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O Tema de Nosso Tempo - Jose Ortega y Gasset

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José Ortega y Gasset
O Tema de Nosso Tempo
Tradução: Bernardo Santos
© 2022 Diário Intelectual
www.diariointelectual.com.br
http://www.diariointelectual.com.br/
Índice
Índice
Prefácio à edição brasileira
Aviso ao Leitor
Nota para a Terceira Edição
Capítulo I — A Idéia das Gerações
Capítulo II — A Previsão do Futuro
Capítulo III — Relativismo e Racionalismo
Capítulo IV — Cultura e Vida
Capítulo V — O Imperativo Duplo
Capítulo VI — As duas ironias, 
Sócrates e Don Juan
Capítulo VII — As Valorizações da Vida
Capítulo VIII — Valores Vitais
Capítulo IX — Novos Sintomas
Capítulo X — A Doutrina do Ponto de Vista
Apêndices
O Crepúsculo das Revoluções
Epílogo Sobre a Alma Desiludida
O Sentido Histórico da Teoria de Einstein
Prefácio à edição brasileira
José Ortega y Gasset (1883-1955) foi um filósofo espanhol da primeira
metade do século XX. Sua influência, porém, não se limita à sua terra natal;
abrange todos os países hispánicos ou ibéricos de língua espanhola e
portuguesa. Ortega é, sem exagero, um filósofo universal, que elevou o
nível da filosofia espanhola. Pensador original e visionário, antecipou
muitas das posições filosóficas atuais; suas obras foram traduzidas e
estudadas em diversos países, por intelectuais de diferentes filosofias e
concepções de mundo. Através de seu trabalho editorial, ele incorporou a
ciência européia, principalmente de origem alemã, ao pensamento espanhol.
Com a criação da Revista do Ocidente, promoveu a tradução das mais
importantes tendências filosóficas e científicas da época: Spengler,
Huizinga, Husserl, Simmel, Uexkül, Heimoseth, Bretano, Driesch, Russel e
etc.
Ortega criou, com a integração da alta filosofia na Espanha, toda uma
geração de intelectuais rigorosos, de onde floresceu a eruditíssima Escola
Filosófica de Madri, que tem entre seus membros nomes como Manuel
Garcia Morente, José Luis Aranguren, Luis Díez del Corral, José Gaos,
Fernando Vela, Xavier Zubiri, José Ferrater Mora e Julían Marías. Ortega y
Gasset fincou naquele país as bases da alta filosofia; pode-se dizer,
entretanto, que seus escritos pertencem também a todos os povos de língua
portuguesa, inclusive ao Brasil, tanto pela proximidade do idioma como
pela autenticidade do autor: ler Ortega, portanto, torna-se indispensável ao
bom estudante brasileiro. Dá-nos Kujawski a justificativa:
Está claro que o estudante brasileiro tem todo o direito de
aprender alemão e iniciar-se na filosofia com Hegel, Nietzsche ou
Heidegger, ou de estudar francês e começar com Sartre, ou inglês
e dedicar-se a Popper. Tudo bem, mas assim nosso estudante terá
queimado uma etapa. Veja-se o caso da iniciação literária; ela
começa, logicamente, pelos autores que escreveram em nossa
língua; lemos, primeiro, Camões, Gonçalves Dias, Alencar,
Machado de Assis, Drummond, Guimarães Rosa, antes de
conhecermos Dante, Shakespeare, Goethe etc. Não se trata de
nacionalismo primário, trata-se do fato de que o brasileiro não só
“fala” português, como vive e pensa em português,
profundamente condicionado pelo estilo cultural que assimila
junto com a língua natal. […] Então, por que não nos iniciarmos
em filosofia pela obra de um pensador espanhol, inserido em
nossa área cultural, que lemos quase como se fosse português?
(KUJAWSKI, Gilberto de Mello. Ortega y Gasset: A aventura da
razão. São Paulo: Moderna, 1994. p. 09)
Pensador contumaz, Ortega pensou sobre tudo, ou ao menos — como nos
diz Kujawski — sobre tudo que importa saber. Obviamente, há saberes que
não importam para nós ou nos importam pouco; a estes não cabe a atenção.
É o interesse sincero e autêntico, concernente à vida e ao destino, que deve
ser foco de nossa atenção e esforços; o saber que traz em si o próprio
sentido da vida – de modo particular, único, pois é no íntimo de cada
indivíduo que acontece a vida.
Ortega y Gasset nasceu em Madrid, em 1883, no seio de uma família
burguesa ligada ao jornalismo e à política. José Ortega Munilla, seu pai, foi
diretor do periódico El Imparcial (fundado pelo avô materno de Ortega y
Gasset, Eduardo Gasset y Artime), ao qual o próprio Ortega y Gasset deu
importante e intensa contribuição. Sua vida está profundamente marcada
pela política, imprensa e atividades editoriais. De formação Jesuíta, estudou
no Colegio jesuita de San Estanislao, na cidade de Miraflores del palo, e
iniciou seus estudos superiores na Jesuita Universidad de Deusto (Bilbao),
dando continuidade na Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad
Central de Madrid, concluindo o curso em 1902. Obteve seu doutorado em
1904, com uma tese sobre Os terrores do ano mil (Crítica de uma lenda).
Entre 1905 e 1908 passa pelas universidades alemãs de Leipzig, Berlim e
Marburgo, onde entra em contato com o neokantismo – sobretudo de
Hermman Cohen, do qual foi discípulo –, sistema que lhe serviu de
inspiração por longos anos, até ser abandonado, com a publicação de El
Espectador, coleção de 7 ensaios publicados no período de 1916 a 1934:
fundamentar-se num modelo de razão pura – a proposta kantiana – faz-se
inviável para Ortega y Gasset, pois não se poderia construir sistemas
filosóficos a partir de uma teoria isenta de influência dos sentidos.
De volta à Madri, em 1910, assume a cátedra de professor de metafísica,
cargo que ocuparia até 1936. Em 1914, publica a primeira edição de sua
Meditaciones del Quijote, obra que inaugura importante passo para a tese
do raciovitalismo. Em 1917, funda o jornal El Sol. A Revista do Ocidente
viria a ser criada seis anos depois. Seu forte envolvimento com a política,
presente em todos esses anos, rendeu-lhe problemas que culminaram, por
exemplo, com sua saída da cátedra universitária. Fundou com seu discípulo
Julían Marías, em 1948, o Instituto de Humanidades, cujos cursos
abordavam temas dos mais diversos. Os famosos encontros com Heidegger
aconteceram entre 1951 e 1953. Em 1955, Ortega perde a consciência de si
mesmo, vítima de câncer.
A obra de Ortega y Gasset não pode ser bem compreendida sem se levar em
conta o contexto em que foi escrita e o povo ao qual foi endereçada. Ele
fala como espanhol e para espanhóis. A pretensão de falar para todos nunca
encontrou lugar em seus escritos. Nas Meditações do Quixote (1914), seu
primeiro livro, escreve: “O indivíduo não pode orientar-se no universo
senão através da sua raça, porque vai incluído nela como a gota no seio da
nuvem peregrina”. Não raro Ortega manifestava sua preocupação com a
possibilidade de ser mal entendido por povos de outras línguas; ao ponto de,
visando a orientação do leitor estrangeiro, acrescentar ao livro A Rebelião
das Massas um “Prólogo para franceses” e um “Epílogo para 11 ingleses”.
Júlian Marias, aluno de Ortega e um de seus mais fiéis discípulos, lembra,
na introdução à obra citada, que “Se isolarmos os textos de seus contexto, a
intelecção não pode ser plena” (ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das
Massas. 1ª Ed. Vide, 2016. P 12). Ortega buscava, portanto, não apenas
falar a espanhóis, mas também falar-lhes com uma visão espanhola do
mundo. Kujawski atenta para o fato de que “em Ortega o fator espanhol e o
fator universal estão fundidos um no outro. Aos vinte e poucos anos ele
anunciou qual seria o seu programa de trabalho: a interpretação espanhola
do mundo” (KUJAWSKI, Gilberto de Melo. Ortega y Gasset: a aventura
da razão. São Paulo: Moderna, 1994. p 11). Qualquer incursão por seus
textos deve manter tal propósito em evidência.
Desde os fins do século XVIII, a nação espanhola vinha se separando mais
e mais da Europa moderna, entrando no século XX marcada pelo atraso e
desorientação, cujo resultado era a depressão do povo, afogado na falta de
perspectiva, sem esperanças no futuro e sem o entusiasmo que motiva e
cria. Com Afonso XII no trono e Cánovas del Castillo como chefe de
governo, a dinastia borbônica voltava a reinar no século XIX, algo que
pareceu indicar um período de restauração nacional – restauração essa que
não passou de um projeto jamais levado a cabo. Em 1898, a nação que em
outros tempos dominara o mundo com Carlos V e Felipe II éderrotada na
guerra contra os EUA; a Espanha, com isso, perdia o que lhe restava de
comércio colonial. O povo espanhol ficava perplexo e impotente diante do
próprio destino.
Em sua busca por compreender o conturbado século XX, Ortega y Gasset
deparou-se com um certo modo de pensar, herdado do século XIX. O
homem do século XX enxerga o passado pelas lentes dos intelectuais: suas
interpretações, crenças e estilos eram advindas do século XIX, e o passado
estava tão distante quanto estas interpretações permitiam. Afirma o filósofo:
“Falando com rigor, o século XIII e todos os demais pretéritos só existem
para nós dentro do século XIX, segundo ele os viu através de seu gênio.”
(ORTEGA Y GASSET, José. Nada Moderno y Muy Siglo XX. 1916, p 22).
