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Autor: Prof. Mário Luiz Miranda Colaboradoras: Profa. Vanessa Santhiago Profa. Christiane Mazur Doi Esportes de Combate Professor conteudista: Mário Luiz Miranda Mestre em ciências, desde 2012, pela Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (USP), onde também alcançou especialização em Aprendizagem, Desenvolvimento e Controle Motor, em 2009. Graduado em Engenharia pela Faculdade de Engenharia Industrial (FEI) em 1985. MBA em Marketing pela Escola Superior de Propaganda e Marketing, concluído em 1989. Na área das Ciências da Saúde, alcançou graduação em Educação Física pela Universidade Paulista (UNIP) em 2004, onde atuou, a partir de 2006, como coordenador pedagógico, por 15 anos. Atualmente, exerce docência presencial e em ensino a distância (EaD) nas disciplinas de Aprendizagem e Desenvolvimento Motor, Crescimento e Desenvolvimento Humano, Lutas: Aspectos Pedagógicos e Aprofundamentos e Primeiros Socorros. É docente também em cursos de pós‑graduação na disciplina de Teoria de Aprendizagem Motora, na modalidade EaD na Estácio de Sá e Universidade Municipal de São Caetano do Sul. Os principais trabalhos publicados versam sobre a iniciação no Judô e a relação com o desenvolvimento infantil; efeitos do uso da instrução verbal e demonstração por vídeo na aprendizagem de uma habilidade motora do Judô (2009); estudos de prática formalizada de kata (rotinas de aprendizagem de golpes da modalidade de Judô), com título Práctica y caracterización de las katas por professores y árbitros de Judo experimentados (2012), Psychological, physiological, performance and perceptive responses to Brazilian Jiu‑jitsu combats (2014) e livro sobre respostas psicofisiológicas da arbitragem de Judô: efeitos da experiência dos árbitros e do nível das competições. Também participou da elaboração dos livros‑texto do curso de EaD da UNIP nas disciplinas de Crescimento e Desenvolvimento Humano (2017), Aprendizagem e Desenvolvimento Motor (2017) e da cadeira de Lutas: Aspectos Pedagógicos e Aprofundamentos (2018). É faixa preta 4º grau e árbitro internacional continental de Judô pela Federação Internacional de Judô. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) M672p Miranda, Mário Luiz. Esportes de Combate / Mário Luiz Miranda. – São Paulo: Editora Sol, 2023. 168 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517‑9230. 1. Esportes de combate. 2. Modalidades. 3. Metodologia. I. Título. CDU 796 U518.08 – 23 Profa. Sandra Miessa Reitora Profa. Dra. Marilia Ancona Lopez Vice-Reitora de Graduação Profa. Dra. Marina Ancona Lopez Soligo Vice-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Claudia Meucci Andreatini Vice-Reitora de Administração e Finanças Prof. Dr. Paschoal Laercio Armonia Vice-Reitor de Extensão Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora das Unidades Universitárias Profa. Silvia Gomes Miessa Vice-Reitora de Recursos Humanos e de Pessoal Profa. Laura Ancona Lee Vice-Reitora de Relações Internacionais Prof. Marcus Vinícius Mathias Vice-Reitor de Assuntos da Comunidade Universitária UNIP EaD Profa. Elisabete Brihy Profa. M. Isabel Cristina Satie Yoshida Tonetto Prof. M. Ivan Daliberto Frugoli Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Material Didático Comissão editorial: Profa. Dra. Christiane Mazur Doi Profa. Dra. Ronilda Ribeiro Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista Profa. M. Deise Alcantara Carreiro Profa. Ana Paula Tôrres de Novaes Menezes Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Aline Ricciardi Caio Ramalho Sumário Esportes de Combate APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................7 Unidade I 1 O UNIVERSO DOS ESPORTES DE COMBATE NA EDUCAÇÃO FÍSICA ...............................................9 1.1 Definições ................................................................................................................................................ 11 1.1.1 Lutas ............................................................................................................................................................. 12 1.1.2 Defesa pessoal .......................................................................................................................................... 15 1.1.3 Artes marciais ........................................................................................................................................... 17 1.1.4 Arte marcial contemporânea ............................................................................................................. 22 1.1.5 Modalidades de esporte de combate (MECs) .............................................................................. 30 2 FILOSOFIA DAS LUTAS.................................................................................................................................... 31 2.1 Os conflitos internos e externos .................................................................................................... 32 2.2 Relação mestre e discípulo ............................................................................................................... 34 3 CARACTERÍSTICAS GERAIS DOS ESPORTES DE COMBATE .............................................................. 34 3.1 Os uniformes para as lutas ............................................................................................................... 35 3.2 Predomínio de modalidades de inteligência na prática de esportes de combate ................37 3.3 As principais habilidades e capacidades motoras dos esportes de combate ............... 39 3.3.1 Habilidades motoras das MECs ......................................................................................................... 39 3.3.2 Capacidades físicas obtidas pela prática nos esportes de combate .................................. 50 4 ORIGENS E HISTÓRICOS ............................................................................................................................... 52 4.1 Histórico e características de esportes de combate no continente americano .......... 52 4.1.1 As lutas brasileiras – o destaque na América do Sul ................................................................ 56 4.2 Histórico e características de esportes de combate no continente africano .............. 67 4.3 Histórico e características de esportes de combate asiáticos ............................................ 78 4.3.1 Artes marciais e lutas no Oriente Médio .....................................................................................101 4.4 Histórico e características de esportes de combate europeus .........................................103 4.5 Histórico e características de esportes de combate da Oceania ....................................114 Unidade II 5 FORMAS DE ENSINO E CATEGORIZAÇÃO DOS ESPORTES DE COMBATE ................................120 5.1 O ensino pelo estilo militar ............................................................................................................120 5.2 O ensino das práticas de combate pelas castas familiares ...............................................122 5.3 O ensino das lutas por meio de instrução religiosa .............................................................123 5.4 O ensino pelo processo de ensino‑aprendizagem educativo escolar e para a iniciação esportiva.................................................................................................................................124 5.5 O ensino dirigido para o rendimento esportivo‑competitivo ..........................................126 5.6 Aplicações dos esportes de combate, saúde, desporto, terapêutica, bem‑estar e qualidade de vida ...................................................................................................................................128 5.7 Categorização das lutas por meio dos aspectos de controle corporal .........................130 5.7.1 Categorização pelo princípio de domínio .................................................................................. 135 5.7.2 Categorização pelo princípio de confronto ...............................................................................141 5.7.3 As esquivas e a diferenciação contra bloqueios corporais ................................................. 142 5.7.4 Os contra‑ataques ............................................................................................................................... 144 6 ANÁLISES ANTROPOLÓGICAS DO PROCESSO DE COMBATE HUMANO...................................145 6.1 As brincadeiras turbulentas ...........................................................................................................145 6.2 Descobertas corporais por meio de lutas .................................................................................146 7 INSERÇÃO E INCLUSÃO POR MEIO DOS ESPORTES DE COMBATE ............................................147 7.1 Agressividade versus violência ......................................................................................................147 7.2 Esportes de combate formando atitudes sociais – combate ao bullying ...................147 8 A MÍDIA E OS ESPORTES DE COMBATE ................................................................................................148 8.1 Esportes de combate como entretenimento visual ..............................................................149 8.2 Aspectos socioformativos – a ética na prática dos esportes de combate ..................150 8.2.1 Relação psicossocial entre lutadores – aspectos antropológicos .................................... 150 7 APRESENTAÇÃO Esportes de Combate é disciplina integrante da graduação em Educação Física, possibilitando uma visão acadêmica dessa prática esportiva, visando oferecer embasamento teórico para o desenvolvimento de seu conteúdo como alicerce filosófico, antropológico, geopolítico e, especialmente, formativo esportivo‑educacional. A organização das práticas dos esportes de combate será abordada relacionando‑as às ciências humanas, associando‑os especificamente ao comportamento humano no emprego desse instrumental corpóreo na resolução de conflitos. Serão também debatidas as características dos esportes de combate por meio das ciências naturais, isto é, a inclusão dos elementos físicos básicos que estruturam o estilo físico‑motor, esportivo e o educativo. Visa‑se oferecer ao aluno reconhecer os principais atributos dessa disciplina e de sua importância para a aplicação no campo da Educação Física. Adicionalmente, espera‑se que o aluno possa fazer as separações básicas das práticas corporais próprias dos esportes de combate, realizar comparações dos fundamentos de reflexão e emprego dos gestos técnicos contextualizados no cotidiano social e, por fim, associar o conhecimento histórico‑cultural dos esportes de combate. Portanto, a disciplina se agrega ao universo do currículo da Educação Física a fim de contribuir com as bases essenciais para formação universitária e trata de maneira compreensiva o universo dos esportes de combate. INTRODUÇÃO Não se pode determinar com exatidão quando o ser humano iniciou o emprego do corpo como ferramenta de defesa pessoal, porém como afirma Ashrafian (2014, p. 11) “Artes Marciais são tão antigas quanto a existência humana”. Hoje em dia, podemos afirmar que devem existir milhares de esportes de combate difundidos pelo mundo, cada qual com características regionais, específicas e tradicionais. O movimento corporal humano encontrado nos esportes de combate é notadamente complexo e combinado por meio de competências motrizes de modo a fazer frente a necessidades específicas: dos mais distintos enfrentamentos corporais e, adicionalmente, como autoconhecimento e estabelecimento de relações sociais. A Educação Física engloba maneiras de usar o movimento musculoesquelético articular como utensílio de formação reflexiva, compreensão educacional, aproveitamento esportivo e implemento à saúde. Assim, é de vital importância que a disciplina Esportes de Combate seja estudada e debatida no curso e que possa trazer subsídios importantes sobre os processos históricos mostrados nas diversas práticas que envolvem as lutas, artes marciais, defesa pessoal e modalidades de esporte de combate. Ainda se faz indispensável lembrar que serão abordadas as principais origens dos esportes de combate mais conhecidos, características gerais, classificação de princípios de domínio e de confronto, metodologias de instrução educacional, esportiva e práticas para a saúde. Além disso, 8 serão estudadas na disciplina sua aplicação no contexto de atuação profissional e as relações culturais que poderão prover instrumentos formativos educacionais, recreativos e esportivos. Princípios e fundamentos filosóficos, uso de vestimentas habituais e influências religiosas, políticas e sociais serão discutidos e darão ao estudante oportunidades de conhecer as diferentes construções das várias modalidades. Assim, abordaremos as práticas de lutas nos continentes e suas aplicações mais importantes em épocas passadas e seus significados atuais. Além de conhecer as habilidades motoras mais comuns encontradas nos esportes de combate, o aluno terá oportunidade de estabelecer parâmetros com o desenvolvimento integral do ser humano quando pratica esportes de combate. Traremos os porquês de a disciplina se fazer importante como ferramenta da Educação Física, baseada não apenas nos princípios físicos, mas particularmente em características humanas que afloram de maneira natural, como as brincadeiras turbulentas, e como se pode utilizar os elementos das lutas como gatilhos para despertar a concentração, a compreensão interativa e a inteligência emocional. Pretende‑se trazer as principais diferenças entre agressividade e violência, bem como a formação de atitudes e questionamentos a fim de observar a influência da mídia na distorção quando da divulgação e difusão de notícias sobre a prática das artes marciais, lutas e modalidades de esporte de combate. O universo dos esportes de combate é imenso e se faz primordial para os estudantes de Educação Física. Pretende‑se alargar o conhecimento acerca dos esportes de combate e dar sustentação aos estudantes de Educação Física para o seu futuro aproveitamento profissional. 9 ESPORTES DE COMBATE Unidade I 1 O UNIVERSO DOS ESPORTES DE COMBATE NA EDUCAÇÃO FÍSICA A Educação Física é composta de várias disciplinas, com finalidades abrangentes e aplicadas sistematicamente, contribuindo com a formação integral do ser humano. Sabe‑se que o esporte pode ser aproveitado em diversos campos e fomenta ações que possibilitam atuar significativamente na formação social. Os campos de exercício das diversas disciplinas são designados como: • Esporte educativo: voltado para atividades da Educação Física escolar com o intuito de formação educacional e comportamental. • Esporte participativo: relacionado ao lazer e à recreação, também formativo e atuante no âmbito de construção social e da saúde. • Esporte de rendimento: designado para a concepção esportiva competitiva. Obviamente, os esportes de combate estão presentes nessas extensões de modo bastante relevante. A coletividade foi organizada pelo enfrentamento dos desafios e perigos presentes em sua formação; afinal, como lembra JosephCampbell em entrevista a Moyers (1990), o ser humano não estabelece sozinho a sua jornada, ele segue o caminho do herói e se associa aos seus pares para erguer as bases de sua convivência. Empregar os membros do corpo e usar apetrechos, como armas de defesa pessoal, foram algumas ferramentas que possibilitaram a construção da sociedade humana. Saiba mais O filme indicado relaciona‑se aos aspectos da construção da sociedade e aos combates pré‑históricos. A GUERRA do fogo. Direção: Jean‑Jacques Annaud. França: ICC, 1981. 100 min. Desse modo, atributos humanos se associam ao desenvolvimento da sociedade e são aplicados a fim de melhorar o desempenho do ser. Nesse contexto, a Educação Física se apropria da intensidade das práticas corporais estabelecidas pelos esportes de combate para promover, por intermédio dos espaços 10 Unidade I criados pelos esporte educativo, esporte participativo e esporte de rendimento, exercícios necessários para elevar física, cognitiva e psicossocialmente os seus praticantes. O esporte educativo compõe‑se de elementos físico‑motores que, por intermédio do professor de Educação Física, serão incididos como práticas corporais sobre os escolares de modo a promover o desenvolvimento socioeducativo e a coeducação, associando‑os à percepção cooperativa, interativa e solidária (TUBINO, 2010), disseminando a cidadania pela prática esportiva e construção do espírito esportivo, ou seja, valores que contemplem atitudes éticas e reforcem princípios morais. Sem dúvida, podemos estabelecer uma associação entre o esporte educativo e os fundamentos norteadores da transformação ocorrida nas artes marciais, as quais averiguaram que a integração humana e os desafios impostos por ações agonísticas favorecem o crescimento intelectual, o fortalecimento psicossocial e trazem formação comportamental baseada em juízo de valor e respeitabilidade, sendo o oponente um promotor de desafios que afloram as mais nobres atitudes e condutas sociais. Obviamente, ao aparato físico‑motor é imposta a necessidade de desenvolver a coordenação motora e os ganhos de capacidades físicas, como prontidão, presteza e descoberta do esquema corporal, noção espacial e ambidestridade. Para o esporte educativo, a prática de esportes de combate se transforma em instrumento relevante a fim de estruturar a autorrealização e a convivência humana, pois as qualidades cognitivas, psicossociais e físicas mencionadas são os fundamentos dessas modalidades. Considerando que o esporte participativo tem por função estimular os meios de informação para promover a participação na prática esportiva de modo a edificar condições de melhoria de saúde e, adicionalmente, de integração social, os esportes de combate agregam elementos imprescindíveis que se aproximam dessas qualidades, pois no embate corporal, seja contra um oponente ou apenas na realização de gestos técnicos, é necessária capacitação física generalizada, força, agilidade, resistência e equilíbrio. O desenvolvimento da concentração e a capacidade de combinar movimentos de caráter vivo auxiliam o praticante na busca de seu autoconhecimento, traduzem‑se em condições de bem‑estar, combatem o sedentarismo e resultam em autocontrole emocional. A Educação Física tem ainda o esporte de rendimento como fator de projeção profissional. Os esportes de combate são muito apreciados, tanto como competição quanto como entretenimento. Por essa razão, são praticados no mundo todo, principalmente como esporte competitivo, desde os clássicos Jogos Olímpicos gregos, nos quais já se encontravam três modalidades esportivas específicas sendo disputadas: o Pugilato, a Luta Livre Olímpica e o Pancrácio. Nos tempos contemporâneos, continuam contemplados nos Jogos Olímpicos no Boxe Olímpico, na Esgrima, no Judô, no Karatê, no Taekwondo, no Wrestling Livre Olímpico e Wrestling Greco‑Romano. Encontramos, ainda, competições de projeção e interesse gigantesco, como o MMA, o Boxe profissional e os campeonatos mundiais das várias modalidades de esporte de combate. Lembrete O esporte educativo refere‑se ao esporte escolar; o esporte participativo está relacionado a recreação, lazer e saúde; e o esporte de rendimento é unicamente dirigido ao campo esportivo‑competitivo. 11 ESPORTES DE COMBATE Destarte, os esportes de combate são parte integrante da Educação Física e devem ter seu estudo direcionado aos estudantes a fim de providenciar elementos que tragam subsídios essenciais para ampliar o universo do profissional da Educação Física no desenvolvimento das potencialidades humanas por meio dos fundamentos motrizes, históricos e socioculturais. Assim sendo, a abrangência de movimentos, as suas combinações, as estruturas de formação das capacidades físicas e coordenativas, as valências fisiológicas e biomecânicas, as potenciais descobertas físico‑motoras, os desafios no domínio psicossocial, como a incrível interatividade corporal alicerceada na oposição agonística, as descobertas da importância do adversário para o próprio acréscimo de qualidades humanas, a edificação das relações entre mestres e discípulos com o respectivo entendimento à hierarquia e à deferência, e também a ascensão ao conhecimento cultural, a produtividade na formação cognitiva incitando as distintas inteligências, os incentivos aos processos de tomada de decisão e muitas outros predicados dos esportes de combate serão trilhados academicamente a fim de contribuir como compêndio educacional, esportivo e recreativo para a Educação Física. 1.1 Definições É importante frisar que existe uma diversidade de uso das palavras lutas, artes marciais, modalidades de esporte de combate e defesa pessoal. Esses costumes acabam por trazer confusão e interpretações equivocadas ao se atribuir determinadas designações de modo pouco sensato. Vamos fazer algumas observações importantes na área de Educação Física com a finalidade de aquilatar nossa presença no campo acadêmico‑científico, antes de dar sequência às definições específicas de esportes de combate e suas explicações. Nossa profissão é comumente descrita como “educador físico”. Sabemos que a Educação Física é uma ciência que, por meio do estudo do movimento, investe na formação integral do ser humano. Assim, não educamos apenas o corpo físico, mas o espírito; como lembra Ortega y Gasset (2016), tratamos da combinação da inteligência com a vontade, a manutenção do frescor da alma com a força da juventude e a experimentação contínua associada à longínqua reflexão. Por essa razão, na criação do Conselho Federal de Educação Física, determinou‑se que nosso ofício é denominado profissional de Educação Física, de acordo com a Lei n. 9.696, de 1º de setembro de 1998, a qual dispõe sobre a regulamentação da profissão de Educação Física e cria os respectivos Conselho Federal e Conselhos Regionais de Educação Física. Na área escolar, pode‑se chamar o profissional de professor de Educação Física. As profissões da área da saúde têm códigos essenciais para nomenclaturas específicas e trazem distinção e relevância científica aos assuntos pertinentes às suas áreas de atuação. Por esse motivo, fazemos o mesmo a fim de valorizar o profissional de Educação Física; por exemplo, verificamos similaridade com a designação “Jogos Olímpicos”, como os países descrevem o maior evento esportivo mundial da mesma forma que era originariamente na Grécia classica. Verifica‑se aqui também, pela mídia do Brasil e de modo pouco acadêmico no meio dos profissionais de Educação Física, mencionar “Olimpíadas” para esse acontecimento tão grandioso, quando essa palavra significa apenas “espaço de quatro anos” em grego; o uso original do termo parece trazer mais credibilidade. Propomos, já que serão trazidas definições específicas na área de esportes de combate, que se reforce a utilização dos termos corretos e exatos concernentes à profissão. 12 Unidade I 1.1.1 Lutas Lutas é uma designação que abrange uma grande variedade de significados, inserindo‑senos diversos contextos – sociais, esportivos, econômicos, políticos, filosóficos e biológicos. As lutas apontam prestezas que se assinalam por conflitos a serem resolvidos quando em franca oposição aos interesses, sentimentos e objetivos outros, determinados para conquistar posição, território, status e poder. Observa‑se que esses confrontos podem ser de natureza física, mental, comportamental, ideológica e retórica. Lutar é disputar algo a fim de obter sucesso de acordo com determinadas pretensões. Ao se referir a lutas, observamos que a palavra se constitui de uma disputa para alcançar um particular triunfo. Vencer é o desígnio máximo da palavra, isto é, luta‑se para conter a oposição aos próprios ideais. As lutas traduzem uma situação bastante racional e implantam o conceito especial de subjugar, mas não exterminar. No universo animal, constatamos que vencer não significa necessariamente aniquilar o adversário. Luta‑se pelo acasalamento, pelo domínio de território, por comida e proteção da prole. As disputas são ferrenhas, contudo, apenas excetuando a norma de lutar pela sobrevivência e abater o oponente que pertence a uma cadeia alimentícia inferior, os confrontos terminam com o vencido abandonando o local da disputa, aceitando a derrota e procurando outras oportunidades. Observe a figura seguinte, em que se nota a luta entre elefantes‑marinhos para acasalamento. Figura 1 – Elefantes‑marinhos em luta por acasalamento Disponível em: https://bit.ly/3mM4dM4. Acesso em: 28 fev. 2023. A contenda é difícil, causa danos físicos, mas, ao final, o perdedor se afasta do grupo e procura outros ensejos. Não há necessidade de eliminar o oponente finalizando definitivamente sua vida. Os hipopótamos são extremamente territorialistas e defendem violentamente qualquer tentativa de incursão na região de seu habitat, lutando para preservar e manter a segurança de sua extensão. Não é permitido afrontar as garantias de proteção ao próprio grupo. Caso outro animal atravesse a barreira de seu território, eles vão lutar de modo brutal contra os invasores. 13 ESPORTES DE COMBATE O poder é exercido em geral por aqueles que de certa maneira se impuseram por meio das lutas, pois chegar ao auge da liderança envolve não apenas a força física e intelectual, mas principalmente a maneira como ela é usada. As lutas requisitam a combinação essencial do uso da energia vital considerando a desenvoltura em que se opera esse vigor no tempo apropriado e de forma decisiva. Como exemplo, sabe‑se que o gorila‑chefe está entre os mais fortes do grupo, entretanto, não é o mais forte que se sobressai e comina como líder, mas sim aquele cuja pujança é aliada ao emprego do maior nível de habilidade motora e postura imponente, de tal modo se tornando o comandante. Ainda assim, o comandante é o que possui maior compleição física e se permite efetuar o batimento das mãos no peito de modo a ressoar mais longe a percussão alcançada, conquistando maior dominância e acasalamentos (WRIGHT et al., 2021). Outra situação importante é que, na maioria das vezes, no meio animal, por meio de ações diretas e preventivas, demonstra‑se que determinada propriedade já é habitada e possui um titular ou titulares que demandam respeitabilidade, evitando a ocorrência da luta direta, pois o aviso é dado, os que tentam se aproximar sabem que estão transgredindo aquele local e deverão enfrentar seus ocupantes. Os felinos são um exemplo: eles urinam nas árvores e plantas, delimitando e indicando a região de sua circunscrição para outros de sua espécie e mesmo para os de espécies diferentes. Na próxima figura, pode‑se ver a luta de duas zebras pelo domínio do grupo e para acasalamento. Figura 2 – Zebras lutando pela liderança Disponível em: https://bit.ly/3KOsucl. Acesso em: 28 fev. 2023. Nota‑se que há um fenômeno que espalha a acepção da palavra luta para mostrar que existe, por exemplo, domínio sobre alguma dificuldade enfrentada, como ocorre em exemplos do tipo: “o piloto de corrida na Fórmula 1 lutou bravamente para não perder o controle do veículo após o acidente”. Outro exemplo se observa ao colocar o seu significado como procedimento de aflição: “essa luta não termina nunca, precisamos melhorar ainda mais as condições de nosso povo frente às barbaridades perpetradas pelos tiranos. Nossa luta é a de que não se pode permitir violentar nossas liberdades e individualidades”. 14 Unidade I Na política, é comum haver debates aguerridos para alcançar aprovação de projetos e tornar‑se vencedor nas disputas eleitorais. A ética pressupõe a luta como o embate de ideias e objetivos e se aquiesce sem que o vencido seja exterminado. Lutar é fazer acontecer com o emprego de todas as ferramentas possíveis, as quais, obrigatoriamente, se agregam às leis e às liberdades básicas do ser humano, explicitamente a de poder expressar livremente opiniões e ideias, ter o direito de mobilidade e de escolha, seja ela religiosa, política ou de outros propósitos. O respeito recíproco é a premissa fundamental para encadear o significado de luta, mesmo que as diferenças sejam substanciais. Que se lute no mundo dos direitos humanos. Que os escrúpulos sejam as diretrizes de ação aos que desejam lutar por algo, embater, pugnar, combater, confrontar, conflitar e disputar, enfim, buscar sucesso sem que se utilize de feitios abjetos e que atentem contra a dignidade humana. Por fim, lutar é sobrepujar dificuldades e admitir a consonância com o seu contrário. Lutar é fazer com que todos saiam ganhando na disputa, por isso o importante é saber lidar com todas as resultantes e criar as visões apropriadas para suplantar desejos e paixões que impeçam a razão de sobrepor a funcionalidade humana. Recordando os aforismos de Aristóteles expostos por Guthrie (2002), podemos construir uma franca agregação da definição de luta envolvendo a atitude moral, isto é, o ethos e a assimilação à sustentação ecumênica à vida, depois a razão da legitimidade dedutiva fundamentada no logos e a diretriz consciente na procura do que é realmente útil e, finalmente, dos sentimentos humanos, baseados no pathos, ou seja, a emoção como trilha de desenvolvimento humano, e não somente como subordinação e imposta pelo medo. Logo, a conceituação de luta se conecta com a apreciação de atingir um objetivo bem delineado, consciencioso e que se sujeite a conservar e ética humana essencial. Busca‑se mais o próprio êxito bem fundamentado a derrotar o adversário por evasivas sem virtudes. Observação Ética humana essencial é tomar decisões que sejam úteis e benéficas primeiramente para si, para as pessoas próximas e, concomitantemente, para os inimigos. Lembrete A luta invoca de modo generalizado todas as ações que se relacionem e ordenem contendas, corporais, ou não, de ideais opostos. Faz‑se indispensável diferenciar a nomenclatura que separa, de modo claro e objetivo, a definição de luta e briga. 