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SILVIA LIEBEL DEMONIZAÇÃO DA MULHER A construção do discurso misógino no Malleus Maleficarum Monografia de final de curso apresentada à disciplina Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica, do curso de História, setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da UFPR. Orientadora: Profa. Dra. Ana Paula Vosne Martins. CURITIBA 2004 “Não sabes tu que és Eva, tu também? A sentença de Deus tem ainda hoje todo o vigor sobre este sexo, é preciso portanto que a culpa subsista também. Tu és a porta do Diabo, tu consentiste na sua árvore, foste a primeira a desertar da lei divina.” (Tertuliano) AGRADECIMENTOS Este trabalho demandou esforços não apenas meus, mas também daqueles que vivenciaram junto a mim os momentos de pesquisa intensa. Por isso, agradeço a todos que contribuíram, direta ou indiretamente, em sua realização, com sugestões, críticas e carinho. Meus maiores débitos ficam com a professora Ana Paula Vosne Martins, por sua dedicada orientação; com Giana Liebel, cujo empréstimo do computador salvou-me nos últimos momentos; com Vinícius Liebel, companheiro de todas as horas, por sua valiosa presença e incentivos constantes; e, por último, mas não menos importante por fornecer o suporte material a este trabalho, agradeço a Claudia Amanda Fonseca, e seu constante estímulo ao saber. SUMÁRIO Página I. INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 1 II. DESENVOLVIMENTO..................................................................................................... 5 Capítulo I. A construção da malignidade feminina na sociedade européia medieval.............. 5 Capítulo II. A demonologia e o mais divulgado manual da Inquisição: o Malleus Maleficarum............................................................................................................ 22 Capítulo III. A bruxaria como uma ameaça à sociedade cristã e sua perseguição.................. 51 III. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................. 67 IV. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................................. 71 I. INTRODUÇÃO “O outro é o fantasma da historiografia”.1 Relacionando a sentença de Michel de Certeau ao “dilema da diferença” tratado por Joan Scott2, que traz a definição da moderna historiografia ocidental do sujeito enquanto homem branco, estabelecer um caráter de importância para as mulheres e dotá-las de significado histórico manifesta o rompimento com as definições tradicionais da história e, consequentemente, com uma ideologia masculinista. O desenvolvimento de um estudo dentro da “história das mulheres” conta com diversas reflexões que forneceram o suporte à disciplina: o destaque à família e suas relações no cerne das sociedades e, por extensão, o papel do feminino dentro dela, promovido pela antropologia histórica do século XIX; os trabalhos a respeito do cotidiano e das mentalidades produzidos pela Escola dos Annales; as análises sobre os marginalizados pelo poder, as minorias e os oprimidos demandados com o movimento de Maio de 68; e o movimento feminista, impulsionador das investigações acerca do feminino nas universidades, que acabaram se voltando às discussões sobre gênero.3 Pauline Pantel apresenta três conceitos fundamentais para o desenvolvimento de uma perspectiva das relações de gênero: assimetria sexual, que “acentua a disparidade que existe entre o poder e o valor atribuídos a cada um dos sexos”; relações sociais de sexo, que atenta para a construção das relações sociais; e, por fim, o conceito de gênero, termo freqüentemente empregado de forma vaga, referindo-se à existência de homens e mulheres e à “divisão do mundo entre masculino e feminino, a uma divisão sexual ou sexuada”.4 Para Klapisch-Zuber, Aquilo que se convencionou chamar ‘gênero’ é o produto de uma reelaboração cultural que a sociedade opera sobre essa pretensa natureza: ela define, considera – ou desconsidera –, representa-se, controla os sexos biologicamente qualificados e atribui-lhes papéis determinados. Assim, qualquer sociedade define culturalmente o gênero e suporta em contrapartida um efeito sexual.5 As ciências humanas se encontram atualmente em conformação diante da longevidade da relação dominação masculina/sujeição feminina. Embora tal relação não denote a total destituição de poder das mulheres, aponta para o papel a elas reservado pelo universo 1 CERTEAU, M. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. p. 14. 2 SCOTT, J. História das mulheres In: BURKE, P. A escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. p. 63-95. 3 DUBY, G.; PERROT, M (Org.). História das Mulheres no Ocidente. Porto: Edições Afrontamento, São Paulo: EBRADIL, 1994. v. 1: A Antiguidade. 4 PANTEL, P. A história da mulher na história da antigüidade, hoje. In: Ibid., p. 594. 5 KLAPISCH-ZUBER, C. In: DUBY, G.; PERROT, M (Org.). História das Mulheres no Ocidente. Porto: Edições Afrontamento, São Paulo: EBRADIL, 1994. v. 2: A Idade Média. p. 12. masculino, e sua análise acaba significando não o agir e o pensar daquele que por muito tempo foi considerado o “segundo sexo”, mas as visões a seu respeito. E, sendo a representação do feminino anterior a sua descrição ou narração, antes mesmo de o próprio sujeito o fazer, é essencial analisar o filtro masculino6 na constituição da mulher. O olhar sobre o outro, aqui o sujeito feminino demonizado pela Igreja através de um processo contínuo de reafirmação estrutural pelas instituições e agentes envolvidos, requer uma atenta análise dos contextos social e cultural. A especificidade que o discurso misógino adquire no contexto da Inquisição repousa sobre uma imagem da mulher construída por uma visão masculina extremamente pessimista, herdeira de tradições clássicas que foram acentuadas nos claustros medievais. A elaboração de discursos altamente misóginos apoiou-se sobre um fundo intelectual impregnado de aristotelismo, o que se alia ao pavor do sexo vivenciado por homens a quem se pregava os valores da castidade e do celibato. Desta forma a mulher, além de ser um ente negativo, representa uma tentação constante, devendo os homens dela se afastar se quiserem permanecer com seu espírito intocado. O conhecimento sobre o feminino é embasado em tradições clássicas e voltado a sua diminuição moral, com um respaldo pretensamente biológico, e dele a Igreja se utilizará para relacionar a mulher, responsável pela expiação das misérias dos homens, ao Demônio, figura indispensável no universo retratado. O Malleus Maleficarum, mais importante manual inquisitório sobre a bruxaria, apresenta a imagem da feiticeira que se entrega ao Demônio para perverter a humanidade como um reflexo das mulheres de seu tempo, vistas em uma torpeza moral irrefreável. Circunscrevendo historicamente a figura da bruxa demoníaca, necessária em um tempo de calamidades inexplicáveis e de íntima vivência do sobrenatural, observamos o papel fundamental dos autores na construção da imaginada liturgia satânica, procurando encontrar justificativas para os castigos divinos. A identificação dos elementos constituintes da visão masculina de mundo, herdados da Antigüidade e amplificados pelo cristianismo, que explicaram a inferioridade feminina e forneceram os dispositivos intelectuais para a construção da imagem da serva de Satã serão apresentados no primeiro capítulo deste trabalho. A esteselementos somam-se as discussões sobre a culpa humana e, principalmente da mulher, pela introdução do mal no mundo, juntamente com as heresias que ameaçavam a unidade cristã e os manuais dedicados à 6 Ibid., p. 16. elaboração de imagens femininas negativas. Desta maneira poder-se-á compreender a especificidade que o discurso misógino adquire no período em estudo e as referências teóricas para o recrudescimento misógino observado a partir do século XII e que culminará na caça às bruxas. Na seqüência, a apresentação do contexto religioso no qual surge a demonologia garante o necessário entendimento dos meios através dos quais o Malleus Maleficarum se afirmou como um referencial, indiscutível durante muito tempo, para a coerção das populações pela Igreja, procurando legitimar e conservar a ordem estabelecida. A análise das fontes, destacando a base teórica do Malleus e a elaboração do estereótipo da bruxa neste manual, permite compreender de que modo as acusadas terminam sendo invariavelmente condenadas, com confissões induzidas pela tortura e por interrogadores preparados segundo as disposições da fé. A bruxaria é tratada como um fenômeno essencialmente feminino, decorrente das falhas próprias deste sexo que são apresentadas pelos autores fundamentando-se nas Escrituras, e, dentre os autores cristãos, principalmente em Agostinho, Tomás de Aquino e Johannes Nider, autor do Formicarius, outro manual inquisitório de repercussão. Sendo considerada herética a descrença na bruxaria, quaisquer manifestações de dúvida acerca dos malefícios ou do pacto diabólico poderiam redundar em processo. Estes tempos nefastos viam a ação do Demônio no mundo, permitida por Deus, em função dos pecados humanos, destacadamente o abismo do sexo. O capítulo final apresenta o fenômeno da bruxaria nas sociedades européias de inícios da Idade Moderna, refletindo sobre sua estreita vinculação ao universo feminino através da inculpação de indivíduos isolados socialmente, renegados por suas comunidades e que, para a ortodoxia, obtiveram meios de revidar na seita anticristã. A redução das práticas mágicas ao fenômeno da bruxaria, dotando-as de um caráter evasivo e destrutivo, formou o