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Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Departamento de Psicologia Programa de Pós-Graduação em Psicologia DE FRENTE COM O FIM: OS PROFISSIONAIS DE CUIDADOS PALIATIVOS E O LUTO Jéssica Priscylla Medeiros de Oliveira Natal 2018 2 Jéssica Priscylla Medeiros de Oliveira De frente com o fim: Os Profissionais de Cuidados Paliativos e o Luto Dissertação de Mestrado sob orientação da Profa. Dra. Geórgia Sibele Nogueira da Silva a ser apresentada ao Programa de Pós- Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para obtenção do título de mestre em Psicologia. 3 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA Oliveira, Jéssica Priscylla Medeiros de. De frente com o fim: os profissionais de cuidados paliativos e o luto / Jéssica Priscylla Medeiros de Oliveira. - 2018. 263f.: il. Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, RN, 2020. Orientadora: Professora Doutora Geórgia Sibele Nogueira da Silva. 1. Cuidados Paliativos - Dissertação. 2. Luto - Dissertação. 3. Profissionais de Saúde - Dissertação. 4. Humanização - Dissertação. 5. Cuidado - Dissertação. I. Silva, Geórgia Sibele Nogueira da. II. Título. RN/UF/BS-CCHLA CDU 159.9:393.7 Elaborado por Ana Luísa Lincka de Sousa - CRB-15/748 4 Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Departamento de Psicologia Programa de Pós-Graduação em Psicologia BANCA EXAMINADORA: Profª Drª Geórgia Sibele Nogueira da Silva (orientadora) Profº Dr Marlos Alves Bezerra (UFRN) Profº. Drº João Bosco Filho (UERN) SUPLENTES: Profª. Drª Ana Karenina de Melo Arraes Amorim (UFRN) Profª Drª. Annatália Meneses de Amorim Gomes (UECE) Natal 2018 5 “(...) Essa exposição de afeto é que dá a rara oportunidade, de conhecer verdadeiramente as pessoas em pouco tempo de convívio, visto que, premiadas pelo sofrimento e pela ameaça da morte, nunca têm animo nem motivação para aparentarem, e desnudas de disfarce, elas simplesmente são. Esse intercâmbio afetivo intenso, apesar da fugacidade do encontro, enseja a oportunidade – para que aproveitemos ou não – de nos tornarmos especialistas em gente, essa matéria-prima que se renova a cada novo personagem, com sua história pessoal, às vezes caótica, às vezes pungente, mas sempre rica, única e intransferível”. (J.J Carmago em “A tristeza pode esperar”) 6 Agradecimentos Já dizia Raul Seixas: “Sonho que se sonha só é só um sonho que se sonha só. Mas sonho que se sonha junto é realidade”. Para tornar meu sonho realidade, não cheguei até aqui sozinha. Vivo a realização desse sonho em partilha. Primeiramente, agradeço à Deus por ter me sustentado em todo esse caminhar, por ter atendido a minha fé nos períodos de calor e baixa estação, e por tudo que faz em meu processo de existir. Gratidão a Nossa Senhora que acreditou em mim quando eu achei que não fosse suportar todas as demandas que o mundo me impôs. Gratidão ao meu santo anjo protetor, que me guardou e me zelou, trazendo-me serenidade. Continuando o rol dos anjos, agradeço aos meus avôs Flávio e Severino que partiram deste mundo, mas que não por isso deixaram de fazer presentes em minha vida, e a minha Vó Bal e Vó Dete, que estão na terra cuidando de mim, me zelando em suas orações. Agradeço a minha mãe, meu maior exemplo de perseverança, de força, de alegria. Obrigada por ter lutado, por permanecer aqui sendo meu porto-seguro, minha melhor amiga, minha companheira de vida. Agradeço ao meu pai, meu maior exemplo de doação, e de o que de fato é ser pai. Vocês me permitiram sonhar. Meu coração se enche de gratidão por ser filha de pais tão cuidadosos, participativos, que abraçam meus sonhos e cuidam das minhas dores. Agradeço as extensões de mim, meus irmãos, Diego e Thiago. Gratidão por serem a eternização da minha história, por andarmos de mãos dadas na vida, nos apoiando e construindo caminhos de possibilidades para o outro. 7 Agradeço a Igor, meu namorado. Gratidão por ter me tirar do caos, me fazer desacelerar, trazendo alegria, amor e serenidade aos meus dias. Gratidão por todo cuidado, torcida e por ser meu companheiro nesse viver. Agradeço às minhas sobrinhas, Ana Luíza e Ana Flávia, por terem me apresentado o amor mais sereno, mais puro e mais conquistador do mundo. Gratidão por me mostrarem, cotidianamente, que a vida pode ser muito mais. Agradeço as minhas amigas, Melissa, Ingrid, Hanna, Aline, Gabi, Paula, Flora, Bruna, Camila, Laíse, Marcela,e Falú, por todo carinho e apoio durante essa jornada. Que doce vínculo! Agradeço às melhores companhias que tive na travessia de ser mestranda, Bia e Gi. Gratidão pela união, companheirismo e cuidado. Gratidão por compartilhar angústias, medos, perpassados pela certeza de que tudo daria certo no final. Conseguimos! Agradeço aos mestres que me inspiram e me impulsionam a ser uma pesquisadora, psicóloga, ética e cuidadosa. Primeiramente, agradeço a minha orientadora, Geórgia Sibele, quem eu muito admiro e tenho orgulho, por trazer poesia e amor à ciência, por acreditar em mim quando eu mesma já tinha desistido, e por segurar na minha mão, orientando e aprimorando nosso trabalho com zelo e afeto. Ela costuma reinventar espaços, e na sua doçura, reinventou nossa relação, e trouxe luz não só aos meus escritos, como aos meus vínculos. Gratidão por ter me apresentado um mundo sensível, cuidadoso e amigo, à despeito dos obstáculos. Gratidão pelos áudios, cartas, arquivos sublinhados. Enfim, por todo cuidado! Como me sinto conectada a você... espero que o meu carinho tenha chegado de algum modo até você nesse percurso de cantos e encantos. 8 Agradeço ainda, a Marlos por ter confiado em mim quando eu não tinha nenhuma experiência, me proporcionando o desvelar dos meus sonhos. Gratidão por todo acolhimento, por toda escuta atenta. Sinto sua torcida! Também estou torcendo por você! Agradeço a Ana Andréa e Symone, por terem ajudado a tornar-me psicóloga, acreditando no meu percurso, confiando, e me abraçando sempre que necessário. Gratidão por sempre entrarem em contato, afirmando a torcida e amor mútuo. Agradeço ao LETHS, por ter me aberto a possibilidade da pesquisa, por ter me embasado teoricamente para construir os inícios do meu caminhar, por ter aberto campos de estágio que me proporcionaram o encanto com a morte. Agradeço também, desde já, a banca examinadora, por acolher meu escrito e contribuir com suas considerações. Espero ter tecido fios de afetações em seus corações em forma de gratidão. Agradeço a Universidade Federal do Rio Grande do Norte, por ter sido minha segunda casa nos últimos anos, por me apresentar uma Psicologia cuidadosa através dos meus professores e colegas de profissão. Agradeço à Capes, pelo financiamento desta pesquisa Agradeço aos poetas paliativistas que cruzaram o meu caminho, por me mostrarem encanto na dor, me impulsionando uma escrita com afeto. Agradeço por toda injeção de ânimo a cada palavra narrada, me mobilizando a ir em busca de um mundo melhor e mais cuidadoso. Gratidão por me permitirem o partilhar da experiência, me mostrandoum tanto de poesia em suas possibilidades de serem profissionais, e um modo de cuidar potente e amoroso ao fim da vida. Vocês me fazem ir cada vez mais em busca de cuidar das dores, legitimando as emoções, 9 abrindo espaços de ressignificações encantadoras diante de cotidianos tão difíceis. Seguiremos juntos, na alma, no coração e na busca por espaços de cuidado. 10 Lista de Tabelas 1. Construção das categorias temáticas. 2. Síntese de características dos entrevistados 3. Síntese da relação entre concepções de CP, papeis e significados do cuidar no fim e seus desafios 11 Lista de Siglas ABCP - Associação Brasileira de Cuidados Paliativos ANCP – Academia Nacional de Cuidados Paliativos APCP – Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos CFM - Conselho Federal de Medicina CP – Cuidados Paliativos INCA - Instituto Nacional do Câncer LETHS - Laboratório de Estudos em Tanatologia e Humanização das Práticas em Saúde MEC - Ministério da Educação MS – Ministério da Saúde OMS – Organização Mundial de Saúde PNCP - Programa Nacional de Cuidados Paliativos TCLE – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte UTI – Unidade de Terapia Intensiva 12 Resumo: Entende-se como cuidados paliativos (CP) um conjunto de medidas que visam à melhoria da qualidade de vida de pacientes e familiares que se deparam com questões relacionadas a uma doença ameaçadora da continuidade existencial. Nesse ínterim, o luto torna-se um dos eixos mais importantes da equipe de CP, contemplando o paciente e a família desde o diagnóstico de uma doença sem possibilidade de cura, até o próprio processo de morte e morrer. Acerca desse olhar de cuidado para o sofrimento, aponta-se para o esquecimento do luto do profissional. Assim, nos indagamos sobre como o profissional de saúde que trabalha com CP lida com a morte de seus pacientes. Eles se enlutam? (Re)conhecem um possível enlutamento? Ele interfere em sua prática de cuidado? Isto posto, este estudo possui o objetivo de compreender o lugar do luto para os profissionais de saúde que trabalham com cuidados paliativos, em especial diante da morte. Realizamos uma pesquisa qualitativa, com a participação de 6 profissionais de saúde que trabalham com pacientes em cuidados paliativos próximos à morte na cidade de Natal/RN. O estudo foi ancorado na Hermenêutica Gadameriana, e teve como instrumentos a Entrevista Narrativa com uso de