15 ESPORTES DE COMBATE Como discorremos anteriormente, a luta se baseia num estilo pensado, ponderado e planejado com o intuito de conquistar determinada posição que enfrenta contraposição. A ética essencial é a regra no caminho dessa ação; o autocontrole está presente em todas as etapas de atuação e é primordial para a continuidade do embate sadio e valoroso. Por sua vez, as coletividades cresceram e as atuações políticas têm demorado para responder às demandas sociais. Encontram‑se desvios de responsabilidades, interesses próprios e descaso com as pessoas em várias áreas: educação, segurança, transporte público e saúde. Essas falhas têm causado desarranjos emocionais e dificuldades imensas à população, prejudicando a convivência e causando estresse contínuo. O isolamento social, as dificuldades econômicas, as novas composições familiares, o imediatismo e consumismo desenfreado, a perda de valores éticos, os movimentos que não respeitam as antigas e as novas tradições culturais, sem que uma destrua a outra, provocam distorções de conduta ecomportamentos exacerbados. As pessoas não conseguem avançar nas reflexões do convívio tolerante, respeitoso, educado e solidário. Com isso, atitudes impensadas são comumente vistas, cada qual sentindo apenas as suas necessidades e, sem ajuizar melhores diretrizes e atitudes, acabam por causar desconforto, explosões físicas e reações irritadiças, caracterizadas por discussões, bate‑bocas e agressões físicas, características do termo briga. Assim, torna‑se nítida nesta disciplina a diferenciação entre essas disposições, o que pode servir como suporte ao entendimento das razões de certas situações sociais parecerem inacreditáveis. Fica aqui um desafio para a nossa disciplina: será que a prática das lutas pode ser uma ferramenta importante para contribuir com o desenvolvimento do ser humano? Exemplo de aplicação Faça um apanhado das descrições até aqui estudadas e as relacione à prática das lutas com a formação integral do ser humano. 1.1.2 Defesa pessoal Desde os primórdios da humanidade, divergências ocorrem, tornando evidente que a luta pela sobrevivência incutiu em cada ser vivo a disponibilidade de enfrentar e tentar dar continuidade favorável à vida. Pode‑se citar nosso sistema imune, que se desenvolve para continuamente lutar contra todos os patógenos que desejam se aproveitar de nossa existência. Ininterruptamente, desafios virais, bacterianos e fúngicos que nos acometem provocam alterações de autodefesa e o sistema vai ficando mais forte e atuante. Esse exemplo de luta se associa diretamente à condição de defesa pessoal, isto é, à preservação de nossa vida. O desenvolvimento do próprio corpo físico e, conseguinte, suas habilidades motrizes como meio de defesa contra as abordagens predadoras também são elementos essenciais para enfrentar esses 16 Unidade I acometimentos. Além disso, Lane et al., Lovallo et al. e Thayer, citados por Miranda (2015), dispõem sobre regulações hormonal, imunológica e psicofisiológica que fazem parte das reações diante do estresse e, não se pode negar, protegem a própria vida – característica que exige estar alerta constantemente, solicita mudanças de atitude imediatas e aplica reações contundentes. A publicação de Miranda afirma que o ser humano, sob efeito do estresse emocional, como estão os árbitros e atletas esportivos, se especializou em liberar substâncias hormonais, em especial o cortisol, que permite reações de vigilância, fuga e mesmo para confrontar ameaças. Assim sendo, todos os seres têm se postado com suas próprias atribuições corporais, cognitivas e emocionais para não permitir submissão, escravagismo, dependência e detrimento de sua dignidade, tentar evitá‑los e contrapor‑se a eles. Reagir para não ser dominado, aprisionado, eliminado, para não perder sua prole e seu território e proteger a própria vida é de caráter de todos os seres vivos. O ser humano filogeneticamente possui caráter de manutenção de sua liberdade, de sua segurança, de sua expressividade, da mobilidade e de seu bem‑estar. Tentar retirar esses direitos estruturais envolve criar mecanismos de justificação para afrontar quem os deseja usurpar. Daí nasce o que chamamos de defesa pessoal. Observação Filogenia/filogênese é a característica biológica que nos identifica como espécie e origina nossas características comuns. A defesa pessoal se construiu essencialmente pelas qualidades motrizes e cognitivas desenvolvidas pelos humanos para que, inicialmente, pudessem enfrentar seus predadores e, simultaneamente, seus pares que impetrassem poder, imposição e subserviência. Desenvolveram‑se técnicas de combinação musculoesqueléticas articulares que permitiam bloquear, aparar, contra‑atacar e mesmo exterminar agressores. O uso das mãos, dos braços, dos cotovelos, da cabeça, da boca, de pés, pernas e joelhos foi se moldando de acordo com a necessidade de resposta a cada vilipêndio sofrido. A autodefesa se constrói por intermédio de muitas atitudes; a primeira, se possível, é prevenir a ocorrência do conflito. A segurança pessoal exige alerta aos acontecimentos, como não se propor a ir a regiões e locais que possam trazer dificuldades, assaltos e aviltamentos. A precaução é norma de defesa pessoal. Porém, ao se deparar com determinados tipos de abordagens mais aproximativas, há a possibilidade de usar todos os argumentos possíveis a fim de tentar dissuadir o agressor da sua atitude e mostrar a necessidade de estabelecer um denominador comum e chegar ao consenso para, assim, evitar ações mais talhantes e mandatórias. Por sua vez, em muitas ocasiões, não há como dar ensejo às alegações e à busca da razão, e o acometimento é de tal modo incisivo que ultrapassa os limites do distanciamento corporal no qual as pessoas se sentem confortáveis. Podem ocorrer, no cotidiano humano, ataques corporais, invasões, arroubos de adereços e até violência contra a dignidade humana; nesses casos, o sujeito com alto 17 ESPORTES DE COMBATE nível de preparo emocional e habilidades especiais, com muitos anos de prática e confiança total em técnicas apropriadas, poderá responder imobilizando o atacante e, mesmo em casos extremos, acabar por exterminar o inimigo, configurando, de acordo com as leis, atos de legítima defesa da propriedade e da vida. Dessa maneira, pode‑se afirmar que a defesa pessoal é uma característica humana que possibilitou ao homem passar pelos mais variados desafios da construção social e também exibe sua natureza de posicionamento perante quaisquer tentativas de atentar contra a vida. A segurança pessoal e a defesa pessoal são direitos de todo ser humano. Em resumo: a defesa pessoal parte do princípio de que se deve, antes de tudo, saber lidar com as desordens contraditórias do convívio social, precaver‑se e afastar as intimidações a fim de prevenir agressões diretas; entretanto, se necessário, deve‑se agir com determinação, conter e dominar o protagonista hostil. 1.1.3 Artes marciais Como vimos nas descrições sobre defesa pessoal, o emprego do corpo é a primeira ferramenta de proteção contra ataques físicos. Animais constantemente usam de todos os seus atributos físicos para se defender de contraofensivas de rivais e concorrentes. A evolução da civilização humana se deu, em especial, pela capacidade de caminhar de forma bípede, possuir tridimensionalidade na percepção visual, utilizar a linguagem e desenvolver o cérebro, o que proporcionou difundir variáveis de tomada de decisão que permitiram enfrentar agruras concernentes à convivência com todos os habitantes da Terra, que temos como moradia. Os seres humanos conseguiram ajuntar suas qualidades de vivência em grupo para confrontar ameaças de animais hostis. A estrutura social se conformou em grupos a princípio basicamente nômades, com grande mobilidade de territórios e, depois, em grupos mais estáveis, devido ao sucesso das práticas agricultoras (DANIELS; HYSLOP, 2004). Pode‑se notar em pinturas rupestres várias suposições de atividades em grupos e com uso de artefatos e estratégias de domínio contra animais. As atividades humanas agregaram ações conjuntas que visavam suprir as necessidades do bando reunido. Várias pinturas rupestres trazem ideias e possibilidades de como viviam nossos ancestrais e como se organizaram em sociedade. Na caverna de Magura, Bulgária, encontram‑se representações de caças, danças, divindades, festivais de fertilidade etc. A seguir, pode‑se observar uma dessas figuras esquematizada, desenhada nas paredes dessa caverna, de idade aproximada entre 8 e 10 mil anos, configurando a pré‑história humana. 18 Unidade I Figura 3 – Pintura rupestre pré‑histórica: caça, armas, danças e divindades Disponível em: https://bit.ly/3omqyR5. Acesso em: 28 fev. 2023. Como já vimos, a defesa pessoal tem associação direta com o uso de qualidades de enfrentamento e se refere mais diretamente a cada ser; mas, como percebemos, a agregação humana facilitou a sistematização de ações que proporcionaram uma defesa mais abrangente: dafamília, dos ajuntamentos e das civilizações mais proeminentes. A arte de se defender individualmente se tornou cada vez mais estruturada e estabeleceu melhores e mais seguras condições de vida e cuidados para as associações quando se tornaram atividades grupais mais bem direcionadas. Houve notável progresso no uso e desenvolvimento de armas, escudos e vestimentas, empregando‑se os mais variados recursos materiais, sendo os mais antigos a pedra lascada, cordoaria para enlaces e ferragem pontiaguda. Concomitantemente, os governantes impuseram a formação de armações treinadas em gestos incisivos e dominantes cada vez mais diligentes; habilidades específicas de imposição e de controle foram adquiridas, ou seja, técnicas de ataque e defesa extremamente eficientes se disseminaram entre os indivíduos que se dispunham a trabalhar como combatentes. Formaram‑se, então, entidades cujos comandantes eram responsabilizados em atuar com autoridade para a manutenção da ordem e da justiça. Não demorou muito para que grupos bem estabelecidos começassem a procurar expandir seus territórios, áreas para plantação e, principalmente, para a captação de água e de minerais a fim de dar condições de crescimento às populações que aumentavam e necessitavam de alimentos, segurança e oportunidades. Líderes eram levados a ampliar seus domínios e, ao fazerem isso, encontravam outros estabelecimentos sociais também grandiosos e que competiam pelas mesmas demandas de seus povos. Surgem, então, as formações especializadas em atacar outras propriedades e defender os próprios domínios territoriais. Daí, ocorrem as famigeradas guerras, disputas ferrenhas, duras e que demonstraram a grande capacidade humana de destruição. O uso de estratégias e o desenvolvimento de armamentos eram constantes e mobilizavam grandes recursos ambientais, humanos e materiais. As guerras derivam de desacordos, da ganância, da crueldade, da imposição errada de racionalismos equivocados e, principalmente, da desarmonia. Também de monarcas que se apetecem de grandiosidade, da cobiça coercitiva, da escravatura e do enriquecimento à custa de seu povo e de seus vizinhos. Essas disputas são antigas; documentos gravados em pedras, produzidos por entalhes, mostram pormenores dessas contendas. Como exemplo, por volta de 2525 a.C., houve um prélio grandioso 19 ESPORTES DE COMBATE descrito numa escultura esculpida em um bloco monolítico de pedra, chamado Estela de abutres, o qual se encontra no Museu do Louvre, em Paris, na França. Constam detalhes de planejamento e das duras batalhas travadas entre as civilizações do rei Eannatum, da cidade de Lagash, que sobrepujou a cidade de Umma, na região da Suméria, na antiga Mesopotâmia, hoje sul do Iraque. A contenda se deu por causa da captação de águas e aquisição de terras cultiváveis (COOPER, 1983; MELLA, 2004). Observação Usaremos as abreviaturas a.C. para indicar a época antes do nascimento de Cristo; e d.C. como época depois do nascimento de Cristo, considerando o calendário gregoriano. Figura 4 – Estela de abutres. Bloco monolítico esculpido nos idos de 2525 a.C. descrevendo a guerra entre Lagash e Umma, no Museu do Louvre, em Paris Disponível em: https://bit.ly/3Lb45zc. Acesso em: 28 fev. 2023. Essas instituições eram especializadas em atos aguerridos e formavam batalhões de indivíduos arduamente treinados; não se podia prescindir de entidades muito bem aparelhadas por grandes composições humanas e material bélico com poder ativo para o combate corporal e o uso desses implementos com maestria. Claramente, verifica‑se que se tornou necessário haver formalização especializada para que houvesse o aperfeiçoamento dos sistemas exclusivos de alistamento humano, treinamento, mobilidade de tropas, logística, estudos de táticas e estratégias de combate coletivo. Esquematizaram‑se e se impuseram ordens de excelência no trato militar, sobretudo com estudos profundos de ciências materiais, educação e adestramento dos indivíduos, hierarquização de comandos e de procedimentos e de ideais guerreiros. 20 Unidade I Esculturas e pinturas também mostram a formação de exércitos em antigas civilizações, como na retratada a seguir, proveniente dos reinados egípcios, bastante antigos e que já apresentavam a formalização de exércitos bem equipados e armados (RIVERS, 2019; SHAW, 2000). Figura 5 – O faraó Tutancamom, 18ª Dinastia dos Faraós (governou entre 1332 e 1323 a.C.), destruindo seus inimigos; pintura em madeira de 1327 a.C. Disponível em: https://bit.ly/41BEi8D. Acesso em: 28 fev. 2023. Nos estudos das mitologias e religiões, sempre vão ser encontrados seres responsáveis por guerrear, descritos por suas habilidades e competência física e inteligência na combinação dessas aptidões. Esse assunto será discutido mais à frente. Pretende‑se, neste momento, afirmar que a partir dessas influências legendárias, associadas aos interesses humanos, as organizações militares deram início aos artifícios particularizados para realizar lutas muito bem arquitetadas. Sabe‑se que o general chinês Sun Tzu ou Sunzi, nascido por volta de 544 a.C., ou seja, teria vivido durante a Dinastia Chou ou Zhou, que durou de 722 a 476 a.C., e serviu ao rei Hu Lu, deixou manuscritos direcionando como montar, preparar, guiar e dar condições às tropas militares de executar adequadamente as ações que dariam a vitória nos combates militares e mostraria as condutas apropriadas de como proceder como vencedor de batalhas e tratar seus comandados e prisioneiros. Dizia Tzu que a guerra era uma atividade muito relevante para o Estado, sendo de importância capital, podendo trazer a prosperidade, a sobrevivência ou a sua ruína, portanto deveria ser estudada profundamente. Esses manuscritos configuraram um tratado sobre as ações militares e foi intitulado na atualidade como A arte da guerra. Mais especificamente em chinês: 孫子兵法; pinyin: sūn zĭ bīng fǎ, e traduzido literalmente como “Estratégia Militar de Sun Tzu”. A palavra militar tem significado direcionado para toda instituição, ou a de seus representantes, que possa usar a força para coibir ações contrárias aos interesses da segurança dos indivíduos e da proteção ao patrimônio público ou particular. 21 ESPORTES DE COMBATE O termo guerra provém de vários idiomas; uma das origens mais antigas é werra, nativa do germânico, normando ou também do protoindo‑europeu. Sua origem tinha conotação de discórdia, seguindo ou não para conflitos violentos. Da Grécia clássica, sabe‑se que o deus Ares representava os desacordos e o caos conflitante, sendo considerado o responsável pelas guerras e ações beligerantes. Aprofundaremos mais esse assunto posteriormente, mas aqui chamamos a atenção de que, a partir da decadência do Império Grego e ascensão do Império Romano, estes se apropriaram da mitologia grega e designaram nomes latinos aos deuses, e ao deus Ares foi dado o nome de Marte. Provavelmente, devido à organização dos povos etruscos, que já possuíam certas estruturas militares, treinamento de soldados, organização logística e armamentos bem desenvolvidos, os exércitos romanos eram muito bem disciplinados e as determinações eram bem objetivas quanto à atuação de cada participante, seguindo ordem de classe hierárquica muito bem definida. Dessa conjunção de fatores, associados às mudanças linguísticas na mitologia, a palavra marcial decorre, desse modo, do deus Marte, resultando na hoje conhecida arte marcial. Portanto, essa disciplina traz à tona aprofundamentos astuciosos referentes às lutas entre impérios, comarcas, cidades, estados etc., bem como todas as atitudes militares e planejamentos sobre guerra. Figura 6 – Bronze de Riace, antigo guerreiro/soldado grego Disponível em: https://bit.ly/3KNUsoJ. Acesso em: 28 fev. 2023. Considerando a nomenclatura adotada para o conhecimento específico de como antecipar e impor ações de ataque e defesa coletiva, movimentações e deslocamentos, uso de armamentos, estratégias de atuação e formalizaçãosocietária militar para atingir resultados imponentes, o termo arte marcial se relaciona diretamente com o agir pelo desempenho de alto nível, precisão e eficácia, ou seja, pela excelência aplicada à guerra. 22 Unidade I 1.1.4 Arte marcial contemporânea Viu‑se que a arte marcial se configurou como a expertise focada na condução para se guerrear. As ações eram para preparar os soldados e comandantes a fim de extrair o melhor resultado possível da movimentação e seus corpos, da utilização de implementos com finalidade de lutar a favor dos reinos, impérios, governos, cidades‑estados etc. Chama a atenção, todavia, que, no próprio tratado de Sun Tzu (2021), é notável a percepção de que a guerra e suas resultantes devem prover um mínimo de atenção aos direitos humanos, seja de sua própria tropa como da dos inimigos. Tzu descreve que os homens devem adentrar a guerra com a devida reflexão relativa às suas consequências; os generais devem ser humanos para, então, poder exercer a liderança verdadeira e a benevolência aos cativos, isto é, tratá‑los com dignidade e sinceridade e, por fim, que é melhor capturar o exército adversário a destruí‑lo. Também, no entendimento dos samurais, deve‑se adotar que o caminho a ser trilhado pelos guerreiros não deve ser apenas o de exercer suas habilidades para ataques e defesas exatos e contundentes, mas o de constituir a educação do corpo, por meio das técnicas corpóreas e do exímio manejo das armas, sempre associados à ampliação mental, isto é, à criação de juízo de valor e, também, para a coordenação emocional, em especial, ao controle da vontade, dos desejos e das paixões (NITOBE, 2005). O mundo se abastece de informações advindas das mais variadas formas de aprofundamento e das relações dos seres humanos com si próprios, com o outro e com a natureza. Ao lutar, percebe‑se o contrário: esse oponente também coaduna com a vida e com objetivos próprios. Obviamente, na arte marcial, literalmente, o objetivo era subjugar o adversário e, para isso, valiam todas as técnicas para dominá‑lo ou exterminá‑lo. Felizmente, a humanidade evolui e se transforma a cada momento e percorre cada vez mais os caminhos que levam à preservação das liberdades, sejam elas de expressão, de mobilidade e de seus próprios desígnios pessoais, sempre em função da respeitabilidade aos outros e às suas escolhas. Parece que a ética essencial vai se consolidando de modo mais abrangente e determinante. Para isso, é fator primordial uma educação baseada em valores humanos como a coragem, a honra, a cortesia, princípios de preservação da individualidade, da honestidade, da retidão e da percepção de que a interatividade com o outro se faz importante para as descobertas das próprias fraquezas e potencialidades. Considerando essas condições, ao longo do tempo distintos praticantes de técnicas incisivas de artes marciais, e também profundos pensadores, enxergaram que elas poderiam ser instrumentos de destaque para a educação a fim de que se descobrissem valores baseados na verdade e na virtude para a construção social. Assim, a seguir, descreveremos as influências de formação política, social, religiosa e filosófica para a transformação da arte marcial em práticas voltadas para formar integralmente o ser. 23 ESPORTES DE COMBATE 1.1.4.1 Efeitos das políticas de época, filosofia e religião ancestrais nas práticas das artes marciais da atualidade Na história da humanidade, observa‑se que, por variados motivos, a prática de lutas foi integrante do cotidiano das mais distintas civilizações. Esses exercícios eram voltados para diversas funções: formação guerreira, destacando a organização de exércitos e do direcionamento para permitir que o indivíduo se tornasse, por si, um defensor‑mor da nação. Também se salientavam os estudos dos movimentos do corpo, desenvolviam‑se artefatos específicos para o combate, os mais ergonômicos possíveis e com materiais leves, mas de robustez e durabilidade adequadas para as necessidades guerreiras. Adicionalmente, os estudos das práticas de oposição corporal permitiam e desabrochavam descobertas de capacidades físico‑motoras condicionantes e coordenativas. A mitologia e as religiões exercem então grande influência sobre os aspectos de formação educacional e acomodam o mito do herói ao da coragem humana. As práticas das mais variadas lutas representavam o momento de adestramento do corpo a fim de aproximar‑se das qualidades dos representantes da força, da virtude, da superação e da vontade férrea para conquistar objetivos. As propriedades no aproveitamento do aprendizado das lutas seguem de modo marcante duas vertentes que se diferenciam em relação às suas características: as lutas ocidentais e as orientais. Entre as lutas ocidentais, podemos discorrer sobre os egípcios, que promoviam o exercício das lutas para fins além da formação guerreira e do condicionamento corporal e entretenimento, mas também para compreender valores que afetavam o dia a dia das pessoas, como a disposição física, a compreensão do uso da força física e como atividade recreativa (GAMA‑ROLLAND, 2017). Figura 7 – Práticas de lutas no Egito antigo, Tumba 15 de Baget III, localidade de Beni Hasan Fonte: Kanawati e Woods (2010, p. 47). Vários deuses compunham a religiosidade dos egípcios, entre eles, havia Sekhmet, deusa da guerra, da destruição e protetora do Sol. Nas festividades para celebrar os vários deuses dessa civilização, havia lutas programadas como diversão e que se propunham compreender os motivos pelos quais existia a necessidade de aprender a lutar: obedecer ao faraó e defender a família, a pátria e fortalecer a alma 24 Unidade I para retornar após a morte. Ou seja, as lutas eram um modelo para a formação e percepção voltada à condição de vida na sociedade de acordo com as leis vigentes. Avançando na interpretação histórica, López (2011) aponta que a civilização dos egeus, situados na região de Creta, usavam as lutas, além da preparação guerreira, também como meio educacional a fim de os jovens aprenderem a se defender e golpear, mas aprofundando condições de atitudes de tomada de decisão, desenvolvimento coordenativo e entendimento da importância do parceiro para atingir o desempenho físico apropriado. O famoso afresco de Santorini, no sítio arqueológico de Tera, datado entre 1700 e 1500 a.C., mostra a atividade de Pugilato entre dois jovens, ambos portando proteção em uma das mãos; uma delas obrigatoriamente era usada para atingir o oponente, e a outra era apenas empregada para aparar os golpes e bloquear os ataques sofridos. Essa disposição motriz se associa firmemente à prática de jogos de combate educativos que ensejam controle e coordenação motora, além de exigir cumprimento à regra. Figura 8 – Afresco de jovens boxeando, no Museu Arqueológico Nacional, em Atenas Disponível em: https://bit.ly/41h8fep. Acesso em: 28 fev. 2022. Os gregos, por sua vez, conforme ressaltam Graeme (2014), Tommasi e Soares (2015) e Vernant (2000), foram os maiores incentivadores da prática de artes marciais desde a infância, pois sabiam das qualidades que podiam ser aproveitadas na instrução dos indivíduos. A defesa da nação se apoiava na educação militar dos jovens; não servia somente para preparar os cidadãos para a guerra, mas instigava os estudos relativos aos valores humanos no trato com os contrários. Buscava‑se por meio da prática dos esportes de combate orientação para alcançar a excelência em si, o corpo e o espírito unos e voltados para a construção social (DIAS, 2021). Esportes de combate faziam parte da educação infantil grega. Na Paideia, a orientação educacional era direcionada para lutas, matemática, geometria, filosofia, história, geografia e gramática por meio da interdisciplinaridade; estudava‑se como o ser se inseriria no contexto social pelo fortalecimento do corpo, pela compreensão de suas restrições em relação ao uso da força impensada e pela descoberta de suas debilidades e virtudes. 25 ESPORTESDE COMBATE A formação voltada para a construção do corpo belo, do uso da força com habilidade e decisão provinha, entre vários protagonistas, em especial, dos mitos de Héracles (Hércules para os romanos) e de Teseus, os quais eram os principais exemplos que fundamentavam a prática de lutas. Figura 9 – Primeiro Trabalho de Héracles: matando o leão de Nemeia. Representação em ânfora de cerâmica terracota grega, de cerca de 540 a.C., no Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque Disponível em: https://bit.ly/3KHfXaK. Acesso em: 28 fev. 2023. Esses personagens, deuses e semideuses propunham exemplos de ações heroicas, ou seja, serviam como modelo para incitar a busca pela vontade, pelo enfrentamento dos problemas, pelo autocontrole e uso da energia com a máxima astúcia. Héracles demonstrou a sua força descomunal sempre dirigida à solução de problemas e serviços de grande dificuldade. A perspicácia e agilidade aliavam‑se à potência a fim de salientar as qualidades físicas e cognitivas de Teseus (GRAEME, 2014; TOMMASI; SOARES, 2015; VERNANT, 2000). Figura 10 – Teseus matando o monstro Minotauro; vaso de cerâmica ancestral, no Museu Arqueológico de Atenas Disponível em: https://bit.ly/3A73YhZ. Acesso em: 28 fev. 2023. 26 Unidade I Nos Jogos Olímpicos gregos, os esportes de combate eram o Pugilato, a Luta Livre Olímpica e o Pancrácio, que referenciavam a superação das agruras causadas pelo envolvimento corporal composto por golpes e ações contundentes e que exigiam elevada disposição espiritual e física. O espiritual, mais uma vez, segundo Ortega y Gasset (2016), como a combinação da inteligência com a vontade. As normas de participação compunham‑se essencialmente pelo rigoroso respeito às regras; quem não as cumprisse era execrado publicamente e muitas vezes defenestrado de sua cidade. Saiba mais Sugere‑se a leitura seguinte para aprofundar os conhecimentos sobre a importância dos jogos na educação grega. ROSA, M. P. A.; MENDES, M.; FENNER, R. S. O jogo e a educação grega: Paidia enquanto elemento formativo da Paideia. Prometeica: Revista de Filosofía y Ciencias, año VI, n. 14, 2017. Disponível em: https://bit.ly/3LqBBBC. Acesso em: 6 mar. 2023. Desse modo, o mundo ocidental recebeu a lição de que lutar, exercer as artes e ofícios da guerra corporal exigia muito mais do que somente o combate em si, mas proporcionava a construção da virtude, da excelência, da busca de realizar‑se sempre da melhor maneira. Para a guerra, necessita‑se de contrários e oposição, até que um ceda ao superior, mas, para a aprendizagem e elevação social, os antagônicos provocam, por meio da prática das artes marciais, a compreensão do juízo de valor, a autopercepção e o entendimento de que os desafios são estímulos importantes para a plena constituição de uma organização social voltada para o bem comum, a preservação das liberdades e a proteção da nação. Chega‑se, nesse momento, à outra direção: a das lutas orientais. Sem dúvida, as artes marciais que provieram do Oriente se transformaram bastante ao longo da história humana, da sua sistematização para a organização coletiva guerreira e para a influência mútua com a natureza e a interiorização. Além disso, a influência religiosa e filosófica sobre as artes marciais orientais foi intensa e auxiliou as mudanças de objetivos a serem alcançados. É muito divulgado que as artes marciais orientais foram desenvolvidas em tempos bem remotos, e sabe‑se que essas práticas derivavam de necessidades de defesa de templos, de proteção às casas imperiais e de amparo às próprias famílias. Ashrafian (2014) menciona que as artes marciais orientais se baseiam em lutas muito antigas. A cada dia, se encontram sítios e escavações de achados humanos que trazem novidades de tal modo que nunca se saberá exatamente qual é a mais antiga. Porém, pode‑se afirmar, de acordo com as descobertas e comprovações arqueológicas, que da região da Índia se evidenciam práticas de artes marciais bem sistematizadas desde longa data, como a Luta Kalaripayattu, desde 600 a.C., reportada 27 ESPORTES DE COMBATE por Miguel (2011), mas há registros de que guerreiros da Índia já praticavam de modo sistemático essa arte marcial por volta de 1100 a.C., sendo muito parecida, atualmente, com o Karatê e o Wushu chinês. Concomitantemente, por volta de 1000 a.C., o poeta persa Ferdowsi escreve no livro dos reis persas sobre os heróis regionais que disputavam campeonatos de uma arte marcial nativa iraniana, chamada de Varzesh‑e Bāstāni, originária das práticas realizadas no Zurkhaneh (ginásio de preparação de artes marciais), muito similar à Luta Livre Olímpica, atualmente chamada de Wrestling Olímpico. A criação de artes marciais mais organizadas e voltadas para aplicar defesa pessoal coletiva parece se apoiar em um nome bastante conhecido no meio dos estudos das práticas de lutas que demonstram combinações de movimentos com alto grau de precisão: o monge budista Bodhidharma, terceiro filho de uma família real persa. Ashrafian (2014) afirma que escrituras do templo Shaolin da China, manuscritas por Yang Hsüans‑chih, comprovam a aparição desse religioso nos idos de 527 d.C. Bodhidharma, segundo indicações, viveu nos arredores entre a Pérsia e a Índia, e há especulações de que necessitava se exercitar, pois parecia possuir saúde mais fragilizada. Assim, interessou‑se por praticar as artes marciais da região: o Kalaripayattu e o Varzesh‑e Bāstāni; as aperfeiçoando com movimentos, além de realizar as práticas de extermínio guerreiras, fazendo‑as relacionarem‑se com os movimentos mais proeminentes dos ataques e defesas de animais e das forças da natureza. Esse religioso zelou por ensinar essas técnicas aos monges que encontrava nos templos visitados ao longo de sua extensa jornada até o templo Shaolin na China. Essas lições aos monásticos possibilitaram que os templos budistas, seguidamente invadidos por saqueadores, começassem a oferecer resistência, dominassem e debelassem os bandidos (ASHRAFIAN, 2014). Figura 11 – Kalaripayattu, proveniente da Índia do Varahavadivu, postura do javali selvagem Disponível em: https://bit.ly/40jaTz9. Acesso em: 28 fev. 2023. 