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José Ortega y Gasset O Tema de Nosso Tempo Tradução: Bernardo Santos © 2022 Diário Intelectual www.diariointelectual.com.br http://www.diariointelectual.com.br/ Índice Índice Prefácio à edição brasileira Aviso ao Leitor Nota para a Terceira Edição Capítulo I — A Idéia das Gerações Capítulo II — A Previsão do Futuro Capítulo III — Relativismo e Racionalismo Capítulo IV — Cultura e Vida Capítulo V — O Imperativo Duplo Capítulo VI — As duas ironias, Sócrates e Don Juan Capítulo VII — As Valorizações da Vida Capítulo VIII — Valores Vitais Capítulo IX — Novos Sintomas Capítulo X — A Doutrina do Ponto de Vista Apêndices O Crepúsculo das Revoluções Epílogo Sobre a Alma Desiludida O Sentido Histórico da Teoria de Einstein Prefácio à edição brasileira José Ortega y Gasset (1883-1955) foi um filósofo espanhol da primeira metade do século XX. Sua influência, porém, não se limita à sua terra natal; abrange todos os países hispánicos ou ibéricos de língua espanhola e portuguesa. Ortega é, sem exagero, um filósofo universal, que elevou o nível da filosofia espanhola. Pensador original e visionário, antecipou muitas das posições filosóficas atuais; suas obras foram traduzidas e estudadas em diversos países, por intelectuais de diferentes filosofias e concepções de mundo. Através de seu trabalho editorial, ele incorporou a ciência européia, principalmente de origem alemã, ao pensamento espanhol. Com a criação da Revista do Ocidente, promoveu a tradução das mais importantes tendências filosóficas e científicas da época: Spengler, Huizinga, Husserl, Simmel, Uexkül, Heimoseth, Bretano, Driesch, Russel e etc. Ortega criou, com a integração da alta filosofia na Espanha, toda uma geração de intelectuais rigorosos, de onde floresceu a eruditíssima Escola Filosófica de Madri, que tem entre seus membros nomes como Manuel Garcia Morente, José Luis Aranguren, Luis Díez del Corral, José Gaos, Fernando Vela, Xavier Zubiri, José Ferrater Mora e Julían Marías. Ortega y Gasset fincou naquele país as bases da alta filosofia; pode-se dizer, entretanto, que seus escritos pertencem também a todos os povos de língua portuguesa, inclusive ao Brasil, tanto pela proximidade do idioma como pela autenticidade do autor: ler Ortega, portanto, torna-se indispensável ao bom estudante brasileiro. Dá-nos Kujawski a justificativa: Está claro que o estudante brasileiro tem todo o direito de aprender alemão e iniciar-se na filosofia com Hegel, Nietzsche ou Heidegger, ou de estudar francês e começar com Sartre, ou inglês e dedicar-se a Popper. Tudo bem, mas assim nosso estudante terá queimado uma etapa. Veja-se o caso da iniciação literária; ela começa, logicamente, pelos autores que escreveram em nossa língua; lemos, primeiro, Camões, Gonçalves Dias, Alencar, Machado de Assis, Drummond, Guimarães Rosa, antes de conhecermos Dante, Shakespeare, Goethe etc. Não se trata de nacionalismo primário, trata-se do fato de que o brasileiro não só “fala” português, como vive e pensa em português, profundamente condicionado pelo estilo cultural que assimila junto com a língua natal. […] Então, por que não nos iniciarmos em filosofia pela obra de um pensador espanhol, inserido em nossa área cultural, que lemos quase como se fosse português? (KUJAWSKI, Gilberto de Mello. Ortega y Gasset: A aventura da razão. São Paulo: Moderna, 1994. p. 09) Pensador contumaz, Ortega pensou sobre tudo, ou ao menos — como nos diz Kujawski — sobre tudo que importa saber. Obviamente, há saberes que não importam para nós ou nos importam pouco; a estes não cabe a atenção. É o interesse sincero e autêntico, concernente à vida e ao destino, que deve ser foco de nossa atenção e esforços; o saber que traz em si o próprio sentido da vida – de modo particular, único, pois é no íntimo de cada indivíduo que acontece a vida. Ortega y Gasset nasceu em Madrid, em 1883, no seio de uma família burguesa ligada ao jornalismo e à política. José Ortega Munilla, seu pai, foi diretor do periódico El Imparcial (fundado pelo avô materno de Ortega y Gasset, Eduardo Gasset y Artime), ao qual o próprio Ortega y Gasset deu importante e intensa contribuição. Sua vida está profundamente marcada pela política, imprensa e atividades editoriais. De formação Jesuíta, estudou no Colegio jesuita de San Estanislao, na cidade de Miraflores del palo, e iniciou seus estudos superiores na Jesuita Universidad de Deusto (Bilbao), dando continuidade na Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad Central de Madrid, concluindo o curso em 1902. Obteve seu doutorado em 1904, com uma tese sobre Os terrores do ano mil (Crítica de uma lenda). Entre 1905 e 1908 passa pelas universidades alemãs de Leipzig, Berlim e Marburgo, onde entra em contato com o neokantismo – sobretudo de Hermman Cohen, do qual foi discípulo –, sistema que lhe serviu de inspiração por longos anos, até ser abandonado, com a publicação de El Espectador, coleção de 7 ensaios publicados no período de 1916 a 1934: fundamentar-se num modelo de razão pura – a proposta kantiana – faz-se inviável para Ortega y Gasset, pois não se poderia construir sistemas filosóficos a partir de uma teoria isenta de influência dos sentidos. De volta à Madri, em 1910, assume a cátedra de professor de metafísica, cargo que ocuparia até 1936. Em 1914, publica a primeira edição de sua Meditaciones del Quijote, obra que inaugura importante passo para a tese do raciovitalismo. Em 1917, funda o jornal El Sol. A Revista do Ocidente viria a ser criada seis anos depois. Seu forte envolvimento com a política, presente em todos esses anos, rendeu-lhe problemas que culminaram, por exemplo, com sua saída da cátedra universitária. Fundou com seu discípulo Julían Marías, em 1948, o Instituto de Humanidades, cujos cursos abordavam temas dos mais diversos. Os famosos encontros com Heidegger aconteceram entre 1951 e 1953. Em 1955, Ortega perde a consciência de si mesmo, vítima de câncer. A obra de Ortega y Gasset não pode ser bem compreendida sem se levar em conta o contexto em que foi escrita e o povo ao qual foi endereçada. Ele fala como espanhol e para espanhóis. A pretensão de falar para todos nunca encontrou lugar em seus escritos. Nas Meditações do Quixote (1914), seu primeiro livro, escreve: “O indivíduo não pode orientar-se no universo senão através da sua raça, porque vai incluído nela como a gota no seio da nuvem peregrina”. Não raro Ortega manifestava sua preocupação com a possibilidade de ser mal entendido por povos de outras línguas; ao ponto de, visando a orientação do leitor estrangeiro, acrescentar ao livro A Rebelião das Massas um “Prólogo para franceses” e um “Epílogo para 11 ingleses”. Júlian Marias, aluno de Ortega e um de seus mais fiéis discípulos, lembra, na introdução à obra citada, que “Se isolarmos os textos de seus contexto, a intelecção não pode ser plena” (ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das Massas. 1ª Ed. Vide, 2016. P 12). Ortega buscava, portanto, não apenas falar a espanhóis, mas também falar-lhes com uma visão espanhola do mundo. Kujawski atenta para o fato de que “em Ortega o fator espanhol e o fator universal estão fundidos um no outro. Aos vinte e poucos anos ele anunciou qual seria o seu programa de trabalho: a interpretação espanhola do mundo” (KUJAWSKI, Gilberto de Melo. Ortega y Gasset: a aventura da razão. São Paulo: Moderna, 1994. p 11). Qualquer incursão por seus textos deve manter tal propósito em evidência. Desde os fins do século XVIII, a nação espanhola vinha se separando mais e mais da Europa moderna, entrando no século XX marcada pelo atraso e desorientação, cujo resultado era a depressão do povo, afogado na falta de perspectiva, sem esperanças no futuro e sem o entusiasmo que motiva e cria. Com Afonso XII no trono e Cánovas del Castillo como chefe de governo, a dinastia borbônica voltava a reinar no século XIX, algo que pareceu indicar um período de restauração nacional – restauração essa que não passou de um projeto jamais levado a cabo. Em 1898, a nação que em outros tempos dominara o mundo com Carlos V e Felipe II éderrotada na guerra contra os EUA; a Espanha, com isso, perdia o que lhe restava de comércio colonial. O povo espanhol ficava perplexo e impotente diante do próprio destino. Em sua busca por compreender o conturbado século XX, Ortega y Gasset deparou-se com um certo modo de pensar, herdado do século XIX. O homem do século XX enxerga o passado pelas lentes dos intelectuais: suas interpretações, crenças e estilos eram advindas do século XIX, e o passado estava tão distante quanto estas interpretações permitiam. Afirma o filósofo: “Falando com rigor, o século XIII e todos os demais pretéritos só existem para nós dentro do século XIX, segundo ele os viu através de seu gênio.” (ORTEGA Y GASSET, José. Nada Moderno y Muy Siglo XX. 1916, p 22). Essa situação histórica se faz problemática para o século XX, pois a cosmovisão adotada lhe veio por herança do século anterior numa forma de pensar imposta. Os homens do século XIX buscavam o progresso e, entusiasmados com essa ideia, creram estar no limiar dos tempos. Viam-se como superiores, pertencentes a um século onde tudo estava consumado, não a um período que, como todos os outros, deveria ser superado. O homem de hoje vê mais longe justamente por “começar a existir, desde logo, sobre certa quantia de passado amontoado” (ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das Massas. Edição: 1ª. Vide, 2016, p. 71). O passado não deve estar tão distante. Um povo que se imagina na plenitude dos tempos tende a enxergar no passado apenas tentativa, prólogo, preparação. Diz o filósofo espanhol na obra supracitada: “Os tempos de plenitude sempre se sentem como resultado de muitas outras idades preparatórias, de outros tempos sem plenitudes, inferiores a ele, sobre os quais vai montada essa hora requintada. Vistos, da sua altura, aqueles períodos preparatórias parecem como se neles tivesse vivido puro afã e ilusão não realizada; tempos só de desejo insatisfeito, de precursores ardentes, de “ainda não”, de penoso contraste entre uma clara aspiração e a realidade que não lhe corresponde. É assim que o século XIX vê a Idade Média.” (ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das Massas. Edição: 1ª. Vide, 2016, p. 53). Ortega, com efeito, estava convencido de que a circunstância espanhola estava enferma. Nos ensaios de El Espectador,o filósofo espanhol traz a esperança de que o homem de sua época poderia superar a crise de comodidade a que a ideia de progresso definitivo o havia levado. Cheio de si, aquele homem não percebe que renega a cultura e o legado dos séculos passados, inclusive o maior deles: o legado dos erros: “Mas agora nos damos conta de que esses séculos tão satisfeitos, tão perfeitos, estão mortos por dentro. A autêntica plenitude vital não consiste na satisfação, na conquista, na chegada. Já dizia Cervantes que “o caminho é sempre melhor que a pousada”. Um tempo que satisfaz seu desejo, seu ideal, já não deseja mais nada, sua fonte de desejo secou. Isto é, que a famosa plenitude é em realidade uma conclusão” (ORTEGA Y GASSET, josé. A Rebelião das Massas. Edição: 1ª, Vide, 2016 , p. 101) Ortega procura saber se os conflitos existenciais de seu país afligem também outros povos do mundo, afinal, a vida de todo homem está ligada à circunstância em torno, e não pode ser diferente. A filosofia do século XX tratava especialmente da vida humana e de seu cotidiano; mais do que todos, Ortega levou esse tema a sério: no famosíssimo Meditações do Quixote remete a detalhes da paisagem espanhola, ao modo de conversar dos lavradores, ao que é modesto e íntimo ao homem. Assim, sem ignorar a devida hierarquia que evita que o caos se instaure no cosmos, dirige sua meditação ao que é próximo à pessoa, tratando das particularidades de cada vida, dos pontos de vista, das circunstâncias e dramas vividos. A Espanha havia se afastado das coisas realmente importantes, não sabendo mais a que se ater; afogava-se num mar de vulgaridades e ódio ao mundo que lhe envolvia, ódio à sua circunstância. Eis o diagnóstico de Ortega: Suspeito que, por causas desconhecidas, a morada íntima dos espanhóis tenha sido tomada faz tempo pelo ódio, que permanece ali municiado, movendo guerra ao mundo. Ora, o ódio é um afeto que conduz à aniquilação dos valores. Quando odiamos algo, colocamos entre ele e o nosso espírito uma dura mola de aço que impede a fusão, mesmo transitória, entre ambos. Só existe para nós aquele ponto da coisa onde nossa mola de ódio se fixa; tudo o mais ou não é conhecido, ou vamos esquecendo, fazendo-o alheio a nós. A cada instante o objeto é menos, consome-se, perde valor. Desse modo, converteu-se o universo para o espanhol em uma coisa rígida, seca, sórdida e deserta (ORTEGA Y GASSET, José. Meditações do Quixote, 1 edição. CEDET, 2019, p. 15). O domínio do homem massa que recusava sua própria identidade, esse era o contexto Europeu. Se fazia necessário renegar o ódio e abraçar o amor, diz Ortega. Se o ódio cega e separa, o amor ilumina e une. Através do amor há união às coisas, mesmo que essa união seja passageira. O amor absorve as coisas e as funde conosco. Percebe-se então que a coisa amada não se funda em si mesma, mas é parte de algo maior, algo que está ligado a ela e precisa dela, afinal, “aquilo que dizemos amar se nos apresenta como algo imprescindível. Imprescindível!” (ORTEGA Y GASSET, José. Meditações do Quixote, 1 edição CEDET, 2019, p.16). O amor é capaz de criar conexão sem a qual só resta o aniquilamento. O amor amplia a individualidade até penetrarmos e abarcarmos o outro, criando um vínculo entre o amador e a coisa amada, seja esta uma mulher, a ciência ou a pátria. O amor, amor real, pela pátria e suas circunstâncias, eis a salvação da Espanha: “Nós, espanhóis, oferecemos à vida um coração blindado de rancor, e as coisas, ricocheteando nele, são despedidas cruelmente. Há ao nosso redor, faz séculos, uma incessante e progressiva demolição dos valores” (ORTEGA Y GASSET, José. Meditações do Quixote, 1 edição CEDET, 2019, p.17). Cada circunstância integra-se em outra mais vasta e assim por diante. Uma vez que a Espanha está inserida na circunstância europeia, se faz necessário, para compreender a Espanha, compreender e amar primeiro a Europa. E quando Ortega fala Europa, não fala dos monumentos, da boa polícia, comércio ou indústria. Fala, antes, daquilo que possibilita tudo isso, que torna a civilização europeia possível: a ciência. As demais coisas a Europa tem em comum com o resto do mundo, mas a ciência, não. Não se pode compreender a verdade da Espanha sem adentrar na ciência europeia. A circunstância da Espanha está inserida em outra maior, a ciência da Europa. Europeizar a Espanha seria, então, fundi-la com a visão universal das coisas: a ciência européia. Ortega atenta para o fato de que converter a Espanha à visão científica da Europa não trata-se de renúncia ao que é espanhol, pelo contrário, somente voltando seus esforços para a circunstância européia a Espanha poderá ter um encontro consigo mesma e ver sua verdadeira identidade. A imersão na ciência européia, ao mesmo tempo, europeizava a Espanha e universalizava o espanhol; ou ainda, “espanholizava o universal”. A Espanha é, sob pena de perder sua identidade, uma possibilidade européia. Saber a que se ater sempre foi ponto chave da filosofia de Ortega, ater-se à circunstância européia é ater-se à substâncias humanas de significado universal, como economia, mecânica, democracia e valores transcendentes. Isso é, para Ortega, ser espanhol. Só é possível compreender minha circunstância particular integrando-a em outras circunstâncias e vice-versa. Os aparatos filosóficos de seu tempo não eram suficientes para tal empreitada, afinal, o que estava em jogo era a salvação da Espanha. Assim coloca José Mauricio de Carvalho: Como a crise de civilização atingia costumes sociais e a organização política dos povos, o novo princípio precisava, além de considerar os problemas ontognoseológicos, solucionar as dificuldades éticas e políticas da sociedade europeia. Eram esses os desafios que Ortega y Gasset consideravadevessem ser enfrentados pela filosofia do seu tempo. Não eram poucos nem simples os problemas à espera de solução (CARVALHO, José Maurício de. Ortega y Gasset: A vida como realidade metafísica. Trans/Form/Ação vol.38 no.1 Marília Jan./Apr. 2015. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-31732015000100010 ). Adentrar na história da Europa é adentrar da verdade da Espanha, cito Ortega: “O viver se faz sempre desde ou sobre certos pressupostos, que são como o solo em que nos apoiamos para viver ou do qual partimos. E isso em todas as ordens – em ciência como em moral e política, como em arte” (ORTEGA Y GASSET, José. O que é filosofia? Edição: 1ª. Vide, 2016, p. 49). E mais uma vez: “Cada geração parte de supostos mais ou menos distintos, quer dizer que o sistema de verdades e o dos valores estéticos, morais, políticos, religiosos, tem inexoravelmente uma dimensão histórica” (ORTEGA Y GASSET, José. O que é filosofia? Edição: 1ª. Vide, 2016, p. 49). A verdade é histórica, eis o ponto fundamental aqui apresentado. A crise espanhola provoca naquele país um retorno para dentro de si, a Espanha “ensimesma-se”, buscando o elo perdido com suas raízes. A elite intelectual espanhola, amargurada com a falsa restauração, passa a pensar o país como problema. Disto surgem indagações como “o que é a Espanha?” e “Qual o seu lugar no mundo?”. Surge então, em meio às trevas e desilusão, um grupo de escritores de enorme talento, que ficou conhecido como Geração de 98. O grupo encara a questão da Espanha como um problema, buscando desenterrar suas riquezas culturais. Alguns dos mais importantes nomes da Geração de 98 foram Ganivet, Unamuno, Maeztu, Valle-Inclán, Pio Baroja, Azorín e os irmãos Machado, Antônio e Manuel. Sobre eles, assim escreveu Kujawski: “A Geração de 98 imerge na Espanha profunda, acusando todo o vigor e toda a riqueza da sua personalidade. Seus escritores tomam posse da Espanha, física e espiritualmente” (KUJAWSKI, Gilberto de Mello. Ortega y Gasset: a aventura da razão. São Paulo: Moderna, 1994. p.24). Ortega y Gasset pertence à geração seguinte, herdando da geração de intelectuais que o antecederam – especialmente de Miguel de Unamuno, poeta e novelista que, mais tarde, romperia com Ortega por insistir na ligação da Espanha ao africanismo – a preocupação dramática com a verdade e o destino da nação espanhola. Em suas primeiras obras Ortega y Gasset aborda essas questões e propõe a vida como realidade radical, ou seja, fundamental. Em Meditaciones del Quijote (1914) e El espectador (1916- 1934), é apresentado o princípio metafísico que servirá de guia para a investigação filosófica de sua geração. Mas a densidade teórica da relação do eu com as circunstâncias só veio com as obras Qué es filosofía? (1929), Unas lecciones de metafísica (1933) e em La rebelión de las masas (1930), assim como no ensaio Pidiendo un Goethe desde dentro (1932). É de suma importância ressaltar que Ortega não está propondo uma Espanha pautada no passado ou dependente do ponto de vista de outro tempo. A noção de circunstância chama atenção para o sujeito concreto — sujeito este que se encontra no aqui e no agora e, ao estar mergulhado no presente, compreendendo sua história, encontra-se aberto para o futuro e vive o próprio tempo. O mundo social no qual nascemos é elemento decisivo para o agir vital. A meta é expandir a visão espanhola para que ela possa alcançar as formas de cultura presentes na Europa. O Tema de Nosso Tempo. O ponto central da filosofia orteguiana baseia-se numa síntese da oposição Realismo/Idealismo e suas variantes, debate que tem se prolongado ao longo de toda a história da filosofia. O horizonte de uma filosofia é determinado pelo nível de seu encontro com a realidade. A filosofia antiga teve esse encontro a nível ontológico (Platão, Aristóteles). A escolástica medieval, a nível teológico (Santo Agostinho, Santo Anselmo, Santo Tomás). Ortega y Gasset inova, trazendo