cenas projetivas. Nos diálogos com as narrativas chegamos aos seguintes capítulos: 1) “Cuidados Paliativos: a que se destina?”, no qual realizamos um passeio pela história desse modelo de cuidado até os dias de hoje, afunilando nas concepções que nossos colaboradores deram a paliação e os papeis exercidos por eles nesse cuidado; 2) “Profissionais de cuidados paliativos de frente para o fim: a formação, os significados e o cuidar”, no qual discorremos historicamente a relação dos profissionais com a morte, a formação deles para trabalharem em CP, as habilidades que eles julgam necessária para trabalharem com a finitude do paciente, trazendo os significados sobre a morte, e os desafios que lidam na prática de frente para o fim. 3) “Por trás do Jaleco, existe um luto?”, passeando sobre os estudos das teorias do luto, conhecendo o que entendem sobre luto, suas compreensões acerca de seus processos de enlutamento , bem como o lugar que o luto possui na experiência cotidiana deles, os recursos que desenvolvem para o lidar com as perdas, e onde encontram ajuda. Este estudo, ao contribuir com o desenvolvimento da atenção ao luto dos profissionais de cuidados paliativos, destaca a importância da continuação da formação para lidarem com a morte e com os lutos, dando abertura para a construção de espaços de cuidados para o acolhimento das emoções dos paliativistas. Espera-se que esta pesquisa possa ajudar a ampliar o cuidado humanizado ao dar voz para as dores, dando pistas capazes de promover uma melhor qualidade na produção de cuidado de todos os envolvidos no paliar: profissionais, pacientes e familiares. Palavras-Chave: Cuidados Paliativos, Luto, Profissionais de Saúde, Humanização, Cuidado. 13 Abstract: It is understood as palliative care (PC) a set of measures aimed at improving the life quality of patients and their families who have come across issues related to a certain disease which threatens their existential continuity. In the meantime, mourning becomes one of the most important axes of PC team, contemplating the patient and the family from the diagnosis of a disease without possibility of cure, to the very process of death and dying.About this look of care for suffering, one points to the forgetfulness of the professional's mourning. Thus, we ask ourselves how the health professional who works with CP deals with the death of his patients. Do they get involved? (Re) know a possible coup? Does it interfere with your practice of care? Therefore, this study aims to understand the place of mourning for health professionals who work with palliative care, especially before death, and the implications for humanized care. We conducted a qualitative research, with the participation of 6 health professionals working with patients in palliative care near death in the city of Natal / RN. The study was anchored under Gadamerian Hermeneutics, and had the Narrative Interview with the use of projective scenes as instruments. In the dialogues with the narratives we arrive at the following chapters: 1) "Palliative Care: what is it for?", In which we take a tour of the history of this model of care until the present time, tapering into the conceptions our employees gave to palliation and the roles performed by them in this care; 2) "Palliative care professionals facing the end: formation, meanings and care", in which we historically discuss the relation of professionals with death, their training to work in PC, the skills they deem relevant for working with the finitude of the patient, bringing the meanings about death, and the challenges they come across in the practice facing the end. 3) "Behind the white coat, is there a mourning?" Strolling through the studies of the theories of mourning, knowing what they understand about mourning, their understandings about their processes of mourning, as well as the impact of mourning in their everyday experience, the resources they develop to deal with losses, and where they find help. This study, by contributing to the development of attention to the palliative care professionals’ mourning, emphasizes the relevance of continuing training to cope with death and grief, opening the way for the construction of care facilities regarding the reception of the palliativists’ emotions. It is hoped that this research can help broaden the humanized care by giving voice to pain, providing clues capable of promoting a better quality of care for all those involved in the palliative process: professionals, patients and family members. Key words: Palliative care, Mourning, Health professionals, Humanization, Care. 14 SUMÁRIO Lista de Tabelas .......................................................................................................................... 10 Lista de Siglas ............................................................................................................................. 11 Resumo ....................................................................................................................................... 12 Abstract .................................................................................................................................. ....13 1. INTRODUÇÃO E JUSTIFICATIVA ................................................................................... 18 2.OBJETIVOS ............................................................................................................................28 2.1. Objetivo Geral ...........................................................................................................28 2.2. Objetivos Específicos ..................................................................................... 28 3. PERCURSO METODOLÓGICO ......................................................................................... 29 3.1 Quadro Teórico ........................................................................................................... 30 3.1.1 A Hermenêutica......................................................................................... 30 3.2. Estratégias Operacionais da Pesquisa ......................................................................... 33 3.2.1. Colaboradoras do Estudo. ............................................................................ 33 3.2.2. Instrumentos de Acesso às Narrativas .......................................................... 36 3.2.2.1. A entrevista Narrativa ................................................................... 36 3.2.2.2. O uso de cena projetiva. ................................................................ 38 3.2.2.3 Diário de Campo. ........................................................................... 39 3.2.3. Tratamento e compreensão das narrativas .................................................... 40 3.2.3.1 A Construção das categorias temáticas ........................................... 42 3.2.4. Análise de Riscos e Medidas de Proteção. ................................................... 48 3.2.5. Aspectos éticos ............................................................................................ 49 3.2.6. O piloto da pesquisa .................................................................................... 49 3.2.7 Inserção no Campo. ...................................................................................... 51 15 4. CUIDADOS PALIATIVOS: A QUE SE DESTINA? ............................................................ 56 4.1 Breve passeio pela história dos Cuidados Paliativos .................................................. 56 4.1.1 A travessia dos Cuidados Paliativos no Brasil ...............................................62 4.2 As concepções dos profissionais sobre Cuidados Paliativos ........................................ 68 4.2.1 Cuidado paliativos: não é que não tem mais jeito .......................................... 68 4.2.2. Cuidados Paliativos: o Cuidado Integral ....................................................... 72 4.2.2.1 Do Conforto e Qualidade de Vida .................................................. 76 4.2.2.2 O Cuidado à Família ...................................................................... 80 4.2.3 Cuidar paliativamente diante da terminalidade .............................................. 83 4.2.3.1 Quanto torna-se paliativo exclusivo ................................................83 4.2.3.2 O tempo que resta: os desejos de fim de vida .................................. 89 4.3. O Papel do Profissional Paliativista e o Cuidar do Processo de Morte ......................... 92 5. PROFISSIONAIS DE CUIDADOS PALIATIVOS DE FRENTE PARA O FIM: A FORMAÇÃO, OS SIGNIFICADOS E O CUIDAR ........................................................................... 107 5.1 Os profissionais de saúde e a morte: da Era da Morte Domada aos dias de hoje ................................................................................................................................ 107 5.2 O horizonte formativo ................................................................................................113 5.2.1 Tem que ter técnica e precisa gostar de gente: habilidades do fazer paliativo .............................................................................................................. 121 16 5.3 O Fim e seus significados para os profissionais de CP ............................................... 