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Demonização da mulher a construção do discurso misógino no Malleus Maleficarum - Silvia Liebel

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SILVIA LIEBEL 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
DEMONIZAÇÃO DA MULHER 
A construção do discurso misógino no Malleus Maleficarum 
 
Monografia de final de curso apresentada à disciplina 
Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica, do curso 
de História, setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da 
UFPR. 
 
Orientadora: Profa. Dra. Ana Paula Vosne Martins. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
CURITIBA 
2004 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
“Não sabes tu que és Eva, tu também? A sentença de Deus tem ainda hoje todo o vigor sobre 
este sexo, é preciso portanto que a culpa subsista também. Tu és a porta do Diabo, tu consentiste 
na sua árvore, foste a primeira a desertar da lei divina.” 
(Tertuliano) 
AGRADECIMENTOS 
 
Este trabalho demandou esforços não apenas meus, mas também daqueles que 
vivenciaram junto a mim os momentos de pesquisa intensa. Por isso, agradeço a todos que 
contribuíram, direta ou indiretamente, em sua realização, com sugestões, críticas e carinho. Meus 
maiores débitos ficam com a professora Ana Paula Vosne Martins, por sua dedicada orientação; 
com Giana Liebel, cujo empréstimo do computador salvou-me nos últimos momentos; com 
Vinícius Liebel, companheiro de todas as horas, por sua valiosa presença e incentivos constantes; 
e, por último, mas não menos importante por fornecer o suporte material a este trabalho, agradeço 
a Claudia Amanda Fonseca, e seu constante estímulo ao saber. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
SUMÁRIO 
Página 
 
I. INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 1 
 
II. DESENVOLVIMENTO..................................................................................................... 5 
 
Capítulo I. A construção da malignidade feminina na sociedade européia medieval.............. 5 
Capítulo II. A demonologia e o mais divulgado manual da Inquisição: 
o Malleus Maleficarum............................................................................................................ 22 
Capítulo III. A bruxaria como uma ameaça à sociedade cristã e sua perseguição.................. 51 
 
III. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................. 67 
 
IV. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................................. 71 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
I. INTRODUÇÃO 
 
“O outro é o fantasma da historiografia”.1 Relacionando a sentença de Michel de 
Certeau ao “dilema da diferença” tratado por Joan Scott2, que traz a definição da moderna 
historiografia ocidental do sujeito enquanto homem branco, estabelecer um caráter de 
importância para as mulheres e dotá-las de significado histórico manifesta o rompimento com 
as definições tradicionais da história e, consequentemente, com uma ideologia masculinista. 
O desenvolvimento de um estudo dentro da “história das mulheres” conta com 
diversas reflexões que forneceram o suporte à disciplina: o destaque à família e suas relações 
no cerne das sociedades e, por extensão, o papel do feminino dentro dela, promovido pela 
antropologia histórica do século XIX; os trabalhos a respeito do cotidiano e das mentalidades 
produzidos pela Escola dos Annales; as análises sobre os marginalizados pelo poder, as 
minorias e os oprimidos demandados com o movimento de Maio de 68; e o movimento 
feminista, impulsionador das investigações acerca do feminino nas universidades, que 
acabaram se voltando às discussões sobre gênero.3 
Pauline Pantel apresenta três conceitos fundamentais para o desenvolvimento de uma 
perspectiva das relações de gênero: assimetria sexual, que “acentua a disparidade que existe 
entre o poder e o valor atribuídos a cada um dos sexos”; relações sociais de sexo, que atenta 
para a construção das relações sociais; e, por fim, o conceito de gênero, termo freqüentemente 
empregado de forma vaga, referindo-se à existência de homens e mulheres e à “divisão do 
mundo entre masculino e feminino, a uma divisão sexual ou sexuada”.4 Para Klapisch-Zuber, 
 
Aquilo que se convencionou chamar ‘gênero’ é o produto de uma reelaboração cultural que a sociedade 
opera sobre essa pretensa natureza: ela define, considera – ou desconsidera –, representa-se, controla os 
sexos biologicamente qualificados e atribui-lhes papéis determinados. Assim, qualquer sociedade define 
culturalmente o gênero e suporta em contrapartida um efeito sexual.5 
 
As ciências humanas se encontram atualmente em conformação diante da longevidade 
da relação dominação masculina/sujeição feminina. Embora tal relação não denote a total 
destituição de poder das mulheres, aponta para o papel a elas reservado pelo universo 
 