imaginário acerca das bruxas: mulheres geralmente velhas e pobres que cediam às tentações da demonolatria para alívio material ou espiritual, ou ainda para se vingarem de desafetos. A mentalidade da época, obsedada pelo discurso eclesiástico, vivenciava um clima de insegurança religiosa gerado pelas heresias medievais e pela Reforma, procurando reforçar o controle sobre as populações. Para tal confluíram os poderes religioso e civil, com o Estado empregando os dispositivos inquisitórios na perseguição daqueles que eram considerados culpados pelas desgraças coletivas, impondo um modelo de autoridade. O cerceamento da figura feminina através de sua diminuição pelos discursos médicos, políticos e religiosos – estes, objeto central das análises aqui desenvolvidas –, garantiu sua subordinação inconteste, excetuando-se as mulheres consideradas demoníacas. Tais apresentações sobre o feminino foram remodeladas segundo o mental de cada período vivido, perpetuando-se um controle que repousa sobre um complexo fundo cultural no qual o temor do “segundo sexo” é latente. Conforme apresenta Pierre Bourdieu, “A dominação masculina constitui o paradigma (e freqüentemente o modelo e o parâmetro) de toda dominação.”7 Decorre desta afirmativa a importância dos estudos voltados à historicização da sujeição feminina em suas diferentes formas, o que permite compreender as especificidades das redes de dependência entre dominado e dominante, e a arbitrariedade das construções sociais misóginas. 7 BOURDIEU, P. A dominação masculina. Educação e Realidade, [Porto Alegre], v. 20, n. 2, jul./dez. 1995. p. 176. II. DESENVOLVIMENTO CAPÍTULO I. A construção da malignidade feminina na sociedade européia medieval. As reflexões sobre a mácula da mulher não surgiram nos claustros da Idade Média, fruto de um antifeminismo virulento de religiosos que se viam paulatinamente limitados ao celibato, mas foram por estes herdadas e ampliadas, indo de encontro à visão do feminino introjetada nas estruturas sociais do período. A elaboração da imagem da bruxa pela produção intelectual do Medievo, aqui representada pelo Malleus Maleficarum, é marcada por um intenso processo de inculcação da ortodoxia religiosa – através de ampla produção erudita, sermões, simbolismo das Escrituras – para gravar no inconsciente coletivo a imagem da serva de Satã. A fixação do modelo garantiu o suplício das mulheres que freqüentemente eram outsiders em suas comunidades, a quem imputavam as características de bruxa, a agente do Demônio para castigar a humanidade por seus pecados. Contudo, conforme as indicativas de Pierre Bourdieu8, em um estudo dentro da chamada “história das mulheres” é fundamental ir além das análises da condição feminina e das formas de opressão, adentrando nos mecanismos de des-historização que promovem continuamente a exclusão. Nesse sentido, pautar a relação entre os sexos pelo processo histórico significa compreender o processo de eternização empreendido pelo masculino e corroborado pelo feminino, que assume uma identidade construída socialmente e assimilada como sina, destino, natureza. Tomando a sujeição feminina enquanto um produto ideológico, a “cosmologia falonarcísica” de que fala Bourdieu é orientadora de um princípio de divisão arbitrária que organiza uma visão de mundo construída e naturalizada. Este princípio é reforçado pelas estruturas objetivas na sociedade e pelas expressões coletivas incorporadas no habitus, universalizando uma visão masculina que, enraizada, não precisa de justificativa; a confirmação do ser e as formas de reconhecimento legitimam a construção que, tida como natural, torna-se evidente. Tendo o dominado em comum com o dominante os mesmos instrumentos de conhecimento, que são a forma incorporada das relações de dominação, sofre a violência simbólica através da inculcação e familiarização com a simbologia estruturada, que produz as disposições permanentes sobre as quais se apóia. 8 BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. A institucionalização do preconceito confirma-se com o feminino dominado projetando sobre si a imagem que lhe é atribuída pela visão masculina, naturalizando uma identidade socialmente imposta, o que traduz uma validação mútua dos papéis sociais masculino e feminino. A submissão feminina gera o reconhecimento do poder dominante, justificando sua razão de existir; desse modo, a virilidade contemplada só existe com a cumplicidade e a sujeição feminina, e o reconhecimento dos limites impostos exclui a possibilidade de transgressão. O mundo social imprime no corpo dos sujeitos esquemas de percepção e ação que funcionam como uma segunda natureza, instituindo a diferença biológica entre os sexos em termos desiguais e discriminatórios, produto de uma relação arbitrária de dominação, fundamentada na manutenção da ordem social. A mulher constitui-se em entidade negativa pelo defeito da ausência das propriedades masculinas, assim, o sexismo “visa imputar diferenças sociais historicamente instituídas a uma natureza biológica funcionando como uma essência de onde se deduzem implacavelmente todos os atos da existência”.9 A oposição entre masculino e feminino constrói um sistema mítico-ritual confirmado e legitimado pelas próprias práticas que institui, caracterizando os sexos como sujeito/objeto, agente/instrumento. Esta oposição remete aos preceitos aristotélicos que situam o homem e a mulher em uma hierarquiaem função de superioridade e inferioridade, atribuindo as características de seco, quente, alto e reto ao masculino, e frio, úmido, baixo e curvo ao feminino, extrapolando os limites de uma suposta inferioridade física para uma inferioridade moral. Os espaços e funções são desta forma divididos a partir de inclinações físicas “naturais”, de modo a situar o homem na esfera pública e a mulher na esfera privada. Os aristotélicos, liderados por Tomás de Aquino, forneceram, no período medieval, a justificação teórica para a limitação da mulher e sua sujeição ao sexo forte. Uma identidade negativa, acrescida do signo diabólico no final deste período, condenou a mulher a carregar continuamente a prova de sua malignidade, justificando as atribuições que o sistema simbólico dominante lhes imputou como integrantes de sua “natureza” – ela é a tentadora, cuja lubricidade afasta os homens da salvação de sua alma. No jogo de dominação, a mulher, sujeito dominado, representa um perigo para a masculinidade. Encarnando a “vulnerabilidade da honra, (...) o sagrado desviante”, e guardando em si a “astúcia diabólica”, utiliza-se da 9 BOURDIEU, P. A dominação masculina..., 1995, p. 145. desonra de que é revestida, “da falsidade e da magia”, 10 para tentar reverter o processo a que está submetida. As estratégias simbólicas empregadas contra os homens como a magia, mostram-se inócuas na medida em que revelam uma maleficidade natural ao feminino, envolto numa identidade negativa permeada por proibições. Permanecem, pois, estas estratégias dominadas, visto se originarem de uma visão androcêntrica: seus alvos são os próprios homens, de quem se busca o amor ou a desgraça. Opõe-se à violência física e simbólica perpetuada pelos machos uma violência sutil, não manifesta. Dentro dessa estruturação o dominante, enquanto poder legítimo, só pode ter uma imagem elevada de si mesmo e do que a sociedade lhe atribui. O ser homem liga-se à virilidade, ao senso de honra, à retidão, que freqüentemente são postos à prova, colocando o dominante também como dominado no jogo que institui, mas por sua dominação, o que obviamente o mantém acima do objeto de jugo. “É porque ele é treinado para reconhecer os jogos e os embates sociais onde se dá a dominação que o homem tem deles o monopólio”.11 Concorrendo para a legitimação do arbitrário, o discurso eclesiástico, que possibilita e perpetua a inferioridade do feminino, cumpre uma função externa de legitimação da ordem estabelecida na medida em que a manutenção da ordem simbólica contribui diretamente para a manutenção da ordem política. Inculcar a ideologia religiosa e a liturgia, impor as observâncias rituais vividas como a condição de salvaguarda da ordem cósmica e da subsistência do grupo, significa reproduzir as relações fundamentais da ordem social.12 Com a função de estabelecer um consenso acerca da disposição das estruturas e posições no mundo, o campo religioso utiliza a autoridade para combater as tentativas proféticas ou heréticas de subversão da ordem simbólica. Redigindo instrumentos de forte apelo moral aos fiéis e aos que devem ser convertidos, a Igreja fornece tipologias dos desviantes e de seus pecados, ameaçadores da ordem, como encontramos no Malleus Maleficarum, alicerçado em uma longa tradição de escritores atormentados com os problemas da carne e sua interferência na relação com o sagrado. A inserção do indivíduo em sua época e meio social e as continuidades nas estruturas mentais no período retratado apontam para a relação entre indivíduo, aqui o sujeito feminino, e a esfera do sagrado. Lucien Febvre indica que a religião não só interfere na dinâmica 10 Ibid., p. 157. 11 Ibid., p. 162. 