128 5.3.1. Significados sobre a morte ..........................................................................129 5.3.1.1 Morte não é o fim, é transição .................................................................. 129 5.3.1.2 Morte como fim ....................................................................................... 133 5.3.2 Significados sobre a morte de um paciente .......................................................... 134 5.3.2.1 Dar conforto: O Alívio do sofrimento. ..................................................... 135 5.3.2.2 O dever cumprido e a ressignificação da vida .......................................... 137 5.3.3 De frente para o fim: a experiência de perder um paciente paliativo ....................... 140 5.3.3.1 O espanto diante da morte ....................................................................... 140 5.3.3.2 Das primeiras perdas: As mudanças no lidar com a morte ........................ 144 5.3.3.3 O cuidado com a família: das dificuldades de comunicação à empatia ..... 149 5.3.3.4 A equipe .................................................................................................. 156 5.3.3.5 O tempo para cuidar .................................................................................157 5.3.3.6 A satisfação no encontro com a potência do cuidar .................................. 159 5.3.3.7 E o pesar? ................................................................................................ 163 6. POR TRÁS DO JALECO, EXISTE UM LUTO? ............................................................... 168 6.1 Um passeio sobre os Estudos do luto......................................................................... 168 6.2 O Luto à Luz dos nossos Poetas ................................................................................ 178 6.2.1 Características do enlutamento .................................................................... 181 17 6.3 O Enlutar-se .............................................................................................................. 185 6.3.1 O lugar do Luto na experiência de Perda de Nossos Poetas ......................... 186 6.3.1.1 Luto reconhecido e vivenciado ..................................................... 187 6.3.1.2 O luto antecipatório: a dor que começa antes do fim .................... 189 6.3.1.3 Luto não reconhecido com pistas de vivenciado ........................... 192 6.3.1.4 Cada um no seu canto chora seu pranto: o luto não autorizado ................................................................................................ 198 6.4 Lutando para não enlutar: modos de lidar ..................................................................... 202 6.4.1 A racionalização da dor diante do alívio do sofrimento ............................... 203 6.4.2 Seguir a rotina do trabalho após a morte diante da não autorização de sua dor 206 6.4.3 A ressignificação da dor diante do dever cumprido ..................................... 208 6.4.4 Aliados pessoais e o autocuidado ................................................................ 213 6.5 Os profissionais de CP e as implicações para o cuidado humanizado .............................................................................................................................................219 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 223 8. REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 230 9. APÊNDICES ......................................................................................................................... 250 18 1. INTRODUÇÃO E JUSTIFICATIVA Todo jardim começa com um sonho de amor. Antes que qualquer árvore seja plantada ou qualquer lagoseja construído, é preciso que as árvores e os lagos tenham nascido dentro da alma. Quem não tem jardins por dentro, não planta jardins por fora e nem passeia por eles... (Rubem Alves) E assim, com os dizeres de Rubem Alves, inicio a construção desta pesquisa, contando sobre a minha experiência com flores, contos e encantos, em uma enfermaria paliativa, ainda enquanto estagiária. Conto para vocês um pouco do meu processo de construção e nascimento de afetações, do jardim que me fez chegar até aqui. A partir da disciplina de “Psicologia da Morte”, ministrada pela professora Geórgia Sibele Nogueira, e de um curso que realizei ainda enquanto estudante do 4º ano do curso de Psicologia, fui sendo afetada com a temática da finitude. A cada leitura, a cada passeio por um jardim recheado de dor e encanto pela morte, fui plantando sementes dentro de mim. Felizmente, tive a oportunidade, no final deste curso, de poder escolher em qual enfermaria gostaria de fazer o meu estágio. E assim, diante da minha curiosidade, da afetação e do desejo de experienciar a facticidade finita do outro que me chega, escolhi vivenciar uma enfermaria substancialmente caracterizada pelos cuidados paliativos (CP). Preparei leituras, busquei conhecimento sobre as sementes que poderiam transformar meu jardim em um habitar encantado, e fui para o campo. Todavia, logo nos primeiros contatos, fui dando-me conta que aquilo que eu tinha ido com tanta sede para regar, que era o poder falar sobre a morte com os pacientes em cuidados paliativos e o poder acompanhar estes rituais de despedida, ainda era uma experiência delicada para todos que a vivenciavam. 19 Fui aproximando-me da terra, cuidando do adubo, sentando no chão, e a presença da dificuldade de se falar sobre tal temática circundava aquela enfermaria, e só se aproximava. Ora, uma enfermaria que se propõe a pensar em uma forma de assistência pautada nos cuidados paliativos não teria mais abertura para falar sobre a finitude? Fui seguindo em minha imersão e certa vez escutei de uma paciente: “Vou te fazer um pedido: quando a gente falar a palavra morte, a gente fala bem baixinho pra ela não escutar e querer chegar perto, certo? Xiiii... Bem baixinho.” Diante dessa fala fui percebendo o quanto é presente o medo da proximidade da morte. Parecia que fantasiosamente podia-se defender dela, era como se o não falar sobre a mesma pudesse de certa forma afastá-la. Fui tendo a oportunidade de caminhar lado a lado com os envolvidos em muitos processos de despedida, estando disponível para os familiares e os pacientes, que eram os protagonistas do meu cuidado até então. Contudo, pouco a pouco fui percebendo que essa dificuldade não se resguardava apenas aos familiares e aos pacientes, e assim fui podendo refletir sobre a experiência dos profissionais que se colocam frente aos cuidados paliativos. A semente que eu não esperava plantar no meu jardim nasceu a partir dos ventos que a trouxeram. Assim sendo, a semente foi teimosa, cresceu e germinou, me pegando de surpresa. Fiquei frente à dor daquele que até então para mim era figura única, e exclusiva, de proporcionar cuidado e não foco de cuidado. Chegou-me a dificuldade destes sujeitos também em poder experienciar a vivência do ter que comunicar a família o estado paliativo do paciente, do ter que presenciar a dor do paciente frente ao esgotamento de terapêuticas curativas e o mais importante: o ter que presenciar a morte daqueles pacientes os quais construíram laços. 20 Entre laços e nós, e em contrapartida as minhas expectativas iniciais de entrar em campo supondo que por ser uma enfermaria de cuidados paliativos, uma forma de assistência que possui uma filosofia humanizada com espaço para dores e lutos, encontrei um novo cenário: um cenário de dificuldade em experienciar a morte e o luto desses profissionais de maneira autêntica. Comecei a ficar inquieta acerca do peso que se carrega por ter que sempre sustentar a dor de maneira silenciosa. Perecia que as dores, as angústias e os medos passavam a serem calados na iminência da morte de um paciente, não havendo autorização e espaço para lidar com eles. Nesse sentido, em decorrência da minha afetação em poder olhar de alguma forma para o luto e para a dor desses profissionais de saúde, acrescido do término do meu fazer neste espaço de saúde, passei a regar o meu jardim de afetações com as discussões desenvolvidas no Laboratório de Estudos em Tanatologia e Humanização das Práticas em Saúde (LETHS) e com leituras acerca desse fenômeno. Nessa direção trago um pouco da problematização da relação profissionais de saúde, luto e cuidados paliativos, a partir de alguns autores que vêm contribuindo com a minha reflexão. Sabemos que em decorrência do desenvolvimento da medicina, farmacologia e da cirurgia, observa-se, a cronificação de muitas doenças, antes consideradas sem cura, como o câncer, por exemplo, fazendo com que estes pacientes necessitem de cuidados continuados e constantes, suscitando assim uma nova forma de cuidar (Kovács, 2003). Esse progressivo aumento da expectativa de vida de pessoas com doenças crônicas e degenerativas, aliado as mudanças no processo de adoecer e morrer promovidas pelas transições demográficas em saúde, trouxeram à tona questionamentos éticos acerca dos cuidados disponibilizados aos doentes terminais (Bifulco & Iochida, 2009). Tais reflexões possibilitaram a abertura para 21 pensar, quando constatada a irreversibilidade da doença, em um por vir de muito a ser feito, abrindo espaço para os Cuidados Paliativos. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) entende-se cuidados paliativos, como: “um conjunto de medidas que visam à melhoria da qualidade de vida de pacientes e familiares que se deparam com questões relacionadas a uma doença ameaçadora da continuidade existencial, através da prevenção e do alívio do sofrimento possibilitados pela identificação precoce, pela eficiente avaliação e tratamento da dor, bem como pela atenção a outros sintomas físicos, psíquicos e espirituais” (OMS, 2006). Essa nova especialidade de saúde reflete a mudança de paradigma e de conceitos sobre o corpo humano, o adoecimento e a morte, sendo um conjunto de práticas e discursos voltados para cuidado final da vida do paciente fora de possibilidade de cura (Silva, 2008). É na busca pela melhoria dessa conjuntura que os cuidados paliativos despontam como uma alternativa, desenvolvendo o cuidado ao paciente que viabiliza a qualidade de vida, a dignidade humana no decorrer da doença, na terminalidade da vida, na morte e no luto (Paiva, Almeida Junior & Damásio, 2014). Assim sendo, os avanços científicos ocorridos no século XX possibilitaram uma revolução na forma de viver e um novo paradigma do morrer ou do viver o tempo de fim de vida (Neto, 2006). Nesse cenário, anunciado por muitos pesquisadores e profissionais de saúde, realço as dores, os medos e as angústias daquele que estão frente à finitude: o paciente, os familiares e os profissionais de saúde. As perdas que emergem nesse contexto, implicam na abertura de um espaço para o luto, que é reconhecido enquanto princípio de foco de cuidado por parte da OMS. Diante disso, me inquieto. Se o cuidado paliativo se coloca também enquanto proposta de cuidar do processo de morte e morrer, nos quais o processo do enlutamento precisa ser assistido, como o luto é vivenciado pelos profissionais que cuidam? Como não olhar 22 para o luto deles? Aliás, qual o lugar do luto? De acordo com Bowlby (1990), o luto é a resposta à ruptura de um vínculo significativo, no qual havia um investimento afetivo entre o enlutado e o ente que se foi, elucidando que a dimensão do luto é proporcional ao grau de apego, considerando-se fatores relacionados à perda e seus significados. Desenhado como um processo natural e esperado,no qual alguns fatores podem dificultar e complicar a vivência do luto: qualidade da relação com a pessoa que morreu, tipo de morte, idade do morto e significado da morte para o enlutado (Franco, 2008; Parkes, 2009). A forma como é vivido e administrado pode interferir em várias esferas da vida do sujeito (Worden, 1998). É oportuno destacar que para Pessini (2008), o luto é um dos eixos importantes da equipe de cuidados paliativos, que contempla o paciente e a família desde o diagnóstico de uma doença sem possibilidade de cura até o próprio processo de morte e morrer. Melo (2014) acrescenta que os cuidados paliativos oferecem espaço e suporte para que não só os pacientes possam vivenciar o seu luto, bem como na como assistência do luto da família e dos cuidadores. Assim sendo, esta atenção paliativa envolve todos aqueles envolvidos neste processo frente à finitude (Santos, Lattaro & Almeida, 2016). Acerca desse olhar de cuidado dos familiares e dos pacientes, o estudo de Silva et al. (2015) aponta para um esquecimento da própria dor do profissional. Faz-se valoroso sublinhar que Braga e Queiroz (2013) dissertam que o cuidar de pessoas fora de possibilidade terapêutica curativa é uma tarefa que requer um preparo. O que acontece é com o advento da instituição de saúde como espaço da morte, os profissionais de saúde passam a serem responsáveis por lidarem como essa facticidade existencial. 23 Kovács (2010) expõe que os cuidados voltados a pacientes fora de possibilidade curativa são apresentadas como exemplo de prática que busca modificar a representação da morte, tornando-a um evento natural, consequência da vida. No entanto, a autora destaca que a morte como sinônimo de fracasso profissional ainda é predominante e influencia no trabalho do profissional de saúde. Tendo em vista esta realidade, muitos são os dados da literatura que também atestam o quanto os profissionais de saúde apresentam aspectos deficitários no que se diz respeito ao lidar com a morte e o morrer (Esslinger, 2004; Silva, 2006; Nogueira da Silva & Ayres, 2010). Este despreparo se vincula ao papel da equipe de saúde na sociedade, que é visto como o encarregado de diagnosticar o mal e erradicá-lo, em uma obsessão em manter a vida biológica, conduzindo a chamada obstinação terapêutica (Siqueira, 2012), acrescido de currículos técnicos, voltados ao corpo biológico, que fazem com que estes profissionais olhem para a morte apenas do ponto de vista científico, compondo o paradigma científico- tecnológico em saúde (Borges & Mendes, 2012). Isso fica mais evidente em relação ao profissional de medicina, pois, quanto mais clara sua impotência para manter a vida do seu paciente, maior pode ser sua resistência em relação à morte (Mendes, Lustosa & Andrade, 2009). Os profissionais de saúde em geral quando em contato com o sofrimento, nas suas diversas dimensões, vivem conflitos em relação ao seu posicionamento frente à dor, que nem sempre conseguem mascarar ou aliviar. Cuidar do sofrimento do cuidador profissional é fundamental. Afinal, como pode cuidar se ele mesmo não é cuidado? As feridas, as dores, os medos, as afetações e os vínculos emergem nesse contexto. Assim sendo, cabe então pararmos para refletir sobre o luto dos profissionais de saúde, processo desencadeado pela perda de pacientes com os quais estabeleceu vínculos mais intensos. Para Esslinger (2014) preciso reconhecer a humanidade daqueles que cuidam, sendo assim vínculos são construídos e 24 portanto, a cada morte, da menor ou maior identificação com as situações vividas, ocorre um processo de luto. Alguns autores se referem aos profissionais de saúde, em geral, como enlutados não reconhecidos, logo, sem direito de expressar seus sentimentos. Os profissionais de saúde se vinculam a alguns pacientes e quando ocorre à morte têm que lidar com a sensação de fracasso e impotência, entrando em um em processo de luto, que não é reconhecido e autorizado. Contudo, o não compartilhar do vivido e a impessoalidade das emoções, do sentido e do significado dado à perda daquele vinculado, podem provocar esgotamento psíquico. Há um adoecimento destes profissionais pelo não entrar em contato com as emoções sentidas, tendo em vista a importância de essa dor ser chorada e vivida para a elaboração do luto (Liberato, 2008, Carvalho, 2004 citados em Kovács, 2010; Silva, 2006). Borges e Mendes (2012) explanam que há uma dificuldade no diálogo acerca da morte e do morrer entre os diferentes atores sociais envolvidos nesse processo em decorrência da normatização estrita e a hierarquização presentes na instituição hospitalar. Nesse ínterim, faz- se oportuno destacar que no que concerne aos CP, o estudo de Silva et al. (2015) apontam que os profissionais que trabalham nessas unidades ainda carecem de formação, expondo que a temática é pouco abordada durante a graduação, e a morte é vista apenas como algo biológico. De mais a mais, a rotina acelerada e as múltiplas demandas de cuidado que os profissionais são solicitados cotidianamente em um contexto de cuidados paliativos, dificultam a criação de um espaço de cuidado para esses profissionais que se sentem imersos em um fazer cansativo e sistemático. Silva et al. (2015), chama atenção para a sobrecarga emocional que o paliativismo desperta nos profissionais, que visam amenizar lançando mão de mecanismo de defesa, que nem sempre são capazes de atenuar ou mascarar o sofrimento. Nesse prisma de abordagem me questiono novamente: a morte e o luto não teriam que ser tematizados tendo em 25 vista as premissas dos cuidados paliativos? Não teria que haver um espaço para olhar para a dor desse profissional? Diante da problematização apresentada, foi possível perceber a pouca produção científica encontrada até o momento deste escrito. O foco tem sido prioritariamente no cuidado ao luto do paciente e dos familiares, colocando o profissional de saúde apenas enquanto agente que cuida e não de possibilidade de receber cuidado e de se enlutar, corroboram com as minhas impressões iniciais ao adentrar enquanto estagiária em um hospital. Até o momento deste escrito encontramos uma pesquisa recente realizada por Braz e Franco (2016) sobre luto, cuidados paliativos e profissionais de saúde. Nossa inquietação busca um olhar diferente, ao tentar compreender sobre a possível experiência do luto do próprio profissional, para tal percorremos desde as concepções que possuem à sua vivência com a morte do paciente. Portanto, ao reconhecermos por meio do cenário que apresentamos, que uma equipe de cuidados paliativos, inevitavelmente, lida com o sofrimento e com a perda diariamente, se reorganizando como podem para poder seguir em frente; entendemos que é imprescindível refletir como é esse “seguir em frente”, tematizando o caminhar desses profissionais e sua possível vivência com o luto por morte de um paciente. Sendo assim enquanto pesquisadora, que vivenciou esta realidade na prática e que buscou a literatura, me inquieto com esse cenário e me faço uma série de questionamentos: Os princípios dos CP estão sendo realizados nos espaços que se propõem a tal? Como os profissionais dos cuidados paliativos em Natal/RN, lidam com a perda de um paciente ao qual se vincularam? Esses profissionais possuem espaço para vivenciarem suas dores entre eles? Ou seja, possuem espaços para legitimarem e vivenciarem o luto? Qual o significado do luto para os profissionais que trabalham com CP? A não autorização da vivência do luto implicaria em um distanciamento do paciente para evitar a vinculação? Qual a relação entre o possível (não) enlutamento e a qualidade do cuidado prestado? 