1 CERTEAU, M. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. p. 14. 
2 SCOTT, J. História das mulheres In: BURKE, P. A escrita da História: novas perspectivas. São 
Paulo: UNESP, 1992. p. 63-95. 
3 DUBY, G.; PERROT, M (Org.). História das Mulheres no Ocidente. Porto: Edições Afrontamento, 
São Paulo: EBRADIL, 1994. v. 1: A Antiguidade. 
4 PANTEL, P. A história da mulher na história da antigüidade, hoje. In: Ibid., p. 594. 
5 KLAPISCH-ZUBER, C. In: DUBY, G.; PERROT, M (Org.). História das Mulheres no Ocidente. 
Porto: Edições Afrontamento, São Paulo: EBRADIL, 1994. v. 2: A Idade Média. p. 12. 
masculino, e sua análise acaba significando não o agir e o pensar daquele que por muito 
tempo foi considerado o “segundo sexo”, mas as visões a seu respeito. E, sendo a 
representação do feminino anterior a sua descrição ou narração, antes mesmo de o próprio 
sujeito o fazer, é essencial analisar o filtro masculino6 na constituição da mulher. 
O olhar sobre o outro, aqui o sujeito feminino demonizado pela Igreja através de um 
processo contínuo de reafirmação estrutural pelas instituições e agentes envolvidos, requer 
uma atenta análise dos contextos social e cultural. A especificidade que o discurso misógino 
adquire no contexto da Inquisição repousa sobre uma imagem da mulher construída por uma 
visão masculina extremamente pessimista, herdeira de tradições clássicas que foram 
acentuadas nos claustros medievais. A elaboração de discursos altamente misóginos apoiou-se 
sobre um fundo intelectual impregnado de aristotelismo, o que se alia ao pavor do sexo 
vivenciado por homens a quem se pregava os valores da castidade e do celibato. 
Desta forma a mulher, além de ser um ente negativo, representa uma tentação 
constante, devendo os homens dela se afastar se quiserem permanecer com seu espírito 
intocado. O conhecimento sobre o feminino é embasado em tradições clássicas e voltado a sua 
diminuição moral, com um respaldo pretensamente biológico, e dele a Igreja se utilizará para 
relacionar a mulher, responsável pela expiação das misérias dos homens, ao Demônio, figura 
indispensável no universo retratado. 
O Malleus Maleficarum, mais importante manual inquisitório sobre a bruxaria, 
apresenta a imagem da feiticeira que se entrega ao Demônio para perverter a humanidade 
como um reflexo das mulheres de seu tempo, vistas em uma torpeza moral irrefreável. 
Circunscrevendo historicamente a figura da bruxa demoníaca, necessária em um tempo de 
calamidades inexplicáveis e de íntima vivência do sobrenatural, observamos o papel 
fundamental dos autores na construção da imaginada liturgia satânica, procurando encontrar 
justificativas para os castigos divinos. 
A identificação dos elementos constituintes da visão masculina de mundo, herdados da 
Antigüidade e amplificados pelo cristianismo, que explicaram a inferioridade feminina e 
forneceram os dispositivos intelectuais para a construção da imagem da serva de Satã serão 
apresentados no primeiro capítulo deste trabalho. A esteselementos somam-se as discussões 
sobre a culpa humana e, principalmente da mulher, pela introdução do mal no mundo, 
juntamente com as heresias que ameaçavam a unidade cristã e os manuais dedicados à 
 