Essa situação histórica se faz problemática para o século XX, pois a
cosmovisão adotada lhe veio por herança do século anterior numa forma de
pensar imposta. Os homens do século XIX buscavam o progresso e,
entusiasmados com essa ideia, creram estar no limiar dos tempos. Viam-se
como superiores, pertencentes a um século onde tudo estava consumado,
não a um período que, como todos os outros, deveria ser superado. O
homem de hoje vê mais longe justamente por “começar a existir, desde
logo, sobre certa quantia de passado amontoado” (ORTEGA Y GASSET,
José. A Rebelião das Massas. Edição: 1ª. Vide, 2016, p. 71). O passado não
deve estar tão distante. Um povo que se imagina na plenitude dos tempos
tende a enxergar no passado apenas tentativa, prólogo, preparação. Diz o
filósofo espanhol na obra supracitada:
“Os tempos de plenitude sempre se sentem como resultado de
muitas outras idades preparatórias, de outros tempos sem
plenitudes, inferiores a ele, sobre os quais vai montada essa hora
requintada. Vistos, da sua altura, aqueles períodos preparatórias
parecem como se neles tivesse vivido puro afã e ilusão não
realizada; tempos só de desejo insatisfeito, de precursores
ardentes, de “ainda não”, de penoso contraste entre uma clara
aspiração e a realidade que não lhe corresponde. É assim que o
século XIX vê a Idade Média.” (ORTEGA Y GASSET, José. A
Rebelião das Massas. Edição: 1ª. Vide, 2016, p. 53).
Ortega, com efeito, estava convencido de que a circunstância espanhola
estava enferma. Nos ensaios de El Espectador,o filósofo espanhol traz a
esperança de que o homem de sua época poderia superar a crise de
comodidade a que a ideia de progresso definitivo o havia levado. Cheio de
si, aquele homem não percebe que renega a cultura e o legado dos séculos
passados, inclusive o maior deles: o legado dos erros:
“Mas agora nos damos conta de que esses séculos tão satisfeitos,
tão perfeitos, estão mortos por dentro. A autêntica plenitude vital
não consiste na satisfação, na conquista, na chegada. Já dizia
Cervantes que “o caminho é sempre melhor que a pousada”. Um
tempo que satisfaz seu desejo, seu ideal, já não deseja mais nada,
sua fonte de desejo secou. Isto é, que a famosa plenitude é em
realidade uma conclusão” (ORTEGA Y GASSET, josé. A
Rebelião das Massas. Edição: 1ª, Vide, 2016 , p. 101)
Ortega procura saber se os conflitos existenciais de seu país afligem
também outros povos do mundo, afinal, a vida de todo homem está ligada à
circunstância em torno, e não pode ser diferente. A filosofia do século XX
tratava especialmente da vida humana e de seu cotidiano; mais do que
todos, Ortega levou esse tema a sério: no famosíssimo Meditações do
Quixote remete a detalhes da paisagem espanhola, ao modo de conversar
dos lavradores, ao que é modesto e íntimo ao homem. Assim, sem ignorar a
devida hierarquia que evita que o caos se instaure no cosmos, dirige sua
meditação ao que é próximo à pessoa, tratando das particularidades de cada
vida, dos pontos de vista, das circunstâncias e dramas vividos. A Espanha
havia se afastado das coisas realmente importantes, não sabendo mais a que
se ater; afogava-se num mar de vulgaridades e ódio ao mundo que lhe
envolvia, ódio à sua circunstância. Eis o diagnóstico de Ortega:
Suspeito que, por causas desconhecidas, a morada íntima dos
espanhóis tenha sido tomada faz tempo pelo ódio, que permanece
ali municiado, movendo guerra ao mundo. Ora, o ódio é um afeto
que conduz à aniquilação dos valores. Quando odiamos algo,
colocamos entre ele e o nosso espírito uma dura mola de aço que
impede a fusão, mesmo transitória, entre ambos. Só existe para
nós aquele ponto da coisa onde nossa mola de ódio se fixa; tudo o
mais ou não é conhecido, ou vamos esquecendo, fazendo-o alheio
a nós. A cada instante o objeto é menos, consome-se, perde valor.
Desse modo, converteu-se o universo para o espanhol em uma
coisa rígida, seca, sórdida e deserta (ORTEGA Y GASSET, José.
Meditações do Quixote, 1 edição. CEDET, 2019, p. 15).
O domínio do homem massa que recusava sua própria identidade, esse era o
contexto Europeu. Se fazia necessário renegar o ódio e abraçar o amor, diz
Ortega. Se o ódio cega e separa, o amor ilumina e une. Através do amor há
união às coisas, mesmo que essa união seja passageira. O amor absorve as
coisas e as funde conosco. Percebe-se então que a coisa amada não se funda
em si mesma, mas é parte de algo maior, algo que está ligado a ela e precisa
dela, afinal, “aquilo que dizemos amar se nos apresenta como algo
imprescindível. Imprescindível!” (ORTEGA Y GASSET, José. Meditações
do Quixote, 1 edição CEDET, 2019, p.16). O amor é capaz de criar conexão
sem a qual só resta o aniquilamento. O amor amplia a individualidade até
penetrarmos e abarcarmos o outro, criando um vínculo entre o amador e a
coisa amada, seja esta uma mulher, a ciência ou a pátria. O amor, amor real,
pela pátria e suas circunstâncias, eis a salvação da Espanha: “Nós,
espanhóis, oferecemos à vida um coração blindado de rancor, e as coisas,
ricocheteando nele, são despedidas cruelmente. Há ao nosso redor, faz
séculos, uma incessante e progressiva demolição dos valores” (ORTEGA Y
GASSET, José. Meditações do Quixote, 1 edição CEDET, 2019, p.17).
Cada circunstância integra-se em outra mais vasta e assim por diante. Uma
vez que a Espanha está inserida na circunstância europeia, se faz necessário,
para compreender a Espanha, compreender e amar primeiro a Europa. E
quando Ortega fala Europa, não fala dos monumentos, da boa polícia,
comércio ou indústria. Fala, antes, daquilo que possibilita tudo isso, que
torna a civilização europeia possível: a ciência. As demais coisas a Europa
tem em comum com o resto do mundo, mas a ciência, não. Não se pode
compreender a verdade da Espanha sem adentrar na ciência europeia. A
circunstância da Espanha está inserida em outra maior, a ciência da Europa.
Europeizar a Espanha seria, então, fundi-la com a visão universal das
coisas: a ciência européia.
Ortega atenta para o fato de que converter a Espanha à visão científica da
Europa não trata-se de renúncia ao que é espanhol, pelo contrário, somente
voltando seus esforços para a circunstância européia a Espanha poderá ter
um encontro consigo mesma e ver sua verdadeira identidade. A imersão na
ciência européia, ao mesmo tempo, europeizava a Espanha e universalizava
o espanhol; ou ainda, “espanholizava o universal”. A Espanha é, sob pena
de perder sua identidade, uma possibilidade européia. Saber a que se ater
sempre foi ponto chave da filosofia de Ortega, ater-se à circunstância
européia é ater-se à substâncias humanas de significado universal, como
economia, mecânica, democracia e valores transcendentes. Isso é, para
Ortega, ser espanhol. Só é possível compreender minha circunstância
particular integrando-a em outras circunstâncias e vice-versa. Os aparatos
filosóficos de seu tempo não eram suficientes para tal empreitada, afinal, o
que estava em jogo era a salvação da Espanha. Assim coloca José Mauricio
de Carvalho:
Como a crise de civilização atingia costumes sociais e a
organização política dos povos, o novo princípio precisava, além
de considerar os problemas ontognoseológicos, solucionar as
dificuldades éticas e políticas da sociedade europeia. Eram esses
os desafios que Ortega y Gasset consideravadevessem ser
enfrentados pela filosofia do seu tempo. Não eram poucos nem
simples os problemas à espera de solução (CARVALHO, José
Maurício de. Ortega y Gasset: A vida como realidade metafísica.
Trans/Form/Ação vol.38 no.1 Marília Jan./Apr. 2015. Disponível
em: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-31732015000100010 ).
Adentrar na história da Europa é adentrar da verdade da Espanha, cito
Ortega: “O viver se faz sempre desde ou sobre certos pressupostos, que são
como o solo em que nos apoiamos para viver ou do qual partimos. E isso
em todas as ordens – em ciência como em moral e política, como em arte”
(ORTEGA Y GASSET, José. O que é filosofia? Edição: 1ª. Vide, 2016, p.
49).
E mais uma vez: “Cada geração parte de supostos mais ou menos distintos,
quer dizer que o sistema de verdades e o dos valores estéticos, morais,
políticos, religiosos, tem inexoravelmente uma dimensão histórica”
(ORTEGA Y GASSET, José. O que é filosofia? Edição: 1ª. Vide, 2016, p.
49).
A verdade é histórica, eis o ponto fundamental aqui apresentado. A crise
espanhola provoca naquele país um retorno para dentro de si, a Espanha
“ensimesma-se”, buscando o elo perdido com suas raízes. A elite intelectual
espanhola, amargurada com a falsa restauração, passa a pensar o país como
problema. Disto surgem indagações como “o que é a Espanha?” e “Qual o
seu lugar no mundo?”. Surge então, em meio às trevas e desilusão, um
grupo de escritores de enorme talento, que ficou conhecido como Geração
de 98. O grupo encara a questão da Espanha como um problema, buscando
desenterrar suas riquezas culturais. Alguns dos mais importantes nomes da
Geração de 98 foram Ganivet, Unamuno, Maeztu, Valle-Inclán, Pio Baroja,
Azorín e os irmãos Machado, Antônio e Manuel. Sobre eles, assim escreveu
Kujawski: “A Geração de 98 imerge na Espanha profunda, acusando todo o
vigor e toda a riqueza da sua personalidade. Seus escritores tomam posse da
Espanha, física e espiritualmente” (KUJAWSKI, Gilberto de Mello. Ortega
y Gasset: a aventura da razão. São Paulo: Moderna, 1994. p.24). Ortega y
Gasset pertence à geração seguinte, herdando da geração de intelectuais que
o antecederam – especialmente de Miguel de Unamuno, poeta e novelista
que, mais tarde, romperia com Ortega por insistir na ligação da Espanha ao
africanismo – a preocupação dramática com a verdade e o destino da nação
espanhola.
Em suas primeiras obras Ortega y Gasset aborda essas questões e propõe a
vida como realidade radical, ou seja, fundamental. Em Meditaciones del
Quijote (1914) e El espectador (1916- 1934), é apresentado o princípio
metafísico que servirá de guia para a investigação filosófica de sua geração.
Mas a densidade teórica da relação do eu com as circunstâncias só veio com
as obras Qué es filosofía? (1929), Unas lecciones de metafísica (1933) e em
La rebelión de las masas (1930), assim como no ensaio Pidiendo un Goethe
desde dentro (1932).