12 BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974. individual como também afeta a dinâmica social, pois “o indivíduo é sempre o que lhe permitem que ele seja, tanto a sua época, quanto o seu meio social”.13 Ao longo do período em estudo, a mulher viveu sob o estigma da inferioridade física e intelectual, sendo encarada como um ser maléfico em que se refletem a matéria, o instinto e a culpa pelas desgraças do homem. Entretanto, a mácula feminina não é um elemento recente utilizado pelos teólogos e pregadores, visto desde a Antigüidade a mulher ser a portadora do mal, estreitamente relacionada ao oculto, ao mágico e ao maligno. Mas um novo elemento será acrescentado ao caráter feminino neste momento pela Igreja, conspurcando o destino de milhares que seriam conduzidas ao ordálio: à responsável pelas desgraças da humanidade (reduzida ao universo significativo, o masculino) soma-se o conluio com o Maligno. O cristianismo incorporou e ampliou crenças sobre a mulher há muito difundidas, disseminando um antifeminismo agressivo, especialmente a partir do século XV. Como a cultura se encontrava nas mãos de clérigos celibatários, que procuravam então continuamente afirmar sua precedência na relação com o sagrado através de práticas de controle do corpo, mostra-se evidente a exaltação da virgindade e da castidade e o combate à tentação, afirmando-se a renúncia sexual como o “fundamento da dominação masculina na Igreja cristã”14. Os eclesiásticos, que erigiram o sexo feminino como o maior dos atrativos luxuriosos, “para não sucumbir aos seus encantos, incansavelmente o declararam perigoso e diabólico”.15 Desde a Grécia Clássica observamos a mulher enquanto símbolo maior da carne e da matéria, representando a putrefação e o fim, ao passo que o homem relaciona-se à espiritualidade, sendo considerado o portador de um caráter superior perturbado pela natureza feminina. A mulher é, em sua essência, instintiva, dionisíaca, e o homem, racional, apolíneo.16 A legenda máxima dos discursos misóginos cristãos, Eva, origem das desgraças da humanidade, relaciona-se àquela que, para os gregos, graças a sua curiosidade (que será dita tão própria das mulheres pelos padres da Igreja) libertou os males no mundo. Pandora, 13 MOTA, C. G. (Org.). Febvre. São Paulo: Ática, 1978. p. 24. (Col. Grandes Cientistas Sociais). 14 BROWN, P. Antigüidade Tardia. In: ARIÈS, P.; DUBY, G (Org.). História da vida privada. São Paulo: Cia. das Letras, 1989. v. 1: Do Império Romano ao ano 1000. p. 206. 15 DELUMEAU, J. História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. São Paulo: Cia. das Letras, 1989. p. 322. 16 A dessimetria dos gêneros mescla uma relação de medo e exaltação do “segundo sexo”, observada mesmo em sociedades matriarcais na pré-história, que viam na capacidade de gerar vida uma interação com o sagrado. Até o Romantismo, a mulher pode ser vista exaltada: inicialmente, como deusa da fecundidade, apresenta o caráter ambíguo da deusa-mãe, aquela que dá a vida e anuncia a morte; enquanto Atena representa a sabedoria; e, finalmente, como a Virgem Maria, é significação de pureza e bondade. Ibid., cap. 10. juntamente com Eva, simboliza o ardil feminino, tirando o homem do paraíso que lhe era merecido.17 No resgate de autores clássicos a fim de aprimorar os textos com intenções edificadoras, muitos teólogos do Medievo irão retomar personagens que exemplificam o caráter da desviante, personagens cujos atos mostram-se recorrentes nas acusações produzidas entre os séculos XV e XVII: feiticeiras que matavam crianças e devoravam seus filhos, com um apelo violento e erótico. A imagem feminina é construída sobre a encarnação da luxúria, a mulher é vista como portadora de uma sexualidade insistente que impede a psique masculina de se elevar. De “qualquer maneira, o homem jamais é o vencedor no duelo sexual. A mulher lhe é ‘fatal’. Impede-o de ser ele mesmo, de realizar sua espiritualidade, de encontrar o caminho de sua salvação”.18 Circe, a deusa-maga, embora tenha desviadoUlisses de seu destino e gerado filhos com ele, é frustrada em suas tentativas de assegurar seu amor, vendo seus poderes extraordinários não surtirem efeito.19 Já Ovídio declarara proibido o caminho do malefício, e a inutilidade de se tentar provocar sentimentos com o uso de artifícios mágicos.20 A fraqueza do caráter feminino de agir no universo passional por meios mágicos mostra-se também em Canídia, que esquarteja uma criança a fim de utilizar seu sangue em uma poção, parte do repertório da mística do universo passional grego, derivada dos afrodisíacos, os encantos preparados de Afrodite. Também se vêem nas narrativas sobre a feiticeira o uso de plantas maléficas (maléficas por serem empregadas nos malefícios, não por serem venenosas), preferencialmente as plantas que nasciam em torno das sepulturas, além de pêlos de lobos e bonecos de cera. 21 Medéia, a mais elaborada das três personagens, é o símbolo máximo da feiticeira, em poder e sedução: perita em sortilégios, conhece a fundo as virtudes das plantas, sendo exímia perfumista e envenenadora. Também é ela que, em seu desejo frustrado, assassina os próprios filhos como vingança ao ser amado. 17 Em uma versão corrente do mito, Zeus teria criado a primeira mulher para castigo dos homens. Pandora fora moldada à imagem das deusas, recebendo de cada divindade uma dádiva e um mal, sendo todos os males guardados em uma caixa. Como principal característica feminina, possuía a arte da mentira e, entre seus dons, destacava-se sua curiosidade. Ao chegar na terra, ocorreu a primeira tragédia: o casamento. Pandora uniu- se a Hipemeteu e, somadas a curiosidade dela e a inconseqüência dele, resolveram abrir a caixa de Pandora, libertando os males no mundo. 18 Ibid., p. 313. 19 HOMERO. Odisséia. São Paulo: Ars Poetica, EDUSP, 1992. 20 OVÍDIO. Os remédios do amor: os cosméticos para o rosto da mulher. São Paulo: Nova Alexandria, 1994. 21 HORÁCIO. Sátira VIII – O deus Príapo e as feiticeiras; Épodo VIII. In: HORÁCIO; OVÍDIO. Sátiras. Os Fastos. Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre: W. M. Jackson, 1952. Agora, agora deveis assistir-me, ó deusas, vingadoras do crime: os cabelos desarrumados, entrelaçados de serpentes, firme nas mãos sanguinolentas um lúgubre archote, assisti-me, ó deusas, tão horríveis como quando ficastes perto do meu leito nupcial. Matai a nova esposa, matai o sogro e toda a família real. E a mim, dai um outro mal, mais terrível que a morte, para que eu possa oferecê-lo ao meu esposo: que ele viva, errando pobre por cidades desconhecidas, desterrado, espantado, abominado, sem lar; que ele me deseje como esposa e encontre a porta fechada, hóspede já muito conhecido. E – não é possível pensar nada mais horrível – possa ele gerar filhos semelhantes ao pai, semelhantes à mãe. Quando eu dava à luz os meus filhos, dava à luz a minha vingança.22 Observamos, assim, que as figuras da mãe ogra, Moiras, Erínias, Amazonas, marcam a continuação no inconsciente coletivo de representações pagãs terrificantes que eram assimiladas à índole da mulher contemporânea, construindo-se um sistema de representações do feminino que reforçava sua alienação dos instrumentos de controle social. A cultura dirigente passa então a transformar um medo espontâneo em um medo refletido, colocando a mulher como um agente de Satã, tanto para os homens de Deus quanto para os leigos. A inferioridade da mulher no cristianismo foi justificada principalmente pelas Epístolas de São Paulo e pelo relato do Gênesis, com a criação de Eva e a expulsão do Paraíso. George Minois apresenta a Queda como uma criação dos teólogos que exploraram o mito sistematicamente a partir do século II, impondo-se a ampliação do relato com a afirmação de que Jesus seria o redentor das faltas imputadas a todos os homens pelo primeiro pecado – a grandiosidade de seu papel redunda igualmente no crescimento da imagem daquele que tornou necessária a morte do filho de Deus. O Gênesis mostra que Deus teria criado Eva a partir de Adão, o que justifica para os clérigos a submissão da mulher ao homem, e, tendo sido criada a partir da costela de Adão, um osso curvo, o espírito da mulher reflete esse desvio e é perverso desde sua origem. Eva, com sua sede de conhecimento do Bem e do Mal, ao se permitir seduzir pelo Demônio arrasta consigo Adão, tornando-se responsável pela queda do homem. O ter atribuído à serpente tentadora um rosto de mulher pode dar a medida de como o pecado era vivido de um ponto de vista exclusivamente masculino e como era representado de acordo com essa directriz, mesmo com o risco de uma certa incoerência. De facto, para Eva teria sido bem mais atraente o rosto de um belo jovem do que de uma mulher.23 Contudo Eva, com sua curiosidade e desejo de poder, garantiu ao homem a tomada do conhecimento, que a partir de então é por ele controlado, pois sendo a responsável principal 22 SÊNECA. Obras. Rio de Janeiro: Ediouro, [198-]. p. 80. 