esse encontro para o nível vital. Em seu decisivo ensaio “El tema de nuestro tiempo”, desenvolve a idéia de razão vital, o tema central de sua filosofia, onde critica a frieza do realismo, que exclui o mundo da mente humana, dando independência àquele; mas também a ingenuidade do idealismo, que supõe ser a mente humana criadora da realidade. Como já foi dito aqui, Ortega, em seus anos em Marburg, sofreu fortes influências neo-kantianas, a maior delas sendo a imersão no idealismo. Tais influências foram abandonadas não muito tempo depois, com a superação de todo subjetivismo e idealismo em suas obras. Em suas Meditações do Quixote, escreve: “Muito longe nos sentimos hoje do dogma hegeliano, que faz do pensamento a substância última de toda a realidade. É demasiado amplo o mundo, e demasiado rico, para que o pensamento assuma a responsabilidade de quanto nele ocorra.” (ORTEGA Y GASSET, José. Meditações do Quixote,1º edição, CEDET, 2019 , p. 84.). Isto, porém, sem abraçar as teses realistas que, herdadas dos gregos, distanciam o objeto do indivíduo ao super estimá-lo: Realistas foram os gregos – mas realistas das coisas recordadas. A reminiscência, ao distanciar os objetos, os purifica e idealiza, tirando-lhes sobretudo essa nota de aspereza que possui mesmo o mais doce e brando deles quando atua efetivamente sobre nossos sentidos (ORTEGA Y GASSET, José. Meditações do Quixote, 1º edição, CEDET, 2019. p. 75.). Ambas as posições, realismo e idealismo, segundo Ortega, não condizem com a verdade e devem ser superadas. Temos de um lado, confiança cega na realidade, de outro, entrega incondicional às faculdades da mente. E nisso está a missão de nosso tempo, buscar uma filosofia que não caia no engodo do realismo e na atração do idealismo. Se faz necessária uma síntese das duas posições, que em certa medida estão corretas, mas são insuficientes para o pensador de hoje. O eixo vital, razão e vida, estão separados desde Sócrates. Essa separação foi herdada pela Europa, que não só deu continuidade ao erro, opondo razão e espontaneidade, como chegou ao ponto de classificá-los como polos totalmente opostos. O realismo, de um lado, traz a confiança cega na realidade: a compreensão realista herdada da tradição grega e medieval entende o real independente do sujeito pensante, mas em Ortega, o eu está de tal modo envolvido com a realidade que esta não existe sem aquele e vice e versa. O racionalismo, outra forma de realismo, erra ao crer que é suficiente a convicção lógica, descartando a convicção vital e assim por diante. De outro lado, o idealismo entrega o mundo ao domínio do eu, da subjetividade. A missão do filósofo espanhol é mostrar que vida e razão não devem seguir em polos antagônicos; razão, arte, ética e cultura acontecem dentro da esfera vital do indivíduo, ou seja, tais temas devem existir em relação à vida e servir a ela. As coisas e o mundo, as Circunstâncias e o Eu, devem ser fundidas numa única esfera: a esfera da vida. A missão de nosso tempo, diz Ortega, tem seu centro na vida humana como realidade radical. É o superar das amarras do realismo e do idealismo, ao qual deu ele o nome de raciovitalismo. O grande problema a ser enfrentado pela filosofia do seu tempo era uma nova forma de opor a subjetividade moderna à perspectiva objetivista dos gregos. “[...] O tema de nosso tempo e a missão das gerações atuais consiste em fazer um ensaio vigoroso para ordenar o mundo do ponto de vista da vida” (O Tema de Nosso Tempo, Capítulo VII). Não há, portanto, oposição entre razão e vida, só não se pode conceber a razão como a modernidade a concebeu, como razão físico-matemática. A razão pura deve ser substituída pela razão vital. Ao percorrer pelos escritos orteguianos desde Meditaciones del Quijote (1914), pode-se notar que o problema da vida como preocupação central de nosso tempo perpassa por toda a extensa obra. No capítulo VII d’O Tema de Nosso Tempo, Ortega afirma que é este o desafio de sua geração: “[...] consagrar a vida, que até agora era só um fato nulo e um acaso do cosmo, fazendo dela um princípio e um direito”.Mais adiante o filósofo discorre sobre como a vida havia sido sujeitada às mais diversas áreas, estando a serviço da economia, da arte, da moral, da religião etc. Porém, tudo isso precisa mudar de foco, a vida deve ser tomada como fundamento de todas as áreas e não o contrário. Esse deve ser o princípio da realidade buscado pela filosofia: a vida de volta ao centro da investigação filosófica. Para Ortega, a vida humana é a realidade básica, radical, onde todas as realidades acontecem. A vida está no centro das circunstâncias e é onde o fluxo dinâmico dos acontecimentos e o eu convergem. É no campo vital de cada indivíduo que o universo torna-se inteligível e perceptível. A vida é razão vital, ou seja, o órgão máximo de compreensão humana, e o ponto de vista particular é a parte da realidade que nos cabe perceber. Sendo dinâmica a realidade, como um rio que corre sem parar, a vida não pode ser estática. O homem não é um ser feito, acabado, mas sempre um ser por fazer. Viver é um acontecendo, jamais um acontecido. Ou seja, a vida é o que eu sou e o que me acontece, em síntese: agir e sofrer. Nascemos num universo sob determinadas circunstâncias que não escolhemos, mas aquilo que escolhemos fazer com o que é nos é dado, é o que realmente importa. A obra de Ortega y Gasset, apesar de ter exercido grande influência sobre a filosofia espanhola, também exerceu uma notável influência na filosofia alemã (Heidegger), e em determinados pensadores existencialistas, principalmente em sua concepção de autenticidade e falsidade: a vida autêntica implica conhecer e assumir sua circunstância de forma que viver seja agir no mundo e sobre o mundo. Ortega declara também o caráter determinadamente livre do homem no mundo, “somos livres à força” ou “obrigados a ser livres” como diria Sartre. Em suma, a filosofia de Ortega y Gasset antecipou muitas teses filosóficas posteriores e criou, por assim dizer, toda uma escola filosófica que re-significou conceitos antigos, trazendo uma nova forma de pensar o homem enquanto tal, através da tese central do pensamento orteguiano: a ideia da Razão Vital. O raciovitalismo corrige a visão racionalista de Sócrates e da filosofia grega em geral, filosofia sobre a qual se erguerá todo o Ocidente e o continente europeu. Ortega, de forma bem pessoal, inverte a perspectiva racionalista de filósofos como Spinoza, Leibniz e Descartes – verdadeiros criadores da modernidade – ao fazer da vida princípio absoluto da razão. Fortemente aproximado ao pensamento de Dilthey, Ortega reafirma a primazia da vida sobre a razão e exalta o esplendoroso milagre do viver. A razão como serva da vida e não o contrário, é esse o centro da filosofia orteguiana, tema que perpassa por toda sua obra e mais especificamente, em O Tema de Nosso Tempo (1923), onde o problema está posto de forma mais sistemática. A questão toda é saber se a Razão Vital é o tema de nosso tempo, tal como o foi do tempo em que viveu Ortega. Essa questão fica para os leitores desta obra. Fato é: o filósofo espanhol inaugurou toda uma nova forma de fazer filosofia que já está aí. Qualquer um pode chegar-se à sombra da grande árvore plantada por Ortega e deliciar-se com os frutos de uma filosofia que visa colocar a espontaneidade da vida de volta ao centro das investigações. Michael Amorim São Luís do Maranhão, MA, novembro de 2022. Aviso ao Leitor A primeira parte deste livro contém a versão ligeiramente ampliada da palestra universitária com a qual abri meu curso habitual no ano letivo de 1921-22. Para escrevê-lo agora, fiz uso das notas meticulosas e muito corretas tomadas em sala de aula por um de meus ouvintes, meu querido amigo Fernando Garcia Vela. Ao oferecer essa palestra hoje para um público mais diversificado do que aquele que freqüenta a Universidade, achei necessário desenvolver um pouco mais alguns pensamentos que poderiam ser menos acessíveis aos leitores que não estão familiarizados com o estudo filosófico. É a isto que se resume o prolongamento dado ao texto original. Seguem vários apêndices que insistem em questões mais concretas, todas elas relacionadas à doutrina apresentada na aula. Destes, estou particularmente interessado naquele que apresenta brevemente uma interpretação filosófica do significado geral latente na teoria física de Einstein. Creio que, pela primeira vez, um certo caráter ideológico é enfatizado aqui, inerente a tal teoria e que contradiz as interpretações que até agora foram dadas a ela. 1923 Nota para a Terceira Edição Esta terceira edição foi revisada. A revisão consistiu em substituir três ou quatro palavras, em acrescentar mais algumas, em pendurar algumas notas de rodapé em algumas páginas, mas, sobretudo, em sublinhar, por meio de itálico, algumas linhas do texto original. 