28 Unidade I Essas técnicas e golpes com exímia ordem e variadas combinações musculoesqueléticas e articulares se espalharam por diversos locais no Oriente, possibilitando a criação de diversas artes marciais: umas mais focadas nos arremessos; outras nos ataques de contundência corporal direta; algumas, nas restrições articulares; certas se concentraram em imobilizações e estrangulamentos; e outras no uso de aprestos e armas. Foram seguramente utilizadas para treinamentos militares, defesa pessoal e interesses pessoais. Das épocas citadas, se consagraram simultaneamente distintos movimentos religiosos e filosóficos, em especial o hinduísmo, o budismo, o confucionismo, o taoismo e o xintoísmo, dos quais se retiraram muitos axiomas que afetavam como se percebiam as finalidades das práticas dessas artes marciais. Notadamente, os estudos das técnicas instigaram a percepção mais apurada de que os movimentos da natureza e também dos animais ensinavam condutas que se enquadravam com melhores condições de vida: na utilização do corpo, na interiorização mental e no fortalecimento emocional. Pode‑se observar que vários movimentos de ataques do Wushu chinês (Kung‑fu) são baseados em disposições semelhantes com as de animais, como pode ser verificado nas figuras seguintes. A) B) Figura 12 – A) Professor Rafael Garcia, comparação da posição de ataque da serpente no Kung‑fu, TSKF; B) Cascavel em posição de ataque B) Disponível em: https://bit.ly/3oGUqYd. Acesso em: 24 abr. 2023. Como exemplo, pode‑se ver que as árvores que possuem galhos mais flexíveis, ao enfrentar os ventos, se curvam e balançam, mas não se rompem. Da mesma maneira, frente ao acúmulo de neve, armazena‑se determinada quantidade e, depois, flecte, fazendo com que a neve escorra ao solo e o galho retorne ao seu posicionamentooriginal. Galhos mais fortes que resistem ao acúmulo de neve, porventura, virão a se quebrar. 29 ESPORTES DE COMBATE Figura 13 – Neve sobre galhos flexíveis Disponível em: https://bit.ly/3L1qjlT. Acesso em: 24 abr. 2023. Figura 14 – Galhos balançando ao vento Disponível em: https://bit.ly/3ozAh6t. Acesso em: 24 abr. 2023. Pode‑se analisar e comparar o movimento de flexibilidade dos galhos contra a força do vento ao movimento do corpo se afastando de um soco, deixando o ataque cair no vazio, isto é, sem que surta o efeito de contundência, assim como o vento não conseguirá arrancar os galhos que flectem, deixando o vento passar, conforme a competição de Karatê da figura seguinte. Estudos dessa natureza foram sendo aperfeiçoados, analisando como existe harmonia entre as forças naturais para a própria sobrevivência. Das artes marciais japonesas associa‑se a palavra tai sabaki, que significa esquivas e movimentações que provocam o afastamento do raio de ação de ataque dos adversários. Assim como nos esportes de combate, deve‑se aprender a esquivar‑se e deixar fluir as forças negativas, as intimidações e apropriar‑se do controle emocional nos momentos de maior pressão para saber lidar com as mais variadas situações de conflitos sociais. 30 Unidade I Figura 15 – Esquiva corporal no combate de Karatê Disponível em: https://bit.ly/41EdwN6. Acesso em: 28 fev. 2023. Resistir com força contra quem tem mais força apenas sugere derrota; usar a força do oponente contra ele próprio é o engrandecimento que se adquire com a prática das artes marciais na contemporaneidade. Essas mudanças foram sistematicamente implantadas ao longo do tempo pelos artistas marciais orientais, e os objetivos primeiros voltados para a guerra se transformaram em treinamentos direcionados para o autoconhecimento, para a integração com a natureza e para aprofundar o respeito ao próximo e reverenciar os mestres e companheiros de prática. Afinal, sozinho, é muito mais difícil absorver ensinamentos, superar desafios diferentes, preparar‑se para os imprevistos e comparar o próprio progresso. 1.1.5 Modalidades de esporte de combate (MECs) Finalmente, chega‑se à definição de modalidades de esporte de combate, daqui por diante chamadas de MECs. Desde tempos muito remotos, as competições atléticas que envolviam o combate corporal eram usadas para entreter, celebrar o nome de antepassados, incitar a paz, reverenciar as boas colheitas e proporcionar condições favoráveis do clima. A preparação guerreira concebeu que para guerrear era preciso treinar e sistematizar o uso corporal para as agruras das batalhas e contendas. É fato que o esporte se consolidou como fenômeno humano de imensa grandeza. Já foi mencionado que os Jogos Olímpicos gregos formaram um marco relevante para a história e convivência humana. Desde então, o preparo de atletas se destacou como fator diferencial e, atualmente, os profissionais de Educação Física participam ativamente nessa incrível expansão do esporte. 31 ESPORTES DE COMBATE As lutas se transformaram em modalidades muito estudadas, apreciadas e praticadas e não podiam deixar de ser uma admirável porção do universo esportivo. Daí instituições especializadas propuseram que elas fossem estabelecidas sob o comando de regras, códigos e regulamentos, formalizando as mais diferentes disputas em competições. Nota‑se o sucesso de participação, audiência e desenvolvimento multidisciplinar na área esportiva específica das MECs. Competições grandiosas, público maciço e mídia manifesta promovem verdadeiros festivais esportivos. Artes marciais, lutas, defesas pessoais transformaram‑se em modalidades esportivas de combate. Federações, confederações, comitês especiais regionais, nacionais e internacionais foram criados para dar diretrizes e estruturar as MECs, com o objetivo de limitar danos físicos e sequelas provenientes das disputas corporais diretas ou indiretas, a fim de contemplar o esporte e sempre procurando estabelecer limites de atuação e agenciando o desporto, a lisura, o jogo limpo e a formação humana. Regras, condutas e procedimentos foram inseridos de tal modo que o vencedor, ainda um herói venerado, não sairia comemorando o extermínio ou prejuízo de seu oponente. As MECs são hoje organizadas de maneira profissional e proporcionam sucesso aos atletas e retorno econômico. São importantes instrumentos para a oferta de elementos motrizes, para a descoberta dos esquemas corporais e desenvolvimento de capacidades coordenativas. Além disso, atuam conjuntamente na formação de comportamento social, respeito aos direitos, autocontrole emocional e na compreensão das escolhas de cada indivíduo; por fim, fornecem eficiente disposição cognitiva, aumentando a percepção, o raciocínio rápido e bem fundamentado em princípios, a deliberação pela ação e tomada de decisão apoiada no juízo de valor. 2 FILOSOFIA DAS LUTAS Estudando as artes marciais e as mais diversas formas de luta, defesa pessoal e MECs, insistentemente depara‑se com a descrição de valores, fundamentos filosóficos e normas de conduta. Mas, enfim, o que é lutar? Já dizia Winston Churchil: “Melhor lutar por algo do que viver para nada”. Acrescentamos ainda, e podemos dizer, que a luta é um modo intenso de civilização humana. Ao lutar, afrontamos a nós mesmos, ao nosso imediato e até a muitos. No transcurso de uma luta, como um sujeito se afere a outrem? O que o leva a se opor de tal maneira que exija o contraponto espiritual, a contraposição física, a retórica cortante? Seria a precaução e atitude ou conservação firme de sua presença? Com certeza, a segurança de ser e perceber o que se é! Portanto, conquistamos nossos espaços e construímos nossa independência quando temos consciência de quem somos, e isso é encontrado quando lutamos, pois somos colocados à prova de nossas possibilidades e potencialidades. Lutar também envolve agregar ideias, condescender, receber, contemporizar, enfim, fortalecer vínculos, acrescentando subsídios à continuidade humana. 32 Unidade I Ao lutar, trabalha‑se o corpo arduamente e, ao mesmo tempo, estimula‑se a mente a cogitar soluções, a fazer juízo de valor, a refletir sobre o poder que ultrapassa o limite da vigilância pela liberdade e se contrapor às determinações que chegam às linhas da opressão. A prática corporal permanente no universo das lutas invoca a constância de desafios e provoca a necessidade de réplica. Essa disposição ocasiona a persistência em buscar soluções que transformem a impulsividade em ações efetivas e determinadas, além do estabelecido momentânea e abruptamente. Por fim, habilita recursos para não se sujeitar a embustes, pela razão de fomentar a reação devida, prudente e eficaz. Viver é realizar e, para conseguir fazer, é preciso lutar! 2.1 Os conflitos internos e externos As mais diferentes modalidades de combates corporais exigem muito de seus praticantes, em especial a compreensão de como se portar diante de outrem que pode, ao mesmo tempo, atingir, dominar, contundir, causar dor e até constrangimento. Há necessidade intrínseca de autodeterminação para não se expor demasiadamente e, de forma simultânea, não se eximir de responsabilidades. Ousar e dosar, saber ceder para vencer – lembre‑se da flexibilidade dos galhos contra o vento forte e a neve pesada! Lutar, resumidamente, é assumir a autopropriedade. Saber sentir o que se passa internamente, ajuizar a consciência e se contrapesar em todos os sentidos. Muitas modalidades de luta se modificaram a fim de proporcionar aos seus praticantes momentos para voltar a si próprios, aprofundar o conhecimento da posição do corpo no espaço e no tempo e buscar o equilíbrio. Pode‑se citar a Yoga, proveniente de lutas que remontam a 6000 a.C., hoje uma prática de fortalecimento e autocontrole do corpo e do espírito. Figura 16 – Yoga: ataque com as pernas e os pés na posição invertida Disponível em: https://bit.ly/43AwsxU. Acesso em: 28 fev. 2023. 33 ESPORTES DE COMBATE Outraluta proveniente de artes marciais orientais que se transformou em prática de movimentos de descoberta corporal é o Tai Chi Chuan, também com o mesmo conceito: fortalecer a musculatura com movimentos de luta, bastante eficientes, mas executados para fazer meditação dinâmica e instigar percepção e controle corporal. Figura 17 – Tai Chi Chuan: ataque lateral, posição da serpente, equilíbrio dinâmico e atitude Disponível em: https://bit.ly/3mHKJZ1. Acesso em: 28 fev. 2023. Outras lutas, hoje consideradas de defesa pessoal e que, apesar de serem muito eficientes, têm como proposta a formação mais diferenciada para interiorizar‑se espiritualmente, são o Aikido e o Hapkido. A autoridade interior provém do todo e de tudo (BULL, 2003). Figura 18 – Aikido: equilíbrio e eficácia interior Disponível em: https://bit.ly/3KRa36W. Acesso em: 28 fev. 2023. 34 Unidade I 2.2 Relação mestre e discípulo Frequentemente, nos deparamos com academias e escolas de artes marciais, defesa pessoal, MECs, nas quais o instrutor é um praticante muito experimentado que havia aprendido todos, ou quase todos, os segredos, os preceitos mais importantes da execução daquelas lutas durante muitos anos de treinamento. Os estudos desses instrutores, verdadeiros mestres, eram e ainda são bastante aprofundados e transmitidos dos mais antigos aos mais novos alunos, de acordo com o interesse, a argúcia, a participação e colaboração nessas instituições. Em vários países, principalmente nos orientais, ainda existe tal tradição e comportamento. Na verdade, são escolas formativas que se espalharam pelo mundo, mantendo aprendizados e condutas muitas vezes centenários e, até mesmo, milenares em alguns casos. A relação ensino‑aprendizagem, nesses casos, é de hierarquização, com etiquetas de comportamento em que o mestre é respeitado de modo veemente. O discípulo segue os costumes da escola, os rituais e a cultura da arte marcial, da MEC ou da defesa pessoal. Nota‑se também a marca registrada de cada mestre, pois cada qual possui a sua própria diretriz de trabalho e de relacionamento com seus discípulos e alunos. Infelizmente, alguns instrutores tiveram formação deficiente, equivocada ou mesmo se perderam na própria autoridade e sensação de poder, chegando a descaracterizar práticas e objetivos. Isso aconteceu com o Jiu‑jitsu no Brasil nos anos 1980 e 1990. Praticantes foram formados sem a devida preparação e se disseminaram supostos mestres sem a completa educação integral, o que propiciou episódios de violência e destituiu‑se a verdadeira filosofia que norteia a prática das artes marciais, MECs e defesa pessoal, o que vamos aprofundar ainda mais ao longo deste livro‑texto. Atualmente, o Jiu‑jitsu recuperou‑se sem status de arte marcial formativa e de MEC, com grande respeitabilidade e admiração de seus praticantes e apreciadores. O fator mais relevante é que a relação mestre‑discípulo se ampara em valores e princípios fundamentais de convivência humana, fixação e compreensão de deveres e direitos, respeito pela hierarquia, construção conjunta de percepções sociais e advertências da vida, do próximo e da sociedade. Adiante, vamos especificar como se davam os ensinamentos provenientes dessas circunstâncias. 3 CARACTERÍSTICAS GERAIS DOS ESPORTES DE COMBATE Vamos expor algumas características importantes que diferenciam visualmente a execução das artes marciais, MECs e outras lutas. Verifica‑se que existe uma quantidade grande de modalidades, e estudá‑las exigiria uma demanda de tempo extensa. O objetivo é dar ao futuro profissional alicerces que permitam compreender o funcionamento motriz, as características de desenvolvimento cognitivo e social da prática dos esportes de combate, fundamentando o escopo do estudo a fim de apreender o conhecimento inerente à profissão e despertar para a importância dos esportes de combate na formação acadêmica. 35 ESPORTES DE COMBATE O intuito é conseguir proporcionar a oportunidade de avaliar e entender o contexto de realização das práticas esportivas e da formação educacional por meio dos esportes de combate. 3.1 Os uniformes para as lutas Como vimos, as guerras foram ocasiões em que mais se desenvolveram as lutas, seja no âmbito pessoal, seja no coletivo. Exércitos eram treinados e disciplinados e mantinham ordem e estratégias bem definidas de ataque, defesa, resistência, logística e frontalidade. Um diferencial se sobrepunha por meio de vestimentas específicas. Grupos e oponentes se distinguiam por cores, tipos de fardagem, amarrações especiais e armas apropriadas e demarcadas. Essa caracterização se baseava em trazer lembranças da nação, despertar sentimento de patriotismo e estabelecer ações agressivas e contínuas. Já o vestuário dos grupos de defesa pessoal remete a tradições de roupagens conforme cultura local, como vestes de monges, samurais, monacais etc. Os aspectos principais eram permitir a mobilidade de acordo com as necessidades de cada tipo de modalidade. Ao longo do tempo e devido à evolução das artes marciais, lutas e defesas pessoais para MECs algumas peculiaridades se mantiveram por tradição e outras foram inseridas a fim de facilitar as disputas e reduzir prejuízos corporais e lesões. Por exemplo: no Boxe, em geral, se usavam apenas as mãos enfaixadas com couro ou panos, até a implementação atual das luvas obrigatórias; também são vistas as luvas nas disputas de Muay Thai e MMA. Na sistematização do Judô, o uniforme é parte essencial da luta, pois é obrigatória a pegada para realizar técnicas de projeção, imobilização e estrangulamentos; essa determinação também se baseia no fato de ambos os lutadores não usarem armas durante o combate, apenas seus membros. Observação MMA é a sigla de mixed martial arts, uma MEC com poucas regras e bastante incisividade. Lembra o Pancrácio da Grécia clássica, ainda mais intenso e agressivo que o MMA, podendo levar à letalidade. A Capoeira trouxe as vestimentas dos escravos como caracterização da roda e das disputas. O Sumô determina o emprego do mawashi, um tecido de seda envolto na cintura e que, como no Judô, implica em uma disputa limpa e sem armas entre os oponentes. 36 Unidade I Figura 19 – Sumô: especificidade do mawashi, vestimenta de seda na cintura Disponível em: https://bit.ly/3AfLdZr. Acesso em: 28 fev. 2023. O Kendo exige proteção especial, com farda que proporciona bastante proteção aos lutadores, assim como a Esgrima também exige uniforme com especificidade elevada para resguardar os atletas, ambas empregando utensílios que representam objetos cortantes e perfurantes, como espadas, floretes e sabres de antigamente. Muitas outras MECs apenas mantêm os uniformes de acordo com as culturas dos países de origem, sem componentes imprescindíveis para a luta ou amparo dos competidores. Figura 20 – Uniforme de Esgrima, proteção aos atletas Disponível em: https://bit.ly/40eFPAp. Acesso em: 28 fev. 2023. 37 ESPORTES DE COMBATE 3.2 Predomínio de modalidades de inteligência na prática de esportes de combate A execução de movimento, já se sabe, é meio relevante para instigar sinapses cerebrais, conforme estudo efetuado por Oliveira, Santana e Souza (2021). Eles afirmam que as variadas experiências motoras em aulas de Educação Física incitam os intercâmbios neurais, potencializando a aprendizagem. Os golpes executados nas mais diversas MECs são de natureza estruturada, com alto grau de organização, solicitando elevada precisão, potência muscular (execução em velocidade e força combinadas em momento específico), ajustes coordenativos com necessidade de sinergia entre cadeias musculares e, por fim, o acondicionamento particular do pensamento com a realização motora. Observação Sinergia é definida como trabalho em conjunto. Como lembram Avelar‑Rosa et al. (2015), além da importância de saber lutar, considerando os aspectos táticos do combate, há de se conhecer as habilidades e praticá‑las para que elas possam ser empregadas de modo correto. Os golpes,projeções, imobilizações e outras técnicas de lutas são bastante complexos e exigem muita prontidão, prática constante, análises e aperfeiçoamento contínuo. Esses fundamentos foram construídos culturalmente e também visam o máximo de eficiência motora. O ser humano apresenta várias manifestações diferenciadas na resolução de problemas, empregando variados recursos intelectuais. Gardner (2000) teoriza que há o surgimento de inteligências múltiplas, concernentemente autônomas, e que também podem se associar. Essas inteligências, cujas ações são reveladas por diferentes respostas, situam‑se nos seguintes acondicionamentos: inteligência existencial, musical, linguística, criptográfica, naturalista, cinestésica‑corporal, lógica, de orientação espacial, emocional, isto é, intra e interpessoal. Saiba mais Para conhecer mais detalhadamente o assunto, propomos a leitura: GARDNER, H. Inteligências múltiplas: a teoria na prática. Porto Alegre: Artmed, 1995. Iniciando com a inteligência lógica, também chamada de lógica‑matemática, fica implícito que os raciocínios avaliativo, classificatório e sequencial se sobressaem quando da demonstração dessa qualidade intelectual. Cálculos se estabelecem de modo categórico, e a capacidade de pensar 38 Unidade I estimando determinações numéricas é demonstrada por ponderações de medidas de espaço, ajustes de tempo, de adaptações de distância, de proporção e de continuidade. Nota‑se que, na prática, a competição nos esportes de combate clama por esse tipo de inteligência para compreender regras de execução, regulamentos do combate e controles, como o peso corporal, já que muitas modalidades exigem a participação por categorias de peso. Também as análises do tempo de disputa do combate, das pontuações alcançadas e advertências recebidas por meio de notação numérica exigem balancetes instantâneos e cuidadosos. É inegável que a inteligência cinestésica‑corporal faz parte do rol de inteligências desenvolvidas devido ao contato com os esportes de combate. Essa capacidade mira as destrezas e aptidões físicas expressas por meio do uso do corpo como instrumento de expressão. Respostas proprioceptivas e táteis são importantes para esse processo intelectual, evidentemente presentes nos esportes de combate. Formular o cumprimento de ações integradas, seriadas e complexas ordena apurada coordenação motora. Seguindo com a inteligência de orientação espacial, cuja representação é a construção de mapas espaciais, formas e conceituações de direcionamento, isto é, onde ir, até onde ir e por onde ir, faz‑se necessário salientar como essa inteligência é essencial para os esportes de combate, pois o contato entre os combatentes exige deslocamentos específicos, domínio de distância para evitar ser atingido e poder alvejar o adversário, demandando averiguação de até onde o deslocamento é possível, já que a área de combate é um limitador e também um aspecto importante na orientação para aplicar golpes e levar o oponente ao erro de análise espacial. Mais uma inteligência a ser considerada como fator de resposta ao praticar esportes de combate baseia‑se na interioridade e exterioridade emocional. O autocontrole dos atletas de esportes de combate deve ser de tal grandeza que proporcione total aprofundamento da razão com o propósito de ter a melhor decisão estratégica, motora e situacional. Os esportes de combate são disputas imprevisíveis; por mais que se estudem planos de ação e se conheçam dados prévios de seu adversário, surpresas acontecem, seja por não se conseguir determinar totalmente a atitude que seu oponente tomará diante das ocorrências da disputa, seja as reações que podem se manifestar por fatores externos, como a interferência de torcida, ou internos, como a ansiedade, e também devido à possibilidade de apatia. O autodomínio e consciência de como lidar com situações instantâneas e limites são primordiais para alcançar sucesso e poder reagir de modo apropriado. A inteligência emocional invoca a condição de conseguir realizar respostas cujos resultados sejam aprofundados pela experiência vivida, pelo raciocínio equilibrado e pelo domínio da vontade e dos anseios. Outras inteligências, como a linguística‑verbal, musical, naturalista, criptográfica, não se inserem diretamente pelas práticas de esportes de combate. Vejamos que a inteligência linguística‑verbal se baseia na qualidade intelectiva do escrever, da oratória, da fonética, compreensão e expansão de vocabulário e no entendimento interpretativo pela leitura. A musical tem como alicerce a capacidade de expressar tons musicais, formação sinfônica, timbre e, por fim, o ritmo, talvez podendo ser relacionada aos percursos de formas e rotinas das lutas, MECs e artes marciais com uso de percussão, como no kata do Judô e nas rodas de Capoeira. A criptográfica se associa diretamente a construção e a imagens, sentimentos expressados principalmente por meio da pintura e da escultura, não sendo considerada 39 ESPORTES DE COMBATE uma formação atribuída pelos esportes de combate. Finalmente, a naturalista agrega aproximação e entendimento do meio ambiente e das coisas da natureza, sendo assim distante das características que dimensionam os atributos dos esportes de combate. Assim, é substancial perceber que as práticas dos mais variados esportes de combate sejam ferramentas importantes para excitar o incremento de distintas inteligências. Mais uma qualidade que se destaca para que o profissional de Educação Física compreenda como o estudo das características dos esportes de combate contribui para a formação integral do indivíduo. 3.3 As principais habilidades e capacidades motoras dos esportes de combate A grande variedade de MECs, artes marciais e lutas apresenta vários elementos de realização motriz, com combinações bastante intricadas. Essas combinações permitem definir uma extensa gama de ações, golpes e fundamentos técnicos, ou seja, habilidades motrizes específicas para lutar. Como já mencionado, esses gestos são característicos de cada modalidade. Nesse momento, vamos apresentar os principais gestos técnicos e seus atributos de execução e estruturação anatômica. Depois, serão mostradas as capacidades físicas motoras e coordenativas mais proeminentes que se sucedem nos esportes de combate. Obviamente, serão exibidas de maneira generalizada, porque o estudo mais bem especificado dessas competências será efetuado adiante, na metodologia de treinamento esportivo das principais MECs e das aquisições motoras proporcionadas pela prática no meio educativo e participativo‑recreacional. 3.3.1 Habilidades motoras das MECs Há várias habilidades para alcançar sucesso nos confrontos dos esportes de combate. Elas podem ser de permanência na luta, ou seja, de manutenção do processo de combate, podem ser especificamente de defesa, bem como podem ser aquelas que facultam a definição da disputa, isto é, as mesmas que, por serem extremamente contundentes ou de acordo com as regras, podem levar ao término imediato da contenda, como exemplo os nocautes de Boxe, MMA, Taekwondo e Muay Thai; também, as que ocorrem como o ponto máximo do Judô, chamado de ippon; ou aquelas cuja vantagem é alcançada ao longo do tempo de duelo, somam pontos e determinam a vitória, vistas na Esgrima, no Kendo, no Karatê, no Wrestling Olímpico e Greco‑romano; e mesmo nas modalidades já mencionadas, nas quais se possibilitam os nocautes, que podem ocorrer dessa mesma maneira, por adição de pontos ao longo do tempo de luta, em caso de não haver o ponto culminante conquistado. Socos são habilidades realizadas com os membros superiores e permitem que se atinja o oponente com a combinação de movimentos articulares que resultam no choque das mãos cerradas, protegidas ou não com luvas especiais, no corpo do adversário, nas partes anatômicas permitidas pelos regulamentos. Temos vários tipos, como os jabs, ganchos, swings, uppers, diretos e cruzados. 40 Unidade I Em seguida, tem‑se as cuteladas,realizadas com as mãos abertas e os dedos unidos, como se fosse uma faca, para atingir partes corporais específicas, como pescoço, clavícula, costelas e rosto. Segue um exemplo de cutelada na figura seguinte. Essa técnica de ataque, muito comum no Karatê, Wushu chinês, Hapkido, Tai Chi Chuan e outras modalidades. Figura 21 – Cutelada no pescoço Disponível em: https://bit.ly/3oncMO2. Acesso em: 28 fev. 2023. Continuamos, agora, com as cotoveladas, acometimentos feitos por meio da ponta dos cotovelos, parte do corpo com extrema rigidez. São habilidades bastante incisivas e que provocam danos físicos a quem as recebe diretamente nas costelas, sobre a clavícula e no rosto. Algumas modalidades em estilo profissional, como o Muay Thai aberto, na Tailândia, permitem o seu uso competitivo, mas a maioria das modalidades já as retiraram dos golpes permitidos. É muito usada na defesa pessoal, como no Krav Magá, como se vê na próxima figura. Figura 22 – Cotovelada na defesa pessoal Disponível em: https://bit.ly/43JsBP3. Acesso em: 28 fev. 2023. 41 ESPORTES DE COMBATE Bofetadas e tapas, habilidades que consistem em bater com as mãos abertas e os dedos unidos, como uma pá, em especial no rosto ou no peito do oponente, são usadas em modalidades encontradas no MMA e em lutas africanas, que vamos abordar ainda neste livro‑texto. Prossegue‑se com os chutes, técnicas de golpear com os pés. Pode‑se usar a ponta dos dedos dos pés (pontapés), a ponta superior ou a total extensão da região plantar e o calcanhar. Os chutes podem ser efetivados de várias maneiras, atacando frontal, circular e lateralmente; também podem ser realizados como coice de cavalo ou zebra, ou seja, para trás e de costas para o opositor. A estrutura coordenativa dos chutes exige combinação ativa com as pernas, o quadril e apropriada capacidade de compensação postural. O Taekwondo se caracteriza pelo uso competitivo quase majoritário de chutes durante todo o combate. Muitas modalidades empregam chutes como ações para a definição da vitória. Nos membros inferiores, há técnicas e golpes como as joelhadas, bastante incisivas e efetivadas com a ponta dos joelhos, de modo a trombar no corpo do oponente. Dependendo da posição do adversário e de como esse golpe é preparado, pode‑se atingir as mais diversas partes do corpo, desde as coxas até o rosto, em especial o queixo. Rasteiras são habilidades feitas por meio de ação muito rápida de contato nos membros inferiores do antagonista, com o arraste imediato, provocando a perda de estabilidade corporal e seu consequente assolamento. A capoeira é uma modalidade que frequentemente usa essa técnica como ataque decisivo. No Judô, usam‑se as rasteiras combinadas às pegadas para se efetuarem as projeções por varreduras, como se vê na figura seguinte. Figura 23 – Rasteira combinada com a pegada, golpe de‑ashi‑barai do Judô Disponível em: https://bit.ly/43JsKC5. Acesso em: 28 fev. 2023. 42 Unidade I Das MECs que utilizam implementos como espadas, sabres, floretes e bastões, a contundência se dá de todas as maneiras, pois o alcance é maior e atinge quase todo o corpo. Usualmente, esses apetrechos foram aplicados para aumentar o alcance em direção ao adversário e causar prejuízos definitivos, como perfurar, cortar, dilacerar, estocar, bater com bastões e tacos e chicotear. Combinam‑se com muita destreza às habilidades de manusear armas e aparatos como elementos de ataque e defesa nos combates agonísticos. Figura 24 – Kendo, uso de espadas de bambu (shinai) e aparato de proteção. Tentativa de corte do punho com a espada Disponível em: https://bit.ly/41BV3Az. Acesso em: 28 fev. 2023. Lembrete Agonístico provém de agon, palavra derivada do grego que significa sempre competir procurando fazer melhor que o seu opositor. Determinadas modalidades se constituem de técnicas que se baseiam nas projeções e arremessos, habilidades que se caracterizam por retirar o corpo do oponente do contato com o solo e lançá‑lo preferencialmente sobre as suas costas. São empregadas também as pegadas, abraçadas e as preensões corporais para tal realização. O contato é bastante próximo e exige que se desequilibre o oponente retirando o seu centro de equilíbrio de sua base de apoio e, assim, suprimindo a sua estabilidade postural provocada pela força da gravidade. MECs como Sumô, Glima, Judô, Jiu‑jitsu, Kurashi, Wrestling Olímpico e Greco‑romano, Luta Turca e muitas mais empregam as projeções como uma das principais técnicas de conquista de pontos ou finalização. Veja as próximas ilustrações, que mostram projeções do Wrestling Olímpico e do Judô. 43 ESPORTES DE COMBATE Figura 25 – Wrestling Olímpico: projeção ou arremesso corporal com a retirada do oponente do solo Disponível em: https://bit.ly/3A79qBt. Acesso em: 28 fev. 2023. Figura 26 – Projeção do Judô, harai goshi Disponível em: https://bit.ly/41k1XuI. Acesso em: 28 fev. 2023. Variadas imobilizações também fazem parte de ações de domínio e de finalização das MECs, estabelecendo a vitória. Há a imobilização do oponente que esteja em contato com as costas no solo, como no Judô, Wrestling e Jiu‑jitsu. Para compreender melhor essa habilidade, a figura seguinte mostra uma imobilização. 