É de suma importância ressaltar que Ortega não está propondo uma
Espanha pautada no passado ou dependente do ponto de vista de outro
tempo. A noção de circunstância chama atenção para o sujeito concreto —
sujeito este que se encontra no aqui e no agora e, ao estar mergulhado no
presente, compreendendo sua história, encontra-se aberto para o futuro e
vive o próprio tempo. O mundo social no qual nascemos é elemento
decisivo para o agir vital. A meta é expandir a visão espanhola para que ela
possa alcançar as formas de cultura presentes na Europa.
O Tema de Nosso Tempo.
O ponto central da filosofia orteguiana baseia-se numa síntese da oposição
Realismo/Idealismo e suas variantes, debate que tem se prolongado ao
longo de toda a história da filosofia. O horizonte de uma filosofia é
determinado pelo nível de seu encontro com a realidade. A filosofia antiga
teve esse encontro a nível ontológico (Platão, Aristóteles). A escolástica
medieval, a nível teológico (Santo Agostinho, Santo Anselmo, Santo
Tomás). Ortega y Gasset inova, trazendo esse encontro para o nível vital.
Em seu decisivo ensaio “El tema de nuestro tiempo”, desenvolve a idéia de
razão vital, o tema central de sua filosofia, onde critica a frieza do realismo,
que exclui o mundo da mente humana, dando independência àquele; mas
também a ingenuidade do idealismo, que supõe ser a mente humana
criadora da realidade. Como já foi dito aqui, Ortega, em seus anos em
Marburg, sofreu fortes influências neo-kantianas, a maior delas sendo a
imersão no idealismo. Tais influências foram abandonadas não muito tempo
depois, com a superação de todo subjetivismo e idealismo em suas obras.
Em suas Meditações do Quixote, escreve: “Muito longe nos sentimos hoje
do dogma hegeliano, que faz do pensamento a substância última de toda a
realidade. É demasiado amplo o mundo, e demasiado rico, para que o
pensamento assuma a responsabilidade de quanto nele ocorra.” (ORTEGA
Y GASSET, José. Meditações do Quixote,1º edição, CEDET, 2019 , p. 84.).
Isto, porém, sem abraçar as teses realistas que, herdadas dos gregos,
distanciam o objeto do indivíduo ao super estimá-lo:
Realistas foram os gregos – mas realistas das coisas recordadas. A
reminiscência, ao distanciar os objetos, os purifica e idealiza,
tirando-lhes sobretudo essa nota de aspereza que possui mesmo o
mais doce e brando deles quando atua efetivamente sobre nossos
sentidos (ORTEGA Y GASSET, José. Meditações do Quixote, 1º
edição, CEDET, 2019. p. 75.).
Ambas as posições, realismo e idealismo, segundo Ortega, não condizem
com a verdade e devem ser superadas. Temos de um lado, confiança cega
na realidade, de outro, entrega incondicional às faculdades da mente. E
nisso está a missão de nosso tempo, buscar uma filosofia que não caia no
engodo do realismo e na atração do idealismo. Se faz necessária uma
síntese das duas posições, que em certa medida estão corretas, mas são
insuficientes para o pensador de hoje. O eixo vital, razão e vida, estão
separados desde Sócrates. Essa separação foi herdada pela Europa, que não
só deu continuidade ao erro, opondo razão e espontaneidade, como chegou
ao ponto de classificá-los como polos totalmente opostos. O realismo, de
um lado, traz a confiança cega na realidade: a compreensão realista herdada
da tradição grega e medieval entende o real independente do sujeito
pensante, mas em Ortega, o eu está de tal modo envolvido com a realidade
que esta não existe sem aquele e vice e versa. O racionalismo, outra forma
de realismo, erra ao crer que é suficiente a convicção lógica, descartando a
convicção vital e assim por diante. De outro lado, o idealismo entrega o
mundo ao domínio do eu, da subjetividade.
A missão do filósofo espanhol é mostrar que vida e razão não devem seguir
em polos antagônicos; razão, arte, ética e cultura acontecem dentro da
esfera vital do indivíduo, ou seja, tais temas devem existir em relação à vida
e servir a ela. As coisas e o mundo, as Circunstâncias e o Eu, devem ser
fundidas numa única esfera: a esfera da vida. A missão de nosso tempo, diz
Ortega, tem seu centro na vida humana como realidade radical. É o superar
das amarras do realismo e do idealismo, ao qual deu ele o nome de
raciovitalismo. O grande problema a ser enfrentado pela filosofia do seu
tempo era uma nova forma de opor a subjetividade moderna à perspectiva
objetivista dos gregos. “[...] O tema de nosso tempo e a missão das gerações
atuais consiste em fazer um ensaio vigoroso para ordenar o mundo do ponto
de vista da vida” (O Tema de Nosso Tempo, Capítulo VII). Não há, portanto,
oposição entre razão e vida, só não se pode conceber a razão como a
modernidade a concebeu, como razão físico-matemática. A razão pura deve
ser substituída pela razão vital.
Ao percorrer pelos escritos orteguianos desde Meditaciones del Quijote
(1914), pode-se notar que o problema da vida como preocupação central de
nosso tempo perpassa por toda a extensa obra. No capítulo VII d’O Tema de
Nosso Tempo, Ortega afirma que é este o desafio de sua geração: “[...]
consagrar a vida, que até agora era só um fato nulo e um acaso do cosmo,
fazendo dela um princípio e um direito”.Mais adiante o filósofo discorre
sobre como a vida havia sido sujeitada às mais diversas áreas, estando a
serviço da economia, da arte, da moral, da religião etc. Porém, tudo isso
precisa mudar de foco, a vida deve ser tomada como fundamento de todas
as áreas e não o contrário. Esse deve ser o princípio da realidade buscado
pela filosofia: a vida de volta ao centro da investigação filosófica. Para
Ortega, a vida humana é a realidade básica, radical, onde todas as realidades
acontecem. A vida está no centro das circunstâncias e é onde o fluxo
dinâmico dos acontecimentos e o eu convergem. É no campo vital de cada
indivíduo que o universo torna-se inteligível e perceptível. A vida é razão
vital, ou seja, o órgão máximo de compreensão humana, e o ponto de vista
particular é a parte da realidade que nos cabe perceber. Sendo dinâmica a
realidade, como um rio que corre sem parar, a vida não pode ser estática. O
homem não é um ser feito, acabado, mas sempre um ser por fazer. Viver é
um acontecendo, jamais um acontecido. Ou seja, a vida é o que eu sou e o
que me acontece, em síntese: agir e sofrer. Nascemos num universo sob
determinadas circunstâncias que não escolhemos, mas aquilo que
escolhemos fazer com o que é nos é dado, é o que realmente importa.
A obra de Ortega y Gasset, apesar de ter exercido grande influência sobre a
filosofia espanhola, também exerceu uma notável influência na filosofia
alemã (Heidegger), e em determinados pensadores existencialistas,
principalmente em sua concepção de autenticidade e falsidade: a vida
autêntica implica conhecer e assumir sua circunstância de forma que viver
seja agir no mundo e sobre o mundo. Ortega declara também o caráter
determinadamente livre do homem no mundo, “somos livres à força” ou
“obrigados a ser livres” como diria Sartre. Em suma, a filosofia de Ortega y
Gasset antecipou muitas teses filosóficas posteriores e criou, por assim
dizer, toda uma escola filosófica que re-significou conceitos antigos,
trazendo uma nova forma de pensar o homem enquanto tal, através da tese
central do pensamento orteguiano: a ideia da Razão Vital.
O raciovitalismo corrige a visão racionalista de Sócrates e da filosofia grega
em geral, filosofia sobre a qual se erguerá todo o Ocidente e o continente
europeu. Ortega, de forma bem pessoal, inverte a perspectiva racionalista de
filósofos como Spinoza, Leibniz e Descartes – verdadeiros criadores da
modernidade – ao fazer da vida princípio absoluto da razão. Fortemente
aproximado ao pensamento de Dilthey, Ortega reafirma a primazia da vida
sobre a razão e exalta o esplendoroso milagre do viver. A razão como serva
da vida e não o contrário, é esse o centro da filosofia orteguiana, tema que
perpassa por toda sua obra e mais especificamente, em O Tema de Nosso
Tempo (1923), onde o problema está posto de forma mais sistemática.
A questão toda é saber se a Razão Vital é o tema de nosso tempo, tal como
o foi do tempo em que viveu Ortega. Essa questão fica para os leitores desta
obra. Fato é: o filósofo espanhol inaugurou toda uma nova forma de fazer
filosofia que já está aí. Qualquer um pode chegar-se à sombra da grande
árvore plantada por Ortega e deliciar-se com os frutos de uma filosofia que
visa colocar a espontaneidade da vida de volta ao centro das investigações.
Michael Amorim
São Luís do Maranhão, MA, novembro de 2022.
Aviso ao Leitor
A primeira parte deste livro contém a versão ligeiramente ampliada da
palestra universitária com a qual abri meu curso habitual no ano letivo de
1921-22.
Para escrevê-lo agora, fiz uso das notas meticulosas e muito corretas
tomadas em sala de aula por um de meus ouvintes, meu querido amigo
Fernando Garcia Vela.
Ao oferecer essa palestra hoje para um público mais diversificado do que
aquele que freqüenta a Universidade, achei necessário desenvolver um
pouco mais alguns pensamentos que poderiam ser menos acessíveis aos
leitores que não estão familiarizados com o estudo filosófico. É a isto que
se resume o prolongamento dado ao texto original.
Seguem vários apêndices que insistem em questões mais concretas, todas
elas relacionadas à doutrina apresentada na aula. Destes, estou
particularmente interessado naquele que apresenta brevemente uma
interpretação filosófica do significado geral latente na teoria física de
Einstein. Creio que, pela primeira vez, um certo caráter ideológico é
enfatizado aqui, inerente a tal teoria e que contradiz as interpretações que
até agora foram dadas a ela.
1923
Nota para a Terceira Edição
Esta terceira edição foi revisada. A revisão consistiu em substituir três ou
quatro palavras, em acrescentar mais algumas, em pendurar algumas notas
de rodapé em algumas páginas, mas, sobretudo, em sublinhar, por meio de
itálico, algumas linhas do texto original.