1924 Capítulo I — A Idéia das Gerações O que é mais importante para um sistema científico é que ele seja verdadeiro. Mas a exposição de um sistema científico lhe impõe uma nova necessidade: além de verdadeiro, é preciso que seja compreendido. Não estou me referindo aqui às dificuldades que o pensamento abstrato, especialmente se ele inova, apresenta à mente, mas à compreensão de sua tendência profunda, de sua intenção ideológica; pode-se dizer, de sua fisionomia. Nosso pensamento pretende ser verdadeiro; isto é, refletir com docilidade o que são as coisas. Mas seria utópico, e portanto falso, supor que, para alcançar sua pretensão, o pensamento é governado exclusivamente pelas coisas, atendendo apenas ao seu contexto. Se o filósofo estivesse sozinho diante dos objetos, a filosofia seria sempre uma filosofia primitiva. Todavia, ao lado das coisas o pesquisador encontra o pensamento dos outros, todo o passado das meditações humanas, inúmeros caminhos de explorações anteriores, traços de rotas experimentadas e testadas através da eterna selva problemática que retém sua virgindade, apesar de sua repetida violação. Todos os ensaios filosóficos se preocupam assim com duas instâncias: o que são as coisas e o que foi pensado sobre elas. Tal colaboração das meditações anteriores serve, no mínimo, para evitar qualquer erro já cometido e dá à sucessão de sistemas um caráter progressivo. Entretanto, o pensamento de uma época pode adotar duas atitudes opostas ao que foi pensado em outras épocas — especialmente em relação ao passado imediato, que é sempre o mais eficiente, e traz dentro de si, encapsulado, todo o passado. Há, de fato, épocas em que o pensamento se vê a si mesmo como um desenvolvimento de idéias anteriormente germinadas, e épocas que sentem o passado imediato como algo que precisa urgentemente ser reformado desde suas raízes. As primeiras são épocas de filosofia pacífica; as segundas são épocas de filosofia beligerante, que tem como objetivo destruir o passado, superando-o radicalmente. Nossa época é do último tipo, se por "nossa época" não se entende aquela que está terminando agora, mas aquela que agora começa. Quando o pensamento é forçado a adotar uma atitude beligerante contra o passado imediato, a comunidade intelectual é dividida em dois grupos. Por um lado, a grande maioria daqueles que insistem na ideologia estabelecida; por outro, uma pequena minoria de corações vanguardistas, de almas alertas, que vislumbram ao longe áreas de pele ainda intacta. Essa minoria vive condenada a ser mal compreendida: os gestos provocados nela pela visão das novas paisagens não podem ser corretamente interpretados pela massa da retaguarda que avança atrás dela e ainda não atingiu a altitude a partir da qual a terra incógnita pode ser vislumbrada. Assim, a minoria avançada vive em uma situação de perigo entre o novo território que tem que conquistar e a vulgaridade retrógrada que assedia por detrás dela. Enquanto constrói o novo, ela tem que se defender contra o velho, empunhando ao mesmo tempo, tal como os reconstrutores de Jerusalém, a enxada e o mastro. Tal discrepância é mais profunda e essencial do que muitas vezes é percebida, e tentarei esclarecer em que sentido. Através da história, tentamos entenderas variações que ocorrem no espírito humano. Para isso, precisamos primeiro perceber que essas variações não são de uma mesma ordem. Certos fenômenos históricos dependem de outros, mais profundos, que, por sua vez, são independentes daqueles. A idéia de que tudo influencia tudo, de que tudo depende de tudo, é uma vaga reflexão mística, que deve ser repugnante para qualquer um que deseje ver com clareza. Não; o corpo da realidade histórica possui uma anatomia perfeitamente hierárquica, uma ordem de subordinação, de dependência entre os vários tipos de fatos. Assim, as transformações de uma ordem industrial ou política não são muito profundas; elas dependem das idéias, das preferências morais e estéticas dos contemporâneos. Mas, por sua vez, ideologia, gosto e moralidade nada mais são do que consequências ou especificações da sensação radical perante a vida, de como a existência se sente em sua integridade indiferenciada. Esta que chamaremos de "sensibilidade vital" é o fenômeno primário da história e a primeira coisa que teríamos que definir para entender uma época. No entanto, quando a variação de sensibilidade ocorre apenas em algum indivíduo, ela não tem significado histórico. Duas tendências inclinaram-se a disputar a área da filosofia da história, que, na minha opinião, e sem que eu pretenda agora desenvolver a questão, são igualmente errôneas. Tem havido uma interpretação coletivista e outra individualista da realidade histórica. Para a primeira, o processo substantivo da história é o trabalho de multidões difusas; para a segunda, os agentes históricos são exclusivamente indivíduos. O caráter ativo e criativo da personalidade é, de fato, muito evidente para que a imagem coletivista da história seja aceita. As massas humanas são receptivas; limitam-se à oposição de seu favor ou à resistência aos homens de vida pessoal e iniciadora. Por outro lado, o indivíduo separado de toda convivência é uma abstração. A vida histórica é a coexistência. A vida da individualidade egrégia consiste precisamente em uma ação omnímoda sobre a massa. Portanto, é impossível separar os "heróis" das massas. Essa dualidade é essencial para o processo histórico. A humanidade, em todos os estágios de sua evolução, sempre foi uma estrutura funcional, na qual os homens mais energéticos — qualquer que seja a forma dessa energia — têm operado sobre as massas, dando-lhes uma certa configuração. Isso implica em uma certa comunidade básica entre os indivíduos superiores e a multidão vulgar. Um indivíduo absolutamente heterogêneo com as massas não teria nenhum efeito sobre elas; seu trabalho resvalaria no corpo social da época sem despertar a mínima reação nele, e portanto sem ser inserido no processo histórico geral. [1]Em certa medida, isso já aconteceu mais do que algumas vezes, e a história tem que registrar a biografia desses homens "extravagantes" à margem de seu texto principal. Como todas as outras disciplinas biológicas, a história tem um departamento dedicado aos monstros: uma teratologia. As variações da sensibilidade vital, que são decisivas na história, apresentam-se sob a forma de uma geração. Uma geração não é um punhado de homens notáveis, nem simplesmente uma massa; é como todo um novo corpo social, com sua minoria seleta e sua multidão, que foi lançado no reino da existência com uma determinada trajetória vital. A geração, o compromisso dinâmico entre massa e indivíduo, é o conceito mais importante da história e, por assim dizer, a dobradiça sobre a qual esta executa seus movimentos. [2] Uma geração é uma variedade humana, no sentido rigoroso dado a esse termo pelos naturalistas. Os seus membros vêm ao mundo dotados de certos caracteres típicos, que lhes conferem uma fisionomia comum, distinguindo- os da geração anterior. Dentro dessa estrutura de identidade eles podem ser indivíduos dos mais diversos temperamentos, a tal ponto que, tendo que viver uns juntos aos outros, como contemporâneos, às vezes se sentem antagonistas. Porém, sob a oposição mais violenta dos pró e dos contra, o olho descobre facilmente uma filigrana comum. Ambos são homens de seu tempo, e por mais diferentes que sejam, são ainda muito parecidos. O reacionário e o revolucionário do século XIX são muito mais parecidos um com o outro do que com qualquer um de nós. E o fato é que, brancos ou negros, pertencem à mesma espécie, e na gente, brancos ou negros, inicia-se uma espécie diferente. Mais importante do que os antagonismos dos pró e dos contra, dentro de uma geração, é a distância permanente entre os indivíduos seletos e os vulgares. Diante das doutrinas usuais que silenciam ou negam essa diferença óbvia na hierarquia histórica entre um homem e outro, alguém se sentiria justamente compelido a exagerar. No entanto, essas mesmas diferenças de estatura significam que aos indivíduos é atribuído o mesmo ponto de partida, uma linha comum, acima da qual alguns sobem mais, outros menos, e que representa o mesmo papel que o nível do mar na topografia. E, de fato, cada geração representa uma certa altitude vital, a partir da qual a existência é sentida de uma certa maneira. Se tomarmos a evolução de um povo como um todo, cada uma de suas gerações nos aparece como um momento de sua vitalidade, como uma pulsação de sua potência histórica. E cada pulsação tem uma fisionomia peculiar e única; é uma batida impermutável na série do pulso, assim como é cada nota no desenvolvimento de uma melodia. Do mesmo modo, podemos imaginar cada geração como uma espécie de projétil biológico[1], lançado ao espaço em um momento preciso, com uma violência e uma direção específicas. Tanto seus elementos mais valiosos quanto seus elementos mais vulgares participam de ambas. Contudo, em tudo isso, é claro, estamos apenas construindo figuras ou pintando ilustrações que servem para enfatizar o fato verdadeiramente positivo, onde a idéia de geração confirma sua realidade. Trata-se simplesmente do fato de que as gerações nascem umas das outras, de modo que a nova já se encontra com as formas dadas à existência pela anterior. Para cada geração, viver é, portanto, uma tarefa bidimensional, uma das quais consiste em receber o que foi vivido — idéias, valores, instituições, etc. — pela anterior; a outra consiste em deixar fluir sua própria espontaneidade. Sua atitude não pode ser a mesma em relação ao que lhe é próprio e ao que recebeu. O que foi feito por outros, executado, perfeito, no sentido de completado, chega até nós com uma unção particular; aparece como consagrado, e como não fomos nós mesmos que o resolvemos, tendemos a acreditar que não foi obra de ninguém, mas que é a própria realidade. Chega um momento em que as idéias de nossos professores não nos parecem ser opiniões de determinados homens, mas a própria verdade, que descendeu anonimamente sobre a terra. Por outro lado, nossa sensibilidade espontânea, o que pensamos e sentimos à nossa maneira peculiar, nunca se apresenta para nós como algo definitivo, completo e rígido, mas como um fluxo íntimo de matéria menos resistente. Tal desvantagem é compensada pela maior rapidez e adaptação ao nosso caráter, que o espontâneo sempre têm. O espírito de cada geração depende da equação que esses dois ingredientes formam, da atitude que a maioria de seus indivíduos adota em relação a cada um deles. Cederá ao que recebeu, ignorando as vozes íntimas do espontâneo? Será fiel a elas e intolerante com a autoridade do passado? Já houve gerações que sentiram uma homogeneidade suficiente entre o que foi recebido e o que é próprio. Aí se vive em épocas cumulativas. Em outros momentos, sentiram uma profunda heterogeneidade entre os dois elementos, e houve épocas de eliminação e polêmicas, gerações de combate. Nas primeiras, os novos jovens, solidários com os velhos, estão subordinados a eles; na política, na ciência, nas artes, os velhos continuam a liderar. Tais são os tempos dos velhos. Nestes últimos, já que não se trata de preservar e acumular, mas de descartar e substituir, os velhos são