6 Ibid., p. 16. 
elaboração de imagens femininas negativas. Desta maneira poder-se-á compreender a 
especificidade que o discurso misógino adquire no período em estudo e as referências teóricas 
para o recrudescimento misógino observado a partir do século XII e que culminará na caça às 
bruxas. 
Na seqüência, a apresentação do contexto religioso no qual surge a demonologia 
garante o necessário entendimento dos meios através dos quais o Malleus Maleficarum se 
afirmou como um referencial, indiscutível durante muito tempo, para a coerção das 
populações pela Igreja, procurando legitimar e conservar a ordem estabelecida. A análise das 
fontes, destacando a base teórica do Malleus e a elaboração do estereótipo da bruxa neste 
manual, permite compreender de que modo as acusadas terminam sendo invariavelmente 
condenadas, com confissões induzidas pela tortura e por interrogadores preparados segundo 
as disposições da fé. 
A bruxaria é tratada como um fenômeno essencialmente feminino, decorrente das 
falhas próprias deste sexo que são apresentadas pelos autores fundamentando-se nas 
Escrituras, e, dentre os autores cristãos, principalmente em Agostinho, Tomás de Aquino e 
Johannes Nider, autor do Formicarius, outro manual inquisitório de repercussão. Sendo 
considerada herética a descrença na bruxaria, quaisquer manifestações de dúvida acerca dos 
malefícios ou do pacto diabólico poderiam redundar em processo. Estes tempos nefastos viam 
a ação do Demônio no mundo, permitida por Deus, em função dos pecados humanos, 
destacadamente o abismo do sexo. 
O capítulo final apresenta o fenômeno da bruxaria nas sociedades européias de inícios 
da Idade Moderna, refletindo sobre sua estreita vinculação ao universo feminino através da 
inculpação de indivíduos isolados socialmente, renegados por suas comunidades e que, para a 
ortodoxia, obtiveram meios de revidar na seita anticristã. A redução das práticas mágicas ao 
fenômeno da bruxaria, dotando-as de um caráter evasivo e destrutivo, formou o imaginário 
acerca das bruxas: mulheres geralmente velhas e pobres que cediam às tentações da 
demonolatria para alívio material ou espiritual, ou ainda para se vingarem de desafetos. 
A mentalidade da época, obsedada pelo discurso eclesiástico, vivenciava um clima de 
insegurança religiosa gerado pelas heresias medievais e pela Reforma, procurando reforçar o 
controle sobre as populações. Para tal confluíram os poderes religioso e civil, com o Estado 
empregando os dispositivos inquisitórios na perseguição daqueles que eram considerados 
culpados pelas desgraças coletivas, impondo um modelo de autoridade. 
O cerceamento da figura feminina através de sua diminuição pelos discursos médicos, 
políticos e religiosos – estes, objeto central das análises aqui desenvolvidas –, garantiu sua 
subordinação inconteste, excetuando-se as mulheres consideradas demoníacas. Tais 
apresentações sobre o feminino foram remodeladas segundo o mental de cada período vivido, 
perpetuando-se um controle que repousa sobre um complexo fundo cultural no qual o temor 
do “segundo sexo” é latente. 
Conforme apresenta Pierre Bourdieu, “A dominação masculina constitui o paradigma 
(e freqüentemente o modelo e o parâmetro) de toda dominação.”7 Decorre desta afirmativa a 
importância dos estudos voltados à historicização da sujeição feminina em suas diferentes 
formas, o que permite compreender as especificidades das redes de dependência entre 
dominado e dominante, e a arbitrariedade das construções sociais misóginas. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
7 BOURDIEU, P. A dominação masculina. Educação e Realidade, [Porto Alegre], v. 20, n. 2, jul./dez. 
1995. p. 176. 
 
II. DESENVOLVIMENTO 
 
CAPÍTULO I. A construção da malignidade feminina na sociedade européia medieval. 
 
As reflexões sobre a mácula da mulher não surgiram nos claustros da Idade Média, 
fruto de um antifeminismo virulento de religiosos que se viam paulatinamente limitados ao 
celibato, mas foram por estes herdadas e ampliadas, indo de encontro à visão do feminino 
introjetada nas estruturas sociais do período. A elaboração da imagem da bruxa pela produção 
intelectual do Medievo, aqui representada pelo Malleus Maleficarum, é marcada por um 
intenso processo de inculcação da ortodoxia religiosa – através de ampla produção erudita, 
sermões, simbolismo das Escrituras – para gravar no inconsciente coletivo a imagem da serva 
de Satã. A fixação do modelo garantiu o suplício das mulheres que freqüentemente eram 
outsiders em suas comunidades, a quem imputavam as características de bruxa, a agente do 
Demônio para castigar a humanidade por seus pecados. 
Contudo, conforme as indicativas de Pierre Bourdieu8, em um estudo dentro da 
chamada “história das mulheres” é fundamental ir além das análises da condição feminina e 
das formas de opressão, adentrando nos mecanismos de des-historização que promovem 
continuamente a exclusão. Nesse sentido, pautar a relação entre os sexos pelo processo 
histórico significa compreender o processo de eternização empreendido pelo masculino e 
corroborado pelo feminino, que assume uma identidade construída socialmente e assimilada 
como sina, destino, natureza. 
Tomando a sujeição feminina enquanto um produto ideológico, a “cosmologia 
falonarcísica” de que fala Bourdieu é orientadora de um princípio de divisão arbitrária que 
organiza uma visão de mundo construída e naturalizada. Este princípio é reforçado pelas 
estruturas objetivas na sociedade e pelas expressões coletivas incorporadas no habitus, 
universalizando uma visão masculina que, enraizada, não precisa de justificativa; a 
confirmação do ser e as formas de reconhecimento legitimam a construção que, tida como 
natural, torna-se evidente. Tendo o dominado em comum com o dominante os mesmos 
instrumentos de conhecimento, que são a forma incorporada das relações de dominação, sofre 
a violência simbólica através da inculcação e familiarização com a simbologia estruturada, 
que produz as disposições permanentes sobre as quais se apóia. 
 