1924
Capítulo I — A Idéia das Gerações
O que é mais importante para um sistema científico é que ele seja
verdadeiro. Mas a exposição de um sistema científico lhe impõe uma nova
necessidade: além de verdadeiro, é preciso que seja compreendido. Não
estou me referindo aqui às dificuldades que o pensamento abstrato,
especialmente se ele inova, apresenta à mente, mas à compreensão de sua
tendência profunda, de sua intenção ideológica; pode-se dizer, de sua
fisionomia.
Nosso pensamento pretende ser verdadeiro; isto é, refletir com docilidade o
que são as coisas. Mas seria utópico, e portanto falso, supor que, para
alcançar sua pretensão, o pensamento é governado exclusivamente pelas
coisas, atendendo apenas ao seu contexto. Se o filósofo estivesse sozinho
diante dos objetos, a filosofia seria sempre uma filosofia primitiva. Todavia,
ao lado das coisas o pesquisador encontra o pensamento dos outros, todo o
passado das meditações humanas, inúmeros caminhos de explorações
anteriores, traços de rotas experimentadas e testadas através da eterna selva
problemática que retém sua virgindade, apesar de sua repetida violação.
Todos os ensaios filosóficos se preocupam assim com duas instâncias: o que
são as coisas e o que foi pensado sobre elas. Tal colaboração das meditações
anteriores serve, no mínimo, para evitar qualquer erro já cometido e dá à
sucessão de sistemas um caráter progressivo.
Entretanto, o pensamento de uma época pode adotar duas atitudes opostas
ao que foi pensado em outras épocas — especialmente em relação ao
passado imediato, que é sempre o mais eficiente, e traz dentro de si,
encapsulado, todo o passado. Há, de fato, épocas em que o pensamento se
vê a si mesmo como um desenvolvimento de idéias anteriormente
germinadas, e épocas que sentem o passado imediato como algo que precisa
urgentemente ser reformado desde suas raízes. As primeiras são épocas de
filosofia pacífica; as segundas são épocas de filosofia beligerante, que tem
como objetivo destruir o passado, superando-o radicalmente. Nossa época é
do último tipo, se por "nossa época" não se entende aquela que está
terminando agora, mas aquela que agora começa.
Quando o pensamento é forçado a adotar uma atitude beligerante contra o
passado imediato, a comunidade intelectual é dividida em dois grupos. Por
um lado, a grande maioria daqueles que insistem na ideologia estabelecida;
por outro, uma pequena minoria de corações vanguardistas, de almas
alertas, que vislumbram ao longe áreas de pele ainda intacta. Essa minoria
vive condenada a ser mal compreendida: os gestos provocados nela pela
visão das novas paisagens não podem ser corretamente interpretados pela
massa da retaguarda que avança atrás dela e ainda não atingiu a altitude a
partir da qual a terra incógnita pode ser vislumbrada. Assim, a minoria
avançada vive em uma situação de perigo entre o novo território que tem
que conquistar e a vulgaridade retrógrada que assedia por detrás dela.
Enquanto constrói o novo, ela tem que se defender contra o velho,
empunhando ao mesmo tempo, tal como os reconstrutores de Jerusalém, a
enxada e o mastro.
Tal discrepância é mais profunda e essencial do que muitas vezes é
percebida, e tentarei esclarecer em que sentido.
Através da história, tentamos entenderas variações que ocorrem no espírito
humano. Para isso, precisamos primeiro perceber que essas variações não
são de uma mesma ordem. Certos fenômenos históricos dependem de
outros, mais profundos, que, por sua vez, são independentes daqueles. A
idéia de que tudo influencia tudo, de que tudo depende de tudo, é uma vaga
reflexão mística, que deve ser repugnante para qualquer um que deseje ver
com clareza. Não; o corpo da realidade histórica possui uma anatomia
perfeitamente hierárquica, uma ordem de subordinação, de dependência
entre os vários tipos de fatos. Assim, as transformações de uma ordem
industrial ou política não são muito profundas; elas dependem das idéias,
das preferências morais e estéticas dos contemporâneos. Mas, por sua vez,
ideologia, gosto e moralidade nada mais são do que consequências ou
especificações da sensação radical perante a vida, de como a existência se
sente em sua integridade indiferenciada. Esta que chamaremos de
"sensibilidade vital" é o fenômeno primário da história e a primeira coisa
que teríamos que definir para entender uma época.
No entanto, quando a variação de sensibilidade ocorre apenas em algum
indivíduo, ela não tem significado histórico. Duas tendências inclinaram-se
a disputar a área da filosofia da história, que, na minha opinião, e sem que
eu pretenda agora desenvolver a questão, são igualmente errôneas. Tem
havido uma interpretação coletivista e outra individualista da realidade
histórica. Para a primeira, o processo substantivo da história é o trabalho de
multidões difusas; para a segunda, os agentes históricos são exclusivamente
indivíduos. O caráter ativo e criativo da personalidade é, de fato, muito
evidente para que a imagem coletivista da história seja aceita. As massas
humanas são receptivas; limitam-se à oposição de seu favor ou à resistência
aos homens de vida pessoal e iniciadora. Por outro lado, o indivíduo
separado de toda convivência é uma abstração. A vida histórica é a
coexistência. A vida da individualidade egrégia consiste precisamente em
uma ação omnímoda sobre a massa. Portanto, é impossível separar os
"heróis" das massas. Essa dualidade é essencial para o processo histórico. A
humanidade, em todos os estágios de sua evolução, sempre foi uma
estrutura funcional, na qual os homens mais energéticos — qualquer que
seja a forma dessa energia — têm operado sobre as massas, dando-lhes uma
certa configuração. Isso implica em uma certa comunidade básica entre os
indivíduos superiores e a multidão vulgar. Um indivíduo absolutamente
heterogêneo com as massas não teria nenhum efeito sobre elas; seu trabalho
resvalaria no corpo social da época sem despertar a mínima reação nele, e
portanto sem ser inserido no processo histórico geral. [1]Em certa medida,
isso já aconteceu mais do que algumas vezes, e a história tem que registrar a
biografia desses homens "extravagantes" à margem de seu texto principal.
Como todas as outras disciplinas biológicas, a história tem um
departamento dedicado aos monstros: uma teratologia.
As variações da sensibilidade vital, que são decisivas na história,
apresentam-se sob a forma de uma geração. Uma geração não é um
punhado de homens notáveis, nem simplesmente uma massa; é como todo
um novo corpo social, com sua minoria seleta e sua multidão, que foi
lançado no reino da existência com uma determinada trajetória vital. A
geração, o compromisso dinâmico entre massa e indivíduo, é o conceito
mais importante da história e, por assim dizer, a dobradiça sobre a qual esta
executa seus movimentos. [2]
Uma geração é uma variedade humana, no sentido rigoroso dado a esse
termo pelos naturalistas. Os seus membros vêm ao mundo dotados de certos
caracteres típicos, que lhes conferem uma fisionomia comum, distinguindo-
os da geração anterior. Dentro dessa estrutura de identidade eles podem ser
indivíduos dos mais diversos temperamentos, a tal ponto que, tendo que
viver uns juntos aos outros, como contemporâneos, às vezes se sentem
antagonistas. Porém, sob a oposição mais violenta dos pró e dos contra, o
olho descobre facilmente uma filigrana comum. Ambos são homens de seu
tempo, e por mais diferentes que sejam, são ainda muito parecidos. O
reacionário e o revolucionário do século XIX são muito mais parecidos um
com o outro do que com qualquer um de nós. E o fato é que, brancos ou
negros, pertencem à mesma espécie, e na gente, brancos ou negros, inicia-se
uma espécie diferente.
Mais importante do que os antagonismos dos pró e dos contra, dentro de
uma geração, é a distância permanente entre os indivíduos seletos e os
vulgares. Diante das doutrinas usuais que silenciam ou negam essa
diferença óbvia na hierarquia histórica entre um homem e outro, alguém se
sentiria justamente compelido a exagerar. No entanto, essas mesmas
diferenças de estatura significam que aos indivíduos é atribuído o mesmo
ponto de partida, uma linha comum, acima da qual alguns sobem mais,
outros menos, e que representa o mesmo papel que o nível do mar na
topografia. E, de fato, cada geração representa uma certa altitude vital, a
partir da qual a existência é sentida de uma certa maneira. Se tomarmos a
evolução de um povo como um todo, cada uma de suas gerações nos
aparece como um momento de sua vitalidade, como uma pulsação de sua
potência histórica. E cada pulsação tem uma fisionomia peculiar e única; é
uma batida impermutável na série do pulso, assim como é cada nota no
desenvolvimento de uma melodia. Do mesmo modo, podemos imaginar
cada geração como uma espécie de projétil biológico[1], lançado ao espaço
em um momento preciso, com uma violência e uma direção específicas.
Tanto seus elementos mais valiosos quanto seus elementos mais vulgares
participam de ambas.
Contudo, em tudo isso, é claro, estamos apenas construindo figuras ou
pintando ilustrações que servem para enfatizar o fato verdadeiramente
positivo, onde a idéia de geração confirma sua realidade. Trata-se
simplesmente do fato de que as gerações nascem umas das outras, de modo
que a nova já se encontra com as formas dadas à existência pela anterior.
Para cada geração, viver é, portanto, uma tarefa bidimensional, uma das
quais consiste em receber o que foi vivido — idéias, valores, instituições,
etc. — pela anterior; a outra consiste em deixar fluir sua própria
espontaneidade. Sua atitude não pode ser a mesma em relação ao que lhe é
próprio e ao que recebeu. O que foi feito por outros, executado, perfeito, no
sentido de completado, chega até nós com uma unção particular; aparece
como consagrado, e como não fomos nós mesmos que o resolvemos,
tendemos a acreditar que não foi obra de ninguém, mas que é a própria
realidade. Chega um momento em que as idéias de nossos professores não
nos parecem ser opiniões de determinados homens, mas a própria verdade,
que descendeu anonimamente sobre a terra. Por outro lado, nossa
sensibilidade espontânea, o que pensamos e sentimos à nossa maneira
peculiar, nunca se apresenta para nós como algo definitivo, completo e
rígido, mas como um fluxo íntimo de matéria menos resistente. Tal
desvantagem é compensada pela maior rapidez e adaptação ao nosso
caráter, que o espontâneo sempre têm.