44 Unidade I Figura 27 – Imobilização Disponível em: https://bit.ly/40pgVhv. Acesso em: 28 fev. 2023. Técnicas de estrangulamento também são efetuadas em modalidades como no Judô, Jiu‑jitsu e em muitas defesas pessoais. O estrangulamento é uma compressão aplicada nas vias aéreas ou em artérias e pode ser feito tanto com mãos e braços como com as pernas, como na imagem seguinte. Figura 28 – Estrangulamento triângulo feito com as pernas no pescoço, do tipo resultante em compressão arterial Disponível em: https://bit.ly/3ofGHaG. Acesso em: 28 fev. 2023. 45 ESPORTES DE COMBATE As restrições articulares, também chamadas de modo popular de chaves articulares, são habilidades com grande poder de causar dor, pois aplicá‑las provoca a transposição da capacidade máxima articular. Essas técnicas costumam envolver cotovelos, punhos, tornozelos e joelhos. Na figura seguinte, é mostrada a restrição articular da modalidade Aikido. Figura 29 – Restrição articular do punho e cotovelo, golpe do Aikido Disponível em: https://bit.ly/3mJWUVo. Acesso em: 28 fev. 2023. Uma das qualidades mais importantes em termos de habilidades motoras presentes nos esportes de combate são as esquivas. Essas destrezas se constroem pelo desvio dos golpes do oponente. São movimentos específicos e bem determinados que ocorrem em todos os esportes de combate. Um atleta adquire esse atributo de acordo com o tempo de prática e sabe ser essencial escapar dos ataques do adversário. A esquiva não é uma defesa, e sim uma maneira astuta de enfrentamento, pois o objetivo é sair do raio de ação de ataque desfechado pelo opositor e aproveitar‑se da situação. Existem esquivas realizadas por movimentos nas mais variadas direções: aproximação, afastamento, circularidade corporal, abduções laterais e deslocamentos pendulares, troca de nível, isto é, saltando ou abaixando a cabeça e o tronco. Como já citamos, o tai sabaki formaliza a esquiva nas modalidades japonesas, conforme descrito nos estudos de uso corporal flexível realizado pelos monges budistas para configuração de elementos combativos das artes marciais. A imagem seguinte mostra uma esquiva após o desfecho de um chute elevado em direção à cabeça em uma luta de Muay Thai. 46 Unidade I Figura 30 – Esquiva corporal por afastamento corporal para trás Disponível em: https://bit.ly/3MXgU1k. Acesso em: 28 fev. 2023. Na figura seguinte, está a execução de uma esquiva comum da Capoeira, com o atleta direcionando o corpo para o nível inferior mais próximo do solo a fim de evitar o ataque dos pés realizado pelo oponente. Figura 31 – Esquiva da Capoeira feita pelo jogador que está abaixado, também conhecida como cocorinha Disponível em: https://bit.ly/3Lc4otM. Acesso em: 28 fev. 2023. As defesas, modospara bloquear ataques e impedir os efeitos dos golpes efetuados pelos atletas atacantes, são de natureza específica nos esportes de combate. Consistem em proteger a região que será atingida pelo golpe, também criando dificuldades para que a execução do golpe do atacante seja proveitosa. Nas modalidades que usam socos, chutes, joelhadas, cabeçadas, bofetadas, cuteladas e cotoveladas, o defensor faz um anteparo corporal reduzindo os efeitos do ataque na região que será atingida. Também se pode fazer algum gesto que impeça a consequência do golpe, ou seja, para 47 ESPORTES DE COMBATE evitar que o golpe se realize em sua máxima eficácia. Nas defesas de modalidades em que se efetivam projeções, lançamentos e arremessos corporais, as defesas exigem que aquele que recebe o ataque tente evitar a perda de contato com o solo e sair da sua base de apoio. Essas defesas demandam autocontrole e fortalecimento da região do centro de gravidade corpóreo. Na figura seguinte, uma maneira de bloqueio de ataque por faca para ilustrar melhor uma dessas habilidades. Essas ações demandam muitos anos de treinamento e domínio corporal. Figura 32 – Bloqueio de ataque com o braço Disponível em: https://bit.ly/40iLGVw. Acesso em: 28 fev. 2023. Nos esportes de combate competitivos, notadamente os que usam golpes de projeção, as práticas envolvem o aprendizado de como evitar ser projetado pelas defesas e esquivas e, também, de como evitar ser lançado sobre as suas costas por intermédio de deslocamentos corporais específicos, com ações que remetem às técnicas de controle do equilíbrio dinâmico, por exemplo, na realização do “aú” da capoeira, uma técnica em que se evita cair diretamente ao solo. Paralelamente, pode ser comparado com a movimentação diligente da estrela, o rodante e a ponte da ginástica artística. Porém, muitas vezes o atacante obtém maior sucesso e executa a projeção de modo mais apurado, conseguindo arremessar o oponente ao solo e, desse êxito, advém a queda corporal com elevado grau de colisão. Em muitas modalidades, há a necessidade de que seus praticantes aprendam a cair ao solo com controle, dominando e minimizando os efeitos do impacto recebido. Assim, a queda controlada é outra habilidade importante no rol de gestos técnicos dos esportes de combate. O objetivo principal desse aprendizado é evitar danos aos órgãos vitais, pois uma queda pode gerar para uma pessoa de 80 quilogramas uma força de impacto de aproximadamente 800 newtons – fisicamente a força de impacto provém da equação massa corporal (kg) x aceleração da gravidade (m/s²). As principais quedas controladas exigem posicionar corretamente as articulações que farão o movimento de queda fluir, pois não se deve bloquear a caída, senão a articulação pode sofrer prejuízos como fraturas e rompimentos. Logo, se percebe que o deixar fluir tem de se associar à dissipação de 48 Unidade I energia gerada pelo próprio peso corporal e pela adição da força de projeção alocada pelo atacante ao arremessar o oponente ao solo. Dessa maneira, deve‑se aumentar a área de contato com o solo para que a pressão de choque corporal seja distribuída por uma maior extensão anatômica (fisicamente, a pressão é o resultado da divisão entre a força aplicada pela área de atuação, pela fórmula P = F/A, e, matematicamente, quanto maior a área A, menor a pressão encontrada), minimizando os danos aos órgãos internos do corpo. Por fim, a queda controlada provoca uma melhor recuperação do equilíbrio e resgata a posição de luta mais facilmente. As principais quedas controladas podem se dar com domínio para trás, para frente, lateralmente e, ainda, por rolamentos. Os níveis acontecem desde muito perto do piso e em várias alturas diferentes, desde agachado, em seguida, em pé e, depois, com os pés fora de contato com o solo. Observe a figura seguinte, que apresenta uma queda para trás efetuada no treinamento do Aikido. Figura 33 – Queda para trás, treinamento de Aikido Disponível em: https://bit.ly/3KKVnWV. Acesso em: 28 mar. 2023. Preste atenção na figura 34, também do treinamento do Aikido, em que se pode notar o posicionamento correto da articulação da mão ao efetuar o rolamento frontal, deixando a queda fluir, portanto, fazendo as articulações constantes do processo de queda seguirem uma ordem contínua e suave, sem interrupções ou bloqueios. É imprescindível adotar e praticar esse comportamento para alcançar a melhor maneira de execução da queda, obtendo a máxima proteção corporal e evitando quaisquer lesões. Quanto mais se treina quedas, maior será a confiança do atleta na modalidade. Aqui, fazendo uma observação que se soma aos aspectos filosóficos das artes marciais e MECs, a queda controlada exerce a condição de percepção de que, ao cair, não vai se machucar. A queda bem executada permite rápida recuperação do equilíbrio. É possível cair, seja na competição esportiva ou na vida, tantasquantas vezes isso venha a acontecer, e sempre se levantar e ficar pronto para continuar o enfrentamento que está por vir. 49 ESPORTES DE COMBATE Figura 34 – Queda em rolamento para frente, prática comum e essencial do Aikido Disponível em: https://bit.ly/3A988pr. Acesso em: 28 fev. 2023. Descrevemos as principais habilidades encontradas nos esportes de combate. Obviamente, as técnicas, para serem aplicadas como golpes eficazes, demandam muito tempo de prática, treinamentos específicos e dedicação no processo de ensino‑aprendizagem. Além de prontidão do aprendiz, instrução apropriada, prática esforçada, feedbacks dos professores e mestres e avaliações de suas aplicações, o profissional envolvido nos esportes de combate deve estudar sempre as características de cada uma das MECs que está ensinando ou que pretenda trabalhar, seja no contexto educacional, esportivo participativo e competitivo. Para conseguir a aprendizagem e a eficiência motora nessas habilidades, as capacidades físicas motoras condicionantes e coordenativas serão agregadas substancialmente e resultarão em competências bem desenvolvidas. Observação Capacidade física é o potencial genético individual e se desenvolve pelo treinamento. Habilidade é a característica adquirida, ou seja, é aprendida pela prática, alcançando níveis particulares de eficiência. 50 Unidade I 3.3.2 Capacidades físicas obtidas pela prática nos esportes de combate Capacidades físicas são fundamentais a todo indivíduo, e a prática de exercícios e o treinamento físico promovem melhorias nas competências de força, resistência, flexibilidade e velocidade do conteúdo contrátil, bem como nas capacidades coordenativas (WEINECK, 2005). Naturalmente, por ser uma prática física‑motora com muita variedade, os esportes de combate são excelente ferramenta para aflorar essas capacidades, bem como estimular a manifestação de capacidades coordenativas. As requisições motoras para fazer as habilidades anteriormente descritas e de modo a conseguir resultado satisfatório exigem necessidades corporais, provocando alterações físicas importantes que se agregam às condições de saúde e de preparação e condicionamento físico. Nos esportes de combate, pode‑se considerar que o objetivo primordial na disputa é a retirada do equilíbrio do oponente. Essa desordem se dá por perda de postura, desestruturação da consciência no caso dos nocautes, estrangulamentos e desistência no confronto com as finalizações, em especial as restrições articulares, e ainda por não lograr permanecer no espaço adequado de combate. Soma‑se, finalmente, a condição de não se desvencilhar do mando exercido pelas imobilizações, perdendo a capacidade de reagir ao domínio do oponente. A prática deliberada parece exercer maior desenvoltura nos praticantes no equilíbrio do corpo, nas mais diferentes situações, pois o combate é bastante intenso e exige reações imediatas para retomada das condições de luta. Apesar de as habilidades serem o ponto mais relevante para obter êxito combativo, pois o que mais importa é saber fazere atingir o alvo e tomar decisões tão impulsivas que possam dificultar a própria execução e resultar em ações pouco eficientes ou incorretas, há a obrigação de ter condição física para que o movimento a ser executado alcance os resultados desejados. No caso de socos, chutes e outras habilidades de contundência, vê‑se que a potência muscular é uma das competências promovidas nas modalidades em que essas habilidades sejam imperativas, devendo‑se acertar com precisão e incisividade. Lembramos que a potência é a combinação de máxima força exercida com a maior velocidade possível dos segmentos corporais envolvidos na construção da habilidade que a requisite. A flexibilidade também é encontrada amiúde nas MECs, pois a combinação articular solicita efeitos motrizes relacionados a capacidades máximas no uso das articulações: gingas e esquivas se beneficiam grandemente da flexibilidade articular. Mesmo chutes com elevação requerem grande flexibilidade articular no quadril para alcançar os adversários. A foto a seguir, tirada durante as disputas de Taekwondo nos Jogos Olímpicos de 2016, mostra um chute elevado. Pode‑se verificar a combinação de flexibilidade para abduzir o quadril em tão alta distância e a força muscular para combinar a potência de execução e tentar o choque mais forte possível a fim de conseguir o nocaute. 51 ESPORTES DE COMBATE Figura 35 – Chute elevado no Taekwondo, flexibilidade na abdução do quadril e potência de ataque Disponível em: https://bit.ly/3ULTA8E. Acesso em: 28 fev. 2023. Nos esportes de combate, os deslocamentos e trocas de direção são requisitados em praticamente todas as modalidades, sendo assim, nota‑se que a agilidade se desenvolve com certa naturalidade. Mesmo em MECs com aproximação corporal mais curta, há necessidade de modificar rapidamente as situações e agir com a aceleração dos grupos musculares envolvidos nas ações de disputa. O vigor físico empregado nos esportes de combate exige resistência cardiorrespiratória devido à intensa movimentação para tentar sempre manter o adversário sob o seu controle e as distâncias desejadas a fim de evitar ser atingido, projetado, dominado e, ao mesmo tempo, provocar desconforto ao oponente, impingindo‑lhe seu plano de luta e, assim, conquistar pontos, nocaute e, consequentemente, a vitória. Muitas modalidades estabelecem tempos de disputa acima de dois minutos de competição, o que indica a influência dos aspectos de potência aeróbia. Ainda continuando com o vigor físico, contudo se voltando para a força, a sua presença é de tamanha envergadura, mostrando‑se uma competência imprescindível pela razão de que se está confrontando um opositor, e ele não deseja ser dominado; consequentemente, exerce sempre contrariedade e resistência aos comandos do adversário. Ao acompanhar quaisquer disputas em esportes de combate, a força exercida pelos atletas é notável e exprime o desgaste sofrido pelos lutadores em todas as MECs. As MECs que empregam implementos e apetrechos de contusão clamam por decisões muito lépidas, de tal monta estabelecendo a velocidade como valência relevante durante a sua prática esportiva. A noção de espaço, dimensões de área de combate, de conhecimento temporal, o ritmo e frequência de cumprimento das habilidades, de acordo com o ritmo de disputa a ser usado estrategicamente, também desenvolvem capacidades coordenativas. 52 Unidade I Desse modo, percebe‑se que os esportes de combate são excelentes instrumentos disciplinares para despertar em seus praticantes essa gama de capacidades físicas motoras, tanto as condicionantes quanto as coordenativas, tornando‑se ciência essencial aos profissionais na promoção do desenvolvimento das competências que afetam os sistemas orgânicos, que se expressam na construção do corpo físico e nas potencialidades das experiências motoras. 4 ORIGENS E HISTÓRICOS Não se sabe ao certo quantas modalidades relacionadas a lutas, MECs, artes marciais e defesa pessoal estão catalogadas no mundo. A arqueologia tem encontrado vestígios de civilizações cada vez mais antigas e conjuntamente se descobrem as representações de esportes de combate por meio de evidências rupestres, moedas, gravações diversas, pinturas, bonecos, cerâmicas pintadas e artefatos. A mitologia e a religião, em geral, também contribuem para formalizar alguns aspectos de surgimento e permanência dessas modalidades nas sociedades contemporâneas. Quanto a determinações temporais e origens das lutas, há muita discussão e elementos muitas vezes conflitantes. O século XX foi um marco na sistematização dos esportes de combate como os conhecemos atualmente, pois diferentes protagonistas organizaram e estruturaram muitas artes marciais, principalmente diferenciando as práticas voltadas à educação, à promoção do autoconhecimento e simultaneamente ao esporte participativo e de rendimento. Um fato indiscutível é que as lutas fazem parte das práticas humanas há muito tempo e continuam no cotidiano com vários significados e usos. Neste tópico, vamos fazer um apanhado das mais conhecidas e praticadas modalidades ligadas a lutas, artes marciais e esportes de combate, relacionando‑as com a região e seus primeiros relatos e documentações e sua posterior transformação em como as entendemos presentemente. 4.1 Histórico e características de esportes de combate no continente americano O continente americano é considerado muito novo em termos de documentação histórica; por essa razão temos descrições de lutas relatadas quando das incursões efetuadas por povos europeus principalmente. Historiadores como Leggett e Jarus (2022) relatam que a presença marcante dos humanos em terras americanas, em especial na região central, é verificada desde 1800 a.C. Atualmente, encontram‑se 35 nações, distribuídas em 3 regiões: América do Sul, América Central e América do Norte. O registro de luta como característica de autoridade e posse de extensão territorial, certamente, devido ao culto ao sacrifício à coragem, foi sobretudo encontrada nas civilizações da América Central, entre 500 a.C. até o século XIV. A civilização Chavin e os povos Machicas, Nazcas, Maias, Olmecas, Toltecas, Astecas e Incas (DANIELS; HYSLOP, 2004; NOVA ENCICLOPÉDIA BARSA, 2022) propunham rituais e estabeleciam relação de bravura e formação guerreira. A educação desses povos era rigorosa, extremamente fundamentada na mitologia e voltada para a ciência militar, portanto, de preparação para o combate corporal e o uso de armas específicas (LEGGETT; JARUS, 2022). Quando não havia guerras contra vizinhos agressores, nem batalhas na tentativa 53 ESPORTES DE COMBATE de ampliar as terras férteis, esses povos executavam rituais, chamados de guerras floridas, os quais consistiam em duelos a fim de que os perdedores fossem sacrificados aos deuses (DANIELS; HYSLOP, 2004; NOVA ENCICLOPÉDIA BARSA, 2022). Nesses prélios esportivos, para homenagear seus deuses, os lutadores se vestiam com mantos, fantasias e pintavam‑se como animais, que representavam, em geral, a águia, a serpente e o jaguar, cujos movimentos eram imitados nas ofensivas contra os adversários. Essas pelejas serviam para que os perdedores se tornassem prisioneiros e depois fossem imolados em diferentes cerimônias a favor de distintos deuses desses povos. Além disso, a luta era vista como recurso de crescimento regional para a distribuição de lotes e bastante perpetrada para oferendas místicas, como anteriormente encontrado em outras culturas precedentes (DANIELS; HYSLOP, 2004; LEGGETT; JARUS, 2022; NOVA ENCICLOPÉDIA BARSA, 2022; ROCHA; GALCOWSKI, 2011). Os Astecas promoviam as lutas de sacrifício, em que um dos combatentes permanecia com um dos pés preso por uma corrente atada ao seu tornozelo, recebia um bastão e um escudo, mas tinha limitação do poder de ação contra o seu carrasco. Essas lutas entretinham sacerdotes e a realeza durante festivais em homenagem aos deuses da morte, do renascimento e ao deus da agricultura, chamado Xipe Totec.O sacrificado ficava quase completamente nu, usando algumas penas, e o carrasco se vestia com roupas e vestimentas representando animais, sobretudo o jaguar (comparado à nossa onça‑pintada) e tinha total liberdade de movimento. A próxima figura é uma ilustração contida no livro do jesuíta mexicano Juan de Tovar, do século XVI, que descrevia a história e os ritos dos Astecas. Ele desenhou com grande precisão e pintou em aquarelas, com alta qualidade, as práticas desse povo. Figura 36 – Luta dos astecas: entreter e sacrificar Disponível em: https://bit.ly/43Ht6ZY. Acesso em: 28 fev. 2023. 54 Unidade I Indígenas norte‑americanos se baseavam em lutas entre tribos e não derivaram quaisquer reminiscências de atividades de combate que se estabeleceram na atualidade de modo marcante. Combates guerreiros com uso de apetrechos, como arcos e flechas, machados e lanças e com grande habilidade em luta, montados em cavalos, eram os procedimentos predominantes. Além de combaterem entre si por terras, escravos e para oferendas humanas, os indígenas posteriormente se especializaram nas armas ocidentais e guerreavam arduamente para não serem dominados pelos pioneiros colonizadores americanos, que expandiam seus domínios no território. Segue a imagem representativa de um indígena guerreiro do povo norte‑americano Sioux. Figura 37 – Indígena guerreiro norte‑americano Disponível em: https://bit.ly/41kYOus. Acesso em: 28 fev. 2023. Na América Central, é comum encontrar alguns esportes de combate que se utilizam de bastões de vários comprimentos, que provêm de instrumentos usados na agricultura no Haiti, Trindade e Barbados. Essas lutas são mais praticadas de modo recreativo e como defesa pessoal. Do Havaí, encontra‑se o Kempo havaiano, francamente dirigido para praticar e desenvolver defesa pessoal. Baseia‑se em várias lutas asiáticas, como Kempo chinês, Wushu chinês e lutas provindas e sistematizadas mais adiante no Japão, como o Jiu‑jitsu e, sobretudo, pelo Karatê. Esse esporte de combate apareceu em meados dos anos 1970. Trata‑se de técnicas com uso de grande velocidade e contundência. Utiliza muitas armas para treinamento, como bastões, espadas, facas e outros apetrechos. 55 ESPORTES DE COMBATE A seguir, vemos um golpe do Kempo havaiano: Figura 38 – Ataque com soco duplo do Kempo havaiano Disponível em: https://bit.ly/3A9Z6sj. Acesso em: 28 fev. 2023. Não se pode deixar de mencionar a sistematização do Kickboxing, ou também chamado de Full Contact. Decorre de praticantes de Karatê, nos anos de 1970, que quiseram utilizá‑lo de modo mais incisivo do que o combate apenas de aproximação técnica, assim permitindo que se obtivesse o nocaute com chutes, socos e cuteladas, que não são permitidas nas competições do Karatê Olímpico e em vários outros estilos. Veremos adiante as características próprias dessa modalidade e sua aplicação contemporânea como defesa pessoal, sistema educacional e MEC. Criado no Japão em 1997, o Pride foi um acontecimento específico para permitir a disputa de uma luta profissional entre o brasileiro Rickson Gracie, especialista em Jiu‑jitsu, e o japonês Nobuhiko Takada, lutador profissional e lenda nipônica que tinha grande acerto de golpes e histórico de ser imbatível nos combates corporais. Imperava o interesse pelas lutas chamadas de vale‑tudo. Permaneceu até 2006, quando problemas políticos e jurídicos fizeram com que fosse extirpada a sua organização e contraído pela empresa Ultimate Fighting Championship (UFC). Desde 1993, nos Estados Unidos, iniciou‑se o UFC, que começou a incentivar competições de combate extremamente violentas, baseadas provavelmente nos Jogos Olímpicos gregos, em que havia o Pancrácio. A empresa nos Estados Unidos promovia eventos usando o combate de modo abrangente, podendo atacar com socos, chutes, imobilizações, torções e restrições articulares, projeções, arremessos, compressões e cotoveladas, cuteladas, enfim, de modo que se pudesse usar praticamente todas as ações de acometimentos corporais, tanto em pé como no solo, popularizando a designação MMA, em inglês mixed martial arts, com tradução para artes marciais mistas. 56 Unidade I Possuía poucas restrições: morder, atingir órgãos genitais e os olhos e outros orifícios humanos. A disputa era bem violenta, não havia tempo‑limite e a arbitragem era condescendente com atitudes que poderiam levar a casos de letalidade, pois não intervinha mesmo em situações nas quais atletas, sem as mínimas condições de prosseguir no combate, não eram impedidos de continuar e, muitas vezes, sofriam lesões profundamente danosas e que colocavam em risco a sua integridade, podendo levá‑los à morte. A partir da entrada de Dana White como proprietário do UFC e da interferência do congresso e de legisladores norte‑americanos, exigiu‑se mais controle dos árbitros sobre a disputa e intervenção para impedir casos fatais. Introduziram regras para evitar ataques na região das virilhas, torções de pequenas articulações; proibiram ataques na região cervical e golpes que pudessem levar a situações de rompimento de estruturas nervosas importantes e que pudessem trazer consequências como paralisias e tetraplegias; cotoveladas sobre a região de trás do pescoço e coluna vertebral, a qual também não deveria sofrer com atos de extensão articular regular. Adicionalmente, impediram as puxadas de cabelo. Desde então, o UFC adquiriu várias organizações que tentavam seguir com eventos na mesma condição do vale‑tudo, incluindo o Pride, já citado. É um dos esportes de combate com maior audiência mundial, sendo um sucesso tanto nas competições masculinas como femininas. As disputas costumam ser sangrentas, como se pode notar na figura seguinte. Figura 39 – Disputa de UFC, esporte de combate que exige muita energia e resistência dos lutadores Disponível em: https://bit.ly/43HZKe4. Acesso em: 18 abr. 2023. 4.1.1 As lutas brasileiras – o destaque na América do Sul Sabe‑se pela história que vários povos indígenas possuíam preparação guerreira para enfrentar invasores de outros povos para a expansão e defesa de território, busca de mulheres para acasalamento e extermínio para canibalismo. Estima‑se que no início da colonização portuguesa, nos idos dos anos 1500, havia por volta de 3 milhões de autóctones nessas terras. Atualmente, estima‑se aproximadamente 818 mil indivíduos indígenas, entre 305 etnias e 274 línguas faladas (FUNDAÇÃO NACIONAL DOS POVOS INDÍGENAS, 2023). 57 ESPORTES DE COMBATE Pode‑se imaginar que atividades guerreiras eram comuns, e cada etnia tinha suas formas de guerrear e lutar. Há muito se sabe que o ser humano, independentemente da etnia, precisou combater predadores, animais irracionais e também os que se comunicavam, escreviam e fabricavam armas. Algumas lutas indígenas brasileiras são catalogadas pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Os combates corporais integram a cultura dos indígenas brasileiros e fazem parte de festivais e celebrações tradições. A luta de combate Huka‑Huka, também nomeada de Uka‑Uka, é bastante popular e praticada por várias etnias, sobretudo as localizadas no Xingu, nos estados de Mato Grosso, Tocantins, Acre, Rondônia, Amazonas e Pará. Esse combate se estabelece em comemorações aos ancestrais; é um ritual de preparação para os jovens tornarem‑se guerreiros. O fato peculiar é que não há comemoração do vencedor, apesar de ser reconhecido pelos outros membros. Perdedor e vencedor saem abraçados, pois acreditam que aquele que perdeu poderá vencê‑lo amanhã, e o importante é a disputa e homenagear os ancestrais. Para o jovem vencedor, é um caminho para a afirmação de sua vida adulta e admiração das moças para se casar. Os jovens não têm uma preparação específica, entretanto são os responsáveis pelas tarefas mais pesadas, como cortar lenha, levantar as ocas e abrigos, caçar e defender. Veja na figura seguinte o agarramento entre os competidores de Huka‑Huka. Figura 40 – Luta indígena brasileira Huka‑HukaDisponível em: https://bit.ly/40iRNsW. Acesso em: 18 abr. 2023. A luta se caracteriza pelo início em pé, e os competidores se movimentam em sentido horário, por uma a três voltas, e depois se agarram ajoelhados. Em geral, é de pouca duração e existe um árbitro que praticamente nada interfere, sendo apenas um observador, age como o dono da luta. Os competidores se pintam com cores de animais e dizem representar a sua força e astúcia durante o combate. 