23 FRUGONI, C. A mulher nas imagens, a mulher imaginada. In: DUBY, G.; PERROT, M. (Org.). História das Mulheres no Ocidente. Porto: Afrontamento, São Paulo: EBRADIL, 1994. Vol. 2: A Idade Média. p. 473. pela queda a mulher permanece sendo-lhe sujeita, desaparecendo de cena após parir. Mesmo os primeiros filhos de Eva podem ter uma paternidade duvidosa para alguns pensadores cristãos do Medievo, que acreditam no Diabo como pai de Cain e Abel, de maneira que caberia ao Mal a tutela de parte da humanidade.24 É realizado um paralelo entre Adão e José, como instrumentos de poderes maiores: Eva carrega a semente do Diabo, e Maria a de Deus.25 As ambigüidades acerca da figura da mulher no cristianismo originam-se com Paulo, que afirmava possuir o dom da castidade, não compartilhado pela maioria. Para o apóstolo, “seria bom ao homem não tocar mulher alguma”,26 entretanto, não ousava propor o estabelecimento do celibato, pois significaria acabar com a instituição da família, a quem procurava atingir com seus discursos.27 Paulo coloca a mulher subordinada ao marido no casamento, sendo o homem quem comanda o casal: “As mulheres sejam submissas a seus maridos, como ao Senhor, pois o marido é o chefe da mulher, como Cristo é o chefe da Igreja, seu corpo, da qual ele é o Salvador. Ora, assim como a Igreja é submissa a Cristo, assim também o sejam em tudo as mulheres a seus maridos.”28 Da mesma forma, para Paulo a mulher também é subordinada perante a Igreja, sendo vedada-lhe a transmissão do conhecimento, o que é demonstrado em uma passagem do Novo Testamento que pode ser considerada o “texto bíblico preferido dos sacerdotes”29: Como em todas as igrejas dos santos, as mulheres estejam caladas nas assembléias: não lhes é permitido falar, mas devem estar submissas, como também ordena a lei. Se querem aprender alguma coisa, perguntem-na em casa a seus próprios maridos, porque é indecente para uma mulher falar na assembléia. Porventura foi dentre vós que saiu a palavra de Deus? Ou veio ela tão-somente para vós?30 No século II da era cristã, o pecado original é pela primeira vez revestido de conotação sexual por Clemente de Alexandria.31 Tertuliano, que escrevera sobre as fraquezas sexuais inerentes às mulheres, estendia a elas o pecado da Eva tentadora: “Não sabes tu que és Eva, tu também? A sentença de Deus tem ainda hoje todo o vigor sobre este sexo, é preciso portanto 24 MINOIS, G. Les origines du Mal: une histoire du péché originel. Paris: Fayard, 2002. p. 113. 25 Ibid., p. 36. 26 BÍBLIA, N. T. I Coríntios. Português. Bíblia Sagrada. Versão de Frei João José Pedreira de Castro. São Paulo: Ave-Maria, 2001. Cap. 7, vers. 1. 27 BROWM, P. Corpo e sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1990. passim.28 BÍBLIA, N. T. Efésios. Português. Bíblia Sagrada. op. cit. Cap. 5, vers. 22-24. 29 RANKE-HEINEMANN, U. Eunucos pelo reino de Deus: mulheres, sexualidade e a Igreja Católica. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1999. p. 138. 30 BÍBLIA, N. T. I Coríntios. op. cit. Cap. 14, vers. 34-36. 31 RICHARDS, J. Sexo, desvio e danação: as minorias na Idade Média. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1993. p. 34. que a sua culpa subsista também. Tu és a porta do Diabo, tu consentiste na sua árvore, foste a primeira a desertar da lei divina.”32 Neste período, observa-se no Império Romano a tentativa de se explicar biologicamente o domínio masculino sobre mulheres e escravos, garantindo, assim, a perpetuação do sistema intelectual que os colocava em um lugar determinado pelos censores sociais e a diminuição do risco de insubordinações. os homens eram os fetos que haviam realizado seu potencial pleno. (...) As mulheres, em contraste, eram homens imperfeitos. O precioso calor vital não lhes chegara em quantidades suficientes no ventre. Sua falta de calor as tornava mais flácidas, mais líquidas, mais frias e úmidas e, de modo geral, mais desprovidas de formas do que os homens.33 A necessidade masculina de diferenciação explícita das mulheres, ante o medo de uma ‘efeminização’, faz-se presente, bem como a proposição por parte de alguns filósofos, como Plutarco, de que o marido deveria se tornar “mentor filosófico” de sua esposa. Esta deve ser vigiada, sendo seu espírito inculcado de bons ensinamentos a fim de que ele não se atrofiasse, moldando-a, dessa forma, conforme a um homem. As mulheres ‘quando não recebem a semente das boas doutrinas e compartilham com seus maridos o avanço intelectual, elas concebem, entregues a si mesmas, muitas idéias impróprias e estratagemas e emoções vis.’34 As intensas discussões em torno da sexualidade, campo privilegiado para a ação feminina, resultaram em tendências conflitantes dentro do cristianismo que incidirão sobre o acirramento das formulações misóginas na Igreja medieval. Gregório de Nissa apresentou a distinção sexual como permissiva à sexualidade que, por sua vez, possibilita o cumprimento da perpetuação, um desígnio divino, procurando-se barrar a morte, decretada com a Queda. Gregório sempre tendeu a apresentar a sexualidade, juntamente com outros aspectos da vida instintiva, não como uma anomalia privilegiada, mas como um símbolo da lenta mas infalível sagacidade divina. A sexualidade e o casamento representavam a doce persistência de Deus em levar a raça humana a sua destinada plenitude, ainda que fosse, a partir de então, ‘por um longo desvio’.35 Em oposição a Gregório de Nissa, Ambrósio e Jerônimo, que colocavam a sexualidade e o casamento como resultantes da Queda, Agostinho encarava a dominação masculina e parental como integrantes das disposições formuladas por Deus a princípio, considerando que 32 TERTULIANO apud DALARUN, J. Olhares de clérigos. In: DUBY, G.; PERROT, M., op. cit., p. 35. 33 BROWM, P., op. cit., p. 19. 34 PLUTARCO apud BROWM, P., op. cit., p. 101. 35 BROWN, P., op. cit., p. 246. o “matrimônio existia antes do pecado sem as conseqüências da sensualidade”36. Sendo esta derivada da falta cometida por Adão e Eva, o pecado original, expressão cunhada pelo próprio bispo de Hipona37, relaciona-se não propriamente ao ato sexual, mas à concupiscência que garantiu não somente às mulheres, mas também aos homens, uma natureza decaída. Faz-se doravante necessário empreender uma formalização da permissão ou proibição das práticas sexuais dos casais. “Para Agostinho, (...) a sexualidade tal como se observa atualmente constitui um sintoma tão íntimo da queda de Adão e Eva quanto a mortalidade: sua natureza atual incontrolável resulta da queda de Adão e Eva tão imediata e seguramente como o contato glacial da morte.”38 Mas cabe à mulher pagar duplamente pelo orgulho que a levou a se rebelar contra as determinações de seu criador: sofrendo ao gerar a vida, pois foi ela quem introduziu a morte no mundo, e sendo submissa ao homem a fim de atenuar sua falta, pois ela o induziu a pecar. Adão permanece vitimizado no pensamento de Agostinho, pois ele teria cedido ao pecado apenas para agradar sua companheira, tendo todos pecado junto ao primeiro homem, representante da espécie. Desta forma justifica-se o batismo, pois todos nasceriam com o pecado original, e livra-se da culpa um deus infinitamente bom, caindo a culpa do mal sobre a humanidade. Refletindo acerca das diferenças entre o masculino e o feminino, Agostinho empreende, no século V, a conciliação entre o antifeminismo e uma suposta igualdade entre gêneros que teria sido prescrita por Jesus, colocando o ser humano como possuidor de um corpo sexuado, que incide sobre a mulher, e de uma alma assexuada, que se reflete no homem. Assim, predomina neste a razão, o que o coloca como a imagem de Deus, e, sendo inferior, a mulher deve-lhe ser submissa. São, portanto, homem e mulher próximos na complementação de metades desiguais. As proposições de Agostinho refletirão profundamente sobre o corpo doutrinal da Igreja, prestando-se a alguns autores que, ao menos até o século X, viam os atos e pensamentos das mulheres como responsabilidades de seus guardiões. O combate à posição subordinada do feminino ocorria apenas quando este arrojava a si os instrumentos com os quais procurava lutar contra a dominação masculina – sobretudo encantos e poções direcionados à sexualidade, meios próprios de sua natureza impura e pérfida. As 36 AGOSTINHO, Santo. A Graça (I). São Paulo: Paulus, 1998. p. 306. 37 MINOIS, G., op. cit., p. 65. 38 BROWN, P. Antigüidade Tardia..., p. 294-5. transformações culturais operadas entre o século X e o final do século XII colocarão a mulher como atuante nos conflitos, retirando-lhe sua característica passiva, ponto fundamental para torná-la a serva do Diabo, condutora das mazelas no mundo. Em cerca de 1095, Godofredo de Vandoma amplia os discursos sobre a falta feminina que tragou o homem para a maldição. Este sexo envenenou o nosso primeiro pai, que era também o seu marido e pai, estrangulou João Batista, entregou o corajoso Sansão à morte. De uma certa maneira, também matou o Salvador, porque, se a sua falta o não tivesse exigido, o nosso Salvador não teria tido necessidade de morrer. Desgraçado sexo em que não há nem temor, nem bondade, nem amizade e que é mais de temer quando é amado do que quando é odiado.39 Já no século XII, observamos o início da expansão da literatura de aversão ao sexo feminino, que deixa o domínio exclusivo dos monastérios e atinge canonistas, moralistas e, no século XIV, os demonólogos. Jeffrey Richards mostra que neste momento o espancamento das esposas era facultado pelas leis civis, que também determinavam a exclusão feminina dos cargos públicos devido serem “por natureza frívolas, ardilosas, avarentas e de inteligência limitada”, enquanto as leis eclesiásticas embasavam a exclusão no pecado original.40 É também no século XII que escreve um dos principais, senão o principal inspirador dos conceitos (re)lançados no Malleus Maleficarum, e na misoginia cristã de modo geral. Tomás de Aquino, servindo-se dos referenciais aristotélicos, coloca a existência de um único sexo, o masculino, que reflete razão e virtude, sendo a mulher um macho imperfeito que necessita de um companheiro para procriação, sua função natural, e para governá-la, pois o homem é mais perfeito por sua razão e mais forte na virtude, com esta afirmativa permeando os discursos médicos. Dentre vários autores que acompanham o raciocínio acerca da necessidade da esposa obedecer a seu marido destaca-se São Bernardino de Siena, que no século XV concederá às mulheres a igualdade de espírito frente aos homens, embora permanecendo estessuperiores na carne. Entretanto, a inferioridade da mulher levará Tomás de Aquino a conceder ao homem a primazia na reprodução, de modo que cabe a ele a transmissão do pecado original desde Adão. Graciano, em compasso com as idéias de Aquino, apresenta a mulher duplamente subordinada ao marido: por ter sido criada a partir do homem, a mulher lhe é inferior; e por 39 VANDOMA apud DALARUN, J., op. cit. p. 34. 