O espírito de cada geração depende da equação que esses dois ingredientes
formam, da atitude que a maioria de seus indivíduos adota em relação a
cada um deles. Cederá ao que recebeu, ignorando as vozes íntimas do
espontâneo? Será fiel a elas e intolerante com a autoridade do passado? Já
houve gerações que sentiram uma homogeneidade suficiente entre o que foi
recebido e o que é próprio. Aí se vive em épocas cumulativas. Em outros
momentos, sentiram uma profunda heterogeneidade entre os dois
elementos, e houve épocas de eliminação e polêmicas, gerações de
combate. Nas primeiras, os novos jovens, solidários com os velhos, estão
subordinados a eles; na política, na ciência, nas artes, os velhos continuam a
liderar. Tais são os tempos dos velhos. Nestes últimos, já que não se trata de
preservar e acumular, mas de descartar e substituir, os velhos são varridos
pelos jovens. Tais sãotempos de juventude, épocas de iniciação e de
beligerância construtiva.
Esse ritmo de épocas da senescência e épocas da juventude é um fenômeno
tão evidente ao longo da história que é surpreendente que não seja notado
por todos. A razão dessa falta de atenção é o fato de ainda não ter sido feita
nenhuma tentativa formal de se estabelecer uma nova disciplina científica,
que poderia ser chamada de meta-história e que seria para a história
concreta o que é a fisiologia em relação à clínica. Uma das mais curiosas
investigações meta-históricas consistiria na descoberta dos grandes ritmos
históricos. Pois existem outros não menos óbvios e fundamentais do que os
acima mencionados, por exemplo, o ritmo sexual. Há, de fato, um balanço
de pêndulo na história, de épocas sujeitas à influência predominante do
masculino para épocas subjugadas pela influência feminina. Muitas
instituições, costumes, idéias e mitos até então inexplicáveis tornam-se
surpreendentemente claros quando se percebe que certas épocas foram
governadas e moldadas pela supremacia da mulher. Mas agora não é o
momento certo para entrar nesta questão. [3]
Capítulo II — A Previsão do Futuro
Se cada geração consiste de uma sensibilidade peculiar, de um repertório
orgânico de propensões íntimas, isso significa que cada geração tem sua
própria vocação, sua própria missão histórica. Há ainda um grande
imperativo para desenvolver estes germes internos, para informar à
existência em torno dela, de acordo com o módulo de sua espontaneidade.
Mas acontece que gerações, como indivíduos, às vezes falham em sua
vocação e deixam sua missão por cumprir. Há, de fato, gerações que são
infiéis a si mesmas, que decepcionam a intenção histórica nelas colocada.
Em vez de enfrentar resolutamente a tarefa definida para elas, surdas aos
apelos urgentes de sua vocação, elas preferem sonhar com idéias,
instituições, prazeres criados pelas gerações anteriores, e que carecem de
afinidade com seu temperamento. É claro que tal deserção do posto
histórico não é cometida com impunidade. A geração delinqüente rasteja
através da existência em perpétuo desacordo consigo mesma, vitalmente
sem sucesso.
E acredito que em toda a Europa, mas especialmente na Espanha, a geração
atual é uma dessas gerações desertoras. Raramente os homens viveram tão
pouco claramente consigo mesmos, e talvez nunca a humanidade tenha
suportado tão mansamente formas que não estavam em sintonia com ela,
sobreviventes de outras gerações e que não correspondem ao seu batimento
cardíaco íntimo. Daí o início da apatia, tão característica de nosso tempo,
por exemplo, na política e na arte. Nossas instituições, assim como nosso
entretenimento, são os resíduos estagnados de outra época. Não fomos
capazes de romper resolutamente com essas concreções distorcidas do
passado, nem temos a possibilidade de nos adaptar a elas.
Devido a tais circunstâncias, um sistema de pensamento como o que venho
expondo há anos nesta cátedra não pode ser facilmente compreendido em
sua intenção ideológica, em sua fisionomia interior. Ele aspira, talvez sem
sucesso, a cumprir o imperativo histórico de nossa geração. No entanto,
nossa geração parece radicalmente obstinada em desconsiderar as sugestões
de nosso destino comum. Cheguei forçosamente à convicção de que mesmo
os melhores, com pouquíssimas exceções, não suspeitam sequer que em
nosso tempo a sensibilidade ocidental está fazendo uma mudança, pelo
menos em um quadrante. É por isso que considero necessário antecipar
nesta primeira lição algo que, em minha opinião, constitui o tema essencial
de nosso tempo.
Como é possível que seja tão completamente ignorada? Quando, ao discutir
política com algum coetâneo[2] "avançado", "radical", "progressista" — para
pôr no melhor dos casos —, surge a inevitável discordância, nosso
interlocutor pensa que tal discordância em assuntos de governo e Estado é
propriamente uma divergência política. Porém, ele está equivocado; nossa
discordância política é uma coisa muito secundária, e seria totalmente sem
importância se não servisse como uma manifestação superficial de uma
dissensão muito mais profunda. Não estamos tão separados na política
como acontece com os princípios próprios do pensar e do sentir. Mais que
as doutrinas do direito constitucional, diferentes biologia, física, filosofia da
história, ética e lógica nos separam. A posição política desses
contemporâneos é uma conseqüência de certas idéias que juntos recebemos
de nossos antigos mestres, idéias que estavam em plena força por volta de
1890. Por que eles se contentaram em insistir nas idéias que receberam,
apesar de repetidamente observarem que elas não coincidem com sua
espontaneidade? Eles preferem servir sem fé sob bandeiras desbotadas, em
vez de fazer o doloroso esforço de revisar os princípios que receberam,
alinhando-os com seus próprios sentimentos íntimos. Não faz diferença se
são liberais ou reacionários; em ambos os casos, são retardatários. O destino
de nossa geração não é ser liberal ou reacionário, mas precisamente
desinteressar-se por este dilema antiquado.
É inadmissível que pessoas que são obrigadas por suas condições
intelectuais relevantes a assumir a responsabilidade por nosso tempo vivam,
como as vulgares, à deriva, atentas às vicissitudes superficiais de cada
momento, sem buscar uma orientação rigorosa e ampla nos cursos da
história. [4]Porque a história não é um evento puramente aleatório, que não
pode ser previsto. Certamente não é possível prever os eventos singulares
que acontecerão amanhã; mas também não seria de real interesse prevê-los.
Por outro lado, é perfeitamente possível prever a direção típica do futuro
próximo, antecipar o perfil geral da próxima época. Em outras palavras: mil
eventos imprevisíveis ocorrem em uma época; mas não se trata
propriamente de um acaso, pois a época tem uma estrutura fixa e
inconfundível. É o mesmo que com os destinos individuais: ninguém sabe o
que acontecerá consigo amanhã, mas sabe qual será seu caráter, seus
apetites, suas energias e, portanto, qual será o estilo de suas reações diante
desses acidentes. Toda vida tem uma órbita normal pré-estabelecida, ao
longo da qual o acaso, sem fundamentalmente distorcê-la, coloca suas
sinuosidades e indentações.
A profecia tem um lugar na história. Mais ainda: a história é somente um
trabalho científico na medida em que a profecia é possível. Quando
Schlegel disse que o historiador é um profeta às avessas, ele expressou uma
idéia tão profunda quanto exata.
A interpretação da vida feita pelo homem antigo, estritamente falando,
anula a história. Para ele, a existência consistia no acontecer das coisas ao
seu redor. Os eventos históricos eram contingências extrínsecas que se
sucediam a um indivíduo ou a um povo. A produção de uma obra de gênio,
crises financeiras, mudanças e guerras eram todos fenômenos do mesmo
tipo, que podemos simbolizar através da telha que atinge um transeunte.
Assim, o processo histórico é uma série de vicissitudes sem lei e sem
sentido. Portanto, a ciência histórica não é possível, pois a ciência só é
possível onde há uma lei que pode ser descoberta, algo que faz sentido e
que, por fazer sentido, pode ser compreendido.
Contudo, a vida não é um processo extrínseco onde as contingências são
simplesmente acrescentadas. A vida é uma série de eventos regidos por lei.
Quando semeamos a semente de uma árvore, prevemos todo o curso normal
de sua existência. Não podemos prever se o relâmpago virá ou não para
cortá-la com sua lâmina ardente que pende do flanco da nuvem; mas
sabemos que a semente de cerejeira não terá folhagem de choupo. Do
mesmo modo, o povo romano é um certo repertório de tendências vitais que
se desdobram no tempo, passo a passo. Em cada etapa desse
desenvolvimento, a etapa subseqüente é pré-formada. A vida humana é um
processo interno no qual os fatos essenciais não caem em cima do sujeito —
indivíduo ou povo — a partir de fora, mas emergem dele, como da semente,
do fruto e da flor. É realmente por acaso que no primeiro século antesde
Jesus Cristo viveu um homem do gênio singular de César. Todavia, aquilo
que César fez brilhantemente com seu gênio único, dez ou doze outros
homens, cujos nomes conhecemos, teriam feito sem tanto brilhantismo e
plenitude. Um romano do século IX antes de Jesus Cristo não poderia
prever o destino unipessoal que era a vida de César, mas ele poderia
profetizar que o primeiro século antes de Jesus Cristo seria uma era
"cesarista". Com um nome ou outro, o "cesarismo" era uma forma genérica
de vida pública que estava em preparação desde a época dos Gracchi. Cato
profetizou claramente os destinos desse futuro imediato[3].
Uma vez que a existência humana é propriamente vida, ou seja, um
processo interno no qual uma lei de desenvolvimento é cumprida, a ciência
histórica é possível. Em última análise, a ciência não é outra coisa senão o
esforço que fazemos para entender algo, e entendemos historicamente uma
situação quando a vemos como necessariamente decorrente de uma situação
anterior. Com que tipo de necessidade — física, matemática, lógica?