varridos pelos jovens. Tais sãotempos de juventude, épocas de iniciação e de beligerância construtiva. Esse ritmo de épocas da senescência e épocas da juventude é um fenômeno tão evidente ao longo da história que é surpreendente que não seja notado por todos. A razão dessa falta de atenção é o fato de ainda não ter sido feita nenhuma tentativa formal de se estabelecer uma nova disciplina científica, que poderia ser chamada de meta-história e que seria para a história concreta o que é a fisiologia em relação à clínica. Uma das mais curiosas investigações meta-históricas consistiria na descoberta dos grandes ritmos históricos. Pois existem outros não menos óbvios e fundamentais do que os acima mencionados, por exemplo, o ritmo sexual. Há, de fato, um balanço de pêndulo na história, de épocas sujeitas à influência predominante do masculino para épocas subjugadas pela influência feminina. Muitas instituições, costumes, idéias e mitos até então inexplicáveis tornam-se surpreendentemente claros quando se percebe que certas épocas foram governadas e moldadas pela supremacia da mulher. Mas agora não é o momento certo para entrar nesta questão. [3] Capítulo II — A Previsão do Futuro Se cada geração consiste de uma sensibilidade peculiar, de um repertório orgânico de propensões íntimas, isso significa que cada geração tem sua própria vocação, sua própria missão histórica. Há ainda um grande imperativo para desenvolver estes germes internos, para informar à existência em torno dela, de acordo com o módulo de sua espontaneidade. Mas acontece que gerações, como indivíduos, às vezes falham em sua vocação e deixam sua missão por cumprir. Há, de fato, gerações que são infiéis a si mesmas, que decepcionam a intenção histórica nelas colocada. Em vez de enfrentar resolutamente a tarefa definida para elas, surdas aos apelos urgentes de sua vocação, elas preferem sonhar com idéias, instituições, prazeres criados pelas gerações anteriores, e que carecem de afinidade com seu temperamento. É claro que tal deserção do posto histórico não é cometida com impunidade. A geração delinqüente rasteja através da existência em perpétuo desacordo consigo mesma, vitalmente sem sucesso. E acredito que em toda a Europa, mas especialmente na Espanha, a geração atual é uma dessas gerações desertoras. Raramente os homens viveram tão pouco claramente consigo mesmos, e talvez nunca a humanidade tenha suportado tão mansamente formas que não estavam em sintonia com ela, sobreviventes de outras gerações e que não correspondem ao seu batimento cardíaco íntimo. Daí o início da apatia, tão característica de nosso tempo, por exemplo, na política e na arte. Nossas instituições, assim como nosso entretenimento, são os resíduos estagnados de outra época. Não fomos capazes de romper resolutamente com essas concreções distorcidas do passado, nem temos a possibilidade de nos adaptar a elas. Devido a tais circunstâncias, um sistema de pensamento como o que venho expondo há anos nesta cátedra não pode ser facilmente compreendido em sua intenção ideológica, em sua fisionomia interior. Ele aspira, talvez sem sucesso, a cumprir o imperativo histórico de nossa geração. No entanto, nossa geração parece radicalmente obstinada em desconsiderar as sugestões de nosso destino comum. Cheguei forçosamente à convicção de que mesmo os melhores, com pouquíssimas exceções, não suspeitam sequer que em nosso tempo a sensibilidade ocidental está fazendo uma mudança, pelo menos em um quadrante. É por isso que considero necessário antecipar nesta primeira lição algo que, em minha opinião, constitui o tema essencial de nosso tempo. Como é possível que seja tão completamente ignorada? Quando, ao discutir política com algum coetâneo[2] "avançado", "radical", "progressista" — para pôr no melhor dos casos —, surge a inevitável discordância, nosso interlocutor pensa que tal discordância em assuntos de governo e Estado é propriamente uma divergência política. Porém, ele está equivocado; nossa discordância política é uma coisa muito secundária, e seria totalmente sem importância se não servisse como uma manifestação superficial de uma dissensão muito mais profunda. Não estamos tão separados na política como acontece com os princípios próprios do pensar e do sentir. Mais que as doutrinas do direito constitucional, diferentes biologia, física, filosofia da história, ética e lógica nos separam. A posição política desses contemporâneos é uma conseqüência de certas idéias que juntos recebemos de nossos antigos mestres, idéias que estavam em plena força por volta de 1890. Por que eles se contentaram em insistir nas idéias que receberam, apesar de repetidamente observarem que elas não coincidem com sua espontaneidade? Eles preferem servir sem fé sob bandeiras desbotadas, em vez de fazer o doloroso esforço de revisar os princípios que receberam, alinhando-os com seus próprios sentimentos íntimos. Não faz diferença se são liberais ou reacionários; em ambos os casos, são retardatários. O destino de nossa geração não é ser liberal ou reacionário, mas precisamente desinteressar-se por este dilema antiquado. É inadmissível que pessoas que são obrigadas por suas condições intelectuais relevantes a assumir a responsabilidade por nosso tempo vivam, como as vulgares, à deriva, atentas às vicissitudes superficiais de cada momento, sem buscar uma orientação rigorosa e ampla nos cursos da história. [4]Porque a história não é um evento puramente aleatório, que não pode ser previsto. Certamente não é possível prever os eventos singulares que acontecerão amanhã; mas também não seria de real interesse prevê-los. Por outro lado, é perfeitamente possível prever a direção típica do futuro próximo, antecipar o perfil geral da próxima época. Em outras palavras: mil eventos imprevisíveis ocorrem em uma época; mas não se trata propriamente de um acaso, pois a época tem uma estrutura fixa e inconfundível. É o mesmo que com os destinos individuais: ninguém sabe o que acontecerá consigo amanhã, mas sabe qual será seu caráter, seus apetites, suas energias e, portanto, qual será o estilo de suas reações diante desses acidentes. Toda vida tem uma órbita normal pré-estabelecida, ao longo da qual o acaso, sem fundamentalmente distorcê-la, coloca suas sinuosidades e indentações. A profecia tem um lugar na história. Mais ainda: a história é somente um trabalho científico na medida em que a profecia é possível. Quando Schlegel disse que o historiador é um profeta às avessas, ele expressou uma idéia tão profunda quanto exata. A interpretação da vida feita pelo homem antigo, estritamente falando, anula a história. Para ele, a existência consistia no acontecer das coisas ao seu redor. Os eventos históricos eram contingências extrínsecas que se sucediam a um indivíduo ou a um povo. A produção de uma obra de gênio, crises financeiras, mudanças e guerras eram todos fenômenos do mesmo tipo, que podemos simbolizar através da telha que atinge um transeunte. Assim, o processo histórico é uma série de vicissitudes sem lei e sem sentido. Portanto, a ciência histórica não é possível, pois a ciência só é possível onde há uma lei que pode ser descoberta, algo que faz sentido e que, por fazer sentido, pode ser compreendido. Contudo, a vida não é um processo extrínseco onde as contingências são simplesmente acrescentadas. A vida é uma série de eventos regidos por lei. Quando semeamos a semente de uma árvore, prevemos todo o curso normal de sua existência. Não podemos prever se o relâmpago virá ou não para cortá-la com sua lâmina ardente que pende do flanco da nuvem; mas sabemos que a semente de cerejeira não terá folhagem de choupo. Do mesmo modo, o povo romano é um certo repertório de tendências vitais que se desdobram no tempo, passo a passo. Em cada etapa desse desenvolvimento, a etapa subseqüente é pré-formada. A vida humana é um processo interno no qual os fatos essenciais não caem em cima do sujeito — indivíduo ou povo — a partir de fora, mas emergem dele, como da semente, do fruto e da flor. É realmente por acaso que no primeiro século antesde Jesus Cristo viveu um homem do gênio singular de César. Todavia, aquilo que César fez brilhantemente com seu gênio único, dez ou doze outros homens, cujos nomes conhecemos, teriam feito sem tanto brilhantismo e plenitude. Um romano do século IX antes de Jesus Cristo não poderia prever o destino unipessoal que era a vida de César, mas ele poderia profetizar que o primeiro século antes de Jesus Cristo seria uma era "cesarista". Com um nome ou outro, o "cesarismo" era uma forma genérica de vida pública que estava em preparação desde a época dos Gracchi. Cato profetizou claramente os destinos desse futuro imediato[3]. Uma vez que a existência humana é propriamente vida, ou seja, um processo interno no qual uma lei de desenvolvimento é cumprida, a ciência histórica é possível. Em última análise, a ciência não é outra coisa senão o esforço que fazemos para entender algo, e entendemos historicamente uma situação quando a vemos como necessariamente decorrente de uma situação anterior. Com que tipo de necessidade — física, matemática, lógica? Nenhuma delas: com uma necessidade coordenada com elas, mas específica: a necessidade psicológica. A vida humana é eminentemente psicológica. Quando nos dizem que Peter, um homem íntegro, matou seu vizinho, e depois descobrimos que o vizinho havia desonrado a filha de Peter, já entendemos suficientemente esse ato homicida. O entendimento tem consistido no fato de que vemos um sair do outro, a vingança da desonra, em uma trajetória inequívoca e com provas iguais àquela garantida pela verdadeira matemática. Entretanto, com as mesmas evidências, conhecendo a desonra da filha, podemos prever antes do crime que Pedro mataria seu vizinho. Neste caso, vemos muito claramente como, ao profetizar o futuro, fazemos uso da mesma operação intelectual que na compreensão do passado. Em ambas as direções, para trás ou para frente, não fazemos nada além de reconhecer a mesma curva psicológica óbvia, tal como ao encontrar um pedaço de aço conseguimos completar toda a sua forma sem hesitar. Creio, portanto, que a expressão precedente, segundo a qual a ciência histórica só é possível na medida em que a profecia é possível, não parece ser aventureira. Quando o sentido histórico é aperfeiçoado, a capacidade de prever também aumenta[4]. [5] Mas, deixando de lado todas as questões secundárias que a exposição clara desse pensamento levantaria, vamos nos reduzir à possibilidade de prever o futuro imediato. Como proceder em tal empreendimento? É evidente que o próximo futuro nasce de nós e consiste no prolongamento do que é essencial e não contingente, normal e não aleatório em nós. Estritamente falando, então, seria suficiente se descêssemos ao nosso próprio coração e, eliminando o que quer que seja afeto individual, predileção privada, preconceito ou desejo, estendêssemos as linhas de nossos apetites e tendências essenciais até vê-los convergir para um tipo de vida. Mas percebo que tal operação, aparentemente tão simples, não é assim para aqueles que não estão acostumados com os rigores e precisões da análise psicológica. Nada é menos comum, na verdade, do que essa reviravolta da mente para dentro de si mesma. O homem foi formado na luta com o exterior, e é fácil para ele discernir apenas as coisas que estão fora. Quando ele olha para dentro, sua visão fica embaçada e ele sofre de vertigens.