26 Por conseguinte, considerando a centralidade do luto nos princípios dos cuidados paliativos, da tímida literatura no tocante à vivência do luto desses profissionais específicos,dos resquícios de uma formação historicamente biologicista, e do horizonte delicado que os estudos apontam para a relação dos profissionais de saúde em geral com finitude, ressalta-se a relevância de mais estudos científicos que se disponham a refletir acerca dessa conjuntura, e buscar elucidar a necessidade de cuidar do processo de cuidar (Nogueira da Silva e Ayres, 2010); justificando assim a realização do estudo em questão, retomando as minhas afetações enquanto sujeito que caminhou em uma enfermaria paliativa. Ao plantar jardins por dentro, planto por fora e me coloco em abertura para pensar e passear neles através de uma pesquisa. Após introduzir o leitor na temática, apresentamos os objetivos desse estudo, que buscou compreender o lugar do luto para os profissionais de saúde que trabalham com cuidados paliativos, em especial diante da morte. Em seguida teremos o percurso metodológico do nosso estudo. Continuamos trazendo o capítulo intitulado “Cuidados Paliativos: a que se destina?”, no qual realizamos um passeio breve pela história dessa forma de cuidado até os dias de hoje, afunilando nas concepções dadas pelos profissionais ao paliar, discutindo também sobre os papeis que fazem parte do ofício deles ao acompanharem a morte. Posteriormente, no capítulo “Profissionais de cuidados paliativos de frente para o fim: a formação, os significados e o cuidar”, fazemos um levantamento da relação dos profissionais com a morte historicamente, discorremos sobre a formação de nossos depoentes para trabalharem em CP, como ocorre e as habilidades que eles julgam necessária para trabalharem com a finitude do paciente, trazendo os significados sobre a morte, e os desafios que lidam na prática de frente para o fim. Encerrando o diálogo com as narrativa encontraremos o capítulo “Por trás do Jaleco, existe um luto?”, onde fazemos um passeio sobre os estudos do luto, conhecendo as compreensões de nossos colaboradores sobre o processo de enlutamento, bem como o lugar que o luto possui na 27 experiência cotidiana deles, além de conhecermos os recursos que desenvolvem para o lidar com as perdas, e onde encontram ajuda. Após essa trajetória, trazemos as considerações finais, seguida das referências bibliográficas e apêndices. 28 2. OBJETIVOS Objetivo geral Compreender o lugar do luto para os profissionais de saúde que trabalham com cuidados paliativos, em especial diante da morte. Objetivos Específicos: a) Identificar as concepções dos profissionais sobre cuidados paliativos; b) Identificar o papel dos profissionais de CP no enfrentamento do processo de morte de um paciente; c) Identificar, a existência, ou não, de teorias e orientações recebidas pelos profissionais para atuarem em cuidados paliativos, morte e luto d) Conhecer o significado da morte para eles e o significado da morte na prática profissional e) Investigar a vivência no lidar com a morte de um paciente f) Conhecer a concepção e significado do luto para os profissionais paliativistas; g) Identificar a existência, ou não, da vivência do processo de luto, por parte dos profissionais, e suas formas de enfrentamento 29 3. PERCURSO METODOLÓGICO “Eu quero desaprender para aprender de novo. Raspar as tintas com que me pintaram. Desencaixotar emoções, recuperar sentidos.” Rubem Alves A metodologia, de acordo com Minayo (2008), pode ser considerada o caminho trilhado do pensamento e a prática exercida na abordagem da realidade. À vista disso, inclui simultaneamente o método, as técnicas e a criatividade do pesquisador. É a partir da natureza do estudo que determinamos o caminho metodológico a ser seguido. O caminho do presente trabalho será percorrido pela pesquisa qualitativa cujas estratégias metodológicas facilitam a compreensão dos fenômenos humanos, especialmente nos aspectos que não podem ser medidos, quantificados (Silva, 2006). As técnicas qualitativas podem proporcionar uma oportunidade para que as pessoas revelem seus sentimentos, permitindo não somente descrever o objeto, como também, conhecê- lo (Spencer, 1993), fazendo sentido com o objetivo da construção deste trabalho. Corroborando com esses conceitos, Holanda (2006) ressalta, que a abordagem qualitativa é um método das ciências humanas, propondo conhecer e elucidar os processos de constituição da subjetividade. Minayo (2002) evidencia que a pesquisa qualitativa trabalha com o universo de significados, motivos, valores, aspirações e atitudes, correspondendo ao espaço mais íntimo das relações e dos processos que não podem ser reduzidos à operacionalização das variáveis. Defende seu alcance para a compreensão dos valores culturais bem como das representações de determinados grupos, no caso desta pesquisa, dos sujeitos profissionais de saúde sobre 30 temas específicos. Neste seguimento refere-se ao verbo compreender como principal ação nesta atitude investigativa (Minayo, 2012). Para atender aos objetivos de nosso estudo realizamos uma pesquisa qualitativa e escolhemos o referencial da Hermenêutica Gadameriana, como guia teórico metodológico do percurso. A hermenêutica desenvolvida por Hans-Georg Gadamer, funda o trabalho de interpretação na intersubjetividade, sendo a linguagem o meio pelo qual se realiza a intersubjetividade e a busca de entendimento (Silva, 2006). Inspirada na Fenomenologia Heideggeriana, em sua ontologia do ser, rompe com a perspectiva filosófica essencialista do racionalismo cartesiano. Permite, assim, o aprofundamento na experiência ao evocar sentidos e significados dados pelos profissionais colaboradores da pesquisa acerca da experiência frente ao paciente em cuidados paliativos. É importante frisar que para esses pressupostos a linguagem é a fonte de acesso à intersubjetividade, e que eles advogam a superação da dicotomia sujeito-objeto (Silva, 2006). O caráter linguístico significa que a compreensão ocorre por meio da linguagem. Não é possível ocorrer experiência antes ou depois da linguagem, e sim dentro dela. Tanto para Gadamer, quanto para Heidegger, a linguagem é a revelação do mundo (Schmidt, 2017). Gadamer nos diz que “é literalmente mais correto dizer que a linguagem nos fala, em vez de que nós a falamos” (Gamader, 2002). Portanto, defendem a dialética entre pesquisado e pesquisador na busca de desvelar e desocultar o que nos discursos os sujeitos falam de si. 3.1. Quadro Teórico 3.1.1 A Hermenêutica A hermenêutica vem do grego e está ligada ao deus grego Hermes, que tinha a função de tornar acessível aos homens a mensagem divina e a quem era atribuído a origem da escrita 31 e da linguagem. Originariamente é definida como a arte de interpretação, desde a época de seu surgimento no século XVII (Brito, Santos, Braga, Printes, Chaves & Silva, 2007). Para compreender a escolha pela hermenêutica enquanto quadro teórico interpretativo, faz-se necessário explanar que a filosofia hermenêutica desenvolve-se a partir de uma reflexão metadiscursiva que funda a compreensão de realidades e obras humanas na sua linguisticidade. Nesse prisma de abordagem, a hermenêutica passa a ter uma tarefa crítica, não se restringindo, como acontecia em outras épocas, apenas a uma teoria ou metodologia de interpretação e compreensão do texto e da fala, cabendo-lhe determinar o verdadeiro sentido das ciências de espírito e a verdadeira amplitude do significado da linguagem (Brito et al., 2007). Para Hans-Georg Gadamer (2002), a hermenêutica tem como tarefa o esclarecimento do milagre da compreensão, descobrindo os sentidos das ações humanas. Parte do princípio de que todo conhecimento do mundo é mediado pela linguagem. Para ele, todo o ato de compreender significados, de entender-se com o outro a respeito de algo, colocando a compreensão como sustentação para expandir sua própria hermenêutica filosófica (Schmidt,2017). Nessa direção Minayo (2002) expõe que a hermenêutica se funda na arte da “compreensão” de “textos” e tem trazido valiosas contribuições nas pesquisas sociais ao estender-se a interpretação de discursos e ações. Esclarece, também, que o termo “texto” pode ser usado em sentido amplo. No caso desta proposta, será utilizado como discurso. O discurso e a fala permitirão o desvelamento da proposição, posto que o discurso humano, possibilita ao pesquisador não apenas a verdade, mas o conhecer também da aparência, do engano e da simulação. Buscam-se formas de comunicação para o que não é objetivável, sendo a linguagem uma delas. 