Nenhuma delas: com uma necessidade coordenada com elas, mas
específica: a necessidade psicológica. A vida humana é eminentemente
psicológica. Quando nos dizem que Peter, um homem íntegro, matou seu
vizinho, e depois descobrimos que o vizinho havia desonrado a filha de
Peter, já entendemos suficientemente esse ato homicida. O entendimento
tem consistido no fato de que vemos um sair do outro, a vingança da
desonra, em uma trajetória inequívoca e com provas iguais àquela garantida
pela verdadeira matemática. Entretanto, com as mesmas evidências,
conhecendo a desonra da filha, podemos prever antes do crime que Pedro
mataria seu vizinho. Neste caso, vemos muito claramente como, ao
profetizar o futuro, fazemos uso da mesma operação intelectual que na
compreensão do passado. Em ambas as direções, para trás ou para frente,
não fazemos nada além de reconhecer a mesma curva psicológica óbvia, tal
como ao encontrar um pedaço de aço conseguimos completar toda a sua
forma sem hesitar. Creio, portanto, que a expressão precedente, segundo a
qual a ciência histórica só é possível na medida em que a profecia é
possível, não parece ser aventureira. Quando o sentido histórico é
aperfeiçoado, a capacidade de prever também aumenta[4]. [5]
Mas, deixando de lado todas as questões secundárias que a exposição clara
desse pensamento levantaria, vamos nos reduzir à possibilidade de prever o
futuro imediato. Como proceder em tal empreendimento?
É evidente que o próximo futuro nasce de nós e consiste no prolongamento
do que é essencial e não contingente, normal e não aleatório em nós.
Estritamente falando, então, seria suficiente se descêssemos ao nosso
próprio coração e, eliminando o que quer que seja afeto individual,
predileção privada, preconceito ou desejo, estendêssemos as linhas de
nossos apetites e tendências essenciais até vê-los convergir para um tipo de
vida. Mas percebo que tal operação, aparentemente tão simples, não é assim
para aqueles que não estão acostumados com os rigores e precisões da
análise psicológica. Nada é menos comum, na verdade, do que essa
reviravolta da mente para dentro de si mesma. O homem foi formado na
luta com o exterior, e é fácil para ele discernir apenas as coisas que estão
fora. Quando ele olha para dentro, sua visão fica embaçada e ele sofre de
vertigens.[6]
Todavia, creio que existe outro procedimento objetivo para descobrir os
sintomas do futuro no presente.
Já disse antes que o corpo dos tempos tem uma anatomia hierárquica, que
nele existem certas atividades primárias e certas atividades secundárias
derivadas delas. Assim, as características que dentro de vinte anos terão se
manifestado nas atividades secundárias da vida, que são as mais óbvias e
conspícuas, já hoje terão começado a se manifestar nas atividades
primárias. A política, por exemplo, é uma das funções mais secundárias da
vida histórica, no sentido de que é uma mera conseqüência de tudo o mais[5].
Quando um estado de espírito vem para informar os movimentos políticos,
ele já passou por todas as outras funções do organismo histórico. A política
é a gravitação de algumas massas sobre outras. Ora, para que uma
modificação dos fenômenos históricos possa chegar às massas, ela deve ter
influenciado a minoria seleta. No entanto, os membros desta última são de
dois tipos: homens de ação e homens de contemplação. [7]Não se deve
duvidar que as novas tendências, ainda germinantes e fracas, serão
percebidas primeiro pelos temperamentos contemplativos e não pelos
ativos. A urgência do momento impede que o homem de ação sinta as brisas
vagas iniciais que, por enquanto, não pode preencher suas velas práticas.
É em puro pensamento, portanto, que o tempo emergente faz sua primeira
marca sutil. São as ligeiras ondulações deixadas na pele imóvel do lago pelo
primeiro sopro. O pensamento é a coisa mais fluida no homem; é por isso
que ele se permite ser facilmente movido pelas mais pequenas variações da
sensibilidade vital.
Em resumo: a ciência que está sendo produzida hoje é o espelho mágico no
qual devemos olhar para vislumbrar o futuro. As mudanças, talvez técnicas
na aparência, que a biologia ou a física, a sociologia ou a pré-história, e
acima de tudo a filosofia, estão passando hoje são os gestos primordiais do
novo tempo. A questão muito delicada da ciência é sensível à menor
agitação da vitalidade, e pode servir para registrar agora com sinais tênues o
que será projetado gigantescamente para o palco da vida pública nos
próximos anos. A antecipação do futuro está assim equipada com um
instrumento de precisão semelhante ao aparelho sísmico, que revela com
um tremor o que a grandes distâncias é uma catástrofe telúrica.
Nossa geração, se não quer permanecer à margem de seu próprio destino,
deve se orientar pelas características gerais da ciência que se faz hoje, em
vez de se concentrar na política do presente, que é toda ela anacrônica e
uma mera ressonância de uma sensibilidade defunta. Do que começamos a
pensar hoje depende aquilo que será vivido nas pequenas praças de amanhã.
[8]
Fichte tentou uma tarefa semelhante para seu tempo no famoso curso, mais
tarde publicado em um volume, sobre os Características da época atual.
Vou agora tentar descrever brevemente o que considero ser o tema
dominante da época atual.
Capítulo III — Relativismo e
Racionalismo
Subjacente a tudo isso está a suposição de que existe uma afinidade íntima
entre os sistemas científicos e as gerações ou épocas. Isso significa que a
ciência, e especialmente a filosofia, é um conjunto de convicções que só são
válidas como verdade por um certo tempo? Se aceitarmos assim o caráter
transitório de toda verdade, seremos alistados nas fileiras da doutrina
"relativista", que é uma das emanações mais típicas do século XIX. Na
medida em que falássemos em fugir desta época, estaríamos apenas caindo
de novo nela.
Essa questão da verdade, aparentemente incidental e de natureza puramente
técnica, nos levará diretamente à própria raiz do tema de nosso tempo.
Sob o nome "verdade" reside um problema muito dramático. A verdade, o
reflexo adequado do que são as coisas, é obrigada a ser única e invariável.
Mas a vida humana, em seu desenvolvimento multiforme, ou seja, na
história, mudou constantemente de idéia, consagrando como "verdade"
aquela que adotou em cada caso. Como conciliar uma coisa com a outra?
Como colocar a verdade, que é única e invariável, dentro da vitalidade
humana, que é, por essência, mutável e varia de indivíduo para indivíduo,
de raça para raça, de época para época? Se quisermos nos ater à história
viva e seguir suas ondulações sugestivas, temos que desistir da idéia de que
a verdade é apreendida pelo homem. Cada indivíduo possui suas próprias
convicções, mais ou menos duradouras, que são "para" ele a verdade. Nelas
se acende seu íntimo coração, que o mantém quente no feixe da existência.
Não existe tal coisa como “A” verdade: existem apenas verdades "relativas"
à condição de cada sujeito. Tal é a doutrina"relativista".
Contudo, tal renúncia à verdade, tão graciosamente feita pelo relativismo, é
mais difícil do que parece à primeira vista. O objetivo é alcançar uma fina
imparcialidade diante da multidão de fenômenos históricos; mas a que
custo? Primeiramente, se não há verdade, o relativismo não pode ser levado
a sério. Em segundo lugar, a fé na verdade é um fato radical da vida
humana: se a amputamos, a vida se torna ilusória e absurda. A própria
amputação que fizermos será sem sentido e sem valor. O relativismo é, no
final, ceticismo, e o ceticismo, justificado como uma objeção a toda teoria,
é uma teoria suicida. [9]
A tendência relativista sem dúvida inspira uma nobre tentativa de respeitar
a admirável volubilidade inerente a tudo o que é vital. Porém, é um ensaio
fracassado. Como Herbart disse, "todo bom iniciante é um cético, mas todo
cético é apenas um iniciante".
A partir da Renascença, a tendência antagônica, o racionalismo, tem fluido
mais profundamente através do seio da alma européia. Seguindo um
procedimento inverso, o racionalismo, a fim de salvar a verdade, renuncia à
vida. Ambas as tendências são encontradas na situação que o dístico
popular atribui aos dois Papas, o sétimo e o nono de seu nome:
Pío, per conservar la sede, perde la fede.
Pío, per conservar la fede, perde la sede[6].
Como a verdade é única, absoluta e invariável, ela não pode ser atribuída a
nossas pessoas individuais, corruptíveis e mutáveis. Devemos supor, além
das diferenças que existem entre os homens, uma espécie de sujeito
abstrato, comum aos europeus e chineses, ao contemporâneo de Péricles e
ao cavaleiro de Luís XIV. Descartes chamou esse fundo comum, livre de
variações e peculiaridades individuais, de "razão", e Kant de "a entidade
racional".
Observe bem a divisão que ocorreu em nossa pessoa. De um lado, tudo o
que somos é vital e concreto, nossa realidade palpitante e histórica. Por
outro lado, aquele núcleo racional que nos permite chegar à verdade, mas
que, por outro lado, não vive, um espectro irreal que desliza imutavelmente
através do tempo, esquecendo as vicissitudes que são um sintoma da
vitalidade.
Entretanto, não entendemos o porquê da razão não ter descoberto, com
certeza, o universo das verdades. Por que ela demora tanto tempo? Como
ela permite que a humanidade se entretenha durante milhares de anos nos
mais variados erros? Como explicar a multidão de opiniões e gostos que,
segundo as épocas, raças e indivíduos, têm dominado a história? Do ponto
de vista do racionalismo, a história, com suas incessantes vicissitudes, não
tem sentido e é propriamente a história dos impedimentos postos ao
caminho da razão que se manifesta. O racionalismo é anti-histórico. No
sistema de Descartes, o pai do racionalismo moderno, a história não tem
lugar, ou melhor, é colocada em um lugar de punição. “Tudo o que a razão
concebe” — diz ele na quarta Meditação — “concebe como deve e não é
possível que erre. Onde, então, meus erros surgem? Elas surgem
simplesmente do fato de que, sendo a vontade muito mais ampla e extensa
que o entendimento, eu não a contenho dentro dos mesmos limites, mas
também a estendo às coisas que não entendo, às quais, sendo indiferente por
si só, ela se desvia muito facilmente e escolhe o falso como verdadeiro e o
mal como sendo o bem; essa é a causa do meu erro e do meu pecado.”
Portanto, esse erro é um pecado da vontade, não um acaso, e talvez até
mesmo um destino da inteligência. Se não fossem os pecados da vontade, o
primeiro homem teria descoberto todas as verdades acessíveis a ele; não
haveria, portanto, variedade de opiniões, de leis, de costumes; em suma,
não haveria história. Mas como tem havido, não temos outra escolha senão
atribuí-la ao pecado. A história seria substancialmente a história dos erros
humanos. Não há atitude mais anti-histórica, mais anti-vida. A história e a
vida são pesadas com um sentido negativo e têm o sabor de um crime.