40 RICHARDS, J., op. cit., p. 36. ter cedido à tentação do Diabo em forma de serpente e apreciado os prazeres da carne, é diabólica.41 Vincula-se o sexo a Satã, surgindo os elementos que comporão o cenário privilegiado para os processos contra bruxaria, as nefastas uniões de homens e mulheres com demônios súcubos e íncubos. Ranke-Heinemann, teóloga detratada pela Igreja que analisa a misoginia cristã desde suas bases clássicas, apresenta que, na “raiz da difamação das mulheres na Igreja, encontra-se a noção de que são impuras e como tais opõem-se ao que é santo. Na avaliação dos clérigos, as mulheres são seres humanos de segunda classe. Clemente de Alexandria escreve: com relação às mulheres, ‘a exata consciência de sua própria natureza deve evocar sentimentos de vergonha’.”42 Esta proposição, reafirmada continuamente ao longo da Idade Média e que encontrou meios práticos de observação nos processos inquisitoriais dos séculos XV ao XVII, é demonstrada por Hildeberto de Lavardin, que escreve no século XII, momento máximo de reafirmação estrutural da Igreja contra elementos sociais subordinados, mas, ao mesmo tempo, ameaçadores. A mulher, coisa frágil, inconstante a não ser no crime, não deixa nunca espontaneamente de ser nociva. A mulher, chama voraz, loucura extrema, inimiga íntima, aprende e ensina tudo o que pode prejudicar. A mulher, vil forum, coisa pública, nascida para enganar, pensa ter triunfado quando pode ser culpada. Consumindo todo no vício, é consumida por todos, predadora dos homens torna-se ela própria a presa.43 Em De contemptu feminae, obra elaborada por Bernard de Morlas, monge de Cluny no século XII, encontramos diversos elementos que serão intensamente repetidos pelos demonólogos, tendo alcançado grande difusão com a radicalização do antifeminismo clerical, paralelamente à expansão do culto mariano. A mulher ignóbil, a mulher pérfida, a mulher vil Macula o que é puro, rumina coisas ímpias, estraga as ações [...]. A mulher é fera, seus pecados são como a areia. Não vou entretanto caluniar as boas a quem devo abençoar [...]. Que a má mulher seja agora meu escrito, que seja meu discurso [...] Toda mulher se regozija de pensar no pecado e de vivê-lo. Nenhuma, por certo, é boa, se acontece no entanto que alguma seja boa. A mulher boa é coisa má, e quase não há nenhuma boa. A mulher é coisa má, coisa malmente carnal, carne toda inteira. Dedicada a perder, e nascida para enganar, perita em enganar, Abismo maldito, a pior das víboras, bela podridão, Atalho escorregadio [...], coruja horrível, porta pública, doce veneno [...], Ela se mostra inimiga daqueles que a amam, e se mostra amiga de seus inimigos [...]. 41 Ibid., id. 42 RANKE-HEINEMANN, U., op. cit. p. 141. 43 Hildeberto de Lavardin apud DALARUN, J., op. cit., p. 38. Ela não exclui nada, concebe de seu pai e de seu neto. Turbilhão de sexualidade, instrumento do abismo, boca dos vícios [...]. Enquanto as colheitas forem dadas aos cultivadores e confiadas aos campos, Essa leoa rugirá, essa fera maltratará, oposta à lei. Ela é o delírio supremo, e o inimigo íntimo, o flagelo íntimo [...]. Por suas astúcias uma só é mais hábil que todos [...]. Uma loba não é mais má, pois sua violência é menor, Nem uma serpente, nem um leão [...]. A mulher é uma feroz serpente por seu coração, por seu rosto ou por seus atos. Uma chama muito poderosa rasteja em seu seio como um veneno. A mulher má se pinta e se enfeita com seus pecados, Ela se disfarça, ela se falsifica, ela se transforma, se modifica e se tinge [...]. Enganadora por seu brilho, ardente no crime, crime ela própria [...]. O quanto pode, ela se compraz em ser nociva [...]. Destruição primeira, pior das partes, ladra do pudor. Ela arranca seus próprios rebentos do ventre [...]. Ela trucida sua progenitura, abandona-a, mata-a, num encadeamento funesto. Mulher víbora, não ser humano, mas fera selvagem e infiel a si mesma. Ela é assassina da criança e, bem mais, da sua em primeiro lugar, Mais feroz que a áspide e mais furiosa que as furiosas [...]. Mulher pérfida, mulher fétida, mulher infecta. Ela é o trono de Satã; o pudor está a seu cargo; foge dela, leitor. 44 Alguns dos documentos produzidos no século XII que tratam do feminino são analisados por Georges Duby em Eva e os Padres45, embora venham a revelar não a ótica das mulheres, sujeitos silenciados, mas o universo masculino de então, suas visões do sexo oposto e desejos. As reflexões sobre o Gênesis, tratado primário do condicionamento da mulher ao pecado, que vincula a figura humana a três atos, criação, tentação e punição, expressam a motivação da inferioridade da mulher frente ao homem – a sexualidade latente, e, em decorrência, o pecado. O Livre des manières, escrito entre 1174-8 por Étienne de Fougères, bispo de Rennes, apresenta novamente a mulher como portadora do mal, citando os pecados femininos. Entretanto, sua obra possui um elemento diferencial que consiste na intenção de se atingir a corte, sendo escrito em língua vulgar. As damas são o alvo preferencial dos sermões, compreendendo-as o autor como disseminadoras do pecado – dada sua posição social, seus atos eram mais constantemente observados e copiados. Seus três principais vícios consistem na luxúria; na insatisfação frente os desígnios divinos, pois procuram alterar o destino com feitiçaria; e na insubordinação ao marido a elas destinado. A relação que o autor acredita existir entre mulher e marido é moldada pelas relações de vassalagem: à primeira cabe “amar, 44 PELAYO apud DELUMEAU, J., op. cit., p. 325-6. 45 DUBY, G. Eva e os padres. São Paulo: Cia. das Letras, 2001. servir e aconselhar o homem a quem foi entregue, lealmente, sem mentir”, e os deveres do senhor consistem em protegê-la, subordinando-a dentro da estrutura social.46 A sujeição da mulher enquanto macho deficiente é perpetuada nos escritos de Abelardo, que crê ser a mulher inferior ao homem na razão, sendo este mais “perfeito” e “terno” na condução daquela (como Abelardo pretendia ser como guia espiritual de Heloísa). Os perigos da presença das mulheres, nos textos de Pierre le Mangeur, Robert de Liège e Hugues de Saint-Victor, concorrem para a redenção da culpa masculina na fornicação. Identificam-se com Adão a quem Eva estende a maçã. O que era o fruto proibido? O corpo dessa mulher, suave e delicado ao olhar, deleitável. Sabem o que é ser tentado e estão cheios de indulgência para com Adão. Sua tendência é de minorar a culpabilidade do homem e, assim, sua própria culpabilidade. Como resistir, cercados por tantas mulheres oferecidas?47 A construção de uma moral condicionada ao combate dos vícios e à manutenção do controle das filhas de Eva, ultrajadas por seu sexo, propõe meios de controle dos vícios femininos, dentre os quais se destacam a vaidade, a luxúria, a insubordinação e a prática de magia, a fim de moldarem-se as damas segundo as orientações de seus senhores. A mulher poderia subtrair suas culpas com a castidade ou, para aquelas casadas, com a moderação da conduta sexual, destinada exclusivamente à reprodução. As mulheres deveriam superar sua condição inferior, elevando seu espírito ao Altíssimo, pois este era também seu marido, e o mais importante. Neste momento, o casamento é afirmado pela Igreja como o sétimo sacramento, paralelamente às transformaçõesnas condutas dos homens, frente às uniões consensuais desenfreadas e repúdio de esposas, servindo também às motivações da nobreza de afirmar suas linhagens e a transmissão hereditária do poder. Ressalta-se então o principal elemento de resgate das pecadoras contido nas Escrituras: A mulher ouça a instrução em silêncio, com espírito de submissão. Não permito à mulher que ensine nem que se arrogue autoridade sobre o homem, mas permaneça em silêncio. Pois o primeiro a ser criado foi Adão, depois Eva. E não foi Adão que se deixou iludir, e sim a mulher que, enganada, se tornou culpada de transgressão. Contudo, ela poderá salvar-se, cumprindo os deveres de mãe, contanto que permaneça com modéstia na fé, na caridade e na santidade.48 46 Ibid., p. 39. 47 Ibid., p. 64. 