somente passariam aquelas aceitas pela moral coletiva, ou seja, tratar-se-ia-se da censura social. Em outro sentido, a sociedade atuaria de modo positivo, como fabricante de símbolos. A libido conseguiria burlar a censura, travestindo-se de símbolos. Esses símbolos seriam tributários da coletividade, de velhas práticas mágicas, de antigas mitologias e cultos. Além disso, na versão junguiana, haveria um inconscien- te coletivo e o sonho seria uma exploração dessas profundezas que se acumulam em nossa psique através dos milênios. Confirmadas essas concepções, poder-se-ia criar uma verdadeira “sociologia dos so- nhos” já que os sonhos suporiam a expressão ativa de materiais coletivos, constituídos por símbolos de antigas culturas. Haveria, contudo, uma dificuldade: como conceber a persistência de formas de pensamentos desaparecidas e o modo como as herdarí- amos; questão discutida sobretudo nos estudos de C. G. Jung (Bastide, 2001; Jung, 1936/2000). Embora adotando a distinção freudiana entre “conteúdo manifesto” e “conteúdo laten- te”, Bastide acreditava que a influência social seria encontrada sobretudo nas tendências inconscientes que regulam a estrutura íntima das imagens oníricas. Estabelecer-se-ia, então, uma tipologia decorrente de sua função social que seria diferente daquela uti- 60 Tradução livre do autor. No original: “la sociología solo se interessa en el hombre despierto, como se el hombre dormido fuese un cadáver” (Bastide, 2001). 545Uma visão binocular sobre o sonho e o sonhar: o encontro entre psicologia e antropologia lizada pela Psicanálise. Para ele, três circunstâncias deveriam ser consideradas para a sociologia do sonho. Em primeiro lugar, o papel do sonho seria função da vida social. Para esse argumento, Bastide, citando Lévy-Bruhl, utiliza as observações de que entre povos tradicionais não existe uma separação estanque entre o estado de sonho e o es- tado de lucidez. Ao contrário, as fantasias noturnas se inserem na trama da existência diurna e se entrecruzam com as percepções do mundo exterior. Nessa perspectiva, o sonho permitiria ao membro dessa sociedade uma melhor adaptação. Em nossos dias, existe uma ruptura entre o estado de sonho e o estado de vigília. Nosso estado de vigília é povoado de pequenos e múltiplos problemas, em número tanto maior quanto perten- cemos a inúmeros grupos sociais, restando ao sonho o papel de reduto de afastamento desses estímulos. O sonho se constitui, então, em um instrumento de evasão; sua fun- ção transforma-se de acordo com a transformação geral da cultura (Bastide, 2001). Em segundo lugar, o tipo do sonho é função da densidade social. A pressão social é tanto mais forte quanto mais reduzido o meio social. Consequentemente, é mais forte em uma aldeia do que em uma grande cidade. Assim, nos pequenos agrupamentos, as tendências individuais seriam reprimidas com maior severidade pela opinião pública. As asserções de Freud seriam mais acertadas quando aplicadas a pessoas pertencentes a meios de baixa densidade social. O tipo de sonhos que poderíamos denominar “tipo freudiano” é um produto de ordem sociológica (Bastide, 2001). Em terceiro lugar, o conteúdo do sonho parece depender, em certa medida, do grau de integração alcançado pelo indivíduo na sociedade. As imagens do sonho, ainda que providas pela memória individual, são preferentemente escolhidas entre aquelas que interessam ao meio social que mais nos importa. Também é possível que isto deixe de ser certo em tempo de crise: os sonhos dos desempregados, por exemplo, poderiam trazer conteúdos relacionados com as circunstâncias críticas do desemprego (Bastide, 2001). Aqui, os estudos de Bastide conferem com as análises de Beradt (1966/2002) a respeito dos sonhos de pessoas sob o domínio do III Reich, na Alemanha Nazista, e as formulações de Lawrence e colaboradores (Lawrence, 1998, 2003, 2005, 2007) a res- peito do sonhar social (social dreaming matrix). Conferem, igualmente, com achados de pesquisa, baseada no constructo do sonhar social, por nós empreendida no contexto brasileiro (Gui, 2010).
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