O caso de Descartes é um exemplo excepcional do que eu disse
anteriormente sobre a possível previsão do futuro. Também seus
contemporâneos viram em seu trabalho, no momento, apenas uma inovação
de interesse puramente científico. Descartes propôs a substituição de
algumas doutrinas físicas e filosóficas por outras, e eles estavam
preocupados apenas em decidir se essas novas doutrinas estavam certas ou
erradas. A mesma coisa acontece hoje com as teorias de Einstein. Porém se,
abandonando por um momento tal preocupação e deixando em suspenso o
juízo sobre a verdade ou falsidade dos pensamentos cartesianos,
simplesmente se tivesse olhado para eles como um sintoma inicial de uma
nova sensibilidade, como uma manifestação germinativa de um novo
tempo, poderia ter-se descoberto neles a silhueta do futuro.
Qual foi, afinal, o pensamento físico e filosófico de Descartes? Declarar
duvidosa e, portanto, desprezível qualquer idéia ou crença que não tenha
sido construída mediante "pura intelectualidade". Pura intelectualidade ou
razão nada mais é do que nosso entendimento funcionando no vácuo, sem
restrições, preso a si mesmo e dirigido por suas próprias regras internas. Por
exemplo, para a visão e a imaginação, um ponto é a menor mancha que
podemos perceber de fato. [10]Por outro lado, para a pura intelectualidade,
somente o que é radical e absolutamente menor, o infinitamente pequeno, é
um ponto. A intelectualidade pura, a raison, só pode mover-se entre
superlativos e absolutos. Quando começa a pensar no ponto, não pode parar
em nenhum tamanho até atingir o extremo. Esse é o modo geométrico de
pensar, o mos geometricus de Spinoza; a "razão pura" de Kant.
O entusiasmo de Descartes pelas construções da razão o levou a executar
uma inversão completa da perspectiva que é natural para o homem. O
mundo imediato e evidente que nossos olhos contemplam, que nossas mãos
sentem, que nossos ouvidos ouvem, é feito de qualidades: cores,
resistências, sons, etc. Este é o mundo em que o homem viveu e sempre
viverá. Mas a razão não é capaz de lidar com qualidades. Uma cor não pode
ser pensada, não pode ser definida. Tem que ser vista e, se quisermos falar
sobre ela, temos que nos ater a ela. Em outras palavras: a cor é irracional.
Por outro lado, o número, mesmo o que os matemáticos chamam de
"irracional", coincide com a razão. Sem mais que ater-se a si própria, esta
pode criar o universo das quantidades por meio de conceitos dotados de
arestas agudas e claras.
Com audácia heróica, Descartes decide que o verdadeiro mundo é o
quantitativo, geométrico; o outro, o mundo qualitativo e imediato, que nos
rodeia cheio de graça e sugestão, é desqualificado e considerado, em certo
sentido, como ilusório. [11]Certamente, a ilusão está tão firmemente
enraizada em nossa natureza que não é suficiente reconhecê-la para evitá-la.
O mundo de cores e sons ainda nos parece tão real quanto antes de
descobrirmos suas artimanhas.
Esse paradoxo cartesiano serve como base da física moderna. Fomos
educados nisso, e hoje é difícil para nós perceber sua gigantesca
anormalidade e colocar os termos de volta nos mesmos termos que eram
antes de Descartes. Contudo, é compreensível que uma inversão tão
completa da perspectiva espontânea não tenha sido, em Descartes e nas
gerações seguintes, um resultado imprevisto a que se chega de repente
diante de certas provas. Pelo contrário, começa-se por desejar, mais ou
menos confusamente, que as coisas fossem de uma certa maneira, e depois
busca-se as provas para mostrar que as coisas são, de fato, como
desejávamos que fossem. Com isso, não quero de forma alguma dizer que
as provas são ilusórias; trata-se simplesmente de afirmar que não são as
provas que nos procuram e nos assaltam, mas nós que vamos em busca
delas, movidos por desejos anteriores. Ninguém acreditará que Einstein um
dia se surpreendeu com a necessidade de reconhecer que o mundo tem
quatro dimensões. Durante trinta anos, muitos homens de almas alertas
vinham postulando uma física tetradimensional. Einstein procurou-a
deliberadamente e, como não se tratava de um desejo impossível,ele a
encontrou.
A física e a filosofia de Descartes foram a primeira manifestação de um
novo estado de espírito, que um século depois se espalhou a todas as formas
de vida e dominou no salão, na tribuna, na praça. Ao convergir os traços
desse estado de espírito, obtém-se a sensibilidade especificamente
"moderna". Suspeita e desdém por tudo o que é espontâneo e imediato.
Entusiasmo por toda construção racional. O homem cartesiano, "moderno",
achará o passado desagradável, porque não tornou as coisas more
geometrico. Assim, as instituições políticas tradicionais parecerão
desajeitadas e injustas para ele. Contra elas, ele acredita ter descoberto uma
ordem social definitiva, obtida dedutivamente por meio da razão pura. É
uma constituição esquematicamente perfeita, onde os homens são
supostamente "entidades racionais", e nada mais. Se essa suposição for
aceita — a "razão pura" deve sempre partir de suposições, como no xadrez
— as conseqüências são inescapáveis e exatas. O edifício de conceitos
políticos, assim elaborado, é de uma "lógica” maravilhosa, ou seja, de um
rigor intelectual insuperável. Pois bem: o homem cartesiano é sensível
apenas a esta virtude: pura perfeição intelectual. Para tudo mais, ele é surdo
e cego. É por isso que o passado e o presente não lhe merecem o menor
respeito. Pelo contrário, do ponto de vista racional, eles adquirem um
aspecto criminoso. É urgente, portanto, aniquilar o pecado existente e
avançar para o estabelecimento da ordem social definitiva. O futuro ideal
construído pelo intelecto puro deve substituir o passado e o presente. Esse é
o temperamento que leva a revoluções. O racionalismo aplicado à política é
revolucionário e, vice-versa, uma época não é revolucionária se não for
racionalista. Não se pode ser revolucionário senão na medida em que se é
incapaz de sentir a história, de perceber no passado e no presente o outro
tipo de razão, que não é pura, mas vital.
A assembléia constituinte faz "uma declaração solene dos direitos do
homem e do cidadão", para que "os atos do poder legislativo e os do poder
executivo, que podem ser comparados a cada momento com o objetivo de
todas as instituições políticas, sejam mais respeitados, para que as
reivindicações dos cidadãos, doravante fundamentadas em princípios
simples e indiscutíveis", etc., etc., etc. Parece que estamos lendo um tratado
sobre geometria. Os homens de 1790 não se contentaram em legislar para
eles mesmos: não apenas decretaram a nulidade do passado e do presente,
mas também suprimiram a história futura, decretando como "todas" as
instituições políticas deveriam ser. Hoje achamos tal atitude muito
petulante. Além disso, nos parece estreita e grosseira. O mundo se tornou
mais complexo e vasto aos nossos olhos. Começamos a suspeitar que a
história, a vida, não pode nem "deve" ser governada por princípios, tal
como ocorre nos livros matemáticos[7].
É incoerente guilhotinar o príncipe e substituí-lo pelo princípio. Sob este
último, nada menos que sob o primeiro, a vida está subordinada a um
regime absoluto. E é precisamente isto que não pode ser: nem o absolutismo
racionalista — que salva a razão e anula a vida — nem o relativismo, que
salva a vida pela evaporação da razão.
A sensibilidade da época que agora começa se caracteriza por sua recusa
em aceitar tal dilema. Não podemos nos conformar satisfatoriamente com
nenhum de seus termos.
Capítulo IV — Cultura e Vida
Vimos como o problema da verdade dividiu os homens das gerações
anteriores em duas tendências antagônicas: o relativismo e o racionalismo.
Cada uma renuncia ao que a outra guarda. O racionalismo se agarra à
verdade e abandona a vida. O relativismo prefere a mobilidade da
existência à verdade imóvel e imutável. Não podemos alojar nosso espírito
em nenhuma das duas posições: quando tentamos, parece que sofremos uma
mutilação. Vemos com total clareza o que é plausível em uma e outra e, ao
mesmo tempo, notamos suas inadequações complementares. O fato de que
uma vez os melhores homens foram capazes de se encaixar placidamente,
de acordo com seu temperamento, em qualquer uma delas, indica que eles
possuíam uma sensibilidade diferente da nossa. Pertencemos a uma época
na medida em que nos sentimos capazes de aceitar seu dilema e lutar a
partir de uma de suas bordas na trincheira que ela abriu. Porque viver é, em
um sentido essencial que virá ao nosso conhecimento mais tarde, alistar-se
sob bandeiras e prontidão para o combate. Vivere militare est, disse Séneca,
fazendo um nobre gesto legionário. O que não podemos ser solicitados a
fazer é tomar partido em uma luta que já resolvemos dentro de nós mesmos.
Cada geração deve ser o que os hebreus chamavam de Naftali, o que
significa: "Eu lutei minhas batalhas".
Para nós, a velha discórdia está naturalmente resolvida; não entendemos
como se pode falar de uma vida humana da qual o órgão da verdade foi
amputado, nem de uma verdade que, para existir, precisa primeiro desalojar
a fluidez vital.
O problema da verdade, ao qual eu aludi brevemente, é apenas um exemplo.
O mesmo vale para a norma moral e jurídica que se destina a governar
nossa vontade tal como a verdade se destina a governar nosso pensamento.
O bem e a justiça, se eles são o que dizem ser, devem ser únicos. Uma
justiça feita somente para um tempo ou uma raça, aniquila seu significado.
Há também relativismo e racionalismo na ética e no direito. Há também
relativismo e racionalismo na arte e na religião. Em outras palavras, o
problema da verdade é generalizado a todas aquelas ordens que resumimos
no termo "cultura".