[6] Todavia, creio que existe outro procedimento objetivo para descobrir os sintomas do futuro no presente. Já disse antes que o corpo dos tempos tem uma anatomia hierárquica, que nele existem certas atividades primárias e certas atividades secundárias derivadas delas. Assim, as características que dentro de vinte anos terão se manifestado nas atividades secundárias da vida, que são as mais óbvias e conspícuas, já hoje terão começado a se manifestar nas atividades primárias. A política, por exemplo, é uma das funções mais secundárias da vida histórica, no sentido de que é uma mera conseqüência de tudo o mais[5]. Quando um estado de espírito vem para informar os movimentos políticos, ele já passou por todas as outras funções do organismo histórico. A política é a gravitação de algumas massas sobre outras. Ora, para que uma modificação dos fenômenos históricos possa chegar às massas, ela deve ter influenciado a minoria seleta. No entanto, os membros desta última são de dois tipos: homens de ação e homens de contemplação. [7]Não se deve duvidar que as novas tendências, ainda germinantes e fracas, serão percebidas primeiro pelos temperamentos contemplativos e não pelos ativos. A urgência do momento impede que o homem de ação sinta as brisas vagas iniciais que, por enquanto, não pode preencher suas velas práticas. É em puro pensamento, portanto, que o tempo emergente faz sua primeira marca sutil. São as ligeiras ondulações deixadas na pele imóvel do lago pelo primeiro sopro. O pensamento é a coisa mais fluida no homem; é por isso que ele se permite ser facilmente movido pelas mais pequenas variações da sensibilidade vital. Em resumo: a ciência que está sendo produzida hoje é o espelho mágico no qual devemos olhar para vislumbrar o futuro. As mudanças, talvez técnicas na aparência, que a biologia ou a física, a sociologia ou a pré-história, e acima de tudo a filosofia, estão passando hoje são os gestos primordiais do novo tempo. A questão muito delicada da ciência é sensível à menor agitação da vitalidade, e pode servir para registrar agora com sinais tênues o que será projetado gigantescamente para o palco da vida pública nos próximos anos. A antecipação do futuro está assim equipada com um instrumento de precisão semelhante ao aparelho sísmico, que revela com um tremor o que a grandes distâncias é uma catástrofe telúrica. Nossa geração, se não quer permanecer à margem de seu próprio destino, deve se orientar pelas características gerais da ciência que se faz hoje, em vez de se concentrar na política do presente, que é toda ela anacrônica e uma mera ressonância de uma sensibilidade defunta. Do que começamos a pensar hoje depende aquilo que será vivido nas pequenas praças de amanhã. [8] Fichte tentou uma tarefa semelhante para seu tempo no famoso curso, mais tarde publicado em um volume, sobre os Características da época atual. Vou agora tentar descrever brevemente o que considero ser o tema dominante da época atual. Capítulo III — Relativismo e Racionalismo Subjacente a tudo isso está a suposição de que existe uma afinidade íntima entre os sistemas científicos e as gerações ou épocas. Isso significa que a ciência, e especialmente a filosofia, é um conjunto de convicções que só são válidas como verdade por um certo tempo? Se aceitarmos assim o caráter transitório de toda verdade, seremos alistados nas fileiras da doutrina "relativista", que é uma das emanações mais típicas do século XIX. Na medida em que falássemos em fugir desta época, estaríamos apenas caindo de novo nela. Essa questão da verdade, aparentemente incidental e de natureza puramente técnica, nos levará diretamente à própria raiz do tema de nosso tempo. Sob o nome "verdade" reside um problema muito dramático. A verdade, o reflexo adequado do que são as coisas, é obrigada a ser única e invariável. Mas a vida humana, em seu desenvolvimento multiforme, ou seja, na história, mudou constantemente de idéia, consagrando como "verdade" aquela que adotou em cada caso. Como conciliar uma coisa com a outra? Como colocar a verdade, que é única e invariável, dentro da vitalidade humana, que é, por essência, mutável e varia de indivíduo para indivíduo, de raça para raça, de época para época? Se quisermos nos ater à história viva e seguir suas ondulações sugestivas, temos que desistir da idéia de que a verdade é apreendida pelo homem. Cada indivíduo possui suas próprias convicções, mais ou menos duradouras, que são "para" ele a verdade. Nelas se acende seu íntimo coração, que o mantém quente no feixe da existência. Não existe tal coisa como “A” verdade: existem apenas verdades "relativas" à condição de cada sujeito. Tal é a doutrina"relativista". Contudo, tal renúncia à verdade, tão graciosamente feita pelo relativismo, é mais difícil do que parece à primeira vista. O objetivo é alcançar uma fina imparcialidade diante da multidão de fenômenos históricos; mas a que custo? Primeiramente, se não há verdade, o relativismo não pode ser levado a sério. Em segundo lugar, a fé na verdade é um fato radical da vida humana: se a amputamos, a vida se torna ilusória e absurda. A própria amputação que fizermos será sem sentido e sem valor. O relativismo é, no final, ceticismo, e o ceticismo, justificado como uma objeção a toda teoria, é uma teoria suicida. [9] A tendência relativista sem dúvida inspira uma nobre tentativa de respeitar a admirável volubilidade inerente a tudo o que é vital. Porém, é um ensaio fracassado. Como Herbart disse, "todo bom iniciante é um cético, mas todo cético é apenas um iniciante". A partir da Renascença, a tendência antagônica, o racionalismo, tem fluido mais profundamente através do seio da alma européia. Seguindo um procedimento inverso, o racionalismo, a fim de salvar a verdade, renuncia à vida. Ambas as tendências são encontradas na situação que o dístico popular atribui aos dois Papas, o sétimo e o nono de seu nome: Pío, per conservar la sede, perde la fede. Pío, per conservar la fede, perde la sede[6]. Como a verdade é única, absoluta e invariável, ela não pode ser atribuída a nossas pessoas individuais, corruptíveis e mutáveis. Devemos supor, além das diferenças que existem entre os homens, uma espécie de sujeito abstrato, comum aos europeus e chineses, ao contemporâneo de Péricles e ao cavaleiro de Luís XIV. Descartes chamou esse fundo comum, livre de variações e peculiaridades individuais, de "razão", e Kant de "a entidade racional". Observe bem a divisão que ocorreu em nossa pessoa. De um lado, tudo o que somos é vital e concreto, nossa realidade palpitante e histórica. Por outro lado, aquele núcleo racional que nos permite chegar à verdade, mas que, por outro lado, não vive, um espectro irreal que desliza imutavelmente através do tempo, esquecendo as vicissitudes que são um sintoma da vitalidade. Entretanto, não entendemos o porquê da razão não ter descoberto, com certeza, o universo das verdades. Por que ela demora tanto tempo? Como ela permite que a humanidade se entretenha durante milhares de anos nos mais variados erros? Como explicar a multidão de opiniões e gostos que, segundo as épocas, raças e indivíduos, têm dominado a história? Do ponto de vista do racionalismo, a história, com suas incessantes vicissitudes, não tem sentido e é propriamente a história dos impedimentos postos ao caminho da razão que se manifesta. O racionalismo é anti-histórico. No sistema de Descartes, o pai do racionalismo moderno, a história não tem lugar, ou melhor, é colocada em um lugar de punição. “Tudo o que a razão concebe” — diz ele na quarta Meditação — “concebe como deve e não é possível que erre. Onde, então, meus erros surgem? Elas surgem simplesmente do fato de que, sendo a vontade muito mais ampla e extensa que o entendimento, eu não a contenho dentro dos mesmos limites, mas também a estendo às coisas que não entendo, às quais, sendo indiferente por si só, ela se desvia muito facilmente e escolhe o falso como verdadeiro e o mal como sendo o bem; essa é a causa do meu erro e do meu pecado.” Portanto, esse erro é um pecado da vontade, não um acaso, e talvez até mesmo um destino da inteligência. Se não fossem os pecados da vontade, o primeiro homem teria descoberto todas as verdades acessíveis a ele; não haveria, portanto, variedade de opiniões, de leis, de costumes; em suma, não haveria história. Mas como tem havido, não temos outra escolha senão atribuí-la ao pecado. A história seria substancialmente a história dos erros humanos. Não há atitude mais anti-histórica, mais anti-vida. A história e a vida são pesadas com um sentido negativo e têm o sabor de um crime. O caso de Descartes é um exemplo excepcional do que eu disse anteriormente sobre a possível previsão do