 8 BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. 
A institucionalização do preconceito confirma-se com o feminino dominado 
projetando sobre si a imagem que lhe é atribuída pela visão masculina, naturalizando uma 
identidade socialmente imposta, o que traduz uma validação mútua dos papéis sociais 
masculino e feminino. A submissão feminina gera o reconhecimento do poder dominante, 
justificando sua razão de existir; desse modo, a virilidade contemplada só existe com a 
cumplicidade e a sujeição feminina, e o reconhecimento dos limites impostos exclui a 
possibilidade de transgressão. 
O mundo social imprime no corpo dos sujeitos esquemas de percepção e ação que 
funcionam como uma segunda natureza, instituindo a diferença biológica entre os sexos em 
termos desiguais e discriminatórios, produto de uma relação arbitrária de dominação, 
fundamentada na manutenção da ordem social. A mulher constitui-se em entidade negativa 
pelo defeito da ausência das propriedades masculinas, assim, o sexismo “visa imputar 
diferenças sociais historicamente instituídas a uma natureza biológica funcionando como uma 
essência de onde se deduzem implacavelmente todos os atos da existência”.9 
A oposição entre masculino e feminino constrói um sistema mítico-ritual confirmado e 
legitimado pelas próprias práticas que institui, caracterizando os sexos como sujeito/objeto, 
agente/instrumento. Esta oposição remete aos preceitos aristotélicos que situam o homem e a 
mulher em uma hierarquiaem função de superioridade e inferioridade, atribuindo as 
características de seco, quente, alto e reto ao masculino, e frio, úmido, baixo e curvo ao 
feminino, extrapolando os limites de uma suposta inferioridade física para uma inferioridade 
moral. Os espaços e funções são desta forma divididos a partir de inclinações físicas 
“naturais”, de modo a situar o homem na esfera pública e a mulher na esfera privada. 
Os aristotélicos, liderados por Tomás de Aquino, forneceram, no período medieval, a 
justificação teórica para a limitação da mulher e sua sujeição ao sexo forte. Uma identidade 
negativa, acrescida do signo diabólico no final deste período, condenou a mulher a carregar 
continuamente a prova de sua malignidade, justificando as atribuições que o sistema 
simbólico dominante lhes imputou como integrantes de sua “natureza” – ela é a tentadora, 
cuja lubricidade afasta os homens da salvação de sua alma. No jogo de dominação, a mulher, 
sujeito dominado, representa um perigo para a masculinidade. Encarnando a “vulnerabilidade 
da honra, (...) o sagrado desviante”, e guardando em si a “astúcia diabólica”, utiliza-se da 
 
9 BOURDIEU, P. A dominação masculina..., 1995, p. 145. 
desonra de que é revestida, “da falsidade e da magia”, 10 para tentar reverter o processo a que 
está submetida. 
As estratégias simbólicas empregadas contra os homens como a magia, mostram-se 
inócuas na medida em que revelam uma maleficidade natural ao feminino, envolto numa 
identidade negativa permeada por proibições. Permanecem, pois, estas estratégias dominadas, 
visto se originarem de uma visão androcêntrica: seus alvos são os próprios homens, de quem 
se busca o amor ou a desgraça. Opõe-se à violência física e simbólica perpetuada pelos 
machos uma violência sutil, não manifesta. 
Dentro dessa estruturação o dominante, enquanto poder legítimo, só pode ter uma 
imagem elevada de si mesmo e do que a sociedade lhe atribui. O ser homem liga-se à 
virilidade, ao senso de honra, à retidão, que freqüentemente são postos à prova, colocando o 
dominante também como dominado no jogo que institui, mas por sua dominação, o que 
obviamente o mantém acima do objeto de jugo. “É porque ele é treinado para reconhecer os 
jogos e os embates sociais onde se dá a dominação que o homem tem deles o monopólio”.11 
Concorrendo para a legitimação do arbitrário, o discurso eclesiástico, que possibilita e 
perpetua a inferioridade do feminino, cumpre uma função externa de legitimação da ordem 
estabelecida na medida em que a manutenção da ordem simbólica contribui diretamente para 
a manutenção da ordem política. Inculcar a ideologia religiosa e a liturgia, impor as 
observâncias rituais vividas como a condição de salvaguarda da ordem cósmica e da 
subsistência do grupo, significa reproduzir as relações fundamentais da ordem social.12 
 Com a função de estabelecer um consenso acerca da disposição das estruturas e 
posições no mundo, o campo religioso utiliza a autoridade para combater as tentativas 
proféticas ou heréticas de subversão da ordem simbólica. Redigindo instrumentos de forte 
apelo moral aos fiéis e aos que devem ser convertidos, a Igreja fornece tipologias dos 
desviantes e de seus pecados, ameaçadores da ordem, como encontramos no Malleus 
Maleficarum, alicerçado em uma longa tradição de escritores atormentados com os problemas 
da carne e sua interferência na relação com o sagrado. 
A inserção do indivíduo em sua época e meio social e as continuidades nas estruturas 
mentais no período retratado apontam para a relação entre indivíduo, aqui o sujeito feminino, 
e a esfera do sagrado. Lucien Febvre indica que a religião não só interfere na dinâmica 
 