Sob esse novo nome, a questão perde um pouco de seu aspecto técnico e se
aproxima dos nervos humanos. Tratemos, então, de apresentá-la aqui e
tentar colocá-la com todo o seu rigor, com todo seu agudo drama. O
pensamento é uma função vital, tal como a digestão ou a circulação do
sangue. Que os últimos consistam em processos espaciais, corpóreos, e o
primeiro não, é uma diferença sem importância para nosso tema. Quando o
biólogo do século XIX se recusa a considerar como fenômenos vitais
aqueles que não têm caráter somático, ele parte de um preconceito que é
incompatível com um positivismo rigoroso. O médico que atende a pessoa
doente não encontra menos imediatamente diante dele o fenômeno do
pensamento do que o da respiração. Um julgamento é uma porção
minúscula de nossa vida; uma volição, a mesma coisa. São emanações ou
momentos de uma pequena esfera centrada em si mesma: o indivíduo
orgânico. Penso o que penso, assim como transformo os alimentos ou faço o
sangue do meu coração pulsar. Em todos os três casos, trata-se de
necessidades vitais. Compreender um fenômeno biológico é mostrar sua
necessidade para a continuação do indivíduo, ou, em outras palavras,
descobrir sua utilidade vital. Em mim, como indivíduo orgânico, meu
pensamento encontra, portanto, sua causa e justificação: é um instrumento
para minha vida, um órgão dela, que ela regula e governa[8].
Mas, por outro lado, pensar é colocar as coisas diante de nossa
individualidade tal como elas são. O fato de às vezes errarmos apenas
confirma o caráter verdadeiro do pensamento. Chamamos de erro um
pensamento fracassado, um pensamento que não é um pensamento
adequado. Sua missão é refletir o mundo das coisas, acomodar-se a elas de
uma maneira ou de outra; em resumo, pensar é pensar a verdade, como
digerir é assimilar os alimentos. E o erro não anula a verdade do
pensamento, assim como a indigestão não elimina o fato do processo
normal de assimilação. [12]
O fenômeno do pensamento tem assim um duplo aspecto; por um lado, ele
surge como uma necessidade vital do indivíduo e é regido pela lei da
utilidade subjetiva; por outro lado, ele consiste precisamente em uma
adaptação às coisas e é regido pela lei objetiva da verdade.
O mesmo se aplica às nossas volições. O ato da vontade é desencadeado a
partir do próprio centro do sujeito. É uma emanação energética, um ímpeto
que se eleva das profundidades orgânicas. A vontade, estritamente falando,
é sempre uma vontade de fazer algo.O amor a uma coisa, o mero desejo de
que algo seja, certamente estão envolvidos na preparação do ato voluntário,
mas não são o ato voluntário em si. Queremos propriamente quando, além
de desejarmos que as coisas sejam de uma certa maneira, decidimos realizar
nosso desejo, realizar atos eficazes que modificam a realidade. Nas
volições, o pulso vital do indivíduo é claramente manifestado. Através
delas, ele satisfaz, corrige e expande suas necessidades orgânicas.
Contudo, analisemos um ato de vontade onde o caráter da vontade é claro.
Por exemplo, o caso em que, após hesitação e indecisão, através de
deliberação dramática, finalmente decidimos fazer algo e suprimir outras
resoluções possíveis. Então percebemos que nossa decisão nasceu do fato
de que, entre as intenções concorrentes, nos parecia ser a melhor. Portanto,
todos estão constitucionalmente dispostos a fazer o melhor que pode ser
feito em cada situação, uma aceitação da norma objetiva do bem. Alguns
pensarão que esse padrão objetivo da vontade, esse bem supremo, é o
serviço de Deus; outros suporão que o ótimo consiste no egoísmo cuidadoso
ou, ao contrário, no benefício máximo do maior número de seus
semelhantes. Mas em um ou outro sentido, quando queremos algo,
queremo-lo porque acreditamos que é o melhor, e só estamos satisfeitos
conosco mesmos, só o queremos plenamente e sem reservas, quando parece
que nos adaptamos a uma norma de vontade que existe independentemente
de nós, além de nossa individualidade.
Esse duplo caráter que encontramos nos fenômenos intelectuais e
voluntários é igualmente evidente no sentimento estético ou na emoção
religiosa. Em outras palavras, há toda uma série de fenômenos vitais
dotados de um duplo dinamismo, um estranho dualismo. Por uma lado, eles
são o produto espontâneo do sujeito vivo e têm sua causa e seu regime
dentro do indivíduo orgânico; por outro lado, trazem dentro de si a
necessidade de submeter-se a um regime ou lei objetiva. E ambas as
instâncias — note bem — precisam uma da outra. Não posso pensar de
forma útil para meus propósitos biológicos, se eu não pensar a verdade. Um
pensamento que normalmente nos apresentasse um mundo divergente do
verdadeiro, nos levaria a erros práticos constantes e, conseqüentemente, a
vida humana teria desaparecido. Na função intelectual, então, não posso
acomodar-me a mim, ser útil a mim mesmo, se não me acomodar ao que
não sou, às coisas que me rodeiam, ao mundo transorgânico, ao que me
transcende. Porém também vice-versa: a verdade não existe se o sujeito não
a pensa, se o ato mental com sua faceta inescapável de convicção íntima
não nasce em nosso ser orgânico. Para que o pensamento seja verdadeiro,
ele precisa coincidir com as coisas, com o que me transcende; mas, ao
mesmo tempo, para que esse pensamento exista, eu tenho que pensá-lo,
tenho que aderir à sua verdade, alojá-lo intimamente em minha vida, torná-
lo imanente na pequena esfera biológica que eu sou.
Simmel, quem viu esse problema de forma mais aguda do que qualquer
outra pessoa, insiste muito justamente neste estranho caráter do fenômeno
vital humano. A vida do homem — ou o conjunto de fenômenos que
compõem o indivíduo orgânico — tem uma dimensão transcendente na
qual, por assim dizer, ela sai de si mesma e participa de algo que não é ela
mesma, que está para além dela própria. Pensamento, vontade, sentimento
estético, emoção religiosa, constituem essa dimensão. Não se trata de nós,
ao analisarmos, por exemplo, o fenômeno intelectual, aceitarmos a
existência da verdade que ele pretende conter. Mesmo que nós, filósofos,
não o consideremos justificado, o fenômeno do pensamento traz em si, quer
queiramos quer não, tal pretensão; de fato, ele não consiste em nada mais
do que em tal pretensão. E quando o relativista se recusa a admitir que o ser
vivo pode pensar a verdade, ele, como um ser vivo, está convencido de que
essa negação é verdadeira. [13]
À parte, então, de toda teoria, se nos reduzirmos a fatos puros, se aderirmos
ao positivismo mais rigoroso — que os positivistas titulares nunca exercem
— a vida humana se apresenta como o fenômeno que certas atividades
imanentes ao organismo transcendem. A vida, disse Simmel, consiste
precisamente em ser mais do que a vida; nela, o imanente é um transcender
para além de si mesma.
Agora podemos dar seu significado exato à palavra "cultura". Essas funções
vitais — portanto, subjetivas, intra-orgânicas — que cumprem leis
objetivas, que em si mesmas carregam a condição de se conformar a um
regime transvital, são cultura. Portanto, esse termo não deve ser deixado
vago. A cultura consiste em certas atividades biológicas, nem mais nem
menos biológicas do que a digestão ou a locomoção. Muito se falou no
século XIX sobre cultura como "vida espiritual" — especialmente na
Alemanha. Felizmente, as reflexões que estamos fazendo nos permitem dar
um sentido preciso a essa "vida espiritual", uma expressão mágica que os
santos modernos pronunciam em meio a gesticulações de arrebatamento
extasiado. A vida espiritual nada mais é do que esse repertório de funções
vitais, cujos produtos ou resultados têm uma consistência transvital. Por
exemplo: entre as diversas formas de comportamento para com o próximo,
nosso sentimento destaca uma em que encontra a qualidade peculiar
chamada "justiça". Tal capacidade de sentir, de pensar a justiça e de preferir
o justo ao injusto é, em primeira instância, uma faculdade com a qual o
organismo é dotado a fim de prover sua própria conveniência interna. Se o
sentimento da justiça fosse pernicioso para o ser vivo, ou pelo menos
supérfluo, teria significado uma carga biológica de tal ordem que a espécie
humana teria sucumbido. A justiça, portanto, nasce como uma simples
conveniência vital e subjetiva; organicamente, a sensibilidade jurídica não
tem mais nem menos valor do que a secreção pancreática. Entretanto, essa
justiça, uma vez segregada pelo sentimento, adquire um valor independente.
A idéia própria do que é justo inclui a exigência de que assim seja. O que é
certo deve ser feito, mesmo que não se adapte à vida. Justiça, verdade,
retidão moral, beleza, são coisas que têm valor em si mesmas, e não apenas
na medida em que são úteis à vida. Conseqüentemente, as funções vitais nas
quais essas coisas são produzidas, além de seu valor de utilidade biológica,
têm um valor em si mesmas. Por outro lado, o pâncreas não tem outra
importância além daquela que provém de sua utilidade orgânica, e a
secreção de tal substância é uma função que termina dentro da própria vida.
Essa autovalorização da justiça e da verdade, essa plenitude da suficiência,
que nos faz preferi-las à própria vida que as produz, é a qualidade que
chamamos de espiritualidade. Na ideologia moderna, "espírito" não
significa algo como "alma". O espiritual não é uma substância
desencarnada, não é uma realidade. É simplesmente uma qualidade que
algumas coisas possuem e outras não. Tal qualidade consiste em ter um
significado, um valor próprio. Os gregos chamariam a espiritualidade do
povo moderno de nus mas não de psique — alma. Pois bem: o sentimento
do que é justo, o conhecimento ou pensamento da verdade, a criação
artística e o prazer têm sentido em si mesmos, valem a pena por si mesmos,
mesmo que sejam abstraídos de sua utilidade para o ser vivo que exerce
essas funções. São, portanto, vida ou cultura espiritual. As secreções,
locomoção, digestão, por outro lado, são vida infra-espiritual, vida
puramente biológica, sem qualquer significado ou valor fora do organismo.
A fim de nos entendermos, chamaremos os fenômenos vitais, na medida em
que não transcendam a vida biológica, de "vida espontânea"[9].
Não creio que o devoto mais escrupuloso da cultura e "espiritualidade"
perderia qualquer privilégio com a definição dada desses termos acima. No
entanto, tive o cuidado de sublinhar nelas uma faceta que o "culturalista"
hipocritamente tenta apagar e deixar como que esquecida. De fato, quando
se ouve falar de "cultura", de "vida espiritual", parece apenas que estamos
lidando com

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