futuro. Também seus contemporâneos viram em seu trabalho, no momento, apenas uma inovação de interesse puramente científico. Descartes propôs a substituição de algumas doutrinas físicas e filosóficas por outras, e eles estavam preocupados apenas em decidir se essas novas doutrinas estavam certas ou erradas. A mesma coisa acontece hoje com as teorias de Einstein. Porém se, abandonando por um momento tal preocupação e deixando em suspenso o juízo sobre a verdade ou falsidade dos pensamentos cartesianos, simplesmente se tivesse olhado para eles como um sintoma inicial de uma nova sensibilidade, como uma manifestação germinativa de um novo tempo, poderia ter-se descoberto neles a silhueta do futuro. Qual foi, afinal, o pensamento físico e filosófico de Descartes? Declarar duvidosa e, portanto, desprezível qualquer idéia ou crença que não tenha sido construída mediante "pura intelectualidade". Pura intelectualidade ou razão nada mais é do que nosso entendimento funcionando no vácuo, sem restrições, preso a si mesmo e dirigido por suas próprias regras internas. Por exemplo, para a visão e a imaginação, um ponto é a menor mancha que podemos perceber de fato. [10]Por outro lado, para a pura intelectualidade, somente o que é radical e absolutamente menor, o infinitamente pequeno, é um ponto. A intelectualidade pura, a raison, só pode mover-se entre superlativos e absolutos. Quando começa a pensar no ponto, não pode parar em nenhum tamanho até atingir o extremo. Esse é o modo geométrico de pensar, o mos geometricus de Spinoza; a "razão pura" de Kant. O entusiasmo de Descartes pelas construções da razão o levou a executar uma inversão completa da perspectiva que é natural para o homem. O mundo imediato e evidente que nossos olhos contemplam, que nossas mãos sentem, que nossos ouvidos ouvem, é feito de qualidades: cores, resistências, sons, etc. Este é o mundo em que o homem viveu e sempre viverá. Mas a razão não é capaz de lidar com qualidades. Uma cor não pode ser pensada, não pode ser definida. Tem que ser vista e, se quisermos falar sobre ela, temos que nos ater a ela. Em outras palavras: a cor é irracional. Por outro lado, o número, mesmo o que os matemáticos chamam de "irracional", coincide com a razão. Sem mais que ater-se a si própria, esta pode criar o universo das quantidades por meio de conceitos dotados de arestas agudas e claras. Com audácia heróica, Descartes decide que o verdadeiro mundo é o quantitativo, geométrico; o outro, o mundo qualitativo e imediato, que nos rodeia cheio de graça e sugestão, é desqualificado e considerado, em certo sentido, como ilusório. [11]Certamente, a ilusão está tão firmemente enraizada em nossa natureza que não é suficiente reconhecê-la para evitá-la. O mundo de cores e sons ainda nos parece tão real quanto antes de descobrirmos suas artimanhas. Esse paradoxo cartesiano serve como base da física moderna. Fomos educados nisso, e hoje é difícil para nós perceber sua gigantesca anormalidade e colocar os termos de volta nos mesmos termos que eram antes de Descartes. Contudo, é compreensível que uma inversão tão completa da perspectiva espontânea não tenha sido, em Descartes e nas gerações seguintes, um resultado imprevisto a que se chega de repente diante de certas provas. Pelo contrário, começa-se por desejar, mais ou menos confusamente, que as coisas fossem de uma certa maneira, e depois busca-se as provas para mostrar que as coisas são, de fato, como desejávamos que fossem. Com isso, não quero de forma alguma dizer que as provas são ilusórias; trata-se simplesmente de afirmar que não são as provas que nos procuram e nos assaltam, mas nós que vamos em busca delas, movidos por desejos anteriores. Ninguém acreditará que Einstein um dia se surpreendeu com a necessidade de reconhecer que o mundo tem quatro dimensões. Durante trinta anos, muitos homens de almas alertas vinham postulando uma física tetradimensional. Einstein procurou-a deliberadamente e, como não se tratava de um desejo impossível,ele a encontrou. A física e a filosofia de Descartes foram a primeira manifestação de um novo estado de espírito, que um século depois se espalhou a todas as formas de vida e dominou no salão, na tribuna, na praça. Ao convergir os traços desse estado de espírito, obtém-se a sensibilidade especificamente "moderna". Suspeita e desdém por tudo o que é espontâneo e imediato. Entusiasmo por toda construção racional. O homem cartesiano, "moderno", achará o passado desagradável, porque não tornou as coisas more geometrico. Assim, as instituições políticas tradicionais parecerão desajeitadas e injustas para ele. Contra elas, ele acredita ter descoberto uma ordem social definitiva, obtida dedutivamente por meio da razão pura. É uma constituição esquematicamente perfeita, onde os homens são supostamente "entidades racionais", e nada mais. Se essa suposição for aceita — a "razão pura" deve sempre partir de suposições, como no xadrez — as conseqüências são inescapáveis e exatas. O edifício de conceitos políticos, assim elaborado, é de uma "lógica” maravilhosa, ou seja, de um rigor intelectual insuperável. Pois bem: o homem cartesiano é sensível apenas a esta virtude: pura perfeição intelectual. Para tudo mais, ele é surdo e cego. É por isso que o passado e o presente não lhe merecem o menor respeito. Pelo contrário, do ponto de vista racional, eles adquirem um aspecto criminoso. É urgente, portanto, aniquilar o pecado existente e avançar para o estabelecimento da ordem social definitiva. O futuro ideal construído pelo intelecto puro deve substituir o passado e o presente. Esse é o temperamento que leva a revoluções. O racionalismo aplicado à política é revolucionário e, vice-versa, uma época não é revolucionária se não for racionalista. Não se pode ser revolucionário senão na medida em que se é incapaz de sentir a história, de perceber no passado e no presente o outro tipo de razão, que não é pura, mas vital. A assembléia constituinte faz "uma declaração solene dos direitos do homem e do cidadão", para que "os atos do poder legislativo e os do poder executivo, que podem ser comparados a cada momento com o objetivo de todas as instituições políticas, sejam mais respeitados, para que as reivindicações dos cidadãos, doravante fundamentadas em princípios simples e indiscutíveis", etc., etc., etc. Parece que estamos lendo um tratado sobre geometria. Os homens de 1790 não se contentaram em legislar para eles mesmos: não apenas decretaram a nulidade do passado e do presente, mas também suprimiram a história futura, decretando como "todas" as instituições políticas deveriam ser. Hoje achamos tal atitude muito petulante. Além disso, nos parece estreita e grosseira. O mundo se tornou mais complexo e vasto aos nossos olhos. Começamos a suspeitar que a história, a vida, não pode nem "deve" ser governada por princípios, tal como ocorre nos livros matemáticos[7]. É incoerente guilhotinar o príncipe e substituí-lo pelo princípio. Sob este último, nada menos que sob o primeiro, a vida está subordinada a um regime absoluto. E é precisamente isto que não pode ser: nem o absolutismo racionalista — que salva a razão e anula a vida — nem o relativismo, que salva a vida pela evaporação da razão. A sensibilidade da época que agora começa se caracteriza por sua recusa em aceitar tal dilema. Não podemos nos conformar satisfatoriamente com nenhum de seus termos. Capítulo IV — Cultura e Vida Vimos como o problema da verdade dividiu os homens das gerações anteriores em duas tendências antagônicas: o relativismo e o racionalismo. Cada uma renuncia ao que a outra guarda. O racionalismo se agarra à verdade e abandona a vida. O relativismo prefere a mobilidade da existência à verdade imóvel e imutável. Não podemos alojar nosso espírito em nenhuma das duas posições: quando tentamos, parece que sofremos uma mutilação. Vemos com total clareza o que é plausível em uma e outra e, ao mesmo tempo, notamos suas inadequações complementares. O fato de que uma vez os melhores homens foram capazes de se encaixar placidamente, de acordo com seu temperamento, em qualquer uma delas, indica que eles possuíam uma sensibilidade diferente da nossa. Pertencemos a uma época na medida em que nos sentimos capazes de aceitar seu dilema e lutar a partir de uma de suas bordas na trincheira que ela abriu. Porque viver é, em um sentido essencial que virá ao nosso conhecimento mais tarde, alistar-se sob bandeiras e prontidão para o combate. Vivere militare est, disse Séneca, fazendo um nobre gesto legionário. O que não podemos ser solicitados a fazer é tomar partido em uma luta que já resolvemos dentro de nós mesmos. Cada geração deve ser o que os hebreus chamavam de Naftali, o que significa: "Eu lutei minhas batalhas". Para nós, a velha discórdia está naturalmente resolvida; não entendemos como se pode falar de uma vida humana da qual o órgão da verdade foi amputado, nem de uma verdade que, para existir, precisa primeiro desalojar a fluidez vital. O problema da verdade, ao qual eu aludi brevemente, é apenas um exemplo. O mesmo vale para a norma moral e jurídica que se destina a governar nossa vontade tal como a verdade se destina a governar nosso pensamento. O bem e a justiça, se eles são o que dizem ser, devem ser únicos. Uma justiça feita somente para um tempo ou uma raça, aniquila seu significado. Há também relativismo e racionalismo na ética e no direito. Há também relativismo e racionalismo na arte e na religião. Em outras palavras, o problema da verdade é generalizado a todas aquelas ordens que resumimos no termo "cultura". Sob esse novo nome, a questão perde um pouco de seu aspecto técnico e se aproxima dos nervos humanos. Tratemos, então, de apresentá-la aqui e tentar colocá-la com todo o seu rigor, com todo seu agudo drama. O pensamento é uma função vital, tal como a digestão ou a circulação do sangue. Que os últimos consistam em processos espaciais, corpóreos, e o primeiro não, é uma diferença sem importância para nosso tema. Quando o biólogo do século XIX se recusa a considerar como fenômenos vitais aqueles