58 Unidade I Na imagem seguinte, pode‑se ver um momento da luta cujos oponentes tentam derrubar um ao outro, principalmente tentando alcançar a perna do adversário e girar o seu corpo para cair de costas no solo. Figura 41 – Luta indígena brasileira Huka‑Huka, pegada na perna Disponível em: https://bit.ly/3GTyMX2. Acesso em: 18 abr. 2023. Outras lutas derivadas de competições e jogos indígenas também podem ser mencionadas, como a Idjassú, provinda dos Karajá, do Tocantins. A luta se inicia em pé e o objetivo é agarrar completamente o oponente pela cintura e depois desequilibrá‑lo, lançando‑o de costas ao solo. Quem fizer isso é o vencedor e, diferentemente da Huka‑Huka, o vitorioso canta, balança os braços e imita o voo de um pássaro. As técnicas são muito rápidas e as disputas terminam geralmente em poucos segundos. As lutas para os Karajá parecem ser mais competitivas e têm significado de formação guerreira, pois essa etnia precisou fazer muitas disputas para defender seu território de ataques de outros povos, como os Kayapó e os Xavante. Outra modalidade de combate indígena é encontrada entre os Parakateyê‑gavião, da região do Pará, e os Xavante e os Tapirape, do Mato Grosso, os quais praticam a Aipenkut. Da mesma maneira que no Idjassú, o propósito é agarrar pela cintura e arremessar o oponente de costas ao solo. As contendas duram poucos segundos e, como na Huka‑Huka, não há contestações entre vencedor e perdedor; o árbitro também age como se fosse o dono da luta, contudo não interfere em nada. Os oponentes saem juntos e abraçados ao final da disputa. Uma luta muito conhecida de origem brasileira é a Luta Marajoara, de origem indígena, que deriva de povos pré‑colombianos que habitavam desde a Colômbia, Venezuela e Guianas até o estado do Pará e Amapá, chamados de Nheengaíba. Fixaram‑se nesses estados brasileiros a partir das invasões espanholas nesses países. Adiante, serão apontadas as tradições marajoaras perpetuadas pelo povo Aruá. 59 ESPORTES DE COMBATE O embate que caracteriza a Luta Marajoara consiste em agarrar o oponente pela cintura, braços e pernas e projetá‑lo de costas ao solo, mantendo‑o por alguns segundos em contato com o chão. O local de disputa deve ser de lama, ou seja, num sítio especificamente preparado com argila, a mesma que se encontra na fabricação das cerâmicas marajoaras dos indígenas da região desses estados citados. Originariamente, os nativos se pintavam com as cores de animais e vestiam roupas respectivas, mas o dorso deve estar descoberto e limpo para que ao cair se comprove que encostou na terra encharcada, sujando as costas nuas do perdedor. Com a visita de fenícios primeiramente, e depois com a migração também de andinos, a entrada dos portugueses, a participação de judeus que se transportaram pela região, e completando com a inserção dos africanos na vida brasileira, houve uma mescla de costumes que se incorporaram à Luta Marajoara de forma fluida, já que as práticas das lutas fenícias, incas, europeias e africanas e do Oriente Médio eram bastante parecidas, sempre com os mesmos atributos e basicamente as mesmas regras. Notadamente, essas lutas são baseadas nas “marradas”, isto é, nas abraçadas e, consequentemente, o arremesso ao terreno (GABBAY, 2009; SCHAAN, 2000). O que modificou consideravelmente é que se passou do solo argiloso para o chão de terra mais arenosa e fofa. Atualmente, a Luta Marajoara está muito bem estruturada e regulamentada nas regiões paraense e amapaense e se tornou um esporte de combate bem competitivo. Os brasileiros presentes na região, como os caboclos ou mamelucos (resultado da miscigenação entre a etnia indígena e os europeus com pele branca), os cafuzos (reunião étnica entre índios e africanos com pele negra), mulatos (conciliação das etnias europeias de pele branca com africanos de pele escura) e descendentes diretos dessas etnias, participam ativamente em festivais e competições esportivas, sendo muito popular e acompanhada com entusiasmo pelo público local e por turistas. Nesse momento, foram buscadas outras lutas indígenas do Brasil, citando a Briga de Galo, uma disputa primitiva dos Manchineri, do Acre. Nessa disputa, os adversários se colocam lado a lado com o tronco inclinado até a cintura, os joelhos são ligeiramente flexionados e as mãos são dadas por detrás das coxas. Então, inicia‑se a disputa com os dois combatentes tentando lateralmente empurrar o seu opositor somente com a parte superior do corpo, principalmente os ombros e os quadris. Como a disputa é realizada dentro de um círculo que delimita a ação, sai vencedor quem conseguir deslocar para fora do círculo o seu contrário. A luta é bastante educativa e praticada pelos adolescentes desse povo, e permite instigar as capacidades de força e equilíbrio. Outra luta é a Derruba Toco, muito encontrada nos festivais e celebrações dos indígenas Paraxós. Demarca‑se um círculo de oito metros de diâmetro com o posicionamento de um toco ao centro. Os competidores devem tentar realizar uma pegada dos braços ou abraçar seu concorrente de modo a tentar, por meio de puxadas, empurrões e impulsos corporais, direcioná‑lo para que derrube o toco com o corpo. Cada competidor tem somente duas tentativas e o opositor, obviamente, vai contrapor essa ação e, ao mesmo tempo, tentar evitar que o oponente derrube o artefato. Não é permitido passar rasteiras, largar ou lançar o adversário em direção ao objeto, tampouco se permite levantar, estrangular nem arremessar o adversário sobre o toco. 60 Unidade I Não há como apresentar todas as lutas indígenas brasileiras pois, como afirmado, há mais de 300 etnias e cada qual tem suas maneiras de preparação e enfrentamento guerreiro e costumes de combates corporais e com apetrechos de luta específicos. Todavia, é preciso destacar mais algumas lutas, pois serão importantes para depois adentrarmos na mais conhecida e praticada luta de defesa pessoal brasileira: a Capoeira. Então, na sequência de descrição das lutas do Brasil, falaremos sobre a Xondaro. Essa luta foi desenvolvida pelos nativos Guarani e depois conservada com a agregação dos Tupis. Os Guaranis se difundiram desde o Paraguai, passando fortemente pelo Sudeste do Brasil, região Sul e seu litoral e várias outras localidades. Os Tupis dominavam praticamente todo o litoral desde Cananeia até o Ceará; essas etnias eram os maiores povos habitantes no Brasil e, ao longo do tempo, vieram a se mesclar e caracterizar a cultura Tupi‑guarani. A Xondaro é uma luta que se inicia com a formação de uma roda de combate bem provocativo. A principal disposição dos combatentes é oferecer desafios e afrontas e, em especial, responder por meio continuado com desvios aos ataques sofridos. Um ator principal age no centro de um círculo formado pelos participantes que vai aprontando e desferindo golpes com as pernas e pés, e os receptores dos ataques devem se desviar rapidamente e escapar do contato do atacante. Nessa prática, os participantes devem estar muito atentos e usar profundamente sua percepção de movimento, dando prontidão ao corpo e, dessa maneira, se esquivar para não ser atingidos. Daí, são percebidas as execuções de oscilações corporais. As narrativas dos descendentes Guaranis evocam que a Xondaro era praticada para propiciar formação guerreira aos jovens dessa etnia. Além disso, comentam que havia o treinamento dos lidadores para desviarem‑se do lançamento de flechas e assim o faziam com elevada agilidade e muita segurança. Era também vista, mencionamseus descendentes, a ocorrência de saltitos, saltos, piruetas, movimentos de rodantes e estrelas (iguais aos da ginástica artística) e muitos trejeitos na movimentação. Não se deve confundir Xondaro com dança, apesar de ser muitas vezes assim reportado. O propósito é dar ao seu praticante o despertar de capacidades para que possa atuar com agilidade em todas as ocasiões da vida ao enfrentar desde o bote de uma cobra, o assalto de um rival e a flecha do inimigo. Ainda hoje se preservam essas práticas nas aldeias Guaranis (EBC, 2015). Uma luta considerada precursora da capoeira, igualmente à Xondaro, é a Maraná. Ela provém dos Potiguares, povo localizado no Rio Grande do Norte. Esses nativos, mais especificamente os jovens guerreiros, fazem um círculo e se movimentam bastante, podem empregar ou não artefatos cortantes e contundentes. Os movimentos consistem em rodopios, saltos e acrobacias espetaculares; ouvem‑se gritos, pois os nativos imitam animais que demonstram potência e coragem. As agressões são feitas com pontapés, cotoveladas e joelhadas realizadas com muitos saltos que atingem diretamente o oponente na cabeça e no peito. Em geral, muitos são nocauteados e perdem a consciência. Os perdedores são caçoados, desprezados e circundados pelos vencedores, que continuam as chacotas aos berros. Os indígenas também se confrontam com o uso de tacapes, às vezes atingindo somente de raspão; outras vezes os ferimentos são mais lesivos e ocorrem fraturas e dilacerações com sangramentos. Ganha quem acertar primeiro o oponente. Nota‑se grande capacidade de realização e esquivas e desvios corporais com extrema habilidade. 61 ESPORTES DE COMBATE Estudando as lutas brasileiras, descobrimos a sua variedade e informações que exploram a riqueza cultural do país, suas características mais relevantes e seus aspectos de motricidade, ampliando as possibilidades de atuação do profissional. Entretanto, após ser estimulado com algumas lutas precursoras da Capoeira, não se pode deixar de avançar nessa luta de defesa pessoal amplamente conhecida mundialmente e destacar sua história, fazer considerações sobre a sua origem, genuinamente brasileira, e enaltecer suas qualidades motrizes para nossa área de atuação. Saiba mais Para aprofundar e reforçar os conhecimentos sobre as três principais lutas brasileiras, recomenda‑se assistir ao documentário: TERRA de luta. Direção: Tadeu Jungle. Brasil: Academia de Filmes; Combate. 56 min. 4.1.1.1 A Capoeira – patrimônio do Brasil Para poder discorrer sobre essa luta e defini‑la no contexto de nossa disciplina, precisa‑se resgatar a documentação pertinente aos fatos e às bibliografias que ainda persistem a fim de comprovar as próximas linhas sobre essa modalidade abarrotada de riqueza cultural, abundância de habilidades motoras e de consistentes caracteres de integração social. Devido à grande utilização da prática da Capoeira nos dois últimos séculos pela comunidade negra e seus descendentes, houve a publicação de livros e artigos baseados em documentação que desprezaram as literaturas e descrições históricas mais próximas da época antes e após a entrada dos portugueses a estas Terras Brasilis. Precisa‑se retornar aos idos da chegada dos portugueses para delinear eventos e montar consistentemente as conclusões apresentadas neste tópico. Muitas teorias sobre aportes às terras da América do Sul os antecedem, desde os fenícios, os vikings, os celtas e mais outros povos navegadores, contudo, como toda teoria, seria preciso comprovação documental consistente para estabelecer como verdadeiras essas declarações, o que não se concretiza absolutamente. Possivelmente, Cristóvão Colombo, ao ter alcançado a região da América Central, tenha também chegado perto do norte e nordeste do Brasil e examinado suas terras. O que se sabe, realmente, é sobre a “certidão de nascimento” escrita na Carta de Pero Vaz de Caminha, que indica a chegada da frota de Cabral, composta por 27 páginas de texto. Em seguida aos relatos de Caminha, diversas expedições de vários países advieram pela costa brasileira e algumas chegaram até a se aventurar em explorar alguns trechos do litoral. 62 Unidade I O documento mais concreto provém da missão francesa pelas águas dos mares brasileiros em 1534, antes de qualquer movimento escravagista com importação de africanos e outros povos pelos portugueses para cá. Léry (1961), missionário francês, descreve que os autóctones que aqui viviam apareciam frequentemente praticando exercícios bastante peculiares. Ele relata que os nativos se reuniam em círculos, pelos areais das praias, faziam artimanhas corporais diversas e bem diferentes das que comumente se viam em lutas e danças guerreiras de outros povos. Léry destaca movimentos como piruetas, saltos elevados com chutes, furibundas cambotas, movimentos muito ligeiros e impressionantes, com agilidade e disposição. Treinavam de maneira sistemática e os jovens eram bastante incentivados a não parar de se movimentar, tentando a todo o tempo ludibriar o oponente. Essas descrições de Léry explicitam fortemente as relações muito aproximadas do que se constata ao acompanhar a prática da Capoeira na atualidade, mesmo com tanto tempo já passado e com tantas reviravoltas culturais ocorridas desde aquele tempo. Corroboram os escritos de Léry as documentações do holandês Nieuhoff (1988), que mencionam as lutas praticadas pelos ritos guerreiros dos nativos Potiguares e Pernambucanos. O documento traz à tona descrições muito similares às do missionário francês, aludindo que os indígenas daquela região faziam movimentos muito incisivos de ataques corporais, já que os combatentes se aproximavam e afastavam‑se rapidamente uns dos outros com giros e saltos acentuados após terem desferido golpes de pernadas, pontapés e cotoveladas. Esses escritos ainda se referem à formação de rodas para as tais práticas, com os participantes se desafiando continuamente. Os nativos se pintavam de cores fortes e batiam palmas em ritmo frenético, e também os pés eram percutidos em direção ao solo. Segundo o escritor, os movimentos eram como de animais executando botes em presas, com o objetivo de desferir golpes certeiros e bem incisivos. Martim Afonso de Souza aportou no Brasil em 1532 a fim de cumprir ordens da Coroa Portuguesa para distribuir terras em capitanias hereditárias. Seu irmão Pero Lopez, integrante da comitiva de Souza, escrivão da armada, historiou que havia assistido às lutas dos nativos brasileiros e expôs que eles efetuavam movimentos arrepiantes cujos resultados proviam saltos importantes e elevados, grande agitação e oscilação corporal, agilidade, e que, em todo o tempo, pareciam tentar enganar o oponente e conquistar a melhor posição para atacar e desfechar os golpes mais certeiros e diretos. Além dessa vasta documentação, que permite segurança ao determinar as raízes brasileiras da Capoeira, Santos (2015), em sua dissertação de mestrado sobre a cultura Guarani, expõe que vários estudiosos, pesquisadores e historiadores, cujas análises respectivas aos costumes dos Guaranis, em especial as esquivas corporais do Xondaro, são manifestações afirmativas de movimentos específicos para tentar enganar e obter vantagem sobre o rival. Eles estabelecem comparações, nas quais concluem que esse movimento se relaciona genuinamente com os encontrados na Capoeira, mais especificamente as gingas, as acrobacias e as piruetas. É notório que a Capoeira teve substancial prática feita pelos negros e seus descendentes em nossa sociedade devido à imensa massa de africanos trazidos para o Brasil a partir da segunda metade do século XVI, mais especificamente a partir do ano de 1580. Conforme relatam Schwarcz e Starling (2015), a ampla necessidade de atender à produção de cana‑de‑açúcar incitou os portugueses a escravizar os 63 ESPORTES DE COMBATE nativos daqui, e essa imposição se alastrou por até o século XVIII. Contudo a forte aversão dos indígenas a ser escravizados,bem como suas fugas e enfrentamento brutal contra esse tipo de opressão, resultava em dificuldades para a continuidade dos serviços canavieiros e outras ocupações. A Coroa Portuguesa, já acostumada a comprar escravos africanos para suas outras possessões nas Ilhas de Açores e da Madeira, expandiu a aquisição de mão de obra escrava para atender à forte demanda mundial do açúcar. É muito importante salientar que as práticas escravagistas são vastamente conhecidas desde os povos mais antigos, como os egípcios, os gregos, os romanos, depois, muito fortemente, na região norte da África, perpetradas pelos mercadores islâmicos do século VII, traficantes de homens e mulheres em toda essa terra. Outros povos africanos estavam sempre em guerras e se assaltavam, roubavam as mulheres para oferecer aos reis das tribos, escravizavam e vendiam os prisioneiros, principalmente aos europeus; os que mais se destacaram foram os holandeses e belgas, espanhóis, portugueses, ingleses e franceses. Os portugueses, com a imensa ampliação de sua força de navegação, dominaram vários pontos da África e tinham facilidade para receber esses mercadores e traficantes para comercializar os escravos e, dessa maneira, transferi‑los para os locais que precisavam de mão de obra (SCHWARCZ; STARLING, 2015). Notadamente, essa abominável prática humana fez história e trouxe uma mancha aos protagonistas daquelas épocas. Os africanos, em especial negros transportados ao Brasil, foram aprisionados juntamente com os nativos também escravizados e, obviamente, se mesclaram em costumes dentro das senzalas (local de serviçais das fazendas de engenho). Esses escravos também fugiam e tentavam resgatar a própria dignidade humana escapando da opressão escravagista, se arriscando a buscar uma nova vida. Ao serem reunidos com os indígenas brasileiros, muitos aprenderam a arte da luta brasileira. A prática de lutas era proibida dentro das senzalas, mas os prisioneiros simulavam os golpes como se fosse uma dança; para isso usavam instrumentos de batucada indígenas brasileiros: tambores, chocalhos, reco‑reco e outros associados ao berimbau, o único que provém do continente africano. Ao escapar das senzalas, evadiam para as matas rasteiras, as quais os Tupi‑guarani chamavam de Kaá Poêra, descrita no dicionário original formulado pelo padre José de Anchieta, A arte da Língua mais usada na costa do Brasil, editado em 1595, significando Kaá como mato e Poêra como “o que foi”. Também, conforme Frederico G. Edelweiss, no livro de Teodoro Sampaio, O tupi na geographia nacional, de 1901, havia a descrição caápuéra como vocábulo que se associava à designação de mato ralo ou renascido. Dessas expressões, pode ter surgido posteriormente o nome dado à arte da luta indígena, hoje chamada de Capoeira. Todavia, um outro escritor, Antenor de Veras Nascentes, teoriza que o nome da luta provém dos indígenas que batizaram os galos briguentos, das aves urus, cujo macho é tremendamente ciumento e trava lutas violentas com rivais que desejam adentrar em seus domínios para tentar acasalar com a fêmea que vive consigo; essa ave luta com extrema maestria, desferindo golpes por meio de saltos e com os pés em garras (NASCENTES, 1935). Os golpes são muito parecidos com os que os capoeiristas disparam nas rodas de combate. 64 Unidade I Nota‑se que as origens da Capoeira se formalizam como arte de luta genuinamente brasileira, apesar de ter havido várias publicações que atestavam a origem africana, porém sem comprovação documental apropriada. Uma evidência é certa: os escravos africanos negros foram os maiores e os mais ativos atores na propagação dessa defesa pessoal pelo Brasil, pois, após a libertação dos indígenas, eles ainda permaneceram por mais de cem anos sofrendo a opressão do escravagismo. Foram libertos somente pela princesa Isabel, filha de dom Pedro II, em 13 de maio 1888, com a abolição definitiva da escravatura no Brasil. Johann Moritz Rugendas, pintor alemão que permaneceu no Brasil entre 1821 e 1825, especializado em traduzir para as telas a vida cotidiana de vários povos, retratou a Capoeira como a dança da guerra, conseguindo captar um momento especial da prática nessa época. Segue uma ilustração famosa da Capoeira desenhada e pintada por Rugendas. Figura 42 – Johann Moritz Rugendas, Danse de la guerre, 1835 Disponível em: https://bit.ly/3KMTeKu. Acesso em: 28 fev. 2023. Por muitos anos, escravos e descendentes continuaram o exercício da Capoeira, às vezes de modo a servir a interesses escusos de senhores da nobreza, como guarda‑costas; depois, pela própria dificuldade de inserção na sociedade, usaram‑na publicamente como luta intimidatória e para extorquir bens, fazer arrastões e também por chefes políticos a fim de obrigar eleitores a votar em suas legendas e nomes. Infelizmente, foi criada uma imagem inadequada por determinado tempo tanto para a Capoeira quanto para os seus praticantes; negros, mulatos e descendentes foram os mais prejudicados, sofrendo reveses de proibição e de marginalização (HAHNER, 1993). Após um tempo adormecida e marginalizada, desde a abolição dos escravos até por volta de 1930, após uma apresentação do mestre Bimba, um digno representante da Capoeira ao presidente Getúlio Vargas, tornou‑se um esporte nacional. 65 ESPORTES DE COMBATE O certo é que a Capoeira absorveu valores culturais múltiplos e desenvolveu‑se no meio dos afrodescendentes com predicado ímpar, difundindo‑se por todo o Brasil. Pode‑se afirmar que a Capoeira foi um instrumento corporal de luta na defesa contra a opressão escravagista e se transformou ao longo dos anos em uma verdadeira manifestação de liberdade de expressão e do movimento humano. Ao longo do tempo, dois mestres marcaram a Capoeira no país: o primeiro é o mestre Bimba – Manoel dos Reis Machado (1899‑1974) – criador da Capoeira regional, prevalecendo em Goiás, com movimentos rápidos, agudos, contundentes e impetuosos, com muitas acrobacias e saltos, piruetas com ativação mais bruta, mesclando também golpes de outras lutas, como pernadas e agarres. O segundo é o mestre Pastinha – Vicente Ferreira Pastinha (1889‑1981) –, da Bahia, que nomeou a Capoeira como sendo de Angola, por ele explicado que dera esse nome para homenagear os africanos trazidos para cá provindos daquela colônia portuguesa. A modalidade do mestre Pastinha é mais cadenciada, mais ritmada, mais envolvida com movimentos rasteiros e varreduras, mas tão incisiva quanto a do mestre Bimba. Mestre Pastinha afirmava que a Capoeira é ginga, é provocante, parece uma galante dança, mas no fundo é luta, luta violenta, porém não deveria ser assim conduzida, sem controle, sem domínio e sem cortesia pelo oponente. Figura 43 – A roda de Capoeira Disponível em: https://bit.ly/3GVzIKu. Acesso em: 18 abr. 2023. A Capoeira foi praticada até em uma guerra travada pelo Brasil contra o Paraguai, entre 1864 até 1870, quando o exército de Duque de Caxias recrutou vários jovens afrodescendentes para servir nos combates. Os embates físicos foram intensos e muitos usaram suas habilidades aprendidas nas senzalas para empreender sucesso corporal contra os inimigos. Esses soldados foram tão valentes e decisivos que, ao retornarem, receberam honrarias e homenagens militares (SOARES, 2001). 66 Unidade I A Capoeira é hoje a luta mais manifesta do Brasil e recebeu da Unesco em 2014 a citação e titulação de patrimônio cultural imaterial da humanidade. Para isso, foram levantados aspectos históricos, documentos, verificações antropológicas, esportivas e culturais a fim de determinar essa luta como genuinamente brasileira: A Roda de Capoeira foi inscrita na Lista Representativa do Patrimônio Imaterial da Humanidade da Unesco. O anúncio foi feito durante na 9ª sessão do Comitê Intergovernamental para Salvaguarda de Patrimônio Cultural Imaterial, comandada por José Manoel Rodriguez Quadros (Peru) e que está sendo encerrada sexta‑feira, 28 de novembro, na sede da Organização das NaçõesUnidas para a Educação, a Ciência e a Cultura na capital francesa (AGÊNCIA SOCIAL DE NOTÍCIAS, 2014). A Capoeira se caracteriza fortemente pela ginga, a malícia do enfrentamento, que, conforme salientamos, veio das artimanhas dos Xondaro e dos Maraná, indígenas brasileiros. Como concluiu Keese dos Santos (2017), as raízes brasileiras da Capoeira são inegáveis, as espertezas e astúcias dos combatentes Xondaro dos indígenas Guarani da América do Sul, em especial, brasileiros, se fazem presentes no jogo ofensivo e defensivo dessa esgrima corporal; o movimento significa então modo de vida, agir pelas transformações. Soares (2001), também mencionando Plácido de Abreu, que afirma ser brasileira a origem da Capoeira, e não poderia ser outra que não a nascida aqui nas Terra Brasilis, pois diz que a capoeiragem não era conhecida dos africanos. Essa menção é corroborada pelo antropólogo austríaco Gerhard Kubik (1994), pesquisador e estudioso de movimentos musicais, linguagens, movimentos corporais, danças e preparação guerreira de povos africanos, que não possuem lutas, danças e manifestações corporais que se relacionem aos aspectos da capoeiragem brasileira. Mestre Pastinha revelou que após ser convidado a participar, junto com uma comissão brasileira, em 24 de abril de 1966, do Primeiro Festival de Artes Negras em Dakar, no Senegal, teve certeza de que a Capoeira era unicamente brasileira, sem quaisquer origens africanas. Vidal de Souza Reis (SILVA, 2004) descreveu que o próprio mestre Pastinha demonstrou a Capoeira aos africanos, esperando encontrar similaridades nas lutas que se originaram na cultura africana, mas, na verdade, encontrou, para o seu encanto e surpresa, admiração, curiosidade e comentários da grande novidade gerados pela apresentação da modalidade no evento, ficando impressionado com a reação que a Capoeira, como manifestação corporal usada pelos descendentes africanos, provocou nos mais de 50 representantes dos países desse continente. Ao mesmo tempo, Pastinha não conseguiu relacioná‑la com outras danças, lutas ou manifestações corporais da África. 67 ESPORTES DE COMBATE Saiba mais Acesse o vídeo seguinte para conhecer melhor o mestre Pastinha: MESTRE Pastinha! Uma vida pela capoeira. 2017. 1 vídeo (45 min). Publicado pelo canal Tucson Capoeira – UCA. Disponível em: https://bit.ly/40IbmuO. Acesso em: 19 abr. 2023. Chega‑se, portanto, ao fato de que a Capoeira recepcionou os africanos que aqui ancoraram e se mostrou instrumento de oposição à escravidão, permitindo que esses povos pudessem se manifestar em busca de sua liberdade. Na vida contemporânea, a Capoeira ultrapassa suas raízes e a sua delimitação aos africanos escravizados e descendentes, pois se transformou em instrumento psicomotor, ferramenta de integração social, prática corporal para a saúde; como esporte, agrega valores de experiências vividas pelo jogo do desafio, a provocação de como lidar com a enganação e o respeito pelo próximo, alcançando, por inteiro, a nação brasileira. Depois de apresentar essas informações sobre as lutas e esportes de combate mais proeminentes das Américas, daremos sequência aos esportes de combate originários no continente africano. 4.2 Histórico e características de esportes de combate no continente africano África é um vasto continente e conta com 9 territórios, ou melhor, ilhas, e 54 países, distribuídos em 5 regiões: meridional (sul), oriental, ocidental, central e setentrional (norte). Indubitavelmente, a civilização egípcia é marcantemente importante quando se procuram as raízes das lutas no continente africano. Desde o império Kemet, em torno de 3000 a.C., precursor da civilização Kush‑Núbia e, posteriormente, a dos faraós egípcios, as lutas eram destacadas no cotidiano dessa região, partindo do centro até o norte da África seguindo pelas margens do rio Nilo. Afrescos e cravações rupestres destacam modalidades como o Pugilato, com lutas de projeção e bastões. Mas vamos dar continuidade às origens e ao histórico dos esportes de combate no continente africano voltando um pouco mais no tempo e incluindo o Oriente Médio. As lutas fizeram parte da estrutura cultural dos povos africanos. Na arqueologia encontrada na cultura faiumiana (5400‑4400 a.C., pré‑egípcia), na Etiópia, na Somália, no Sudão, em Uganda e na Eritreia, encontraram‑se ferramentas de caça com alto grau de sofisticação, com flechas bifaciais e arpões. Esses povos eram belicosos e guerreavam entre si pelas melhores condições de território. Essas constatações provêm de escavações efetuadas nas cidades de Karthoum, Meroé e Aswan Dam (BARROW, 2021; EDWARDS, 2000). Além disso, encontram‑se pinturas de boxeadores, lutas com bastões e com agarres corporais, provavelmente com datas derivadas entre 4000 a.C. e 3000 a.C. As figuras dessas lutas pareciam ter cunho esportivo e para a diversão (CROWTHER, 2010; LEVINSON; CHRISTENSEN, 1999). 68 Unidade I Na Mesopotâmia, os sumérios, por volta de 3500 e 3000 a.C., estavam entre as civilizações que se estabeleceram dominando várias regiões entre os rios Tigre e Eufrates. Existem registros de imagens de combatentes nas cavernas dos sumérios acadianos que datam de 3000 a.C. (LEVINSON; CHRISTENSEN, 1999), sugerindo serem boxeadores em contendas. Tábuas das inscrições de Tummal, no Nipur, atual Iraque, citam as lutas travadas nas conquistas sumérias‑acadianas e trazem à tona a epopeia de Gilgamesh, possivelmente escritas por volta de 2750 a.C. Esse poema faz referência às lutas lendárias entre homens e animais, entre reis e fantasmas ou demônios e também às façanhas militares dos sumérios contra o rei Aga de Kish. Além desses relatos, existem peças de bronze encontradas na antiga Babilônia, atual Iraque, com lutadores esculpidos, retratando as competições de lutas em louvor ao seu deus protetor Marduk. Porém o povo sumério estava cercado por guerreiros destemidos, como os hititas e amoritas, que cobiçavam suas terras com finalidade de saquear a Babilônia. Esses indivíduos belicosos já possuíam um sistema de carros de guerra, guiados por cavalos, com duas rodas que lhes davam grande agilidade militar, nos quais lutavam com destreza e facilidade para debelar seus contrários (DANIELS; HYSLOP, 2004). Destarte, já se garantia a elaboração de artefatos de combate e já havia o treinamento de militares para afrontamentos e disputas. Guerrear exigia dinamismo tático e grande preparação no emprego das estratégias corporais de confronto. Por volta de 3000 a.C., os egípcios iniciaram a constituição de uma poderosa nação à custa de tropas bem treinadas e numerosas. A base dessa sociedade contava com escribas, clérigos, artesãos e também soldados, cujo sustento provinha do governo e os quais garantiam a hegemonia do poder dos faraós. Esses guerreiros formavam uma legião bem habilitada nas técnicas corporais de domínio e no uso ágil de armas (DOBERSTEIN, 2010). Nessa região do Egito, as lutas estão bastante destacadas nos acervos de painéis pintados nas tumbas de faraós. Para Levinson e Christensen (1999), as lutas treinadas pelos jovens egípcios eram praticadas de modo ordenado, com fixação de regras pelos reis egípcios, uso de uniformes e presença de árbitros. A organização do evento parecia ser estruturada pelo próprio rei e seus príncipes; nas representações encontradas nas tumbas da realeza egípcia, acompanhavam as disputas. Figuras com lutadores em posição de ataque com os punhos fechados, contendo nas mãos proteções provavelmente de couro ou tecido e em posição de luta de boxe como conhecemos atualmente, estão pintadas nos túmulos da região de Sakkara, relacionadas com o antigo Império conduzido pelo faraó Djoser, da terceira dinastia, que reinou entre 2630 a 2611 a.C. (CLAYTON, 2004). Combates com agarres, projeções, torções e imobilizações eram comuns, e existem pinturas nas paredes das pirâmides sistematizando o treinamento de lutadores para essas competições (LEVINSON; CHRISTENSEN, 1999). As lutas noantigo Egito eram também usadas para treinar sacerdotes para o condicionamento físico, proporcionar lazer aos escrivães e, como já descrito, para os preparativos dos oficiais militares, protetores dos faraós. A mitologia egípcia cita o deus Montu (Menthu) como o grande exaltante das virtudes guerreiras e agressivas dos faraós, deus habilidoso no uso de armas e da força, com extrema coragem e valentia (DELANGE, 2002). O deus Montu é retratado à direita na gravação, em pedra, junto ao deus Sobek, o qual era o patrono dos militares egípcios e defensor da nação. 69 ESPORTES DE COMBATE Figura 44 – Deus Montu à esquerda, junto com o deus Sobek, ambos das virtudes guerreiras e das lutas egípcias; museu a céu aberto em Kamak, Egito Disponível em: https://bit.ly/3MQb69N. Acesso em: 28 fev. 2023. Na necrópole de Beni Hassan e El Bershka, com suas edificações datadas de 2400 a.C. e 1850 a.C., respectivamente, no Médio Império Egípcio, encontra‑se um extenso mural com pinturas de lutadores praticando vários movimentos de ações de agarre, e localizam‑se instruções de execução e dominação, comumente encontradas nas lutas praticadas nos Jogos Olímpicos atuais, como a Luta Olímpica, atual Wrestling, e a Luta Greco‑romana, hoje chamada de Wrestling Greco‑romano (LÓPEZ, 2011). Nesse período, as lutas assumiram conotação de exercício condicionante e eram aproveitadas para disputas competitivas bem organizadas. Figura 45 – Lutadores egípcios e lutas de agarre: tumbas de príncipes em Beni Hassan, datadas de 2400 a.C. Disponível em: https://bit.ly/40poWTD. Acesso em: 28 fev. 2023. 70 Unidade I Figura 46 – Batalha com bastões gravada na estela encontrada em Medinet Habu Disponível em: https://bit.ly/3KFgHgo. Acesso em: 28 fev. 2023. López (2011) cita que as lutas com bastões, parecendo com a Esgrima moderna, ainda na época do Médio Império Egípcio, eram extensamente exercitadas nessa região, como mostrado na figura cravada na estela (rocha esculpida com descrições históricas) localizada em Medinet Habu, no Egito, nas tumbas dos príncipes. Seus movimentos eram parecidos com os dos sabres modernos, e as disputas eram instituídas por eventos bem concorridos. Além dessa modalidade, López ainda descreve a existência também de lutas nos canais e pântanos do rio Nilo, cujos competidores permaneciam dentro de canoas e se enfrentavam, com participação de diversos combatentes buscando derrubar os oponentes da outra embarcação em frente ou ao lado das suas. Eram usadas armas parecidas com remos grandes, conduzidos para empurrar os adversários a fim de proporcionar as quedas de seus oponentes para fora de suas embarcações. Como se pode notar, a civilização egípcia dos faraós continha diversas demonstrações de lutas. Poucos e vagos relatos na história do Egito permaneceram para dar continuidade às tradições dessas lutas no continente africano na atualidade. Mas a diversidade de modalidades atuais ainda é bastante vasta e contém riqueza de movimentos e tradições, o que se pretende delinear a seguir. Na África presente, várias modalidades de luta se destacam por todo o continente; muitas já estão sistematizadas e têm estrutura institucional bem direcionada ao esporte de combate de cunho competitivo e de rendimento, enquanto outras permanecem com suas propostas originais, servindo principalmente como rito de passagem da idade adolescente para a vida adulta. As próximas descrições dos esportes de combate são obtidas de uma enciclopédia lançada nos Estados Unidos específica para a consagração das artes marciais dispostas no atual conhecimento mundial. Trata‑se de Martial arts of the world: an encyclopedia of history and innovation, editado por Thomas A. Green e Joseph R. Svinth, referência para o estudo das lutas, suas origens, seus históricos de utilização e atual presença ao redor do planeta. 