10 Ibid., p. 157. 
11 Ibid., p. 162. 
12 BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974. 
individual como também afeta a dinâmica social, pois “o indivíduo é sempre o que lhe 
permitem que ele seja, tanto a sua época, quanto o seu meio social”.13 
Ao longo do período em estudo, a mulher viveu sob o estigma da inferioridade física e 
intelectual, sendo encarada como um ser maléfico em que se refletem a matéria, o instinto e a 
culpa pelas desgraças do homem. Entretanto, a mácula feminina não é um elemento recente 
utilizado pelos teólogos e pregadores, visto desde a Antigüidade a mulher ser a portadora do 
mal, estreitamente relacionada ao oculto, ao mágico e ao maligno. Mas um novo elemento 
será acrescentado ao caráter feminino neste momento pela Igreja, conspurcando o destino de 
milhares que seriam conduzidas ao ordálio: à responsável pelas desgraças da humanidade 
(reduzida ao universo significativo, o masculino) soma-se o conluio com o Maligno. 
O cristianismo incorporou e ampliou crenças sobre a mulher há muito difundidas, 
disseminando um antifeminismo agressivo, especialmente a partir do século XV. Como a 
cultura se encontrava nas mãos de clérigos celibatários, que procuravam então continuamente 
afirmar sua precedência na relação com o sagrado através de práticas de controle do corpo, 
mostra-se evidente a exaltação da virgindade e da castidade e o combate à tentação, 
afirmando-se a renúncia sexual como o “fundamento da dominação masculina na Igreja 
cristã”14. Os eclesiásticos, que erigiram o sexo feminino como o maior dos atrativos 
luxuriosos, “para não sucumbir aos seus encantos, incansavelmente o declararam perigoso e 
diabólico”.15 
Desde a Grécia Clássica observamos a mulher enquanto símbolo maior da carne e da 
matéria, representando a putrefação e o fim, ao passo que o homem relaciona-se à 
espiritualidade, sendo considerado o portador de um caráter superior perturbado pela natureza 
feminina. A mulher é, em sua essência, instintiva, dionisíaca, e o homem, racional, apolíneo.16 
A legenda máxima dos discursos misóginos cristãos, Eva, origem das desgraças da 
humanidade, relaciona-se àquela que, para os gregos, graças a sua curiosidade (que será dita 
tão própria das mulheres pelos padres da Igreja) libertou os males no mundo. Pandora, 
 
13 MOTA, C. G. (Org.). Febvre. São Paulo: Ática, 1978. p. 24. (Col. Grandes Cientistas Sociais). 
14 BROWN, P. Antigüidade Tardia. In: ARIÈS, P.; DUBY, G (Org.). História da vida privada. São 
Paulo: Cia. das Letras, 1989. v. 1: Do Império Romano ao ano 1000. p. 206. 
15 DELUMEAU, J. História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. São Paulo: Cia. das 
Letras, 1989. p. 322. 
16 A dessimetria dos gêneros mescla uma relação de medo e exaltação do “segundo sexo”, observada 
mesmo em sociedades matriarcais na pré-história, que viam na capacidade de gerar vida uma interação com o 
sagrado. Até o Romantismo, a mulher pode ser vista exaltada: inicialmente, como deusa da fecundidade, 
apresenta o caráter ambíguo da deusa-mãe, aquela que dá a vida e anuncia a morte; enquanto Atena representa a 
sabedoria; e, finalmente, como a Virgem Maria, é significação de pureza e bondade. Ibid., cap. 10. 
juntamente com Eva, simboliza o ardil feminino, tirando o homem do paraíso que lhe era 
merecido.17 No resgate de autores clássicos a fim de aprimorar os textos com intenções 
edificadoras, muitos teólogos do Medievo irão retomar personagens que exemplificam o 
caráter da desviante, personagens cujos atos mostram-se recorrentes nas acusações produzidas 
entre os séculos XV e XVII: feiticeiras que matavam crianças e devoravam seus filhos, com 
um apelo violento e erótico. 
A imagem feminina é construída sobre a encarnação da luxúria, a mulher é vista como 
portadora de uma sexualidade insistente que impede a psique masculina de se elevar. De 
“qualquer maneira, o homem jamais é o vencedor no duelo sexual. A mulher lhe é ‘fatal’. 
Impede-o de ser ele mesmo, de realizar sua espiritualidade, de encontrar o caminho de sua 
salvação”.18 Circe, a deusa-maga, embora tenha desviadoUlisses de seu destino e gerado 
filhos com ele, é frustrada em suas tentativas de assegurar seu amor, vendo seus poderes 
extraordinários não surtirem efeito.19 Já Ovídio declarara proibido o caminho do malefício, e 
a inutilidade de se tentar provocar sentimentos com o uso de artifícios mágicos.20 
A fraqueza do caráter feminino de agir no universo passional por meios mágicos 
mostra-se também em Canídia, que esquarteja uma criança a fim de utilizar seu sangue em 
uma poção, parte do repertório da mística do universo passional grego, derivada dos 
afrodisíacos, os encantos preparados de Afrodite. Também se vêem nas narrativas sobre a 
feiticeira o uso de plantas maléficas (maléficas por serem empregadas nos malefícios, não por 
serem venenosas), preferencialmente as plantas que nasciam em torno das sepulturas, além de 
pêlos de lobos e bonecos de cera. 21 
Medéia, a mais elaborada das três personagens, é o símbolo máximo da feiticeira, em 
poder e sedução: perita em sortilégios, conhece a fundo as virtudes das plantas, sendo exímia 
perfumista e envenenadora. Também é ela que, em seu desejo frustrado, assassina os próprios 
filhos como vingança ao ser amado. 
 