48 BÍBLIA, N. T. I Timóteo. Português. Bíblia Sagrada. op. cit. Cap. 2, vers. 11-15. A salvação da mulher através da maternidade aponta para sua principal função: a procriação, condicionadora do casamento e de sua relação com o sagrado. Mas a fêmea, ambivalente, não é somente portadora da vida, também carrega a morte. Martins analisa a maternidade associada às representações da malignidade feminina, discutindo a junção dos elementos de repúdio e de louvor em uma mulher que, tal qual uma feiticeira que tentava os homens e poderia desviá-los do caminho da glória, ou que se aproxima do modelo ideal da masculinização, gera um rebento maligno, mas não é condenada por trazê-lo ao mundo, pois o mata em redenção.49 No Medievo, observamos o relevo acentuado da imagem da mãe sofredora com seu filho aos pés da cruz; nas palavras de Jacques Dalarun, a “uma Eva inonimada opõe-se uma Maria inacessível”.50 Salva-se uma imagem positiva de determinado tipo de mulher, compensando Eva por Maria (Ave, a inversão da primeira), na oposição entre carne e espírito. O século XIII com os mendicantes, sobretudo franciscanos, apresenta o triunfo da mulher como mãe e realça a imagem da Virgem da dor, de modo que a purificação de Maria torna-se santificação. As mulheres destacam-se no plano religioso. Insurgem em movimentos heréticos, ordens ou mesmo fora da instituição, em conjunto com seu papel na sociedade intermediado pelo pai ou marido, figuras do protetor e decisor. Ocorre no período um apelo por determinados setores da Igreja ao cristianismo primitivo, que tendia a refletir uma igualdade entre homens e mulheres. Jesus cercou-se de mulheres, destacando-se a meretriz, encarnação do pecado, sendo elas as primeiras a testemunharem a ressurreição. Contudo, a elevação da mulher encontrou dificuldades de ser posta em prática nas sociedades patriarcais e no contexto cultural onde foi difundida. Sua figuração poderia ser indispensável, mas permanecia subjugada. As heresias, cujo alcance era acompanhado da perseguição, forneceram os elementos que construíram o estereótipo do sabbat e da bruxa e, ainda no século XII, é relatada a ligação 49 Examinando a linguagem cinematográfica, a autora escreve acerca da protagonista de Alien: “Ela não deixa de ser a representação da mulher poluidora, mas ao tomar consciência de que gesta o Mal passa a ser salvadora, mesmo que o preço da salvação seja a sua morte. O martírio da tenente Ripley, portanto, articula representações diferentes da mulher em torno do embate mítico do Bem e do Mal, reabilitando a figura feminina que desde as primeiras narrativas cristãs esteve associada ao Mal.” MARTINS, A. P. V. O martírio da tenente Ripley: a mulher e o Mal no cinema de ficção científica. In: Cadernos de Pesquisa e Debate. Representações de gênero no cinema. N. 2, dez. 2003. Núcleo de Estudos de Gênero da Universidade Federal do Paraná. 50 DALARUN, J., op. cit., p. 39. entre o Diabo, hereges e desvios sexuais.51 Jeffrey Richards apresenta a grande participação de mulheres nos movimentos heréticos em virtude de uma série de fatores que intervieram conjuntamente ao chamamento para o ascetismo: maior porcentagem de mulheres nas populações, as poucas vocações que lhes eram destinadas e a não-ordenação. Assim, seitas como a cátara e a valdense, que propunham igualdade e ampla participação, poderiam representar um meio de promoção social.52 Esses elementos apontam para uma certa valorização da mulher, com a exaltação da Virgem Maria e também com o amor cortês. Entretanto, a adoração da primeira levou à reprimenda da sexualidade; e o amor cortês, embora tenha promovido uma adoração do feminino, exaltou uma imagem da perfeição, a idealização de um modelo de mulher irreal, não do conjunto feminino, permanecendo inalterada a estrutura social. A passagem do amor cortês ao amor platônico marca uma acentuação das características negativas da mulher real, apontando para sua demonização, como se vê na produção de Petrarca: A mulher [...] é um verdadeiro diabo, uma inimiga da paz, uma fonte de impaciência, uma ocasião de disputas das quais o homem deve manter-se afastado se quer gozar a tranqüilidade [...]. Que se casem, aqueles que encontram atrativo na companhia de uma esposa, nos abraços noturnos, nos ganidos das crianças e nos tormentos da insônia [...]. Por nós, se está em nosso poder, perpetuaremos nosso nome pelo talento e não pelo casamento, por livros e não por filhos, com o concurso da virtude e não com o de uma mulher.53 A mulher da Renascença, herdeira da misoginia medieval e do medo disseminado pelos pregadores, é encarada como um “mal necessário” cuja lascívia representa uma “tentação natural” ao homem, possuidor de uma natureza menos carnal. Paradoxalmente objeto de devoção e medo, nela se conjugam passividade e luxúria, idealização e marginalização, permanecendo à sombra da figura masculina como um “segundo sexo”. A abundante literatura hostil à mulher, assim como a influência crescente da imprensa, acarretou no aumento do impacto das pregações após as reformas religiosas, tendo grande alcance popular. Os sermões, que procuravam tipologizar a mulher, colocam-na como um “diabo doméstico” e propagam o medo do feminino na mentalidade coletiva, de modo que 51 Richards, op. cit., apresenta as várias heresias que, durante o Medievo, rebelaram-se contra a ortodoxia, sendo, na maioria, decorrentes da crise de materialismo após o milênio. O autor mostra como valdenses, cátaros, publicani, beguinos, amalricianos, pseudo-apóstolos, hussitas e milenaristas, entre outros, que pregavam a castidade e a pobreza, foram satanizados pela Igreja e apresentados como desviantes sexuais. 52 Ibid., p. 80. 53 PETRARCA apud DELUMEAU, J., op. cit., p. 319. “toda a Igreja discente foi convidada a confundir a vida dos clérigos e a vida dos leigos, sexualidade e pecado, Eva e Satã”.54 Diversos manuais foram redigidos com o propósito moral de ensinar sobre a verdadeira natureza maléfica das mulheres. Um dos maiores instrumentos de combate ao feminino, empregado a partir do século XIV, foi o De planctu ecclesiae, redigido pelo franciscano Alvaro Pelayo a pedido de João XXII, em torno de 1330, sendo reeditado por várias vezes. Dirigido a todos os fiéis, foi utilizado principalmente pelo corpo sacerdotal, encarregado de guiar a consciência de seu rebanho. De acordo com seus argumentos principais, Eva é a pecadora que provocou a perda do paraíso, desse modo a mulher é a perdição, é a ‘arma do diabo’ que atrai o homem com seus ardis a fim de arrastá-lo para a luxúria. Pelayo apresenta as mulheres como um conjunto de advinhas, que produzem poções mágicas, usam ervas, lançam mau-olhado, são capazes de matar seus filhos, e auxiliam em adultérios. É a mulher a culpada por um homem cometer apostasia, já que é idólatra. A mulher é ‘insensata’, ‘lamurienta’, ‘inconstante’, ‘ignorante’, ‘tagarela’, ‘briguenta’, ‘colérica’, ‘invejosa’, ‘quer tudoao mesmo tempo’. ‘Ela despreza o homem, então é preciso não lhe dar autoridade’, devendo-se sempre desconfiar de seres tão vis, que com suas conversações e sua imbecilitas perturbam a harmonia das missas e sermões. A repetição de argumentos há muito difundidos tem, neste escritor franciscano, um caráter inovador pela preocupação em cuidadosamente fundamentar a obra nas Escrituras e pela dedicação à disseminação das verdades religiosas a um público amplo.55 A malignidade inerente à mulher a colocará como principal agente do Diabo no mundo, buscando o aniquilamento da humanidade através da bruxaria. Jean Delumeau relata que treze tratados sobre o tema foram escritos entre 1320 e 1420, e vinte e oito entre 1435 e 148656, ficando patente o crescimento das preocupações em torno da temática. Dentre estes tratados, o que obteve maior influência, juntamente com a obra de Kramer e Sprenger, consiste no Formicarius (1435-7), de Johannes Nider, prior dos dominicanos da Basiléia, a primeira obra a enfatizar as mulheres como feiticeiras, colocando-as como especialistas em filtros de amor, raptos de crianças e antropofagia. 54 DELUMEAU, J., op. cit., p. 322. 55 Ibid., p. 322-6. 56 Ibid., p. 353. Mostra-se evidente que em um período no qual confluíram pestes, cismas, guerras e o pânico da eminência do final dos tempos, quando a Igreja lutava para consolidar e apregoar valores como a castidade dentro do corpo sacerdotal, que a reprimenda da libido resultaria em agressividade, e a direção mais óbvia que esta poderia tomar seria a da mulher, já inferiorizada e ameaçadora. “Seres sexualmente frustrados que não podiam deixar de conhecer tentações projetam em outrem o que não queriam identificar em si mesmos.”57 As mulheres como uma ameaça e uma negação da continência são apresentadas como armadilhas demoníacas, e a visão do feminino que foi insistentemente construída pelo cristianismo, e introjetada nas estruturas sociais do Medievo, servirá da mesma forma à construção da imagem da bruxa. Os “homens de Deus” lançaram as perseguições contra a herege que teve sua natureza, motivações, práticas e modo de ser combatida minuciosamente relatados no Malleus Maleficarum. 57 Ibid., p. 320. O autor apresenta um interessante número referente à Baviera contemporânea a Trento, quando se verificou na região que somente 3 ou 4% dos padres não possuíam concubinas. CAPÍTULO II. A demonologia e o mais divulgado manual da Inquisição: o Malleus Maleficarum. A junção da misoginia cristã ao pânico desencadeado pela presença constante do Diabo levou à culpabilização da mulher, agente do Mal, enquanto responsável pelas agruras que afligiam os homens de fins do Medievo e inícios da Idade Moderna. O período conhecido como “outono da Idade Média”, séculos XIV e XV, assinala intensas crises que assolaram a sociedade européia, paralelamente ao extravasamento da imagem obsedante de Satã dos universos eclesiásticos para os universos laicos e à afirmação da crença na bruxaria. A singularidade que o Demônio e o Inferno adquirem neste momento, impregnada no imaginário coletivo e nos valores de uma sociedade em constante transformação, produzirá, para Robert Muchembled, uma nova identidade coletiva do Ocidente, em torno do cristianismo unificador que se impunha sobre múltiplos poderes locais conflitantes. O crescimento do medo corresponde ao crescimento do poder simbólico da Igreja, que constrói a imagem do Maligno e da feiticeira num combate acirrado aos resquícios do paganismo demonizado. “Arma para reafirmar em profundidade a sociedade cristã, a ameaça do inferno e do diabo aterrador serve como instrumento de controle social e de vigilância das consciências, incitando à transformação das condutas individuais.”58 As crenças populares, tomadas como “superstições” pela religião inconteste, eram incapazes de fornecer todos os elementos que foram agrupados num universo demoníaco estruturado. Assim, teses como de Margaret Murray, que tomou o sincretismo religioso ainda presente como um elemento de distinção ao cristianismo e, mais recentemente, de Carlo Ginzburg59 que, seguindo os rastros da antropóloga, remonta elementos folclóricos dispersos numa crença única anticristã que se impunha em todo o continente, merecem análises cuidadosas, pois tratam de populações que foram cristianizadas e se pensavam dentro do 58 MUCHEMBLED, R. Uma história do Diabo: séculos XII-XX. São Paulo: Bom Texto, 2001. p. 36. 