71 ESPORTES DE COMBATE Kamangula é uma luta que se destaca pela sua prática no Sudão, usa ataques com as mãos abertas (bofetadas), socos e pancadas diretamente nos braços e no peito dos competidores. Cada competidor, uma vez por cada, acerta um golpe no oponente sem que este reaja ou bloqueie o ataque. Aquele que resistir será declarado o vencedor. Essa contenda era e permanece sendo empregada como uma disputa entre jovens para determinar quem será o escolhido para casamento. O perdedor fica bastante constrangido e deve tentar lutar novamente em outra ocasião, se quiser se casar. Em Angola, existe uma luta popular nos arredores litorâneos chamada Bassula, luta recreativa dos pescadores, praticada comumente nas praias de Luanda, capital do país, e consiste em agarrar e derrubar o oponente na areia. Parece com a luta olímpica, hoje chamada de Wrestling Olímpico. A tradução do termo Bassula está próxima de derrubada. Um combate ainda muito usual serve para festas e demonstrações, mas também como artifício de defesa: é a luta executada com bastões e espadas nominadas de Tahtib, praticada no norte do Egito e em localidades do deserto do Saara. Ainda hoje muito apreciada, pode‑se encontrá‑la em desenhos e esculpidas em tumbas encontradas em Beni Hassan, caracterizando sua popularidade desde os tempos dos faraós, perpetrando nos adias atuais, como se pode notar nas figuras seguintes. Figura 47 – Luta de bastões, Egito antigo, precursora do Tahtib atual Disponível em: https://bit.ly/41yjrDc. Acesso em: 28 fev. 2023. 72 Unidade I Figura 48 – Luta de bastões do Egito e norte da África nos dias atuais, Tahtib Disponível em: https://bit.ly/3MTSqpD. Acesso em: 28 fev. 2023. No Senegal, a luta Laamb é muito popular e praticada com o intuito de celebração em festivais, como entretenimento, para cortejar noivas e também como esporte de combate, apresentando sistematização e disputas muito bem organizadas. Elas são feitas sobre terreno arenoso e o propósito é arremessar o adversário de costas no solo dentro ou para fora da área de combate. Pode‑se observar que adolescentes já praticam e se exercitam por meio dessa luta, como mostrado na figura seguinte. Figura 49 – Luta Laamb entre adolescentes, no Senegal Disponível em: https://bit.ly/40klERP. Acesso em: 28 fev. 2023. 73 ESPORTES DE COMBATE Outros países desse imenso continente, como o Níger, o Chade e a Nigéria, também se destacam com a luta chamada de Dambé. Essa modalidade é executada como se fosse uma luta de boxe, mas, em geral, só se emprega uma das mãos para golpear o oponente; uma das mãos fica enfaixada, e eventualmente fica combinado que pontapés podem ser realizados. A luta é bem sistematizada e tem três rounds ou assaltos, sem limite de tempo. Para‑se quando ambos demonstrarem estar exaustos da troca de golpes. Uma das regras aponta que colocar outra parte do corpo, que não os pés no solo, leva à derrota imediata. Essa luta servia antigamente para determinar um rito de disputa para que o vencedor pudesse escolher a noiva e realizar o matrimônio. Figura 50 – Dambé, luta africana do Níger, Chade e Nigéria Disponível em: https://bit.ly/3UKwFL4. Acesso em: 28 fev. 2023. No Togo vive uma tradição de esporte de combate chamada de Evala, nome também do festival em que se provoca os jovens para a busca da identidade adulta e para ter a permissão de se casar. Antes de qualquer disputa, o lutador precisa escalar três montanhas. Depois de passar por essa prova, a competição se caracteriza por uma disputa com agarres e arremesso; o vencedor é o que conseguir projetar o oponente ao solo. O perdedor passa muita vergonha e constrange bastante a família, de tal modo que, se quiser ser considerado um homem e poder se matrimoniar, deve se dedicar a treinar a modalidade com muito afinco e vencer na próxima ocasião. 74 Unidade I Ilustra‑se a Evala na próxima figura: Figura 51 – Festival e combate Evala, no Togo Disponível em: https://bit.ly/41l2BIc. Acesso em: 28 fev. 2023. Istunka é uma luta de origem medieval, criada durante o Império Aruian, entre 1330 e 1700 d.C., muito popular na Somália. A disputaprovém de um conflito tradicional entre duas comunidades que, separadas por um rio, sempre tentavam uma se sobrepor à outra. A característica mais diferenciada é a de que se aplicam golpes com um bastão em uma das mãos, e a outra usa um cobertor ou manto grosso colorido, o qual o lutador movimenta de modo dinâmico, tentando retirar o bastão do adversário e também se protegendo dos ataques das bastonadas desferidas em sua direção. Essa luta é bastante dura e violenta e exige resistência e habilidade para o manuseio do tecido e do implemento ao mesmo tempo. O tecido também serve para tentar ludibriar o oponente por meio de agitação constante e determinada. A África do Sul e a Namíbia, tradicionalmente povoadas pelos povos Zulu, têm como caráter a luta Nguni. Essa modalidade provém das ações de guerra desses povos e entre as tribos dessa região. Utilizam‑se duas lanças, com ou sem escudo. Há um documentário chamado We still are warriors, no qual se apresenta essa luta, cujas ações são bastante fortes e contundentes. Ainda é usada para apresentação em festivais, disputas entre povos pelas jovens para matrimônio e como preparação guerreira dos adolescentes. No Quênia, há também a luta Massai, muito similar à Nguni, com a utilização de dois bastões ou lanças para cada oponente. Saiba mais Acesse o documentário no endereço eletrônico: WE STILL are warriors – full documentary luta (2007). 2020. 1 vídeo (1 h 15 min). Publicado pelo canal Siyabonga Makhathini. Disponível em: https://bit.ly/41Fhfdz. Acesso em: 19 abr. 2023. 75 ESPORTES DE COMBATE As ilustrações a seguir representam bem essa luta: Figura 52 – Luta Nguni, retratada em 1810. Zulus e seus bastões Disponível em: https://bit.ly/43KMPYY. Acesso em: 28 fev. 2023. Figura 53 – Luta Nguni na Namíbia e na África do Sul; ilustração em embalagem de produtos Disponível em: https://bit.ly/3KUQGds. Acesso em: 28 fev. 2023. Um combate enérgico e com bastante brutalidade vem do Gâmbia, a luta denominada Borey ou Boreh. O intuito é arremessar o adversário no solo, somando‑se a isso alguns recursos estranhos, como jogar areia em direção aos olhos ou cuspir no antagonista. Também permite socos e pontapés, mas a pontuação somente é válida se o rival cair de costas no solo arenoso. Mulheres participam em campeonatos com grande disposição e vigor. Relatos de participantes descrevem essa luta como proveniente dos embates das cabras. 76 Unidade I Outro esporte de combate é o Moringue (outros nomes são Morengy, Moraingy ou Moraing), luta que se conhece da Ilha de Madagáscar. É um pugilato de mãos geralmente sem qualquer proteção, sejam de luvas, faixas de tecido ou de couro, ainda constando as técnicas de chutes e joelhadas. Destaque durante a Dinastia Maroseranana no Império Sakalava, por volta de 1675 a 1896. Era uma luta praticada pelos adolescentes como recreação e preparação física adulta. Hoje está sistematizada e é bastante popular como esporte de combate. Também é encontrada nas ilhas Maurício e Seychelles. A luta permite contatos incisivos em todo o corpo; como restrição, não se pode agarrar ou segurar o adversário. Na figura seguinte, se vê uma demonstração de combate em Madagáscar. Figura 54 – Campeonato de Moraingy, na Ilha de Madagáscar Disponível em: https://bit.ly/3KMXzgO. Acesso em: 28 fev. 2023. Das Ilhas Canárias, posicionadas no nordeste da costa africana, procedem duas lutas: a dos bastões, nomeada Juego del Palo, e a de agarre, chamada de Lucha Canaria, provavelmente relacionadas à cultura Guanche, povo que habitou a ilha e do qual se tem notícia de ter realizado vários tipos de disputas que envolviam jogar pedras, troncos de árvore, usar bastões curtos e longos e também dardos. Os espanhóis, ao invadir e tentar dominar a ilha no final do século XV, sofreram muito com a resistência dos Guanches em defendê‑la com esses apetrechos. O Juego del Palo se caracteriza pelo uso de bastões direcionados a atacar a cabeça, o peito e os quadris dos adversários; atualmente serve mais como demonstração, mas ainda é praticado como defesa pessoal. 77 ESPORTES DE COMBATE A Lucha Canaria possui técnicas e golpes muito parecidos com os do Wrestling tradicional, contudo, há uma posição inicial bem pitoresca: os competidores usam calções reforçados e ficam com as pernas do short enroladas. As mãos esquerdas devem segurá‑los e se manter ao longo do combate nas bordas dos calções da perna direita do adversário, e a outra mão se posiciona sobre o ombro direito do oponente, comumente segurando a gola da camisa. Tenta‑se projetar o competidor de costas ao solo e imobilizá‑lo. Os combates são efetuados em grandes arenas circulares de terra barrenta ou propriamente com areia, como mostrado na figura seguinte. Figura 55 – Lucha Canaria Disponível em: https://bit.ly/3MXqe5k. Acesso em: 28 fev. 2023. Da África do Sul, também se conhece uma luta que tem como tradição a violenta troca de socos, chamada Msangwe. A origem desse combate é conhecida desde 1820 e provém do povo Venda, relacionada às lutas dos touros. As mãos são enfaixadas e os socos são dirigidos diretamente à cabeça dos lutadores. O combate termina somente quando um dos adversários desiste; relatos não oficiais dizem que há combates que duraram até cinco dias com duas horas de duração em cada dia. Na Costa do Marfim, tradicionalmente, havia lutas de agarre e arremesso corporal muito apreciadas e que foram perdendo importância no esporte local, mas ainda se preservam alguns eventos, como se pode verificar na figura seguinte. 78 Unidade I Figura 56 – Wrestling (agarre e arremesso) na Costa do Marfim Disponível em: https://bit.ly/41gCFNW. Acesso em: 28 fev. 2023. 4.3 Histórico e características de esportes de combate asiáticos Considerando o tamanho do continente asiático e o número de países que o forma, aliados à abundância de estudos arqueológicos e documentação pertinente, a quantidade de esportes de combate que provém desse continente parece ser a maior de todas. Como se pode prever que o ser humano sempre necessitou lutar para sobreviver, também se prevê que cada tribo ou aldeia, toda nação, diferentes países, ou seja, todos os povos têm estilos de luta que se associam à sua história e, principalmente, à sua cultura, que deram origem ao seu desenvolvimento. Nos tópicos anteriores, foram citadas algumas dessas modalidades e agora avançamos para dar sequência a mais uma gama de esportes de combate que fazem parte da história desse imenso continente. Inicialmente, vamos estudar as lutas provenientes da Índia. Uma das mais antigas é a Malla Yuddha, que significa literalmente atleta de lutas, e tem sua história documentada há mais de 5000 anos, descrita em livros mitológicos, como no Ramayana e no Mahabharata, os dois mais célebres livros épicos escritos em sânscrito. Combates de lutadores também foram documentados por reis e imperadores, cujas descrições apontavam os treinamentos, o tempo de prática, as técnicas e os golpes. Essa luta era usada para preparar soldados, como entretenimento recreativo e celebrativo. Consta em seus fundamentos a relação com as divindades hinduístas, que guiavam a formação de um grande atleta. A seguir, propõe‑se um quadro baseado na leitura de Willian Buck (2017) da Ramayana e no Mahabharata, na versão de Krishna Dharma (2017), apontando essas divindades e as qualidades de combate dos praticantes dessa modalidade. Essas qualidades estavam salientes nas lutas de Malla Yuddha, pois tinham pegadas e agarres muito parecidos com o Wrestling contemporâneo, que exigem gigantesca energia de seus atletas. 79 ESPORTES DE COMBATE Quadro 1 – Relação de divindades citadas no livro épico Ramayana e no Mahabharata e as qualidades a serem obtidas pelos praticantes de Malla‑yuddha Divindade Qualidades e competências obtidas Hanumam Habilidades e técnicas – destreza de aplicação dos golpes Jamavali Bloqueios e imobilizações no oponente Jarasandha Restrições articulares e fraturas –contundência Bhiman Energia de aplicação dos golpes – vigor e pujança Adaptado de: Buck (2017) e Dharma (2017). Já a modalidade esportiva dessa luta, praticada tanto no norte da Índia como no Paquistão, é designada Malla khra, em que se amarra muito fortemente uma faixa de tecido torcido na cintura de cada combatente e ambos tentam, por meio de pegadas nessa faixa, derrubar o oponente ao solo, geralmente preparado com terra afofada. Dessas primeiras manifestações do Malla‑yuddha e das lutas que provieram das necessidades de cada região, surgiram diferentes esportes de combate. Mesmo muito antigos, não perderam suas características e se mantiveram como práticas atuais nessas regiões da Índia. Um desses esportes de combate, já ilustrado anteriormente, é o Kalaripayattu. Luta de defesa pessoal e preparação guerreira, já descrita desde 1100 a 600 a.C., consiste em ataques contundentes e imita acometimentos de animais; usa muito as esquivas e pode também ser executada por meio de armas como lanças e bastões. Atualmente, parece ser pouco usada para a defesa pessoal, mas, mais notadamente, como preparação física e para ser exibida em festivais e celebrações (ZARRILLI, [s.d.]). Utiliza saltos acrobáticos e grande habilidade com armas cortantes, como mostra a figura seguinte. Figura 57 – Kalaripayattu, arte marcial da Índia; exibição com espadas em Kerala, Índia Disponível em: https://bit.ly/3okQe0i. Acesso em: 28 fev. 2023. 80 Unidade I Da Índia, pode‑se também citar as lutas com bastões longos, como o Lathi do norte, desenvolvida pelos pastores da região; outra luta com bastões de bambu é a Silambam; esta, todavia, é originária dos povos de Tamil Nadu, no sul da Índia (DRAEGER; SMITH, 1981). Figura 58 – Silambam, arte de luta com bastões de bambu, da Índia Disponível em: https://bit.ly/3LcWiB7. Acesso em: 28 fev. 2023. Há também um esporte de combate, o Mushti‑yuddha, praticado no norte da Índia, mais especificamente confinado à cidade ancestral hinduísta de Varanasi, parecido com o Kickboxing, ou também chamado de Full Contact Karatê, caracterizado por socos e chutes com intenção de nocautear o adversário (DRAEGGER; SMITH, 1981). Continuando a jornada ao redor da Ásia, envereda‑se pelo imenso território chinês a fim de trazer as mais relevantes modalidades de artes marciais e esportes de combate desse país. Presume‑se que haja mais de 300 modalidades espalhadas na China, um país em que se pode derivar as mais diversas MECs. Muitas delas são praticadas em povoados e aldeias, com certa restrição sobre as suas particularidades, sendo usadas e trasmitidas entre familiares e camponeses, com fins competitivos ou institucionais. Sem dúvida, o Wushu chinês é o mais divulgado e praticado, por isso também aparesenta estrutura específica para efeitos de esporte de rendimento. Wushu significa arte marcial e, como já descrito, partiu também das necessidades de defesa pessoal e, em seguida, para preparação guerreira. Antes de analisá‑la, vamos explicar o seu histórico a fim de obter uma cronologia que fundamente a aparição das artes marciais chinesas. A origem das lutas da China parece ser fundamentada no que se diz ser a Luta dos Chifres, segundo Liang e Ngo, da Inglaterra. Essa luta foi explicitada há mais de 4700 anos, provinda das comarcas setentrionais. Encontra‑se literatura referente aos combates realizados pelo exército do Imperador Amarelo contra a armada do rebelde Chin Viu, documentados em 2697 a.C. (LIANG; NGO, 1997; SHAHAR, 2008). Os soldados que derrotaram Chin Viu usavam capacetes com chifres incrustados e empregaram técnicas de engalfinhamento que partiam da rápida aproximação contra o rival, segurar as pernas, cintura, tronco ou quadril e derrubá‑lo ao solo. Essa luta ficou conhecida como Shuai Jiao (Wrestling chinês). 81 ESPORTES DE COMBATE Mais tarde, houve notícias de técnicas guerreiras de combate sistematicamente treinadas no exércíto pertencente à Dinastia Chou (1256 a 1122 a.C.). Essas práticas eram chamadas de Jiao Li e consisitiam, além de projeções corporais, também de ataques contundentes com socos, pernadas, estrangulamentos e restrições articulares. Mais tarde, no domínio do imperador Shi Huang Di, na Dinastia Qin (221 a 207 a.C.), essa prática foi esportivizada, servindo também como entretenimento. Outro fato histórico é que somente os lutadores que se sobressaíssem nos combates poderiam servir à proteção do imperador e à sua família. A influência do Shuai Jiao e do Jiao Li permitiu a derivação de diversas outras artes marciais encontradas não só em outras províncias chinesas, como em outras províncias e países asiáticos, como na Mongólia, de onde provém o esporte de combate chamado Bokh, e em outros países ao sul da China, como Coreia, Vietnã, Laos e Camboja (GRACEFFO, 2018; LIANG; NGO, 1997). Figura 59 – Prática de Shuai Jiao na Dinastia Qing Disponível em: https://bit.ly/3MQdygv. Acesso em: 28 fev. 2023. Figura 60 – Retrato de pintura da prática de Shuai Jiao, usado por séculos e ainda hoje como treinamento do exército chinês Disponível em: https://bit.ly/3op4kOj. Acesso em: 28 fev. 2023. 82 Unidade I Atualmente, pode‑se acompanhar em festivais e competições nacionais na Mongólia os combates de Bokh, luta na qual o objetivo é derrubar o rival e fazê‑lo encostar qualquer parte do corpo, desde os joelhos, quadris, costas, braços, mãos e a cabeça. Figura 61 – Esporte de combate da Mongólia – Bokh Disponível em: https://bit.ly/40kfHUP. Acesso em: 28 fev. 2023. A infuência do Shuai Jiao e do Jiao Li foi decisiva para formalizar o Wushu chinês, pois eram amplamente praticadas nas províncias do norte da China. Além disso, foi comprovada a expansão de técnicas de preparação física do monge Bodhidharma, sempre lembrando da experiência que esse monge budista obteve com a lutas Kalaripayattu e Zurkhane, conforme é reforçado pelos registros descritos por Ashrafian (2014). Percebe‑se nas documentações do templo Shaolin terem sido criadas pelo imperador Hsiao‑wen, da Dinastia Wei, que permanceu no poder entre 386 e 540 d.C., com abordagens desse monastério em estudos sobre budismo, medicina natural, acupuntura e práticas de exercícios físicos. As lutas se baseavam no que se chama de Kempo chinês, com tradução literal de “lei do punho”, ou como Boxe chinês. Posteriormente, com a vinda de Bodhidharma, também se voltaram as vivências e estudos das artes marciais como defesa pessoal, preparação física, bem‑estar e fortalecimento interior, ampliando as técnicas utilizadas (ASHRAFIAN, 2014). Dessa agregação de experiências e, posteriormente, do aprofundamento sobre o uso do corpo como ferramenta para enfrentar os desafios de ataques de salteadores nos templos, de evitar riscos para a vida e fortalecimento interior, criaram‑se, ao longo de vários anos, os estilos de Wushu baseados em movimentos de ataques de animais, como posição da serpente, garras do tigre, luta dos macacos, garra de garça ou de águia, louva‑deus e garras do leopardo. Encontram‑se outras denominações e estilos, mas são citados os que têm comprovação documentada (CASARELLA, 2017). 83 ESPORTES DE COMBATE O Wushu chinês, popularmente conhecido como Kung Fu, cujo significado é mais bem traduzido como “trabalho duro”, ou trabalho com habilidade, com especialidade, aplica uma variedade muito distinta de golpes e também propociona treinamento das habilidades com as mais diferentes armas e objetos. Da grande aproximação dos monges com as filosofias de Lao‑Tsé, do zen e de Confúcio, há uma vertente do Wushu, chamada de Tai Chi Chuan, que se especializou em praticar arte marcial como luta interna, apesar de se basear em movimentos de ataque e defesa. Pode‑se observar os exercícios de Tai Chi Chuan na próxima figura, que retrata uma reconstrução do quadro de exercícios escavado da 3ª tumba de Mawangdui selada em 168 a.C., no antigo reino de Changsha; o original se encontra no Museu Provincial de Hunan, Changsha, China. Nota‑se que os movimentossão também baseados em ataques e posturas de animais e forças da natureza, mas exercitados somente com o intuito de promover a saúde, apesar de terem sido desenvolvidos desde muito antes como defesa pessoal. Figura 62 – Tai Chi Chuan, exercícios para combater a dor e fortalecer o equilíbrio corporal Disponível em: https://bit.ly/43DEFlb. Acesso em: 1º mar. 2023. Figura 63 – Tai Chi Chuan, ataque “chicote único” Disponível em: https://bit.ly/3LaK23R. Acesso em: 1º mar. 2023. 84 Unidade I Outro artifício de defesa pessoal proveniente do Wushu foi o Kempo ou Kenpõ, derivado do nome Guan Shuan – lei dos punhos –, que preconiza o uso das mãos, punhos, cotovelos e braços para executar movimentos e técnicas contundentes. Foi precursor do Karatê, o que será mais bem explicitado no tópico que abordará os esportes de combate originários do Japão. Pode‑se ver na sequência uma figura mostrando as técnicas de execução do Kempo. Mesmo os bloqueios de chutes são efetivados por meio de defesas com os braços e cotovelos de maneira bastante eficaz. Figura 64 – Kempo: técnica de bloqueio de chutes por meio dos braços e punhos Disponível em: https://bit.ly/3Nc05QD. Acesso em: 1º mar. 2023. O Wushu chinês também se tornou um esporte de combate e realiza as competições de Sanda ou Sanshou, nas quais os atletas são treinados com alto nível de especialização em técnicas de socos, chutes e rasteiras. A luta é bastante vigorosa, realizada em uma plataforma elevada do solo (aproximadamente um metro de altura), os atletas usam luvas nas mãos, assim como no Boxe. Executam‑se também alguns clinchs e agarres de pequena duração, pois devem ter efetividade imediata, assim como as rasteiras devem ser aplicadas (INTERNATIONAL WUSHU FEDERATION, 2017). Ainda sob a influência dos esportes de combate derivados da Índia e da China, algumas outras modalidades de outros países se fazem presentes. Uma delas é o Wing Chun ou Ving Tsun, uma defesa pessoal bastante eficiente que se fundamenta em técnicas de grande agilidade com mãos e pés, surgida no Vietnã e também espalhada pelo sul da China. Essa modalidade foi sistematizada por uma mulher, a monja Ng Mui, que ensinou as técnicas de defesa para uma jovem chamada Yim Wing‑chun, que a espalhou, daí o nome em homenagem a essa lutadora. O estilo usado foi aprendido pela família Yip, sendo o filho Yip Man o seu melhor praticante e disseminador de técnicas que permitem que o combatente use a força do atacante direcionando‑a contra si. Yip foi, depois, o instrutor de Bruce Lee, um dos maiores lutadores de artes marcias que já existiram, sendo o criador de sua própria arte marcial, chamada de Jeet Kune Do. Na figura seguinte, se pode observar Yip treinando Bruce Lee, então na idade de 18 anos. 85 ESPORTES DE COMBATE Figura 65 – Yip Man ensinando Wing Chun para Bruce Lee, então com 18 anos de idade Disponível em: https://bit.ly/3oqVWgZ. Acesso em: 18 abr. 2023. Outra luta do Vietnã é o Vovinam Viet Vo Dao, estilo bastante contundente. Foi estruturado a partir de 1938 considerando a arte de lutas encontradas no Vietnã, muito provavelmente as que derivaram do império Angkor, que mencionaremos adiante, quando entrarmos na origem do Muay Thai. Até 1964, não havia organização esportiva ou uniformes. A partir de então, os competidores disputariam os combates procurando o nocaute por meio de chutes, joelhadas, cotoveladas e socos. Ha disputas exclusivas que usam armas e defesa pessoal de mãos vazias contra estrangulamentos, uso de facas, bastões e outras armas. Os atletas utilizam, hoje em dia, uniformes azuis nas competições e demonstrações, como se pode acompanhar na figura seguinte. Figura 66 – Demonstração de Vovinam Viet Vo Dao Disponível em: https://bit.ly/43G7Cge. Acesso em: 18 abr. 2023. 86 Unidade I Outro país que informa uma arte marcial de defesa pessoal são as Filipinas e a Indonésia, de onde se extrai o Kali Silat. O Kali é originário das Filipinas e se coaduna com as artes marciais que provêm dessas várias ilhas que formam esse imenso país. Essa luta vem de defesas pessoais contra ataques de facas e objetos cortantes e, atualmente, também é apreciada e estruturada como esporte de combate. Silat é o termo relacionado às lutas indonésias e se refere mais profundamente às mais variadas artes marciais antigas da região, usadas para combater invasores na Indonésia. Pesquisadores sugerem que essa luta provém do Silambam, a luta com bastões já apresentada anteriormente e proveniente do sul da Índia. Outro termo relacionado é o Pencak Silat, a derivação esportivizada do Silat. Nas competições esportivas de Pencak Silat, são usados chutes elevados, socos e cuteladas. Os praticantes se especializam em se defender e dominar ataques de facas, adagas, gládios, canivetes, durindanas e cutelos. Essas práticas se espalharam por diversos países além da Indonésia e Filipinas, alcançando Singapura, Brunei, Sumatra, Malásia e Vietnã. Os estilos podem variar de ações extremamente rápidas para mais lentas, porém sempre cortantes e contundentes. Figura 67 – Competição de Pencak Silat na University de Malaya, Kuala Lumpur Disponível em: https://bit.ly/41Gh0hQ. Acesso em: 1º mar. 2023. Muito se diz sobre uma das MECs, agora e sempre, muito popular, com grande apreciação do público e bastante vigorosa: Muay Thai. Essa luta é provinda da organização de uma arte marcial sistematizada na Tailândia, mas as suas origens são melhor alicerceadas na região do Laos e do Camboja. O Muay Thai se originou do Pradal Bokator, também chamada de Pradal Serey e Kun Kmher, proveniente do Reino Kmer, na região de Angkor, do norte do Camboja (DRAEGER; SMITH, 1981). O grande predomínio do império Kmher, entre os séculos VI e XII, deu origem ao uso sistêmico militar das lutas nessa região (DANIELS; HYSLOP, 2004). No templo de Angkor Vat, atual Camboja, construído a partir do século IX (UNESCO, 2023), prova‑se a existência de lutas chamadas de Bokator 87 ESPORTES DE COMBATE em figuras esculpidas em relevos de pedras organizadas para treinamento militar. Os combates se davam essencialmente pelo uso corporal ou utilizando armas brancas, sendo usadas todas as partes corporais presumíveis para emprego em ataques contra o adversário, enfatizando os golpes com o uso das palmas das mãos, dedos, cabeça, cotovelos, joelhos, pernas (tíbias), quadris e pés, podendo arrastar, arremessar, aprisionar, bater, forçar articulações, estrangular e lutar no solo (DRAEGER; SMITH, 1981). O Krabi Krabong também tem semelhanças com o Muay Thai e foi organizado praticamente na mesma época. Na Tailândia, grupos se uniram para enfrentar as constantes invasões nas províncias ao redor, consolidando as práticas das artes marciais nessa região durante o século XVI, tendo sua ascensão mais notadamente por volta de 1869, quando do início do governo do rei Chulalongkorn, nomeado Rama V, que incentivou a prática do Muay Thai educacional, como defesa pessoal, uso recreativo e esportivo (DRAEGER; SMITH, 1981; JUMP, 2012). O Muay Thai hoje predomina como esporte de combate e associa‑se à própria imagem da Tailândia, pois é amplamente praticado nesse país, com milhares de academias. Lutadores da Tailândia foram os principais responsáveis pela divulgação do Muay Thai pelo mundo. Pode‑se comparar nas figuras seguintes uma gravação esculpida em rocha nos templos de Angkor, mostrando o golpe com o joelho, e o mesmo golpe realizado nas lutas de Muay Thai. A) B) Figura 68 – A) Luta e golpe de Bokator usando o joelho, no Templo de Angkor, Camboja; B) Golpe com o joelho no Muay Thai A) Disponível em: https://bit.ly/3mOK48e. Acesso em: 1º mar. 2023; B) Disponível em: https://bit.ly/41CMh5p. Acesso em: 18 abr. 2023. 88 Unidade I Outro esporte de combate muito parecido com o Muay Thai é o Lethwei, praticado em Myanmar, antiga Birmânia. Segundo nos descreve Gyi (2000), e também exposto por Draeger e Smith (1981), essa modalidade também provém da arte marcial Bokator, do impérioKhmer, proveniente do templo e da era Angkor. Há registros de sua prática desde o século XI. Possui características de golpes e gestos técnicos com a combinação de socos, cotoveladas, chutes e joelhadas. Não se usam luvas e também se permite a cabeçada entre os contendores, constituindo‑se em um esporte de combate bastante contundente, pois o único objetivo é que um dos combatentes seja nocauteado sumariamente, sem vitórias atribuídas por contagem de pontos. Ainda lembra Gyi (2000) que tampouco há rounds; a luta inicia e termina somente com o nocaute, e esse esforço costuma deixar vários competidores intensamente feridos e com sangramentos colossais. Atualmente, está‑se tentando organizar campeonatos com cinco rounds de três minutos cada, aproximando‑se dos combates esportivos mais bem aceitos mundialmente (DRAEGER; SMITH, 1981; GYI, 2000). Da mesma linhagem do Bokator, no Camboja, se encontra o Pradal Serey, muito parecido com as disputas do Muay Thai, porém com ênfase no emprego dos cotovelos (GRAY, 1966). A península coreana é protagonista de grande importância nas artes marciais e traz a origem do Taekkyon, um combate muito agitado, com muitos saltos e agilidade dos combatentes. Essa arte marcial está muito bem representada em pinturas nas tumbas de Muyong Chong e Samcil Chong, do período da Dinastia Goguryeo, por volta de 50 a.C. (GILLIS, 2011; GREEN; SVINTH, 2010; SONG; BAK, 1963). A prática é muito baseada nas lutas realizadas no interior da Coreia, sendo popular também pelo folclore envolvido. A movimentação é muito enérgica, como se fosse uma ginga muito rápida, fazendo a triangulação dos passos como na Capoeira; suas técnicas constituem golpes com grande contundência, por intermédio de pernadas, pontapés, giros e chutes elevados. Estudiosos comparam o Taekkyon com as dinâmicas da Capoeira (BELTRÁN, 2013). Da Coreia, resultando da tradição e costumes do Taekkyon e de várias artes marciais originárias na península, obtém‑se o Taekwondo, uma arte marcial sistematizada depois de muitos séculos de lutas reunidas em um sistema específico de adestramento para soldados. Uma dessas lutas que influenciou a criação do Taekwondo, além do Taekkyon, foi o Hwa Rang Do, treinamento executado para combates sem armas por um monge chamado Wonhyo aos jovens que desejavam ser guerreiros da elite militar durante a Dinastia Silla, por volta de 670 a.C. Em seguida, vieram a Dinastia Koryŏ e a Dinastia Yi, nas quais houve momentos de maior interesse e depois de decadência nas práticas de artes marciais (KIM, 2006; SANG; BAK, 1983). 