17 Em uma versão corrente do mito, Zeus teria criado a primeira mulher para castigo dos homens. 
Pandora fora moldada à imagem das deusas, recebendo de cada divindade uma dádiva e um mal, sendo todos os 
males guardados em uma caixa. Como principal característica feminina, possuía a arte da mentira e, entre seus 
dons, destacava-se sua curiosidade. Ao chegar na terra, ocorreu a primeira tragédia: o casamento. Pandora uniu-
se a Hipemeteu e, somadas a curiosidade dela e a inconseqüência dele, resolveram abrir a caixa de Pandora, 
libertando os males no mundo. 
18 Ibid., p. 313. 
19 HOMERO. Odisséia. São Paulo: Ars Poetica, EDUSP, 1992. 
20 OVÍDIO. Os remédios do amor: os cosméticos para o rosto da mulher. São Paulo: Nova Alexandria, 
1994. 
21 HORÁCIO. Sátira VIII – O deus Príapo e as feiticeiras; Épodo VIII. In: HORÁCIO; OVÍDIO. 
Sátiras. Os Fastos. Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre: W. M. Jackson, 1952. 
 
Agora, agora deveis assistir-me, ó deusas, vingadoras do crime: os cabelos desarrumados, entrelaçados 
de serpentes, firme nas mãos sanguinolentas um lúgubre archote, assisti-me, ó deusas, tão horríveis 
como quando ficastes perto do meu leito nupcial. Matai a nova esposa, matai o sogro e toda a família 
real. E a mim, dai um outro mal, mais terrível que a morte, para que eu possa oferecê-lo ao meu esposo: 
que ele viva, errando pobre por cidades desconhecidas, desterrado, espantado, abominado, sem lar; que 
ele me deseje como esposa e encontre a porta fechada, hóspede já muito conhecido. E – não é possível 
pensar nada mais horrível – possa ele gerar filhos semelhantes ao pai, semelhantes à mãe. Quando eu 
dava à luz os meus filhos, dava à luz a minha vingança.22 
 
Observamos, assim, que as figuras da mãe ogra, Moiras, Erínias, Amazonas, marcam a 
continuação no inconsciente coletivo de representações pagãs terrificantes que eram 
assimiladas à índole da mulher contemporânea, construindo-se um sistema de representações 
do feminino que reforçava sua alienação dos instrumentos de controle social. A cultura 
dirigente passa então a transformar um medo espontâneo em um medo refletido, colocando a 
mulher como um agente de Satã, tanto para os homens de Deus quanto para os leigos. 
A inferioridade da mulher no cristianismo foi justificada principalmente pelas 
Epístolas de São Paulo e pelo relato do Gênesis, com a criação de Eva e a expulsão do 
Paraíso. George Minois apresenta a Queda como uma criação dos teólogos que exploraram o 
mito sistematicamente a partir do século II, impondo-se a ampliação do relato com a 
afirmação de que Jesus seria o redentor das faltas imputadas a todos os homens pelo primeiro 
pecado – a grandiosidade de seu papel redunda igualmente no crescimento da imagem 
daquele que tornou necessária a morte do filho de Deus. 
O Gênesis mostra que Deus teria criado Eva a partir de Adão, o que justifica para os 
clérigos a submissão da mulher ao homem, e, tendo sido criada a partir da costela de Adão, 
um osso curvo, o espírito da mulher reflete esse desvio e é perverso desde sua origem. Eva, 
com sua sede de conhecimento do Bem e do Mal, ao se permitir seduzir pelo Demônio arrasta 
consigo Adão, tornando-se responsável pela queda do homem. 
 