59 A esse respeito ver: GINZBURG, C. História noturna: decifrando o sabá. São Paulo: Cia. das Letras, 1991, e _____. Os andarilhos do bem: feitiçaria e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Cia. das Letras, 1989. Neste, o autor coloca os benandanti em franca oposição à Igreja, como uma força concorrente; porém, os próprios não se pensavam assim, podiam ser colocados dentro do estereótipo do sabbat por força de interrogatórios sugestivos, mas não se compreendiam como desagregadores da unidade católica. Tomando um testemunho, com alguns elementos próximos aos benandanti, Ginzburg aponta “um núcleo de crenças bastante coerente e unitário” (p. 79), mapeando semelhanças dispersas em um amplo território, apontando uma única e ancestral origem. A partir de um caso isolado, do lobisomem lituano, que fornece indícios sobre crenças no mundo dos mortos, afirma: “é evidente que nos encontramos diante de um único culto agrário que, a julgar por essas sobrevivências tão distanciadas entre si – a Lituânia, o Friul – deve ter-se difundido numa área bem mais vasta, talvez em toda a Europa central.” (p. 52). sistema cristão, mesmo com fundos culturais pagãos ainda não assimilados de todo, especialmente nas áreas campesinas. as populações se consideravam cristãs e não tinham o sentimento de aderir a uma religião condenada pela Igreja. E devem ter sido muito surpreendidas pela aculturação intensiva conduzida na Europa pelos missionários das duas Reformas que, eles sim, viram paganismo por toda parte. Este era há muito tempo um espelho partido, um universo rompido. Certamente subsistiu em nomes deformados de divindades e sob a forma de mentalidades e de comportamentos mágicos, mas sem panteão um pouco organizado que fosse, nem sacerdotes (ou sacerdotisas), nem corpos de doutrina. Era talvez vivido, mas não era pensado nem desejado.60 A junção do pensamento eclesiástico e da imaginação popular formou um “corpo de doutrina angustiante”,61 que culmina no século XV com a demonologia, conjunto das obras elaboradas pela Igreja que procuravam provar a presença do Diabo na Terra e sua ação por intermédio das bruxas, relacionando diretamente o Mal à mulher, fundamentando-se, sobretudo, em Tomás de Aquino. A malignidade de todos os demônios já havia sido estabelecida, de maneira que antigas tradições estruturadas dentro de um sistema mental que comportava o elemento mágico – como a crença nos daimones, espíritos de proteção familiar – viram-se transplantadas para a esfera do Mal no sistema cristão. E tal aculturação certamente surpreendeu inúmeros indivíduos convocados a testemunhar diante de juízes que não compartilhavam do mesmo fundo cultural. As práticas mágicas, durante a Alta Idade Média, foram vistas com indulgência pela Igreja, que se colocou contra as perseguições de mulheres e afirmava serem ilusórias as antigas crenças em cavalgadas noturnas ordenadas por Diana ou pelo próprio Satã. Burchardo de Worms cita em suas instruções aos clérigos como punir os recorrentes às superstições: ‘Acreditastes ou participastes nesta impiedade, que uma mulher por malefícios e encantamentos pode transformar a mente dos homens, transformando ódio em amor e amor em ódio, e através de feitiços possaroubar ou destruir os bens humanos? Se acreditastes ou participastes um ano de penitência nas festas legítimas.’62 Contudo, havia uma tradição eclesiástica, expressa fundamentalmente por Agostinho, que observava vividamente as práticas mágicas, reunindo-as em um mesmo grupo maligno, desconsiderando suas diferenças (como a magia propriamente, a goecia e a teurgia) e colocando-as como produtoras de sortilégios e encantamentos demoníacos. Em fins do século 60 DELUMEAU, J., op. cit., p. 373. 61 MUCHEMBLED, R., op. cit., p. 50. 62 Apud NOGUEIRA, C. R. F. Bruxaria e História: as práticas mágicas no Ocidente cristão. São Paulo: Ática, 1991. p. 28. XII, com a afirmação de heresias que arrebanhavam os fiéis do clero católico, a Igreja adota uma nova posição quanto à complacência, procurando reprimir os vínculos com um universo não ortodoxo que rivalizava com seus ensinamentos. A diabolização dos hereges é verificada na primeira descrição do beijo satânico por Walter Map, perseguidor dos publicani que atingiram a Inglaterra, em De Nugis Curialium, escrito entre 1181-1192. Ao cair da noite (...) cada família se senta esperando em silêncio em cada uma de suas sinagogas; e então desce por uma corda pendurada no centro um gato negro de proporções assombrosas. A esta visão, apagam as luzes e não cantam ou repetem hinos de modo distinto, mas murmuram-nos entre os dentes cerrados, e encaminham-se para perto do lugar onde viram seu mestre, tateando para encontrá-lo, e, quando o encontram, o beijam. Quanto mais quentes seus sentimentos mais baixos serão seus alvos; alguns preferem seus pés, mas a maioria a cauda e as partes pudentas. Então, como se esse contato daninho libertasse seus apetites, cada um se deita abraçado ao vizinho e se satisfaz dele ou dela com todas as suas forças. Seus anciãos sem dúvida sustentam, e ensinam a cada novato, que o amor perfeito consiste em dar e tomar, consoante possam o irmão ou irmã solicitar ou exigir, cada um saciando o fogo do outro.63 Em 1231, Gregório IX nomeia o primeiro inquisidor oficial da Alemanha, Conrad de Marburgo, que lutava contra uma seita satânica secreta próxima do estereótipo do sabbat: os iniciados beijavam o traseiro de um sapo ou de um gato preto, homenageavam “um homem pálido, magro e frio como gelo”, adoravam a Lúcifer e se entregavam a orgias, e na Páscoa, em especial, recebiam o corpo de Cristo para cuspi-lo nas “imundícies”.64 A vinculação da acusação de heresia a grupos ou indivíduos rivais da ordem estabelecida é observada já nos primeiros processos contra aqueles que se acreditava serem aliados do Diabo: os templários, processados entre 1307 e 1314, foram torturados até que a Igreja obtivesse a confissão de que renegavam Cristo; um bispo de Troyes recebeu a acusação de ter usado magia para matar a rainha da França; Enguerrand de Marigny, guarda do tesouro de Felipe, o Belo, foi enforcado em 1315 sob a acusação de ter tentado provocar a morte do rei utilizando-se de mágicos e bonecos de cera. Diante de tais acontecimentos que escandalizavam a ortodoxia cristã, o papa João XXII, na bula Super illius specula de 1326, equivale os malefícios à feitiçaria diabólica, sendo esta doravante considerada heresia, legitimando a perseguição inquisitória.65 Entre 1330 e 1340, em um processo contra feiticeiros de Toulouse, aparece pela primeira vez o termo sabbat referindo-se às reuniões de bruxas e demônios, que permanecerá aludindo a tais encontros, juntamente com “sinagoga”, em uma associação clara com os 63 Apud RICHARDS, J., op. cit., p. 70. 64 DELUMEAU, op. cit., p. 351. 65 Ibid., p. 351-2. judeus, minoria que intentava contaminar a sociedade dentro da ótica cristã. Sob tortura, as mulheres acusadas afirmaram adorar Satã, encarnado em um bode, e renegar Cristo, profanar a hóstia e os cemitérios em seus encontros noturnos, quando se entregavam a todo tipo de libertinagem.66 Mesclam-se elementos pagãos demonizados pela Igreja e as ofensas ao sagrado cristão, destacadamente as orgias que lesavam o prescrito resguardo dos corpos, construindo-se uma imagem que terá elementos acrescidos, mas cuja essência permanecerá ao longo da caça às bruxas. O crescimento das acusações de heresia passa a atingir grupos religiosos discordantes, e os conflitos internos do papado expressos no Grande Cisma (1378-1417) e no Concílio de Basiléia (1431-49), que subordina o papa, revelam uma Igreja em crise com múltiplos grupos de interesses, que viam seus adversários como heréticos ou ao menos procuravam lhes impingir tal estigma. A literatura surgida das reflexões do Concílio, destacadamente o Formicarius de Nider, juntamente aos processos contra a vauderie (seita constituída pelos seguidores de Pierre Valdo), assinalam a padronização dos relatos acerca dos grupos heréticos – pacto diabólico, orgias, infanticídio, malefícios. Norman Cohn insere o sabbat a partir da disseminação da propaganda eclesiástica contra as minorias heréticas ainda no início do século XI, quando a Igreja diabolizou os participantes de uma seita em Orléans, condenando-os à morte na fogueira. Os estereótipos do culto satânico desenvolvem-se a partir de então, unindo tradições populares de origens pagãs até então tida como ilusórias – como a crença dos romanos nas strigae e, especialmente na Idade Média, nas ‘damas da noite’67 –, magia, bruxaria e culto ao Demônio.68 Para Muchembled, o termo vauderie, que designava heresia de modo geral, passa a evocar diretamente o sabbat entre 1428-30 justamente nas terras do duque de Savóia- Piemonte, que viria a ser eleito o antipapa Félix V em 1439, fato devidamente inserido pelo autor nas querelas entre papas e antipapas que dividiam a cúpula cristã. O impulso da identificação dos inimigos e sua elevação ao nível da traição maior, a renúncia a Deus e a Cristo, adquire então uma nova luz, revelando um “excesso de tensões, característico de uma Igreja em crise até 1449. A concentração em um inimigo simbólico talvez tenha servido, ao 66 Ibid., p. 352. 