32 A referia autora destaca também que o método hermenêutico se relaciona com o fenomenológico e o dialético, possibilitando o esclarecimento sobre as estruturas mais profundas desse mundo cotidiano, a medida que traz para o primeiro plano a compreensão do tratamento dos dados e das condições cotidianas da vida, possibilitando o esclarecimento sobre as estruturas mais profundas desse mundo cotidiano (Minayo, 2002). Sendo assim, considerando o homem como ser singular e único, sua compreensão consistirá na apreensão de sua totalidade, entendendo o homem como melhor interprete de si mesmo e que o fazer científico a partir da relação pesquisador-pesquisado se estabelece na procura dialética pela compreensão da questão que levou ao estranhamento inicial (as questões que impeliram à pesquisa), posto que para compreender, é primordial sentir-se interpelado, estando aberto para olhar o outro, entender-se com ele sobre sua verdade, o que só é possível a partir da suspensão de pré-conceitos, utilizando-se do jogo dialógico de pergunta-resposta. Neste prisma de abordagem, a compreensão se coloca como continuação de uma conversação já iniciada antes de nós e que nós assumimos e modificamos, através de novos achados de sentido, as perspectivas de significado que nos foram transmitidas. Ademais, é importante ressaltar que tal compreensão está relacionada ao espaço e tempo pelos limites dados a partir da historicidade humana (Gadamer, 2002). Portanto é preciso partir de uma compreensão histórica. Não é a partir de padrões e preconceitos humanos que iremos buscar a compreensão, mas sim a partir do horizonte do qual fala a tradição (Brito et al., 2007), posto que de acordo com Gadamer, para compreender é preciso estarmos “livres” desses preconceitos, nos colocando receptivos ao que vem até nós. Deve-se refletir a compreensão com a participação em um evento de tradição, e não com um 33 ato subjetivo. Configura-se como um processo de transmissão, em que passado e o presente são mediados constantemente (Gadamer, 2002). Temos assim outro conceito importante para a compreensão como entendida por Gadamer: a “fusão de horizontes”. Para ele, os horizontes dos sujeitos se fundem em busca da compreensão do discurso, que está além das palavras, ações e gestos, pois se constitui na relação entre eles (Gadamer, 2002). Este horizonte traz à tona tanto os limites momentâneos estabelecidos pelo horizonte quanto a ideia de que nosso horizonte se transforma enquanto nos movemos (Schmidt, 2017). É oportuno pontuar que o horizonte do interprete, da pesquisadora, não se coloca por meio estático, sendo assim capaz de se expandir para outros novos horizontes. Diante disso, “a compreensão sempre é a fusão destes horizontes que supostamente existem por si mesmos”, o que nos leva a entender que ao compreender um texto projetamos o horizonte do texto dentro do nosso próprio horizonte (Schmidt, 2017). Levanta-se a experiência hermenêutica, como o surgimento do novo, de maneira fundamental para o crescimento do ser enquanto participante de uma pluralidade cultural. Para se chegar a essa nova experiência, Gadamer afirma incessantemente que é necessário estar aberto para o novo, para a experiência, para a quebra de expectativa, pois o novo deixaria de sê-lo se não tivesse que se afirmar contra alguma coisa, estando esta pesquisa atenta a essa questão (Bonfim, 2010). Sendo assim, nessa pesquisa, por meio da hermenêutica se vislumbrará a possibilidade de compreender o lugar do luto para os profissionais de saúde que trabalham com cuidados paliativos, em busca do desvelar do vivido. 34 3.2 Estratégias Operacionais da Pesquisa 3.2.1 Colaboradores do Estudo Contamos com a participação de 6 profissionais de saúde que trabalham com pacientes em cuidados paliativos próximos à morte, tentando contemplar todas as especialidades que compõe uma equipe multidisciplinar de CP, privilegiando as categorias que possuam uma atenção diária a esses pacientes, no intuito de ouvir as singularidades e as possíveis diferenças no lidar com a morte e com a possibilidade do enlutar-se. Os profissionais de saúde pertencem a equipes diferentes, sejam elas de instituições privadas ou públicas. O estudo aconteceu na cidade de Natal/RN. É oportuno destacar que, nos estudos qualitativos, a amostragem não obedece a critérios numéricos, mas à possibilidade de permitir aprofundamento e abrangência de compreensão de uma situação (Minayo, 2000). Teremos como critério, a disponibilidade dos profissionais em participar e trabalharem com pacientes em cuidados paliativos, buscando uma variação de tempo de atuação mais recente e mais prolongada. Os participantes são de ambos os sexos e idades variadas. Salienta-se também a importância da participação de diferentes profissões, posto que as diversas especialidades em saúde são demandadas pelos pacientes em processo de cuidado paliativo, pelo fato de apresentar desconforto relativo às dimensões do ser humano que são descritas como: dimensão física, emocional, social, familiar e espiritual (Melo & Caponero, 2009). Os critérios de inclusão foram atenderem pacientes em CP em processo de terminalidade (ou terem atendido), exercerem profissões que são colocadas pelos manuais de cuidados paliativos enquanto equipe paliativista, sendo todas elas de nível superior, como médico, enfermeiro, psicólogo, assistente social, nutricionista, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional, assistente espiritual e dentista e a disponibilidade deles em participar do estudo. 35 Nesse momento, é importante pontuar, que encontrar equipes de cuidados paliativos não é uma tarefa fácil visto que tais equipes ainda se encontram escassas e muitas vezes não são formalmente constituídas, muitos profissionais não são exclusivos de uma equipe paliativista. Isto posto, diante da rotina intensa e da sobrecarga dos profissionais que atuam nesta área, acrescido do fato de nenhum serviço de saúde da cidade em que a pesquisa foi realizada ter uma estruturação de equipe que contemple o que é colocado pelo manual dos cuidados paliativos que seria por médico, enfermeiro, psicólogo, assistente social, nutricionista, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional, assistente espiritual e dentista, não foi possível contemplar todo uma equipe de cuidados paliativos. Não encontramos dentista e assistente espiritual que trabalhem especificamente com pacientes paliativos na nossa cidade, são chamados apenas esporadicamente quando necessário ou a família solicita, no caso do capelão. Profissionais como nutricionista, fisioterapeuta, fonoaudiólogo e terapeuta ocupacional encontramos apenas em uma unidade de cuidado. Se inserem na equipe de cuidados paliativos de uma instituição, mas suas rotinas de trabalho são divididas com os demais setores do hospital, não tendo um setor prioritário. Possuíam interesse em participar, contudo não possuíam disponibilidade de tempo. Diante disso, conseguimos e foram entrevistados: dois médicos, duas psicólogas, uma enfermeira e uma assistente social. Entende-se a importância dos técnicos de enfermagem, profissão que está em contato direto com os pacientes, abrindo espaço para um cenáriode afetação, dor e sofrimento também pela partida dos pacientes que estão cotidianamente acompanhando, e ainda nos indagamos a respeito de entrevista-los. Todavia, optou-se por restringir o estudo aos profissionais de saúde que são colocados como profissionais de compõe a equipe de cuidado do paliar, nos principais manuais de cuidados paliativos (ANCP, 2014). Deve-se, inclusive, refletir sobre a exclusão desses profissionais, enquanto agentes de cuidados, dentro da filosofia e dos manuais de cuidados paliativos. 36 O acesso a esses colaboradores de pesquisa foi facilitado pelo fato da pesquisadora e da sua orientadora conhecerem profissionais que trabalham em enfermarias de unidades de cuidados paliativos. Além disso, ambas fazem parte do LETHS/UFRN (Laboratório de Estudos em Tanatologia e Humanização das Práticas em Saúde) que atua oferecendo cursos e outras atividades de extensão abertas ou dirigidas aos profissionais que trabalham com o tema da morte, morrer, enlutamento e práticas humanizadas em saúde. A data e o local da entrevista foram acordados com os colaboradores, levando em consideração tanto a melhor opção para eles quanto o local onde fosse possível maior privacidade. 3.2.2. Instrumentos de acesso às narrativas Foram realizadas entrevistas narrativas com o uso de cenas projetivas, bem como diário de campo. As participantes receberam o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) assim como o Termo para Gravação de Voz para serem assinados. As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas. 3.2.2.1 A Entrevista Narrativa A entrevista é um dos mais importantes recursos que permitem captar os sistemas de valores e as interpretações que os indivíduos dão às experiências vivenciadas (Silva, 2006). Caracterizam-se como ferramentas não estruturadas, visando profundidade, de aspectos específicos (Jovchelovich & Bauer, 2002). No tocante as entrevistas narrativas, permitem ir além da mera transmissão de conteúdos ou informações, desejando a revelação da experiência, envolvendo assim aspectos primordiais tanto para o colaborador da pesquisa individualmente, como do contexto em que está inserido (Muylaert, 2014). 