89 ESPORTES DE COMBATE Figura 69 – Taekkyeon, arte marcial ancestral da Coreia Disponível em: https://bit.ly/43GFgSZ. Acesso em: 1º mar. 2023. Com a invasão do Japão na Coreia, muitas restrições foram impostas ao povo coreano; uma delas foi a proibição das práticas de lutas tradicionais, sendo substituídas pelo Karatê japonês. A partir da independência da Coreia em 1945, reuniram‑se os principais mestres de esportes de combate coreanos e resgataram as tradições somando‑as em uma única modalidade: o Taekwondo. O general Choi Hong‑hi foi um dos maiores difusores do Taekwondo, apresentando‑o por volta de 1952 ao presidente da Coreia do Sul, que, na ocasião, já ordenou o seu ensino pelo país (KIM, 2006). Desde então, o Taekwondo se tornou também um esporte olímpico a partir de sua demonstração nos Jogos Olímpicos de 1988, em Seul, Coreia, e também em 1992, em Barcelona, sendo definitivamente oficializado no ano de 2000, em Sydney, na Austrália. Os golpes mais efetivos são executados por meio dos chutes frontais, circulares, elevados, laterais e giratórios; socos podem ser usados, mas é mais raro serem vistos nas competições (KIM, 2006). 90 Unidade I Figura 70 – Taekwondo: chutes são mais usados nesse esporte de combate Disponível em: https://bit.ly/3odrJlx. Acesso em: 1º mar. 2023. Da Coreia, deve‑se destacar também o Hapkido, uma arte de defesa pessoal que, originariamente, se coadunava com os aspectos mais primordiais ditados pelo monge Bodhidharma: técnicas de exercícios corporais para a promoção da saúde e o desenvolvimento interior, isto é, o fortalecimento da energia intrínseca e do engrandecimento interativo na convivência humana e na natureza. Com o passar do tempo e a necessidade de os monges se defenderem dos constantes ataques aos templos, essas técnicas se aprimoraram para possibilitar golpes determinantes e de controle dos inimigos. Ainda hoje não se esportivizou, sendo aplicada com finalidade de aprendizado para defesa pessoal. Utilizada também para treinamento e formação de militares em força pública, pois tem como finalidade dominar e controlar o adversário meliante, sem causar‑lhe a letalidade. O Hapkido aplica muitas técnicas de torções articulares e também justapõe ações de esquiva muito ágeis, permitindo se safar de ataques de bastões, facas e outros objetos cortantes e perfurantes. Pode‑se observar a seguir uma técnica de controle articular usada no Hapkido. 91 ESPORTES DE COMBATE Figura 71 – Técnica de domínio articular no Hapkido Disponível em: https://bit.ly/3MNZDrs. Acesso em: 1º mar. 2023. Outro esporte de combate da Coreia é o Wrestling coreano, chamado de Ssireum, também muito antigo e possivelmente desenvolvido a partir do Shuai Jiao, proveniente da China. A dinâmica é parecida com o Wrestling, porém é preciso vestir uma faixa grossa ao redor da cintura a fim de servir aos competidores para ser segurada e dar sustentação para os arremessos ao solo. É uma luta que ocorre em festivais e celebrações folclóricas, disputada sobre areia em um espaço de aproximadamente 7 m de diâmetro. O objetivo é girar o corpo do adversário pela cinta amarrada na cintura a fim de que perca o equilíbrio e seja lançado ao solo de costas. Figura 72 – Ssireum Coreia, festival da província de Gyeongju, em 2008 Disponível em: https://bit.ly/3MTHGYj. Acesso em: 1º mar. 2023. 92 Unidade I Segundo as lendas japonesas, a formação das ilhas do país teve a proteção de deuses que, usualmente, praticavam disputas corporais com muita energia. Essas lutas poderiam ser apreciadas pelas pessoas, em especial na Ilha de Hokkaido, pelos combates realizados por ursos, os quais seriam os deuses que se transformavam em animais para ensinar os seres da região a combater e defender as suas terras. Somando‑se a essas mitologias e, de acordo com Ohlenkamp (2003), expondo o que fora reunido pelas descrições do exército imperial japonês no ano 720 d.C., ocorreram disputas de lutas de força no torneio chamado Chicara Kurate, em 230 a.C. Esse documento e também o folclore parecem ser a comprovação do aparecimento do Sumô no Japão, sem descartar que a prática de Shuai Jiao trazida de imigrantes chineses para essa ilha também contribuiu para sua construção. O fato é que o Sumô é bastante antigo também por influência da presença de imigrantes chineses que trouxeram o Shuai Jiao para as ilhas nipônicas. No Sumô, usa‑se também uma faixa especial para que possa servir de pegada entre os adversários. Essa faixa ou cinta de seda também serve como proteção para cobrir as partes íntimas dos lutadores. O objetivo dos combatentes é fazer o adversário tocar o solo com qualquer parte que não seja os pés, bem como pode ser tirá‑lo da área circular de disputa (dohyō), feita de terra arenosa e que mede 4,55 metros de diâmetro. Ao seu redor, em geral, contém palhagem de arroz em sacos fechados. O Sumô é praticado de maneira profissional e fartamente apreciado no Japão. Veja na figura seguinte as características descritas dessa modalidade de esportes de combate que ainda mantém rituais e procedimentos religiosos xintoístas. Figura 73 – Sumô: lutadores com mawashi (cintas de seda para o agarre), no ringue circular Disponível em: https://bit.ly/3or1Sqh. Acesso em: 1º mar. 2023. Além do milenar Judô, do Japão, há muitas outras lutas a serem consideradas, algumas muito antigas e muitas outras sistematizadas a partir do século XIXe XX. É importante salientar que, depois do espalhamento das lutas da Índia e China, o Japão se destaca como protagonista em fornecer atividades de artes marciais, defesas pessoais e, consequentemente, esportes de combate. 93 ESPORTES DE COMBATE Começa‑se pelo histórico uso das espadas no universo dos samurais. Precisa‑se estabelecer as origens dessa casta de guerreiros japoneses que se transformaram ao longo do tempo pela prática de artes marciais e de construção de uma sociedade bastante elevada em termos de coragem, honra, retidão e respeito interativo. Os samurais se organizaram como uma coletividade guerreira a partir do século XII e perduraram até o fim do século XIX, com reconhecimento maior e prestígio acentuado depois do século XVI. Essa classe militar se fundamentava no uso da espada para poder, por intermédio da excelência nas habilidades com essa arma, atingir a máxima qualidade em servir. Essa associação se ajuntou aos interesses da nobreza feudal japonesa, e os samurais trabalhavam para ela como servidores e protetores do senhor feudal e sua família. Segundo Ito (2021), a formação de um samurai exigia disciplina rigorosa e treinamentos cotidianos em Kenjutsu – técnicas de lutas com as espadas, o arco e a flecha, lançada com o samurai montado no cavalo, além de dominar a poesia, a escrita caligráfica, pinturas e esculturas. A Ikebana, a arte de arranjos florais, e a Chanoyu, isto é, a preparação sistemática do chá, eram atividades respeitadas a fim de treinar o controle, a disciplina e a precisão das mãos dos samurais, o que era requerido pelas artes marciais. Todas as crianças recebiam essa educação e seguiam com os conhecimentos, princípios e valores adquiridos, com respeito hierárquico. Um dos princípios desse estilo de vida é que ela é restrita a cada ser, contudo, o seu nome, sua glória e exemplo ficarão para sempre. Por isso, as atitudes deveriam ser sempre regidas pelo Bushido, o caminho do guerreiro, ou melhor, os princípios de ação vital: • Dever, disciplina e lealdade. • Coragem e decisão. • Benevolência e compaixão. • Cortesia, polidez e amabilidade. • Verdade acima de tudo. • Justiça e moralidade. • Prestígio e legado. Os samurais, considerados guerreiros cruéis e sem clemência, se modificaram devido ao aprofundamento dos estudos dos movimentos da espada, dos movimentos da natureza, além de ampliarem os estudos de filosofia do mestre chinês Confúcio, o qual é considerado um filósofo da busca da ordem social humana (LI, 2022), das raízes do xintoísmo, religião originária do Japão, e do zen, de Lao‑Tsé. 94 Unidade I Saiba mais Para conferir uma interpretação ocidental dessa filosofia disseminada pelo Oriente, sugerimos o seguinte filme: O ÚLTIMO samurai. Direção: Edward Zwick. EUA: Warner Bros, 2003. 144 min. Os samurais, no transcurso da história, talvez tenham sido considerados os mais hábeis lutadores com espadas desde a sua origem japonesa, por causa dos soldados que protegiam as fronteiras das ilhas. As técnicas foram se moldando para ser cada vez mais certeiras e decisivas como a arma mais representativa e essencial das artes marciais e de defesa pessoal. Kendo é o esporte de combate que se baseia no emprego de técnicas de ataque e defesa de combatentes disputando a preservação da própria vida. Esse esporte de combate, deveras tradicional e que segue muitas normas rígidas de conduta e de exercício social, é baseado nos preceitos dos antigos samurais. O Kendo é disputado com espadas produzidas com bambu feitas artesanalmente. É preciso vestir um uniforme especial para proteção: o bogu, pois os quatro ataques permitidos são bem incisivos, sendo acometimentos de corte endereçados à região central da cabeça, ao abdome, aos punhos e pela estocada em direção ao pescoço. Pode‑se observar na próxima figura um ataque do Kendo com as espadas de bambu sobre o punho de um dos combatentes e os uniformes dessa prática. Figura 74 – Berlim, campeonato europeu de Kendo: ataque do atleta da direita sobre o punho do oponente e uniformes de proteção Disponível em: https://bit.ly/3GTKKzW. Acesso em: 1º mar. 2023. 95 ESPORTES DE COMBATE Ainda pertencente ao universo dos samurais, é fundamental discorrer sobre o Ju‑jutsu, arte de lutar que envolve técnicas de projeção, de imobilização, de estrangulamentos e restrições articulares por meio de torções em várias regiões corporais. O Ju‑jutsu era a condição de preparo para enfrentar situações cuja perda da espada fora determinada no combate e haveria de permitir a continuidade do enfrentamento por meio de habilidades muito específicas e tremendamente eficazes, proporcionando domínio e controle das ações do oponente. Sua prática e continuidade afloraram no século XVI. Devido à pronúncia japonesa da letra u, com fonética de iu, no Brasil, a modalidade ficou conhecida e apresentada com a grafia e soletração de Jiu‑jitsu. As práticas atuais se dirigem muito comumente para os campeonatos esportivos, contrariamente à sua ancestralidade (MOL, 2001). Pode‑se considerar o Jiu‑jitsu esportivo a criação e sistematização feita pelos brasileiros da família Gracie, exímios praticantes e representantes desse esporte, com grande reconhecimento mundial (GRACIE, 2008). A modalidade tem imensa aceitação mundial e conta com milhares de adeptos, cuja prática deliberada leva a campeonatos disputadíssimos, tornando‑se um fenômeno esportivo. Campeonatos mundiais são realizados todos os anos e a participação de vários países é notada. Os países que mais promovem competições são o Brasil, os Estados Unidos e a Arábia Saudita. Muitos brasileiros têm alcançado resultados exitosos e continuam a ser os principais praticantes e atletas dessa MEC. Figura 75 – Golpe aplicado pelo brasileiro Marcos Torregrosa durante competição do Brazilian Jiu‑jitsu: estangulamento voador Disponível em: https://bit.ly/41kTuar. Disponível em: 1º mar. 2023. As derivações das lutas, artes marciais e esportes de combate ocorrem de maneira bem fluida e natural. Do Jiu‑jitsu, também foi criado o Aikido, no século XX. Seu criador, Morihei Ueshiba (1883‑1969), foi praticante de Jiu‑jitsu e percebeu que poderia sistematizar técnicas meticulosas com tamanha eficácia que permitissem ações de altíssimo controle sobre quaisquer ataques desferidos contra uma pessoa. O objetivo seria agir para encerrar um conflito em situações cotidianas, buscando harmonia por intermédio de uma prática voltada a fazer com que a força do atacante se voltasse contra sua própria vontade de acometer alguém, absorvendo o movimento do oponente fazendo‑o 96 Unidade I voltar contra si, colocando‑o em situação corporal desfavorável. As principais técnicas envolvem as torções articulares e solicitam do praticante o máximo esforço em desenvolver o domínio espiritual ou, como já mencionamos, o controle da vontade pela inteligência. Estima‑se que a modalidade se iniciou a partir de 1930, após muitas observações, debates e treinamentos feitos por Ueshiba (BULL, 2003). O Aikido foi criado para ser uma prática cultural que disseminasse a harmonia entre os indivíduos, e suas diretrizes não permitem utilizá‑lo no campo competitivo‑esportivo. Serve como excelente exercício de preparo físico, para aquisição de bem‑estar e como prática para a defesa pessoal, mais ainda de segurança pessoal, pois tem como propósito usar toda a racionalidade profunda para que nunca se chegue ao confronto propriamente dito e, sim, promova a consonância entre os indivíduos. Na próxima figura, tem‑se a técnica de imobilização articular para impor autoridade sobre um oponente atacante. Figura 76 – Técnica de controle articular no Aikido, após ataque Disponível em: https://bit.ly/3KLVCkA. Acesso em: 18 abr. 2023. Uma das MECs que mais têm trazido medalhas olímpicas ao Brasil é o Judô. Também proveniente do Jiu‑jitsu, já que o seu sistematizador, mestre Jigoro Kano, era exímio praticante dessa arte marcial, estudioso profundo e mestre em filosofia.Kano abriu o dojo (local de prática) em 1882 com apenas 22 anos de idade e começou a ensinar o Judô, ou seja, o “caminho suave”. Esse mestre consolidou as principais técnicas do Jiu‑jitsu em gestos específicos para projeção (arremessos combinados com varreduras), as quais devem direcionar o oponente o máximo possível para que fique amplamente de costas no tatâmi (material específico, colocado no solo e montado em dimensões de acordo com as regras, em que ocorrem as disputas de Judô), com estrangulamentos, imobilizações e restrição articular apenas no cotovelo. Todas essas técnicas, contudo, foram estudadas para que restringissem quaisquer ações que pudessem colocar em perigo a vida do oponente – apenas os estrangulamentos são mais perigosos, pois dependem de o aplicador da técnica cessar sua execução ao perceber a perda de consciência do adversário. Nas competições, o árbitro é o responsável por interromper a luta imediatamente no caso dessa ocorrência. 97 ESPORTES DE COMBATE Kano sempre indicou o Judô como um sistema educacional para fortalecer a resistência física, aumentar as conquistas de habilidades motoras, do equilíbrio e da postura, engrandecer a interatividade e autocontrole dos sentimentos, provocar o aprofundamento da inteligência, em especial da capacidade de tomada de decisão e de reação motora. A disseminação do Judô pelo mundo se solidificou com a prática esportiva, embora Jigoro Kano não compactuasse, inicialmente, com essa dimensão. De qualquer modo, como esporte de combate, o Judô foi alavancado em vários lugares. Ainda se constitui numa modalidade educacional constante de diversos currículos escolares, essencialmente no Japão, mas também encontrada em outras nações. Na próxima figura, pode‑se verificar uma ação de combate durante uma disputa no Judô por uma atleta brasileira no Campeonato Mundial de Judô, em 2018, em Baku, Azerbaijão. O uniforme correto é material obrigatório pelas regras, como já mencionado. É um elemento essencial para executar diversas técnicas da modalidade. . Figura 77 – Golpe de projeção (arremesso combinado com varredura) da atleta brasileira Mayra Aguiar no Campeontato Mundial de Judô realizado em 2018, em Baku, Azerbaijão Disponível em: https://bit.ly/3otDt3m. Acesso em: 18 abr. 2023. Mais uma MEC com grande importância e com muitos admiradores é o Karatê, cujos estilos provêm de distintas escolas no Japão, cada qual com regras e práticas e golpes muito particulares, apesar da grande semelhança de técnicas. Muito provavelmente, é uma arte derivada dos imigrantes chineses, em especial, monges originários do Templo Shaolin, cujo deslocamento para as Ilhas Ryukyu aconteceu antes da separação geográfica desse arquipélago do continente chinês. Essa teoria se baseia no desenvolvimento do gato‑de‑iriomote, cujo sequenciamento genético deriva do leopardo encontrado no sul da China e em várias outras partes do continente asiático. Ele se adaptou ao arquipélago, diferentemente do leopardo chinês, mas possui 98 Unidade I a sequência genética idêntica à do leopardo continental. Estima‑se que esse fato tenha acontecido por volta de 200 mil anos atrás, o que corresponde à mesma época determinada para a separação do acesso geográfico do continente para as ilhas e vice‑versa. O contrário pode também ter ocorrido, pois nativos da ilha podem ter se deslocado até a China, aprendido as técnicas no Templo Shaolin e retornado antes da separação geográfica (ASHRAFIAN, 2014). A maior dessas ilhas e a mais povoada é Okinawa, considerada o berço do Karatê, relacionado com as técnicas provindas do Quan Shuan chinês (traduz‑se por Lei dos Punhos), protagonizado no templo Shaolin de modo ancestral. Nota‑se que as histórias da região apresentam predileção pelas artes de lutas que se fundamentavam no uso das mãos, principalmente as técnicas do Quan Shuan chinês, uma das centenas de maneiras de executar golpes com exatidão e contundência por meio do uso dos punhos e das mãos, além de servir essencialmente como defesa pessoal. Mesmo outras lutas da região baseadas em agarres e lançamentos não tiveram a mesma penetração no seio do povo de Okinawa. Muitas passagens históricas implicam na dominação ora chinesa, ora japonesa, desse arquipélago, o qual, desde o século XVI, já estava sob forte influência japonesa. Assim, definitiva e oficialmente, foi incorporado ao Japão na Era Meiji, em 1879. A partir do século XVII, já existia a defesa pessoal Okinawa‑ti, depois traduzida para o japonês como Okinawa‑te, que significa “mãos de Okinawa”: técnica corporal que prioriza os ataques e bloqueios com as mãos, punhos, cotovelos e braços, cujo enriquecimento ocorreu principalmente pelas constantes restrições impostas, pelos dominadores das ilhas, contra o uso de armas, o que permitiu a consolidação dessa defesa pessoal entre os habitantes insulados. Vários estilos surgiram e se caracterizavam pelas preferências de mestres e seus disseminadores, o que provocava dificuldade de caracterizá‑los e padronizá‑los e, sobretudo, maior compreensão e uma mais abrangente divulgação. Yasutsune Itosu, também chamado de Anko Itosu (o cavalo‑de‑ferro) (1830‑1915), é considerado o primeiro incentivador e promotor da organização do Okinawa‑te em uma ordem sequencial mais padronizada, e nomeada Karatê, cuja oficialização ocorreu em 1936, em Naha, capital de Okinawa, com o Encontro dos Mestres de Karatê de Okinawa, consolidando o termo Karatê e melhor formalizando as técnicas, princípios de prática e utilização (ASHRAFIAN, 2014). Por fim, o nome de Gichin Funakoshi aflora no meio como um dos maiores alastradores da prática do Karatê, reforçando os laços de formação da personalidade pela prática de seus movimentos e reflexão conjunta de seus princípios. Atualmente, os principais estilos combinam as principais técnicas de socos, chutes e cuteladas com alguns outros golpes que permitem o emprego de técnicas de arremessos e varreduras. Para a participação como esporte demonstrativo nos Jogos Olímpicos de Tóquio, o Karatê foi sistematizado em um único estilo competitivo, em que prevalece a execução dos golpes com potência e determinação no combate, porém sem o contato corporal e as consequências do nocaute, salientando notadamente a astúcia, a precisão dos gestos e a excelência técnica. 99 ESPORTES DE COMBATE Veja na figura seguinte um golpe de Karatê aplicado em competições oficiais da modalidade exercida nos Jogos Olímpicos de Tóquio. Figura 78 – Karatê, golpe executado em direção à face sem efetivação do contato corporal no rosto; ponto para a atleta de luvas azuis Disponível em: https://bit.ly/3mKvkap. Acesso em: 1º mar. 2023. Dando continuidade aos esportes de combate presentes no continente asiático, pode‑se mencionar o Sambo, proveniente da Rússia. Foi sistematizado a partir de diversas defesas pessoais existentes no país na época da antiga União Soviética. O Sambo foi federalizado em 1938 e consiste em um combate bastante intenso, que permite desde projeções, arremesos com rasteiras, restrições em várias articulações coporais, estrangulamentos e também socos e chutes. Realiza‑se com calção e uma jaqueta grossa. Sambo ou, em russo, самбо, provém das palavras CAMозащита Без Oружия (SAMozashchita Bez Oruzhiya), que significa de modo informal “proteção ou autodefesa sem armas”. Sua estruturação é uma mescla de artes marciais e outras modalidades que formaram um sistema de combate bastante incisivo. Possui adeptos de mais de 50 nações, em especial aquelas que circundam a Rússia, e já existem campeonatos internacionais de alto nível. 100 Unidade I Veja a seguir uma figura dessa MEC com tentativa de projeção. Figura 79 – Sambo, esporte de combate de origem russa Disponível em: https://bit.ly/41b8esx. Acesso em: 1º mar. 2023. Outra modalidade popular e também já constante dos calendários de competições de esportes de combate é o Kurashi, muito popular na Rússia, Azerbaijão, Cazaquistão, Turquia, Uzbesquistão, Tajiquistão,Armênia, Irã, Geórgia e outros da mesma região na Ásia central. Baseia‑se em uma luta de projeções com obrigatoriedade de segurar‑se numa faixa amarrada na cintura. Na competição oficial, o uniforme é muito parecido com o do Judô: calças e jaquetas largas de algodão em tecido trançado e grosso, bem resistente. A prática é bastante habitual em parques, como se pode observar na figura que apresenta dois adolescentes num bosque municipal na Rússia em combate de Kurashi de maneira informal com intuito recreativo. Além de ser amplamente ensinado em escolas no Uzbesquistão, consta em vários currículos no equivalente aos nossos ensinos Fundamental e Médio (KULDOSCHOWITSCH, 2022). Figura 80 – Kurashi praticado nos parques municipais na Rússia Disponível em: https://bit.ly/3mRL5MJ. Acesso em: 1º mar. 2023. 101 ESPORTES DE COMBATE O Kurashi também é um esporte folclórico, bastante praticado em festivais e comemorações; seu histórico é bastante remoto e parece ter origens no Zurkhane, literalmente “casa de força”, proveniente da antiga Pérsia (UNESCO, 2022). Nesse local se praticava e ainda hoje se executa a arte de combate, o Varzesh‑e Bastani, ou, mais comumente chamado, Koshti Pahlevani. Essa prática é considerada uma das artes marciais mais antigas para a preparação de guerreiros, desde a formação do grande Império Persa de Ciro em 550 a.C. O Varzesh‑e Bastani era um método de atividades de combate muito parecido com o Shuai Jiao, com aplicações de golpes de derrubadas, por meio de projeções e arremessos. Atualmente, é muito praticado no Irã, Afeganistão, Uzbesquistão e Azerbaijão (ELIAS; ALI, 2013). A seguir, uma figura com a demonstração de uma técnica de Koshti Pahlevani, ao projetar o oponente ao solo. Figura 81 – Golpe aplicado durante disputa do Koshti Pahlevani Disponível em: https://bit.ly/40mcggi. Acesso em: 1º mar. 2023. 4.3.1 Artes marciais e lutas no Oriente Médio Agora, vamos fazer um apanhado sobre algumas artes marciais que se originaram na região do Oriente Médio e ainda apresentam relevância como prática esportiva, celebrativa ou educacional. Anteriormente, já se citaram as lutas do Afeganistão e Irã, países considerados por vários geo‑historiadores como participantes dessa região. Daremos continuidade às outras nações acopladas nessa designação geográfica. 102 Unidade I Um país de ligação entre Europa e Ásia, situado no Oriente Médio, é a Turquia, que nos contempla com a Luta Turca, em linguagem regional Yağlı Güreş, que, em tradução livre, significa “Luta do Azeite”, sendo considerado o esporte nacional turco. Desde o Império Otomano (~1299‑~1922), acham‑se registros sobre disputas muito parecidos com o Kurashi da Ásia Central. O fator diferencial é o uso do óleo de oliva besuntado na parte nua superior do tronco como dificultante na operacionalidade das técnicas de projeção. Os competidores devem vestir uma calça de couro, geralmente de búfalo. A regra principal é que o lutador deve erguer o adversário e segurá‑lo posicionando a cabeça para baixo. Na Antiguidade, esse esporte era disputado em celebrações e servia também para treinamento de soldados. Não havia tempo limite para o término da contenda, entretanto, após a formalização e esportivização dessa luta, determinou‑se que não poderia ultrapassar 40 minutos. Caso não haja vencedor, então, se prorroga por mais 10 a 15 minutos. Atualmente, se utiliza também pontuação avalizada por árbitros considerando algumas técnicas de arremessos ao solo e domínio ao erguer o oponente do solo, pois alcançar o êxito de carregar o adversário e mantê‑lo com a cabeça para baixo por alguns segundos e as pernas para cima é extremamente difícil, ainda mais por o corpo permanecer muito escorregadio por causa do azeite. A figura seguinte mostra uma estátua, montada em Karamürsel, Turquia, em homenagem a seus competidores, em que se vê sua principal técnica. Figura 82 – Luta Turca: técnica decisiva Disponível em: https://bit.ly/43N1T8f. Acesso em: 1º mar. 2023. 103 ESPORTES DE COMBATE Israel é o país onde surgiu o Krav Magá, traduzido literalmente por combate corporal de contato, criado por Emrich Imi Lichtenfeld por volta dos anos 1940 e com sucessivas pesquisas de aperfeiçoamento ao longo de mais de 20 anos. Sua formulação partiu da necessidade de as forças armadas do país treinarem seus componentes em técnicas extremamente eficazes para o campo de batalha, nas cidades, nas situações mais complexas em que houvesse ameaças à integridade corporal e à sobrevivência. A história da formalização do país e sua localização é muito complexa e exigiu que as forças armadas especiais fossem as maiores peritas do mundo em defesa pessoal. O seu uso é especialmente dirigido para poder imobilizar ultimatos e ameaças. As técnicas são incisivas e se constituem primeiramente em bloqueios e ações de esquiva para evitar ser atingido, depois de ataques em órgãos vitais e regiões sensíveis por meio de socos, cotoveladas e chutes, bem como restrições articulares e estrangulamentos. O propósito é causar dor intensa, neutralizar qualquer ataque e antecipar quaisquer ações do inimigo. Geralmente, as ações de reação ou antecipação causadas pela aplicação das técnicas do Krav Magá levam à morte ou, nos melhores casos, à paralisação corporal do oponente. Portanto, não é esporte de combate, sendo direcionado a treinamentos militares, policiais e de segurança coletiva ou pessoal ao redor do mundo. 4.4 Histórico e características de esportes de combate europeus O continente europeu trouxe vários aspectos e conhecimentos e se constituiu em uma zona de grandes progressos humanos. Não poderia ser diferente em relação ao aparecimento de diversos esportes de combate. Para isso, serão considerados os países da Europa ocidental, os europeus do leste até os limites da Rússia, já mencionada, e, finalmente, os países nórdicos. Obviamente, lutas foram disputadas e o treinamento de soldados era comum e recorrente desde muito antes. Assim, lanças, espadas, gládios e outras armas sempre fizeram parte da cultura de preparação guerreira dos europeus. Como mencionado, a civilização minoica ou dos egeus, assim também designados por circundarem o mar Egeu, apresentou evidências de esportes de combate datando entre 3000 a.C. e 1500 a.C., conforme mostrado. O Pugilado foi representado como esporte de combate e esporte educativo, como se pode notar em vários afrescos do sítio arqueológico de Santorini (Akrotiri), mesmo antes de ser encontrado na civilização grega. Outro esporte de combate muito encontrado é o Wrestling, citado desde A Ilíada de Homero e representado em pinturas e esculturas. A civilização etrusca, que se localizou na Península Itálica, em especial na região hoje chamada de Toscana, se notabilizou por formação guerreira; a preparação de seus soldados preconizava treinamentos de ataques e defesas corporais bem incisivos, com ou sem armas. Os combates esportivos eram realizados também como entretenimento. Além de exímios lutadores, mesmo montando cavalos, lançando flechas com arcos, os etruscos praticavam ainda os combates de socos e de arremessos corporais, como o Wrestling. Pode‑se observar que os esportes eram parte da cultura etrusca e seguiram pela cultura romana, que a dominou na sequência. 104 Unidade I A próxima figura, do lado esquerdo, representa um combate de Wrestling em pintura sobre cerâmica etrusca, datada de 540 a.C. Figura 83 – Representação do Wrestling etrusco Disponível em: https://bit.ly/41Dsxi9. Acesso em: 1º mar. 2023. O Pugilato também era um dos esportes de combate dos etruscos, num confronto bastante violento, cujos lutadores usavam faixas amarradas com pedaços de metal nas mãos, tornando os socos mais lesivos. Na cultura ocidental, a Grécia teve papel preponderante na disseminação do esporte, em especial esportes de combate; nos Jogos Olímpicos, o auge da competição a partir de 648 a.C. foram as disputas de Pugilato, Wrestling Olímpico e o Pancrácio (CROWTHER,2010). Os esportes de combate provindo das competições dos Jogos Olímpicos, e o respectivo uso na educação grega, são os mais antigos na região europeia. O Pugilato grego era disputado em arenas abertas, e os combates eram bastante violentos, considerando que a vitória, em muitos relatos descritos por Crowther (2010), se dava pelo aparecimento de sangue na face do competidor. Mais adiante, descrições dos Jogos Olímpicos mostravam que a vitória deveria ser por nocaute ou submissão, com a desistência de algum lutador levantando ou acenando o dedo polegar. Não havia categoria de peso nem necessidade de parar a luta. Mesmo quando um dos competidores caía ao solo, este poderia seguir recebendo socos até perder a consciência. O uso de faixas de couro enrolando as mãos era comum. Era um dos esportes de combate considerados de grande brutalidade, sendo permitido inclusive desferir socos com o salto de um dos atletas e golpear a cabeça do adversário. O historiador grego Philostratus, da época dos Jogos Olímpicos, relata que o Pugilato, ou também denominado Boxe, teve grande transformação técnica quando lutadores começaram a usar as esquivas corporais para evitar socos (CROWTHER, 2010). 