O ter atribuído à serpente tentadora um rosto de mulher pode dar a medida de como o pecado era vivido 
de um ponto de vista exclusivamente masculino e como era representado de acordo com essa directriz, 
mesmo com o risco de uma certa incoerência. De facto, para Eva teria sido bem mais atraente o rosto de 
um belo jovem do que de uma mulher.23 
 
Contudo Eva, com sua curiosidade e desejo de poder, garantiu ao homem a tomada do 
conhecimento, que a partir de então é por ele controlado, pois sendo a responsável principal 
 
22 SÊNECA. Obras. Rio de Janeiro: Ediouro, [198-]. p. 80. 
23 FRUGONI, C. A mulher nas imagens, a mulher imaginada. In: DUBY, G.; PERROT, M. (Org.). 
História das Mulheres no Ocidente. Porto: Afrontamento, São Paulo: EBRADIL, 1994. Vol. 2: A Idade Média. 
p. 473. 
pela queda a mulher permanece sendo-lhe sujeita, desaparecendo de cena após parir. Mesmo 
os primeiros filhos de Eva podem ter uma paternidade duvidosa para alguns pensadores 
cristãos do Medievo, que acreditam no Diabo como pai de Cain e Abel, de maneira que 
caberia ao Mal a tutela de parte da humanidade.24 É realizado um paralelo entre Adão e José, 
como instrumentos de poderes maiores: Eva carrega a semente do Diabo, e Maria a de Deus.25 
As ambigüidades acerca da figura da mulher no cristianismo originam-se com Paulo, 
que afirmava possuir o dom da castidade, não compartilhado pela maioria. Para o apóstolo, 
“seria bom ao homem não tocar mulher alguma”,26 entretanto, não ousava propor o 
estabelecimento do celibato, pois significaria acabar com a instituição da família, a quem 
procurava atingir com seus discursos.27 Paulo coloca a mulher subordinada ao marido no 
casamento, sendo o homem quem comanda o casal: “As mulheres sejam submissas a seus 
maridos, como ao Senhor, pois o marido é o chefe da mulher, como Cristo é o chefe da Igreja, 
seu corpo, da qual ele é o Salvador. Ora, assim como a Igreja é submissa a Cristo, assim 
também o sejam em tudo as mulheres a seus maridos.”28 
Da mesma forma, para Paulo a mulher também é subordinada perante a Igreja, sendo 
vedada-lhe a transmissão do conhecimento, o que é demonstrado em uma passagem do Novo 
Testamento que pode ser considerada o “texto bíblico preferido dos sacerdotes”29: 
 
Como em todas as igrejas dos santos, as mulheres estejam caladas nas assembléias: não lhes é permitido 
falar, mas devem estar submissas, como também ordena a lei. Se querem aprender alguma coisa, 
perguntem-na em casa a seus próprios maridos, porque é indecente para uma mulher falar na 
assembléia. Porventura foi dentre vós que saiu a palavra de Deus? Ou veio ela tão-somente para vós?30 
 
No século II da era cristã, o pecado original é pela primeira vez revestido de conotação 
sexual por Clemente de Alexandria.31 Tertuliano, que escrevera sobre as fraquezas sexuais 
inerentes às mulheres, estendia a elas o pecado da Eva tentadora: “Não sabes tu que és Eva, tu 
também? A sentença de Deus tem ainda hoje todo o vigor sobre este sexo, é preciso portanto 
 
24 MINOIS, G. Les origines du Mal: une histoire du péché originel. Paris: Fayard, 2002. p. 113. 
25 Ibid., p. 36. 
26 BÍBLIA, N. T. I Coríntios. Português. Bíblia Sagrada. Versão de Frei João José Pedreira de Castro. 
São Paulo: Ave-Maria, 2001. Cap. 7, vers. 1. 
27 BROWM, P. Corpo e sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo. 
Rio de Janeiro: J. Zahar, 1990. passim.28 BÍBLIA, N. T. Efésios. Português. Bíblia Sagrada. op. cit. Cap. 5, vers. 22-24. 
29 RANKE-HEINEMANN, U. Eunucos pelo reino de Deus: mulheres, sexualidade e a Igreja Católica. 
Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1999. p. 138. 
30 BÍBLIA, N. T. I Coríntios. op. cit. Cap. 14, vers. 34-36. 
31 RICHARDS, J. Sexo, desvio e danação: as minorias na Idade Média. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1993. 
p. 34. 
que a sua culpa subsista também. Tu és a porta do Diabo, tu consentiste na sua árvore, foste a 
primeira a desertar da lei divina.”32 
Neste período, observa-se no Império Romano a tentativa de se explicar 
biologicamente o domínio masculino sobre mulheres e escravos, garantindo, assim, a 
perpetuação do sistema intelectual que os colocava em um lugar determinado pelos censores 
sociais e a diminuição do risco de insubordinações. 
 