37 Minayo (2002) acerca da entrevista sublinha que a possibilidade da fala ser reveladora de condições estruturais, de sustento de valores, normas e símbolos é o que torna a entrevista um instrumento privilegiado de informação. Ademais, ressalta a sua capacidade de ter a magia de transportar, através de um porta-voz, as representações de grupos determinados em condições históricas, culturais, econômicas e sociais especificas. Para Minayo (2000), a entrevista pode ser entendida como uma conversa a dois, uma comunicação verbal que reforça a importância da linguagem e do significado da fala. Por meio dessa complexa “dialética de pergunta e resposta” realiza-se, de acordo com Gadamer, o compreender incessante com o qual vamos simultaneamente decifrando e instaurando nosso mundo (Ayres, 2005). Creswell (2014) acrescenta que há nas entrevistas narrativas a centralidade da característica colaborativa tendo em vista que a história do sujeito pesquisado emerge a partir da interação, troca e diálogo com o entrevistador. Na entrevista narrativa o entrevistado é convidado a falar livremente sobre um tema e as perguntas do investigador, quando são feitas, buscam dar mais profundidade às reflexões. A entrevista narrativa busca gerar uma situação, para estimular e encorajar o entrevistado a narrar a sua história de vida ou do contexto social (Jovchelovitch & Bauer, 2012). Nesse sentido, o colaborador da pesquisa nos conta sobre sua experiência, saindo do tom de informe, vislumbrando a oportunidade de pensar algo que não havia refletido (Dutra, 2002). Dessa forma, a entrevista narrativa teve como ponto inicial abordar o colaborador da pesquisa pedindo que narrasse sobre a experiência da perda de um paciente que o mesmo acompanhava em cuidados paliativos, com a maior riqueza de detalhes possíveis. Após isso, perguntas complementares foram feitas para se chegar aos objetivos da pesquisa e também para aprofundar pontos que já tenham sido abordados na fala da entrevistada, gerando maior 38 compreensão sobre o tema. Assim sendo, a entrevista narrativa rompe com a forma tradicional de entrevistas baseadas em perguntas e respostas, revelando-se como um instrumento importante para se construir investigações qualitativas. Dispõe de conhecimento científico compromissado com a apreensão fidedigna das narrações e a originalidade dos dados apresentados, tendo em vista a permissão no aprofundamento do dito, combinando histórias de vida a contextos sócio- culturais (Muylaert et al., 02014). 3.2.2.2 O uso de cena projetiva De acordo com Spink (1993) a utilização combinada de mais de um recurso metodológico visa à compreensão em profundidade e a maior segurança na análise interpretativa. Isto posto, ao término de cada entrevista realizamos uma cena projetiva com os colaboradores de pesquisa. De acordo com Paiva (2005) as cenas são ferramentas para conscientização, invenção, ação e circulação de repertórios discursivos (e não-discursivos) de grupos e indivíduos, que podem resultar em mobilização individual e social. À vista disso, possibilitam uma ressignificação e elaboração simbólica de vivências que possam ter grande carga emocional. Contudo, esse estudo ancora-se, para o uso das cenas, no argumento de tratar-se de um instrumento que oferece “testemunho da experiência nas palavras do próprio sujeito, (...) sem grandes elaborações racionais” (Paiva, 2005, p.5), auxiliando, assim, a aproximação de temas delicados e difícil expressão (Minayo, 2008), que poderiam ter sidos impessoalizados durante as entrevistas. 39 3.2.2.3 Diário de Campo Iniciamos com Demo (2012) quando diz que “a comunicação humana é feita de sutilezas, não de grosserias”. Como o próprio nome diz, o diário de campo é um instrumento que o pesquisador recorre para realizar registros da sua observação e afetação ao longo do seu dia no campo de pesquisa frente ao fenômeno estudado. Para Minayo (2011) pode-se configurar como um “amigo silencioso”, de extrema relevância. É um espaço para angústias, questionamentos e reflexões que não são apreendidas através da utilização de outras técnicas. Nesse sentido, tendo em vista que esta presente pesquisa possui a hermenêutica como aporte teórico metodológico, o diário de campo assume centralidade na medida em que coloca o pesquisador como sujeito participativo e passivo de afetação e observação, dúvidas e inquietações que possa trazer caráter científico. De acordo com Oliveira (2014) ainda é recente o exercício do diário de campo, como possibilidade de instrumento de pesquisa. Contudo, sua presença enquanto instrumento de registro de informações pessoais, como diários confidenciais são anteriores a aplicação científica. Data-se que os diários surgiram no Japão e na Europa no século X, sendo utilizados inicialmente por sujeitos da elite da época. Com o desenvolvimento do uso da escrita, este 40 recurso foi sendo expandido, e assim por volta do século XVII, vários documentos foram sendo criados por cientistas, nobres, religiosos, arquitetos e outros (Alaszewski, 2006 citado em Zaccarelli & Godoy, 2010). Configura-se de maneira pessoal e intransferível, podendo se estender desde a primeira ida a campo até a fase final do estudo em questão. Minayo (2011) continua dissertando que “quanto mais rico for em anotações esse diário, maior será o auxílio que oferecerá à descrição e a análise de dados do objeto estudado” (p.64). Macedo (2010) coloca o diário de campo como instrumento reflexivo para o pesquisador. Demo (2012) corrobora com tal ideia quando explana que a pesquisa qualitativa possui atenção na observação daquilo que é dito e daquiloque também não é dito. A expressão daquele que deixou de falar, a pausa na voz, o movimento diferenciado a partir de alguma circunstância específica, podem carregar, algumas vezes, alguns sentidos mais apropriados do que muitas falas. Assim, aquilo que ouvimos, vimos, sentimos e experienciamos no trabalho podem ser registrados (Oliveira, 2014). 3.2.3 Tratamento e compreensão das narrativas Em relação ao tratamento e compreensão das narrativas, faz-se oportuno frisar que a compreensão assume uma centralidade nesta atitude investigativa, devendo-se considerar, à luz da hermenêutica, aspectos como a autonomia do discurso, o cuidado com a interpretação para que não seja um pressuposto, o reconhecimento dos preconceitos, inovação, criatividade e conhecimento acerca do tema estudado (Câmara, 2011). E a partir do supracitado, prendemo-nos a relação entre o familiar, nossa tradição, e aquilo se apresenta com estranheza no texto. Essa estranheza suscita que o interprete reflita e 41 questione o que era, comumente, aceito sem perguntas. Quando as possibilidades conflitantes emergem, a compreensão encontra espaço para seguir. Neste ponto, podemos nos indagar se interpretar não seria reconstruir o texto através da temporalidade. Contudo, avança. Desenvolve- se no descobrimento do que o texto tem a nos dizer, sendo um diálogo sobre um tópico onde a finalidade é chegar a um acordo sobre este tópico (Schmidt, 2017). Desse modo, o processo de interpretação, por sua vez, obedecerá à regra hermenêutica segundo o qual devemos compreender o todo a partir da parte e parte com base no todo, almejando a partir de leituras a ampliação da unidade de sentido pela concordância de todas as partes singulares com a totalidade compreensiva. No dizer de Gadamer (2002), a tarefa é a ampliação em círculos concêntricos à unidade do sentido compreendido. Silva (2006) destaca que, na tradição hermenêutica, essa circularidade não é vista como um círculo vicioso, mas muito mais como um círculo frutífero, uma espiral; o que implica na possibilidade de um aprofundamento e um entendimento do significado contínuo. Assim, após as entrevistas foram realizadas as transcrições das gravações, leitura compreensiva exaustiva do material, organização dos relatos, confronto entre o conteúdo dos objetivos e questões teóricas discutidas no estudo e agrupamento dos discursos obtidos mediante análise das entrevistas, possibilitando a construção de categorias temáticas. É importante frisar que as entrevistas serão gravadas a partir da autorização dos profissionais participantes da pesquisa. Assim, os seguintes caminhos foram trilhados na compreensão das narrativas: (a) leitura compreensiva, visando impregnação, visão de conjunto e apreensão das particularidades do material da pesquisa; (b) identificação e recorte temático que emergem dos depoimentos; (c) identificação e problematização das ideias explícitas e implícitas nos depoimentos; 42 (d) busca de sentidos mais amplos (sócio-político-culturais), subjacentes às falas dos sujeitos da pesquisa; (e) diálogo entre as ideias problematizadas, informações provenientes de outros estudos acerca do assunto e o referencial teórico do estudo; (f) elaboração de síntese interpretativa, procurando articular objetivo do estudo, base teórica adotada e dados empíricos (Câmara, 2011). 3.2.2.1 A construção de categorias temáticas Apresentamos neste momento uma síntese ilustrativa dos resultados obtidos no processo de construção das categorias (ou eixos temáticos). Essas categorias foram compostas a partir narrativas provocadas por meio da entrevista narrativa e do uso das cenas. Tabela 1. Construção das categorias temáticas. Objetivos específicos Questões do roteiro Unidades de sentido Categorias ou Eixos temáticos Estrutura dos capítulos Identificar as concepções dos profissionais sobre cuidados paliativos; O que você entende por cuidados paliativos? - Muito a fazer/trabalho - Pode cuidar - Desinteresse de outros profissionais - Dor Físico - Dor Emocional - Dor espiritual - Dor social - Acolher Entendimento dos profissionais de saúde sobre cuidados paliativos Atenção ao cuidar de todas as esferas 4. CUIDADOS PALIATIVOS: A QUE SE DESTINA? 