105 ESPORTES DE COMBATE Atualmente, o Boxe, depois de muita disseminação pelo mundo, estabeleceu‑se como esporte de combate bastante praticado pelos anglo‑saxões – irlandeses, ingleses, escoceses e gauleses –, além de muitos outros países do leste europeu. Foi reorganizado pelo atleta John Graham Chambers, que enviou, em 1865, ao 9º Marquês de Queensberry, na Inglaterra, a estruturação de regras e condições de disputas, inclusive a utilização de luvas para proteção das mãos. O marquês as publicou em 1867 como as Regras de Queensberry para o Boxe, que foram então distribuídas e conquistaram cada vez mais adeptos, sendo sancionadas nos Estados Unidos em 1889, praticamente sem alterações até os dias atuais. O Wrestling Olímpico, nos Jogos Olímpicos da Grécia antiga, anteriormente chamado de Luta Livre Olímpica, era disputado em dois eventos distintos: como parte dos cinco jogos de pentatlo (programa de cinco modalidades que envolviam o próprio Wrestling, corrida, saltos, lançamento do dardo e de disco) e como evento único em outra competição. Essa competição com atletas apenas do Wrestling era bastante concorrida; os combates se constituíam de regras que preconizavam arremessos corporais ao solo. Os atletas deveriam imobilizar o oponente ao solo, de costas, e mantê‑lo com as duas escápulas encostadas por no mínimo alguns segundos (CROWTHER, 2010). Como vimos, os combates com as mesmas características de lançamentos e arremessos corporais se alastraram em praticamente todas as culturas esportivas pelo mundo. Esse esporte de combate foi incluído nos Jogos Olímpicos quando estes foram reativados pelo Barão de Coubertin em 1896. Vários esportes de combate citados, como a Luta Turca, Ssireum da Coreia e Bökh e Buryat (estas duas da Mongólia), se parecem muito com o Wrestling tradicional grego. Um dos maiores lutadores de Wrestling Olímpico, na Grécia clássica, foi Mílon de Crotona, que desde cedo se tornou especialista nesse esporte, sendo um dos maiores vitoriosos e campeão em seis oportunidades, o que foi um feito excepcional, já que os Jogos Olímpicos eram disputados a cada Olimpíada, isto é, um espaço de tempo separado por quatro anos. Outro esporte de combate que se destacou no mundo ocidental, pela grande exposição nos Jogos Olímpicos gregos, foi o Pancrácio. Deve‑se destacar que os esportes de combate foram incluídos no programa olímpico a partir de 648 a.C. e se tornaram o apogeu dos Jogos Olímpicos. Os vencedores eram aclamados como heróis e até considerados semideuses. O vitorioso trazia consigo a marca de um super‑homem, recebia honrarias, prêmios e mimos que o permitiam viver sob a tutela da cidade‑Estado (casa, comida, recompensas em dinheiro, salários vitalícios e até casamentos). O Pancrácio era disputado sem o uso de quaisquer armas; os atletas competiam totalmente despidos e se permitiam um vasto leque de ataques corporais: projeções, arremessos, rasteiras, estrangulamentos, restrições articulares, socos, chutes, cotoveladas, bofetadas, cuteladas, joelhadas, cabeçadas e imobilizações. As restrições consistiam na proibição de inserir dedos nos orifícios corpóreos, nos olhos, puxar cabelos, morder e atacar órgãos genitais. Não havia categoria de peso nem tempo determinado; os combates mais ferrenhos podiam durar vários dias, com atletas muito bem preparados. Destaca‑se Arrichion de Phigelia, campeão duas vezes seguidas. 106 Unidade I Pode‑se dizer que, atualmente, os combates de UFC são os que mais se parecem com o ancestral Pancrácio, diferenciando‑se por arbitragens mais atentas e interventoras a fim de manter a integridade dos atletas, por a disputa ser realizada em três rounds de cinco minutos em arena fechada por grades e por separar os atletas por categorias de peso. Figura 84 – Treinamento de Pancrácio Olímpico; cerâmica grega datada de 332‑331 a.C. Disponível em: https://bit.ly/41lrinX. Acesso em: 1º mar. 2023. O uso de armas como extensão para alcançar adversários nos conflitos corporais parece ter sido uma constante desde que o ser humano direcionou todas as suas capacidades para tentar atacar, demover e intimidar os seus oponentes por meio de artifícios que possibilitassem mantê‑los o mais afastados de si e também estabelecer maior imposição. Jogar pedras, atirar pedaços de pau, usar bastões, bastonetes e objetos perfurantes foram procedimentos usados de acordo com achados e transformações que se fizeram com os mais diversos materiais disponíveis. A descoberta do metal permitiu que se fabricassem armas ainda mais cortantes, perfurantes, penetrantes, agudas e talhantes. Lanças, espadas, gládios, cimitarras, alastras, clavas, machados, alabardas, foices, facas e outras cutelarias foram fabricadas para fins bélicos, de defesa pessoal e de sujeição. Várias civilizações apresentam esses objetos em diversas documentações, em especial para as práticas guerreiras, e existiam vários tipos de espadas: pesadas, finas e pontiagudas, cortantes, semicirculares etc. Obtiveram‑se imagens de tumbas egípcias com representações de combate com armas pontiagudas, datando por volta de 2600 a.C., assim como de locais ancestrais provenientes do Japão. O emprego mais sistematizado de espadas, além de ter sido desenvolvido pelos egípcios, possivelmente, partiu de espadachins provenientes do Japão, representado em um templo datado de 1140 a.C. Apesar de o uso da espada ter sido muito bem estudado e treinado no Japão, principalmente pelos samurais, com a institucionalização do Kenjutsu, isto é, a técnica da espada, foi na Europa, conforme indica Silva (2019), que a sua disseminação mais esportiva ganhou força a partir de século XIV. 107 ESPORTES DE COMBATE Após a imposição da Igreja Católica na limitação do uso do corpo no período medieval (entre os séculos V e XV), inclusive com o término da realização dos Jogos Olímpicos, as atividades físicas ficaram cada vez mais restritas, contudo a apreciação pelos combates sempre continuou nos feudos. Reis, príncipes, duques, comendadores etc. tinham por costume organizar torneios e justas que permitiam o treinamento dos cavaleiros defensores dos monarcas e disputas de contendas e duelos. Os embates entre cavaleiros envolviam a participação em arenas específicas; eles ficavam montados sobre cavalos e com emprego de escudos e lanças longas. Era uma das MECs mais contempladas nessas épocas (SILVA, 2019). Esgrima é um vocábulo derivado do germânico skirmjan. O manual escrito entre 1504 e 1519 de Johan Liechtnawers, nascido no século XV, em Lichtenau, na região da Francônia, onde hoje é a Alemanha, deixa instruções bem detalhadas de como usar e aplicar golpes com esses instrumentos (JAQUET; WALCZAK, 2014). A escola italiana desenvolveu intensamente o uso das rapieiras, ou espadas muito leves, e suasatribuições, regras e manifestações na sociedade italiana foram descritas pelo Marquês de Ferrara no manuscrito Flos duellatorum, de Fiore dei Liberi, por volta de 1410 (WILSON, 2013). Os espanhóis também foram praticantes ávidos dos esportes de combate com espadas. Nos tomos mais antigos de Javier Pons e de Pedro de la Torre, respectivamente em 1472 e 1473, aparecem os tratados A verdadeira esgrima e O manejo das armas de combate (RIVERA, 2017). Figura 85 – Luta de Esgrima Medieval Espanhola representada em pintura sobre azulejos, em Madri Disponível em: https://bit.ly/3L8FIlQ. Acesso em: 1º mar. 2023. 108 Unidade I As armas com pontas agudas para efetivação de combates e duelos prosseguiram posteriormente com o aparecimento de floretes, sabres e espadas mais encorpadas para duelos e combates esportivos. Depois, progrediram com o advento de pontas cegas arredondadas, para não haver perfurações. Portanto, as transformações foram tomando forma e a Esgrima foi se distanciando de suas características militares, ofensivas e de combate pela honra, havendo grande mudança de aplicação como esporte de combate olímpico, desde a retomada dos Jogos Olímpicos em 1896. As regras mais modernas foram introduzidas em 1913. Essa modalidade tem uma imensa quantidade de praticantes em toda a Europa e faz parte de currículos escolares na França, país que a sistematizou e determinou a linguagem de arbitragem, uniforme e equipamentos. Pode‑se apreciar na figura seguinte os equipamentos usados na Esgrima, sobretudo as vestimentas de proteção e as armas de ataque empregadas durante o combate. Há competições para homens e mulheres e por equipes, diferenciadas por três grandezas de disputa: florete, espada e sabre, cada qual com suas respectivas regras e permissão de toques corporais. Figura 86 – Esgrima contemporânea, com proteção e disputa com sabres Disponível em: https://bit.ly/3A9uFlX. Acesso em: 18 abr. 2023. Vinda de Portugal, a Galhofa ou Maluta é um esporte de combate em que os adversários, em geral homens jovens, se aventuram em honrar os santos religiosos com uma competição menos formalizada e mais festiva. Essa luta se parece muito com o atual Wrestling Greco‑romano, com os oponentes tentando, por meio de contato bastante aproximado e envolvendo o corpo com os braços, derrubar e imobilizar o opositor, por alguns segundos, com as costas no solo (CABRAL, 1991). Também da região lusitana, encontra‑se o Jogo do Pau, conforme informa Valente (2003) em seu livro O jogo do pau português: esgrima nacional. Essa prática de combate se originou dos pastores de ovelhas, cujos cajados de madeira eram usados para defender o rebanho dos lobos. Essa disposição os 109 ESPORTES DE COMBATE ajudou a executar gestos técnicos cada vez mais eficientes, senão fatais, contra salteadores e ladrões. Depois de algum tempo no ostracismo, essa prática retornou mais forte no século XX como um meio de defesa pessoal muito eficiente e que proporciona bom preparo físico, assim como já destacado em outras práticas, como o Nguni da África do Sul, as lutas com bastões dos egípcios e o Silambam da Índia. Atualmente competições são estruturadas e organizadas, os contendores usam roupas especiais para proteção contra ataques na cabeça, ombros, braços, coxas, pernas etc. Adicionalmente, empregam‑se bastões cobertos com espumas para proteger os combatentes dos choques que ocorrem quando se acertam os golpes sobre o corpo, como se pode aferir na figura seguinte. Figura 87 – Jogo do Pau Português Fonte: Valente (2003, p. 73). A Luta Greco‑romana é atualmente intitulada Wrestling Greco‑romano. O nome deriva do Wrestling Olímpico e, em vários aspectos, está relacionado a ele, já que foi inspirado nas ações e técnicas executadas nos antigos Jogos Olímpicos gregos, com algumas modificações importantes. A cultura romana se apropriou das tradições gregas, e o Wrestling continuou como esporte e para treinar soldados da legião romana, os centuriões, tribunos e as cavalarias. Na Europa, essa modalidade foi modificada pelos franceses no final do século XVIII e seguiu ao XIX, a fim de permitir o treinamento dos soldados do exército de Napoleão. Segundo May (2016), a Federação Internacional de Wrestling notificou que o soldado francês Jean Exbrayat, do exército napoleônico, viajava para participar de campeonatos e festivais de Wrestling pela Europa. Ao longo de suas participações, introduziu as regras que viriam profissionalizá‑lo, diferenciando‑o do Wrestling Olímpico Grego, aplicando a regra de que cada combatente só poderia executar alavancas corporais segurando o adversário acima da cintura. O objetivo é lançar o opositor com a finalidade de posicionar as suas costas no solo mantendo os dois ombros encostados. 110 Unidade I Na próxima figura, notamos que, após arremessar o oponente, o atleta tenta pressionar o adversário para que encoste os dois ombros simultaneamente no solo. Figura 88 – Wrestling Greco‑romano Disponível em: https://bit.ly/40dXqZm. Acesso em: 18 abr. 2023. Da França também se pode citar o esporte de combate chamado de Savate. Marinheiros franceses nos idos de 1790 desenvolveram as técnicas de chutes, em especial pontapés, e os toques incisivos com a planta dos pés. Mais adiante, inseriram bofetões e socos no rosto. Por ter sido criado para ser treinado nos navios, as ações foram desenvolvidas para alcançar muito equilíbrio nas movimentações. Hoje em dia, foi organizada uma federação desse esporte, e os chutes são os mais usados e mais eficazes nessa modalidade; as mãos são envolvidas por luvas de boxe, para realizar também os socos, como no Boxe. O objetivo principal é atingir o nocaute do adversário. O Gouren é um esporte de combate típico francês, mas a sua criação derivou dos bretões a partir do século IV. A modalidade consiste em arremessar ou derrubar seu oponente por lançamentos corporais ou rasteiras; o oponente deve cair de costas com as duas escápulas no solo, considerada a queda perfeita. O contendor que lançou o oponente deve estar em pé, o que o faz alcançar a pontuação máxima. Nas competições, há também pontuações intermediárias, consideradas com a queda em uma das escápulas ou sobre um dos ombros. A disputa dura até sete minutos. Contemplando a menção sobre a derivação do Gouren das terras bretanhas, descrevemos as modalidades que se destacaram nessa região: Wrestling de Lancashire, Boxe com as Mãos Nuas e Collar and Elbow. 111 ESPORTES DE COMBATE O Boxe com as Mãos Nuas foi muito popular e atraía multidões. Na Irlanda, Escócia, País de Gales e Inglaterra, foi muito praticado e consistia em socos na parte superior e frontal do corpo. Não havia um número de rounds fixo, que só terminavam quando um dos dois contendores era nocauteado. Não se permitia atacar o oponente quando caído no solo pelo golpe recebido; quem caía tinha até 30 segundos para se recuperar e tentar continuar na luta e mais 8 segundos para retornar à linha de combate, isto é, uma linha riscada com giz no solo e que se posicionava ao centro do ringue. A partir de 1885, ao dar início às regras justapostas pelo Marquês de Queensberry, essa modalidade caiu em desuso. Collar and Elbow é um esporte de combate proveniente da Irlanda do Sul e compõe‑se de um agarramento sobre uma gola de tecido reforçado colocada em volta do pescoço para permitir a pegada e, dessa maneira, movimentar e tentar projetar o oponente ao solo. Segundo as lendas irlandesas, esse esporte de combate era praticado desde bem antes dos Jogos Olímpicos gregos, sendo organizado com várias competições que ocorriam sistematicamente nos festivais e celebrações por volta de 1000 a.C., conhecidas como Jogos da Tailteann. Os jogos celebravam a deusa Tailtiu, que dava condições para que se pudesse arar e plantar nas terras. Tem‑se notícia de que esses jogos ocorreram até o século XI e depois foram reprimidos pelas imposições católicas, aparecendo ocasionalmente e retornando no século XIX com o resgatede documentos medievais que mencionavam esses jogos e essa MEC. Os Jogos de Tailteann foram retomados a partir de 1920 com a independência parcial da Irlanda. Infelizmente, os jogos foram politicamente esvaziados pelo movimento olímpico em 1930, depois de exitosas edições que superaram em número de participantes e de público os Jogos Olímpicos de Paris, e nunca mais foram revividos integralmente. Atualmente, o combate Collar and Elbow é praticado esporadicamente em festivais regionais (JEWELL, 1977). Por último, deve‑se descrever o Wrestling de Lancashire, ou também chamado de Catch‑as‑Catch‑Can Wrestling, descrito em jornais ingleses da região de Lancashire, a partir de 1820, como uma disputa corporal que, do mesmo modo que o Wrestling Greco‑romano, só permitia as pegadas e projeções partindo da empunhadura ao redor da cintura e acima desta. O intuito era projetar o adversário ao solo e conseguir ao menos que o quadril e um ou os dois ombros tocassem o solo, possibilitando estrangulamentos e imobilizações caso não se atingisse essa pontuação. Alguns relatos descrevem que era possível aplicar algumas maneiras de fazer o oponente cair ao solo por meio de varreduras com os pés, ou o popular passa‑pé. Então, a disputa poderia continuar no solo com os atletas tentando obter imobilização sobre as costas do oponente ou fazer com que desmaiassem pelo estrangulamento (ARMSTRONG apud PASHAYEV, 2019). Pode‑se imaginar como eram as disputas do Wrestling de Lancashire pela foto tirada de uma pintura que retrata a ação de um dos competidores, com tentativa de derrubar o adversário, pela formação de uma alavanca envolvendo a axila e a parte de trás do pescoço. 112 Unidade I Figura 89 – Disputa de Wrestling de Lancashire Disponível em: https://bit.ly/3H5n63t. Acesso em: 24 abr. 2023. Chegamos agora às descrições referentes aos esportes de combate preconizados pelos europeus nórdicos, estabelecidas nos países escandinavos: Dinamarca, Finlândia, Islândia, Noruega e Suécia. Sem dúvida, os povos que habitaram essas regiões e se destacaram na história da humanidade foram os vikings. Essa civilização esteve presente entre os séculos VIII até o início da Idade Média, por volta de 1060 d.C. Suas fronteiras nórdicas foram expandidas para o continente europeu por meio de invasões. Eram guerreiros determinados e combatiam com imensa tenacidade. Não tinham clemência contra inimigos e exterminavam opositores com crueldade, sendo verdadeiros algozes daqueles que se encontravam em oposição às suas incursões e domínios territoriais. Seus guerreiros treinavam arduamente os combates corporais e o uso de armas cortantes e perfurantes, além de possuírem técnicas de defesa com escudos eficientes e ataques extremamente agressivos e decisivos. Dessas práticas de combate corporal, restou um esporte muito popular e que já fez parte dos Jogos Olímpicos de Estocolmo em 1912, mas não teve continuidade como esporte definitivamente incluído no rol de modalidades olímpicas: o Glíma. Glíma significa luta livre e se refere a um modo de combate que se parece com o Wrestling Olímpico, porém com características bem próprias. Os contendores devem trajar uma cinta de couro sobre o calção. Essa cinta precisa de grande resistência, pois os lutadores necessitam, obrigatoriamente, fazer a pegada na cinta vestida pelo oponente, e ambos se colocam frente a frente, cada qual com a perna direita posicionada ao centro, entre as pernas ligeiramente afastadas do oponente. Os competidores devem olhar todo o tempo para a linha do horizonte, não sendo permitido encarar o antagonista, olhar para baixo ou desviar os olhos dessa perspectiva. No combate, tenta‑se projetar o adversário pelos lançamentos efetuados com os braços, arremessando‑o de costas ao solo, podendo efetuar varreduras com as pernas para as derrubadas. Só vale como pontuação definitiva a caída de costas no solo, em um tempo aproximado de oito minutos de disputa. Pontos intermediários são atribuídos a quedas com apoio dos braços, sobre um ou os dois joelhos ou frontais com o ventre no solo. 113 ESPORTES DE COMBATE Nas figuras a seguir, pode‑se observar a posição inicial do combate e uma projeção com varredura, características da MEC Glíma. A) Posição inicial do Glíma B) Glíma – varredura Figura 90 A) Disponível em: https://bit.ly/3N23cds. Acesso em: 18 abr. 2023; B) Disponível em: https://bit.ly/3GWamw9. Acesso em: 18 abr. 2023. Huwyler (2010) informa que se chama Schwingen o nome do Wrestling Alpino, que provém da Suíça e é disputado em festivais tradicionais. É uma luta em que os competidores adotam uma vestimenta especial: um calção de tecido bem reforçado, usado por cima da calça, pois os atletas devem obrigatoriamente segurar esse short para efetuar os golpes de projeção, associados ou não a varreduras com as pernas. A disputa ocorre em uma arena demarcada por um círculo com oito metros de diâmetro em piso densamente forrado com serragem. Vence o combatente que arremessar o seu oponente sobre as suas costas e o arremesso configure o contato com as duas escápulas ao mesmo tempo no solo. O arremesso só tem validade se uma das mãos do atacante segurar o calção do oponente até o fim da ação efetiva do golpe (HUWYLER, 2010). O vencedor em sinal de reverência limpa as serragens de madeira das costas do derrotado. Após o término da competição de Schwingen, os melhores lutadores e os campeões são premiados com produtos regionais: queijos enormes, móveis, bezerros, barras de chocolate, litros de leite e outras recompensas de empresários das comarcas que se situam ao redor do evento. Esses eventos são sempre festivais grandiosos e bem tradicionais que contemplam várias competições, como arremesso de toras, lançamento de queijos gigantes que devem rolar por encostas sem cair etc. 114 Unidade I Figura 91 – Luta Schwingen: tradicional Wrestling da Suíça Disponível em: https://bit.ly/3UP5q1G. Acesso em: 18 abr. 2023. 4.5 Histórico e características de esportes de combate da Oceania Considerado o continente mais novo em termos de história ocidental, a Oceania traz alguns esportes de combate característicos dos povos nativos e que perduram até os dias atuais, seja como esporte recreativo ou competitivo, disputas para celebrar ritos de passagem e para servir na escolha de homens que poderiam se casar. Sítios arqueológicos, como os encontrados no parque histórico de Mount Grenfell, próximo a Cobar, na Austrália, mostram gravuras e pinturas ancestrais do povo indígena Ngiyampaa Wangaaypuwan, com análises temporais bastante antigas, avaliadas por volta de 10000 a.C. (NSW GOVERNMENT, 2004; TINDALE, 1974). Essas representações idealizam lutas de agarre e de socos já organizadas entre os aborígenes da região. Eram chamadas de Coreeda, que significa “espírito do canguru”, em idioma aborígene Ngiyampaa Wangaaypuwan, por se parecer com as lutas dos cangurus vermelhos, conforme nos ensina Korff (2020), associando‑as a danças de guerra. Ademais, serviam, segundo lendas contadas pelos indígenas da região, como preparação física guerreira, comemoração para casamentos e cerimônia de conciliação entre as tribos existentes (DICKSON, 2010; KORFF, 2020; WORMS, 1955). Segundo Taçon e Chippindale (1994), outros grupos aborígenes australianos datando de 10000 e 6000 a.C. apresentam lutas em gravações rupestres em Arnhem Land, consideradas as mais antigas representações de lutas de Wrestling encontradas no mundo. Essas lutas pareciam ter conotação exclusiva de divertimento e celebração. Depois, armas como a woomera ou lança de arremesso com uma secção transversal curva, como um aerofólio, foram desenvolvidas para diversas aplicações, entre elas a defesa contra bumerangues, outras assaltos e ataques contra animais como os cangurus, com grande velocidade de deslocamento. 115 ESPORTES DE COMBATE Para disputar o esporte de combate Coreeda, realiza‑se antes uma dança de aquecimento chamada Coreeda Dance, que imita a movimentaçãodos cangurus, com movimentos de socos e chutes, mas que não são permitidos na disputa, pois trata‑se de um combate de agarre e exclusão, sem toques que provoquem choques e deformações. Atualmente, a Coreeda é disputada em quatro rounds, com dois minutos cada. O objetivo é excluir o oponente para fora do círculo que delimita a área de combate, em geral de 4,55 m de diâmetro. A cada round, um dos atletas apenas ataca e tenta colocar o adversário para fora do círculo, alternando quem ataca e quem defende a cada round. A tentativa de afastar o adversário para fora do círculo dura 20 segundos; se conseguir, ganha um ponto, caso não consiga, ambos voltam ao centro, se agarram em faixas resistentes vestidas ao redor da cintura e do quadril e recomeçam a disputa. Vence quem atingir maior número de sucessos por ter tirado o oponente para fora do círculo (COREEDA ASSOCIATION OF AUSTRALIA, 2012; KORFF, 2020). Tribos Maoris da atual Nova Zelândia sempre foram consideradas extremamente aguerridas; suas lutas descendem de seus ancestrais que iniciaram a povoação das ilhas por volta de 1200 d.C. segundo as tradições Maoris e as respectivas provas arqueológicas de relevos e pinturas rupestres (DANIELS; HYSLOP, 2004; WILMSHURST et al., 2010). De acordo com Best (1904) e Calman (2013), as lendas da sociedade Maori contam as práticas de lutas para cultuar aos deuses e para o divertimento dos jovens. O combate é feito com lanças chamadas de taiaha, e o treinamento com armas é chamado de mau rākau; o objetivo é mostrar habilidades em combates simulando defesas e ataques para preparação guerreira. Da região polinésia, da ilha Samoa, observa‑se o Lilalama (referido como sabedoria das mãos), arte de defesa pessoal muito eficiente, recentemente nova, criada em 1931, por Tino Tuiolosega, com aplicação de torções articulares e golpes incisivos com os punhos, associando‑se às técnicas do Aikido e do Kempo. Não se conhecem instituições para a esportivização dessa defesa pessoal. Assim, chega‑se a um término, não definitivo tampouco completo, do histórico de diversos esportes de combate, defesas pessoais e artes marciais de várias regiões do mundo. 116 Unidade I Resumo Abordamos a diferenciação conceitual de termos como lutas, defesa pessoal, artes marciais e modalidades de esporte de combate (MECs). Percebe‑se que o ser humano se relaciona intimamente com as lutas em todos os contextos que permeiam a vida. As transformações sociais permitiram que atividades voltadas para guerrear se modificassem em artes marciais voltadas para que o processo de combate se demudasse em estímulos de autoconhecimento, progresso individual e coletivo. Atividades que exigem embate corporal solicitam o várias capacidades motoras condicionantes: força, resistência, potência e flexibilidade; e das capacidades motoras coordenativas, como equilíbrio, agilidade, noção de esquema corporal e espacial, bem como instigam o raciocício lógico, a tomada de decisão e a antecipação de ações, associadas ao desenvolvimento de múltiplas inteligências, além de permitir compreender a importância de seus pares na construção de princípios e valores que se integram aos processos humanos: respeito interativo, desafios compatilhados, aprender a suportar as pressões sociais e saber lidar com possíveis hostilidades primitivas. Ao apresentarem‑se as habilidades motoras construídas e necessárias para os objetivos de cada modalidade, percebe‑se que socos, chutes, estrangulamentos, projeções, quedas, cuteladas e restrições articulares são todas realizadas com alta complexidade e demandam concentração e prática deliberada. Para todo esse extrato caracterizaram‑se as mais diversas MECs ao redor dos continentes, procurando trazer as origens mais bem documentadas: técnicas de guerra, isto é, artes maciais empregadas pelos mais distintos imperadores ancestrais; defesas pessoais sistematizadas pelos monges budistas, como o Tai Chi Chuan e Wushu; esportes olímpicos dos gregos, como Pugilato, Wrestling e Pancrácio; as artes marciais japonesas derivadas das práticas dos samurais, como o Jiu‑jitsu; as lutas indígenas, como a Capoeira brasileira; e a Coreeda, dos aborígenes da Austrália. Contudo não se esgotam as possibilidades de encontrar ainda mais tipos, modalidades e preparações que se coadunam com atividades que foram usadas em guerras, em celebrações, como entretenimento e em homenagens aos ancentrais e deuses que invocaram as mitologias, religiões e movimentos filosóficos humanos. 117 ESPORTES DE COMBATE Exercícios Questão 1. Vimos que os termos luta, defesa pessoal e esportes de combate têm proximidade, mas referem‑se a conceitos distintos. Em relação a esses termos, avalie as afirmativas. I – A luta é idêntica à briga, visto que, em ambos os casos, o que importa é aniquilar o adversário. II – A defesa pessoal tem como origem as qualidades míticas desenvolvidas pelos seres humanos no sentido de enfrentar seus predadores e, também, seus pares, que impunham poder e subserviência. III – Em muitas modalidades dos esportes de combate, temos o desenvolvimento da agilidade, com a requisição de deslocamentos e de trocas de direção. É correto o que se afirma em: A) I, apenas. B) II, apenas. C) III, apenas. D) II e III, apenas. E) I, II e III. Resposta correta: alternativa C. Análise das afirmativas I – Afirmativa incorreta. Justificativa: a luta e a briga não são idênticas. Vimos que, quando pensamos em luta, estamos pensando em uma disputa na qual pretendemos atingir determinado triunfo. Na luta, temos uma situação racional, em que há o conceito de subjugar, mas não de exterminar. A luta, diferentemente da briga, baseia‑se em algo pensado, ponderado e planejado com intuito de que conquistemos certa posição que enfrenta contraposição. A ética é a regra no caminho dessa ação, e o autocontrole está presente em todas as etapas de atuação. 118 Unidade I II – Afirmativa incorreta. Justificativa: a defesa pessoal tem como base as qualidades cognitivas e motrizes desenvolvidas pelos seres humanos no sentido de enfrentar seus predadores e, também, seus pares, que impunham poder e subserviência. III – Afirmativa correta. Justificativa: em geral, nos esportes de combate, o objetivo principal da disputa é a retirada do equilíbrio do oponente. Em muitas modalidades, temos o desenvolvimento da agilidade, com requisição de deslocamentos e de trocas de direção. Questão 2. Vimos no livro‑texto que o esporte pode ser classificado em: • educativo; • participativo; • de rendimento. Em relação a essa classificação, avalie as afirmativas. I – O esporte educativo é voltado às atividades da Educação Física escolar e tem o intuito de proporcionar formação educacional e comportamental. II – O esporte participativo se relaciona ao lazer e à recreação, e não considera aspectos formativos nem atuantes no âmbito da construção social e da saúde. III – O esporte de rendimento refere‑se exclusivamente às práticas de combate. É correto o que se afirma em: A) I, apenas. B) II, apenas. C) III, apenas. D) I e II, apenas. E) I, II e III. Resposta correta: alternativa A. 119 ESPORTES DE COMBATE Análise das afirmativas I – Afirmativa correta. Justificativa: o esporte educativo ou educacional utiliza o esporte como fator de mudança social para além da performance, buscando o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes, levando em conta sua realidade sociocultural e considerando‑os indivíduos capazes de fazer mudanças em sua comunidade, empoderando‑os e apresentando caminhos por meio das vivências no esporte. CONCEITOS e contextos dos programas de esporte educacional. Esporte Educacional, 1º dez. 2021. Disponível em: https://cutt.ly/OwqCjdB2. Acesso em: 30 maio 2023. II – Afirmativa incorreta. Justificativa: o esporte participativo se relaciona ao lazer e à recreação, sendo formativo e atuante nos âmbitos de construção social e saúde. III – Afirmativa incorreta. Justificativa:esporte de rendimento refere‑se à concepção esportiva competitiva.