que não têm caráter somático, ele parte de um preconceito que é incompatível com um positivismo rigoroso. O médico que atende a pessoa doente não encontra menos imediatamente diante dele o fenômeno do pensamento do que o da respiração. Um julgamento é uma porção minúscula de nossa vida; uma volição, a mesma coisa. São emanações ou momentos de uma pequena esfera centrada em si mesma: o indivíduo orgânico. Penso o que penso, assim como transformo os alimentos ou faço o sangue do meu coração pulsar. Em todos os três casos, trata-se de necessidades vitais. Compreender um fenômeno biológico é mostrar sua necessidade para a continuação do indivíduo, ou, em outras palavras, descobrir sua utilidade vital. Em mim, como indivíduo orgânico, meu pensamento encontra, portanto, sua causa e justificação: é um instrumento para minha vida, um órgão dela, que ela regula e governa[8]. Mas, por outro lado, pensar é colocar as coisas diante de nossa individualidade tal como elas são. O fato de às vezes errarmos apenas confirma o caráter verdadeiro do pensamento. Chamamos de erro um pensamento fracassado, um pensamento que não é um pensamento adequado. Sua missão é refletir o mundo das coisas, acomodar-se a elas de uma maneira ou de outra; em resumo, pensar é pensar a verdade, como digerir é assimilar os alimentos. E o erro não anula a verdade do pensamento, assim como a indigestão não elimina o fato do processo normal de assimilação. [12] O fenômeno do pensamento tem assim um duplo aspecto; por um lado, ele surge como uma necessidade vital do indivíduo e é regido pela lei da utilidade subjetiva; por outro lado, ele consiste precisamente em uma adaptação às coisas e é regido pela lei objetiva da verdade. O mesmo se aplica às nossas volições. O ato da vontade é desencadeado a partir do próprio centro do sujeito. É uma emanação energética, um ímpeto que se eleva das profundidades orgânicas. A vontade, estritamente falando, é sempre uma vontade de fazer algo.O amor a uma coisa, o mero desejo de que algo seja, certamente estão envolvidos na preparação do ato voluntário, mas não são o ato voluntário em si. Queremos propriamente quando, além de desejarmos que as coisas sejam de uma certa maneira, decidimos realizar nosso desejo, realizar atos eficazes que modificam a realidade. Nas volições, o pulso vital do indivíduo é claramente manifestado. Através delas, ele satisfaz, corrige e expande suas necessidades orgânicas. Contudo, analisemos um ato de vontade onde o caráter da vontade é claro. Por exemplo, o caso em que, após hesitação e indecisão, através de deliberação dramática, finalmente decidimos fazer algo e suprimir outras resoluções possíveis. Então percebemos que nossa decisão nasceu do fato de que, entre as intenções concorrentes, nos parecia ser a melhor. Portanto, todos estão constitucionalmente dispostos a fazer o melhor que pode ser feito em cada situação, uma aceitação da norma objetiva do bem. Alguns pensarão que esse padrão objetivo da vontade, esse bem supremo, é o serviço de Deus; outros suporão que o ótimo consiste no egoísmo cuidadoso ou, ao contrário, no benefício máximo do maior número de seus semelhantes. Mas em um ou outro sentido, quando queremos algo, queremo-lo porque acreditamos que é o melhor, e só estamos satisfeitos conosco mesmos, só o queremos plenamente e sem reservas, quando parece que nos adaptamos a uma norma de vontade que existe independentemente de nós, além de nossa individualidade. Esse duplo caráter que encontramos nos fenômenos intelectuais e voluntários é igualmente evidente no sentimento estético ou na emoção religiosa. Em outras palavras, há toda uma série de fenômenos vitais dotados de um duplo dinamismo, um estranho dualismo. Por uma lado, eles são o produto espontâneo do sujeito vivo e têm sua causa e seu regime dentro do indivíduo orgânico; por outro lado, trazem dentro de si a necessidade de submeter-se a um regime ou lei objetiva. E ambas as instâncias — note bem — precisam uma da outra. Não posso pensar de forma útil para meus propósitos biológicos, se eu não pensar a verdade. Um pensamento que normalmente nos apresentasse um mundo divergente do verdadeiro, nos levaria a erros práticos constantes e, conseqüentemente, a vida humana teria desaparecido. Na função intelectual, então, não posso acomodar-me a mim, ser útil a mim mesmo, se não me acomodar ao que não sou, às coisas que me rodeiam, ao mundo transorgânico, ao que me transcende. Porém também vice-versa: a verdade não existe se o sujeito não a pensa, se o ato mental com sua faceta inescapável de convicção íntima não nasce em nosso ser orgânico. Para que o pensamento seja verdadeiro, ele precisa coincidir com as coisas, com o que me transcende; mas, ao mesmo tempo, para que esse pensamento exista, eu tenho que pensá-lo, tenho que aderir à sua verdade, alojá-lo intimamente em minha vida, torná- lo imanente na pequena esfera biológica que eu sou. Simmel, quem viu esse problema de forma mais aguda do que qualquer outra pessoa, insiste muito justamente neste estranho caráter do fenômeno vital humano. A vida do homem — ou o conjunto de fenômenos que compõem o indivíduo orgânico — tem uma dimensão transcendente na qual, por assim dizer, ela sai de si mesma e participa de algo que não é ela mesma, que está para além dela própria. Pensamento, vontade, sentimento estético, emoção religiosa, constituem essa dimensão. Não se trata de nós, ao analisarmos, por exemplo, o fenômeno intelectual, aceitarmos a existência da verdade que ele pretende conter. Mesmo que nós, filósofos, não o consideremos justificado, o fenômeno do pensamento traz em si, quer queiramos quer não, tal pretensão; de fato, ele não consiste em nada mais do que em tal pretensão. E quando o relativista se recusa a admitir que o ser vivo pode pensar a verdade, ele, como um ser vivo, está convencido de que essa negação é verdadeira. [13] À parte, então, de toda teoria, se nos reduzirmos a fatos puros, se aderirmos ao positivismo mais rigoroso — que os positivistas titulares nunca exercem — a vida humana se apresenta como o fenômeno que certas atividades imanentes ao organismo transcendem. A vida, disse Simmel, consiste precisamente em ser mais do que a vida; nela, o imanente é um transcender para além de si mesma. Agora podemos dar seu significado exato à palavra "cultura". Essas funções vitais — portanto, subjetivas, intra-orgânicas — que cumprem leis objetivas, que em si mesmas carregam a condição de se conformar a um regime transvital, são cultura. Portanto, esse termo não deve ser deixado vago. A cultura consiste em certas atividades biológicas, nem mais nem menos biológicas do que a digestão ou a locomoção. Muito se falou no século XIX sobre cultura como "vida espiritual" — especialmente na Alemanha. Felizmente, as reflexões que estamos fazendo nos permitem dar um sentido preciso a essa "vida espiritual", uma expressão mágica que os santos modernos pronunciam em meio a gesticulações de arrebatamento extasiado. A vida espiritual nada mais é do que esse repertório de funções vitais, cujos produtos ou resultados têm uma consistência transvital. Por exemplo: entre as diversas formas de comportamento para com o próximo, nosso sentimento destaca uma em que encontra a qualidade peculiar chamada "justiça". Tal capacidade de sentir, de pensar a justiça e de preferir o justo ao injusto é, em primeira instância, uma faculdade com a qual o organismo é dotado a fim de prover sua própria conveniência interna. Se o sentimento da justiça fosse pernicioso para o ser vivo, ou pelo menos supérfluo, teria significado uma carga biológica de tal ordem que a espécie humana teria sucumbido. A justiça, portanto, nasce como uma simples conveniência vital e subjetiva; organicamente, a sensibilidade jurídica não tem mais nem menos valor do que a secreção pancreática. Entretanto, essa justiça, uma vez segregada pelo sentimento, adquire um valor independente. A idéia própria do que é justo inclui a exigência de que assim seja. O que é certo deve ser feito, mesmo que não se adapte à vida. Justiça, verdade, retidão moral, beleza, são coisas que têm valor em si mesmas, e não apenas na medida em que são úteis à vida. Conseqüentemente, as funções vitais nas quais essas coisas são produzidas, além de seu valor de utilidade biológica, têm um valor em si mesmas. Por outro lado, o pâncreas não tem outra importância além daquela que provém de sua utilidade orgânica, e a secreção de tal substância é uma função que termina dentro da própria vida. Essa autovalorização da justiça e da verdade, essa plenitude da suficiência, que nos faz preferi-las à própria vida que as produz, é a qualidade que chamamos de espiritualidade. Na ideologia moderna, "espírito" não significa algo como "alma". O espiritual não é uma substância desencarnada, não é uma realidade. É simplesmente uma qualidade que algumas coisas possuem e outras não. Tal qualidade consiste em ter um significado, um valor próprio. Os gregos chamariam a espiritualidade do povo moderno de nus mas não de psique — alma. Pois bem: o sentimento do que é justo, o conhecimento ou pensamento da verdade, a criação artística e o prazer têm sentido em si mesmos, valem a pena por si mesmos, mesmo que sejam abstraídos de sua utilidade para o ser vivo que exerce essas funções. São, portanto, vida ou cultura espiritual. As secreções, locomoção, digestão, por outro lado, são vida infra-espiritual, vida puramente biológica, sem qualquer significado ou valor fora do organismo. A fim de nos entendermos, chamaremos os fenômenos vitais, na medida em que não transcendam a vida biológica, de "vida espontânea"[9]. Não creio que o devoto mais escrupuloso da cultura e "espiritualidade" perderia qualquer privilégio com a definição dada desses termos acima. No entanto, tive o cuidado de sublinhar nelas uma faceta que o "culturalista" hipocritamente tenta apagar e deixar como que esquecida. De fato, quando se ouve falar de "cultura", de "vida espiritual", parece apenas que estamos lidando com
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