67 Grupos de espíritos femininos que eram vistos ora como benéficos, ora como maléficos, comandados por uma divindade nomeada Diana, Holda, Heródias ou Abundia (dama Abonde). Os camponeses deixavam comida e bebida na soleira de suas portas durante a noite, especialmente no dia de Finados (2 de novembro), de maneira a não lhes despertar a fúria. Maiores informações em: GINZBURG, C. Os andarilhos do bem..., p. 63- 7; RICHARDS, J. op. cit., p. 86-7. 68 RICHARDS, J., op. cit., p. 86. mesmo tempo, para relaxar a pressão interna geral e para expressar a legitimidade e a ortodoxia dos grupos de influência envolvidos, particularmente eclesiásticos, que cercavam o antipapa Félix V.”69 A literatura acerca da feitiçaria começa a se infiltrar nos meios laicos coincidentemente com Martin Le Franc, secretário do duque de Savóia, que escreve a primeira obra em francês sobre a temática, com um teor altamente misógino, dissimulado sob o título Defensor da Causa das Mulheres.70 As idéias que caracterizavam as heresias expandem-se, e os processos contra feitiçaria alastram-se nas áreas que foram atingidas pelos valdenses, mostrando que “era a repressão que alimentava a demonologia teórica e esta se estiolava rapidamente se os casos concretos não se multiplicavam.”71 A proliferação dos tratados acerca das heresias e da feitiçaria impulsionou as perseguições. Entretanto, os tribunais e a divulgação dos delitos ao invés de reprimirem a bruxaria contribuíram para a propagação das crenças. Os inquisidores, mediante muitos testemunhos fantasiosos, encontravam nos culpados as causas das mazelas sociais, e a captura e punição das bruxas comprovavam a existência das práticas mágicas e a realidade da bruxaria,justificando a repressão. Diante da incredulidade de clérigos e leigos quanto aos malefícios e do assalto das forças demoníacas em algumas regiões da Alemanha, o papa Inocêncio VIII, na bula Summis desiderantes affectibus divulgada em 09 de dezembro de 1484, delega plenos poderes aos inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger72 para agirem de acordo com suas atribuições, sem quaisquer impedimentos. Os dois inquisidores, que vinham encontrando resistências locais, afirmavam terem se deparado com toda sorte de maquinações diabólicas – ação de íncubos e súcubos, abortos, destruição de plantios, perseguição de homens, mulheres e animais, quebra da força reprodutora e das relações sexuais entre esposos. E, sobretudo, a renúncia à fé católica. Kramer e Sprenger passam a contar diretamente com o apoio papal, que determina a recorrência aos juízes seculares em caso de necessidade e o estabelecimento da pena de acordo com a ofensa cometida.73 69 MUCHEMBLED, R., op, cit., p. 55. 70 Ibid., p. 53-6. 71 Ibid., p. 80. 72 Os referidos eclesiásticos são encontrados em diversas obras nomeados como Henry Institoris e Jacques ou Jacob Sprenger, entretanto, sigo aqui com os nomes que constam na tradução do Malleus Maleficarum que utilizo. 73 KRAMER, H.; SPRENGER, J. O martelo das feiticeiras – Malleus maleficarum. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1991. p. 43-6. O pronunciamento papal, “carta constitutiva da caça às bruxas”74, abre a maioria das edições do Malleus Maleficarum, obra apresentada às autoridades teológicas e lavrada em 1486, vindo a se constituir no guia dos inquisidores até o final de sua atuação na caça às bruxas. Sua audiência alcançou toda a Europa ocidental, sendo utilizado não somente nos países católicos, mas também nos que passaram pela Reforma e adotaram o protestantismo, e tanto por juízes eclesiásticos como por seculares. Em um período em que a Igreja e o Estado caminhavam juntos, este se utilizou tanto do poder temporal como do religioso, empregando a linguagem da Igreja. Os eclesiásticos forneceram a ideologia e o poder civil estabeleceu as armas de repressão, dessa forma, o Malleus tornou-se o principal instrumento para a condenação de mulheres acusadas de bruxaria. A ampla difusão da obra é registrada nos seguintes números por Robert Muchembled: Segundo um recenseamento feito com base em grandes catálogos de bibliotecas, a obra teve pelo menos 15 edições até 1520, quase todas nas cidades do Reno ou em Nuremberg, salvo duas em Paris, em 1497 e 1517, e em Lyon, em 1519. Se calcularmos a uma tiragem média de 1.000 a 1.500 exemplares por edição, isso significa que mais de 20.000 exemplares do livro puderam circular antes da Reforma, alguns milhares dos quais na França, o resto no Santo Império. O tratado passou abruptamente de moda entre 1520 e 1574, depois experimentou uma segunda vida, com 19 outras edições conhecidas, das quais três em Veneza, de 1574 a 1579, e dez em Lyon, entre 1584 e 1699.75 O início do século XVI vê o medo do Diabo se intensificar, o que resulta numa implacável perseguição que só é interrompida diante de um mal maior: a Reforma. Diminui então o número de processos contra a feitiçaria e de edições do Malleus Maleficarum, identificando-se a quebra nas vendagens. Apoderando-se do mito criado pelos católicos, os reformadores vêem emergir nas terras de Lutero uma influente cultura de medo e desconfiança do Demônio, atiçada pelo pavor da iminência do Final dos Tempos. Como visto, a centralização dos autores na região renana não impediu a utilização de seu tratado em um amplo território e em diferentes momentos da perseguição às feiticeiras. Ambos dominicanos e professores de teologia, embasaram-se em uma longa tradição que vinculava o mal à mulher, estabelecendo uma ligação direta entre a heresia e a feitiçaria, e esta com a agente favorita do Diabo. A análise do conteúdo do manual permite retomar diversos elementos significativos nesse processo, que irá tornar o discurso misógino estereotipado na Idade Moderna. 74 SALLMANN, J-M. As bruxas: noivas de Satã. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. p. 32. 75 MUCHEMBLED, R., op. cit., p. 61. Henry Kramer (?1430 – ?1505), prior do convento de Selestat, feroz inquisidor em áreas da Alemanha do Norte, atuou nas dioceses de Mainz, Colônia, Trèves, Salzburg e Bremen, áreas que recebiam idéias humanistas e transformações artísticas e culturais, além dos discursos eclesiásticos. “O confronto entre as formas de expressão e os tipos de pensamento, entre o antigo e o novo, aí se exacerbava.”76 Conseqüentemente, as heresias eram vistas mais intensamente, e Kramer perseguiu, além das bruxas, hussitas e valdenses, jamais sendo encontrando após partir para uma investigação (o que relembra o destino de alguns inquisidores que vieram a ser assassinados no exercício de sua temida missão, como Conrad de Marburgo). É o principal, senão único, elaborador da obra. James Sprenger (1436 – 1496), nasceu nas proximidades da Basiléia e estudou em Colônia, tornando-se prior do convento dominicano da mesma cidade. Sua atuação como inquisidor deu-se às margens do Reno, nas dioceses de Salzburg, Bremen, Trèves e Mayence. Jean-Michel Sallmann aponta-o como um estudioso de grande autoridade devotado a sua ordem, desempenhando funções administrativas, mas limitado em sua esfera de ação como inquisidor.77 Tal fato denuncia a pouca participação na redação do Malleus junto a Kramer, sendo no certificado de aprovação da obra “especialmente apontado como colaborador do primeiro”.78 Obra máxima produzida pela mania persecutória da Inquisição, o Malleus Maleficarum é composto por três partes que atestam a ação demoníaca no mundo através de seus agentes – a bruxa ou o bruxo, sendo a mulher sensivelmente mais atraída por Satã do que o homem. A primeira parte, “Das três condições necessárias para a bruxaria: o Diabo, a bruxa e a permissão de Deus todo-poderoso”, trata de enaltecer o Anjo Negro e atribuir-lhe poderes imensos (permitidos por Deus), ligando a ele a prática da bruxaria que resulta, sobretudo, da fraqueza feminina. Na segunda parte, “Dos Métodos Pelos Quais se Infligem os Malefícios e de que Modo Podem ser Curados”, os autores explicitam as maneiras de se firmar o pacto com o Tinhoso e diversos exemplos de malefícios. Para estes são determinados castigos proporcionais na terceira e última parte da obra, “Que Trata das Medidas Judiciais no Tribunal Eclesiástico e no Civil a Serem Tomadas Contra as Bruxas e Também Contra Todos os Hereges.” 76 Ibid., p. 62. 77 SALLMANN, J-M., op. cit., p. 33. 78 KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 518. Grifo meu. Entretanto, Robert Mandrou cita freqüentemente Sprenger como autor do Malleus, omitindo Kramer na autoria. A apresentação de argumentos contrários ao pensamento dos demonólogos, que os refutam baseando-se em diversos textos, colocando seu raciocínio como a verdade absoluta, permeia a disposição da obra. A descrença nos postulados estabelecidos é vivamente considerada manifestação herética, submetendo ao juízo divino, representado pelos poderes religioso e secular, a purgação dos culpados, que infectam toda a sociedade com suas ofensas ao Criador. Pois “qualquer homem que erra gravemente na interpretação das Sagradas Escrituras é corretamente considerado herege. E quem quer que pense de outra forma a respeito de assuntos pertinentes à fé que não de modo defendido pela Santa Igreja Romana é herege. Eis a verdadeira Fé!”.79 A renúncia à fé católica ou a negação de alguns postulados, a dedicação ao mal, a oferenda de crianças não batizadas ao Demônio, a lascívia de íncubos e súcubos: comportamentos padrões dos acusados de bruxaria, atormentam a boa consciência cristã que deve
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