4.1 Breve passeio pela história dos Cuidados Paliativos 4.1.1 A travessia dos Cuidados Paliativos no Brasil 4.2 As concepções dos profissionais sobre cuidados Paliativos 4.2.1 Cuidado paliativos: não é que não tem mais jeito 4.2.2 Cuidados Paliativos: o 43 - Confortar - Cuidar da vida - Acolhimento da família - Critérios -A aproximação do fim - A escuta -Individualização do adoecimento - Concessões Confortar Qualidade de vida ao paciente Cuidar da família A entrada na paliação As realizações dos desejos Boa morte Cuidado Integral 4.2.2.1 Do Conforto e Qualidade de Vida 4.2.2.2 O Cuidado à Família 4.2.3 Cuidar paliativamente diante da terminalidade 4.2.3.1 Quanto torna-se paliativo exclusivo 4.2.3.2 O tempo que resta: os desejos de fim de vida Identificar o papel dos profissionais de CP no enfrentamento do processo de morte de um paciente; Como você escolheu trabalhar com Cuidados Paliativos e o que mais o motiva? E qual o papel do profissional de CP diante de um paciente que está na iminência de morte? Qualidade de Morte -Porto-seguro -Tematizar a morte - Ampliar o fazer -Facilitar o luto -Seguir a rotina após a morte de um paciente Papeis dos Profissionais 4.3. O Papel do Profissional Paliativista no cuidado do Processo de Morte Identificar, a existência, ou não, de teorias e orientações recebidas pelos profissionais para atuarem em cuidados paliativos, morte e luto Você se sente preparado para trabalhar com CP, na iminência da morte? Como se preparou/se capacitou? O que considera mais difícil? Em que sua formação ajudou? E sobre o luto (do paciente, da família e o seu?) você teve alguma - Ausência da educação para a morte -Treinados para curar -Busca por capacitações Formação curativista Busca individual por 5. PROFISSIONAIS DE CUIDADOS PALIATIVOS DE FRENTE PARA O FIM: A FORMAÇÃO, OS SIGNIFICADOS E O CUIDAR 5.1 Os profissionais de saúde e a morte: da Era da Morte Domada aos dias de hoje 44 formação? Qual? Quais as atitudes e habilidades, que você acha que um profissional precisa desenvolver para trabalhar com Cuidados Paliativos? -Gostar de gente -Empatia -Solidariedade -Saber ouvir -Conhecimento científico -Tempo -Autocuidado formação Habilidades necessárias 5.2 O horizonte formativo 5.2.1 Tem que ter técnica e precisa gostar de gente: habilidades do fazer paliativo Conhecer o significado da morte para eles e o significado da morte na prática profissional MORTE DE UM PACIENTE quais as primeiras palavras que vêm à sua cabeça? Diga pelo menos 5. Agora escolha uma mais representativa/ por que escolheu esta? -Passagem -Fim de um ciclo -Punição Religião Morte como transição 5.3 O Fim e seus significados para os profissionais de CP 5.3.1. Significados sobre a morte 5.3.1.1 Morte não é o fim, é transição 5.3.1.2 Morte como fim 5.3.2 Significados sobre a morte de um paciente 5.3.2.1 Dar conforto: O Alívio do sofrimento 5.3.2.2 O dever cumprido e a ressignificação da vida -Final biológico -Parte da vida Fim de tudo -Conforto -Alívio-Descanso -Sofrimento Conforto e Alívio para paciente e família -Cuidar até o fim -Missão cumprida -Transformação Missão cumprida Iluminar à vida Investigar a vivência no lidar com a morte de um paciente Como você lida com a morte dos pacientes que você estava acompanhando em Cuidados Paliativos -Voltar no outro dia e não ver mais o paciente - A morte Impacto da surpresa 5.3.3 De frente para o fim: a experiência de perder um paciente 45 (CP)? Como foi a experiência de acompanhar a morte do seu primeiro paciente? Para você quais as dificuldades encontradas para trabalhar em cuidados paliativos em especial diante da morte? Fale um pouco como se sente cuidando de alguém que está morrendo? pegando de surpresa -Insegurança --Evitar a morte -Treinamento -Confortar o paciente -Família -Desconstrução de intervenções --Comunicação -Sofrimento da Família -Até onde intervir -Encaminhar cedo ou tarde demais - A equipe não sabe o que é paliar -Necessidade de mais tempo -Satisfação -Bem querer -Privilégio -Descobrir formas de cuidado - Satisfação -Tristeza -Lamento -Adeus aos sorrisos -Equipe envolvida -Negação do sentir Sentimentos das primeiras perdas Mudança no foco do cuidado atualmente Dificuldades Falta de informação Empatia Hora de encaminhar Estigma dos profissionais sobre o paliar Os desafios da falta de tempo Sentido do o que ainda pode ser feito A tristeza A dificuldade em entrar em contato com os sentimentos paliativo 5.3.3.1 O espanto diante da morte 5.3.3.2 Das primeiras perdas: As mudanças no lidar com a morte 5.3.3.3 O cuidado com a família: das dificuldades de comunicação à empatia 5.3.3.4 A equipe 5.3.3.5 O tempo para cuidar 5.3.3.6 A satisfação no encontro com a potência do cuidar 5.3.3.7 E o pesar ? 46 Conhecer a concepção e significado do luto; O que você entende como luto? Quais as características/sintomas de que uma pessoa está vivenciando um luto? -Ruptura de vínculo -Momento depois de perder algo -Perda -Impacto da perda Processo diante de perdas 6. POR TRÁS DO JALECO, EXISTE UM LUTO? 6.1 Um passeio sobre os Estudos do luto 6.2 O Luto à Luz dos Nossos Poetas -Negação -Barganha -Choro -Angústia -Saudade -Alterações no humor -Perda de apetite -Insônia - Falta de energia -Resistência em continuar a vida Fases do Luto Sentimentos Sintomas físicos Luto complicado 6.2.1 Características do enlutamento Identificar a “Construa uma cena onde um profissional de saúde está acompanhando um paciente em cuidados paliativos que ele gosta muito, que possui um excelente vínculo, onde convivem há muito tempo, e ele acaba de morrer.” Como você se sente depois da morte de um paciente que você estava cuidando? Houve alguma perda -Sentimento de perda -Ruptura de vínculo -Dificuldade para dormir -Sofrimento -Tristeza -Lembranças recorrentes -Sentir a perda dela acontecer -Sentir que está perto de partir -Preparação 6.3 O Enlutar-se existência, ou não, da 6.3.1 O lugar do Luto na experiência de Perda de Nossos Poetas vivência do processo de luto, por parte Vivência de luto Reconhecimento 6.3.1.1 Luto reconhecido e vivenciado dos profissionais, 6.3.1.2 O luto e suas formas de Vivência da perda antes da morte antecipatório: a dor que começa antes do enfrentamento fim Negação da 47 marcante na sua prática que te faz pensar que você esteve enlutada por um paciente? Você acha que existe espaço para essa vivência desses sentimentos no seu ambiente de trabalho? O que você fez para lidar com esse sentimento? Como você age? conversa com alguém? Tem algum ritual religioso ou espiritualista? Como foi retornar para o seu ambiente de -Pouca permissão para sentir -Luto não -Não passa de um dia o sentir -Tristeza -Insônia -Lembranças -Choro -Sofrimento que não é percebido -Se externa, não é bem acolhido -Falta de espaço na instituição -Viver a dor calado -Quem pode sofrer é paciente e família -Fim do sofrimento do paciente -Alívio diante da morte -Triste pela perda, mas pensa que terminou -Minimização da tristeza -Vida que segue -Foco no próximo paciente -Policiar para não desestruturar -Alívio ao ir até aonde é possível -Fazer o que vivência do luto Reações de enlutamento Solidão do sentir Não autorização Significados da dor da partida Foco no alívio Racionalização da dor Seguindo a rotina driblando a dor Dor ressignificada na esperança no 6.3.1.3 Luto não reconhecido com pistas de vivenciado 6.3.1.4 Cada um no seu canto chora seu pranto: o luto não autorizado 6.4 Lutando para não enlutar: modos de lidar 6.4.1 A racionalização da dor diante do alívio do sofrimento 6.4.2 Seguir a rotina do trabalho após a 48 trabalho após uma perda significativa? cabe ao profissional -Deve cumprido -Sofrimento reduzido cumprimento da função. morte diante da não autorização de sua dor -Pensar antes de dormir e rezar -Orar para que fique bem -Ler a bíblia - Ir à igreja Práticas religiosas Esporte 6.4.3 A ressignificação da dor diante do dever cumprido E o que você fez para lidar com essas perdas? - Exercícios Físicos Terapia. O que você acha que te ajuda a lidar com o luto? - Levar as questões do à psicoterapia pessoal 6.4.4 Aliados pessoais e o autocuidado Cuidado com o cuidador Humanização Distanciamento Luto e cuidado humanizado 6.5 Os profissionais de CP e as implicações para o cuidado humanizado 3.2.4. Análise de Riscos e Medidas de Proteção Diante da delicada relação dos profissionais de saúde com a morte e o luto, a pesquisadora relatou para os calaboradores, caso durante a operacionalização metodológica alguma mobilização emocional ocorresse, garantiria o encaminhamento para um serviço de psicologia. Faz-se importante frisar que a pesquisadora também é psicóloga clínica, possuindo 49 especialização em psicologia clínica fenomenológico-existencial, possibilitando que ela mesma oferecesse, de maneira gratuita. Contudo, não foi necessário. 3.2.5 Aspectos Éticos Foram tomadas as precauções necessárias para garantir e respeitar os direitos e a liberdade dos sujeitos pesquisados. Nesse ínterim, os colaboradores foram informados sobre os objetivos e o desenvolvimento da pesquisa, dando a elas a escolha em participar da pesquisa, garantindo-lhes, ainda, o direito de, após consentirem em participar, se retirar da pesquisa a qualquer momento. Foi respeitado o tempo necessário à reflexão individual, havendo garantia do anonimato das informações e depoimentos dos indivíduos. Firmamos o compromisso de seguir as Diretrizes e Normas Regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos do Conselho Nacional de Saúde (2012) em todos os seus aspectos e garantimos, incondicionalmente, a publicação dos resultados e o uso exclusivo para finalidade desta pesquisa. O