os homens eram os fetos que haviam realizado seu potencial pleno. (...) As mulheres, em contraste, 
eram homens imperfeitos. O precioso calor vital não lhes chegara em quantidades suficientes no ventre. 
Sua falta de calor as tornava mais flácidas, mais líquidas, mais frias e úmidas e, de modo geral, mais 
desprovidas de formas do que os homens.33 
 
A necessidade masculina de diferenciação explícita das mulheres, ante o medo de uma 
‘efeminização’, faz-se presente, bem como a proposição por parte de alguns filósofos, como 
Plutarco, de que o marido deveria se tornar “mentor filosófico” de sua esposa. Esta deve ser 
vigiada, sendo seu espírito inculcado de bons ensinamentos a fim de que ele não se atrofiasse, 
moldando-a, dessa forma, conforme a um homem. As mulheres ‘quando não recebem a 
semente das boas doutrinas e compartilham com seus maridos o avanço intelectual, elas 
concebem, entregues a si mesmas, muitas idéias impróprias e estratagemas e emoções vis.’34 
As intensas discussões em torno da sexualidade, campo privilegiado para a ação 
feminina, resultaram em tendências conflitantes dentro do cristianismo que incidirão sobre o 
acirramento das formulações misóginas na Igreja medieval. Gregório de Nissa apresentou a 
distinção sexual como permissiva à sexualidade que, por sua vez, possibilita o cumprimento 
da perpetuação, um desígnio divino, procurando-se barrar a morte, decretada com a Queda. 
 
Gregório sempre tendeu a apresentar a sexualidade, juntamente com outros aspectos da vida instintiva, 
não como uma anomalia privilegiada, mas como um símbolo da lenta mas infalível sagacidade divina. 
A sexualidade e o casamento representavam a doce persistência de Deus em levar a raça humana a sua 
destinada plenitude, ainda que fosse, a partir de então, ‘por um longo desvio’.35 
 
Em oposição a Gregório de Nissa, Ambrósio e Jerônimo, que colocavam a sexualidade 
e o casamento como resultantes da Queda, Agostinho encarava a dominação masculina e 
parental como integrantes das disposições formuladas por Deus a princípio, considerando que 
 
32 TERTULIANO apud DALARUN, J. Olhares de clérigos. In: DUBY, G.; PERROT, M., op. cit., p. 
35. 
33 BROWM, P., op. cit., p. 19. 
34 PLUTARCO apud BROWM, P., op. cit., p. 101. 
35 BROWN, P., op. cit., p. 246. 
o “matrimônio existia antes do pecado sem as conseqüências da sensualidade”36. Sendo esta 
derivada da falta cometida por Adão e Eva, o pecado original, expressão cunhada pelo próprio 
bispo de Hipona37, relaciona-se não propriamente ao ato sexual, mas à concupiscência que 
garantiu não somente às mulheres, mas também aos homens, uma natureza decaída. Faz-se 
doravante necessário empreender uma formalização da permissão ou proibição das práticas 
sexuais dos casais. “Para Agostinho, (...) a sexualidade tal como se observa atualmente 
constitui um sintoma tão íntimo da queda de Adão e Eva quanto a mortalidade: sua natureza 
atual incontrolável resulta da queda de Adão e Eva tão imediata e seguramente como o 
contato glacial da morte.”38 
Mas cabe à mulher pagar duplamente pelo orgulho que a levou a se rebelar contra as 
determinações de seu criador: sofrendo ao gerar a vida, pois foi ela quem introduziu a morte 
no mundo, e sendo submissa ao homem a fim de atenuar sua falta, pois ela o induziu a pecar. 
Adão permanece vitimizado no pensamento de Agostinho, pois ele teria cedido ao pecado 
apenas para agradar sua companheira, tendo todos pecado junto ao primeiro homem, 
representante da espécie. Desta forma justifica-se o batismo, pois todos nasceriam com o 
pecado original, e livra-se da culpa um deus infinitamente bom, caindo a culpa do mal sobre a 
humanidade. 
Refletindo acerca das diferenças entre o masculino e o feminino, Agostinho 
empreende, no século V, a conciliação entre o antifeminismo e uma suposta igualdade entre 
gêneros que teria sido prescrita por Jesus, colocando o ser humano como possuidor de um 
corpo sexuado, que incide sobre a mulher, e de uma alma assexuada, que se reflete no 
homem. Assim, predomina neste a razão, o que o coloca como a imagem de Deus, e, sendo 
inferior, a mulher deve-lhe ser submissa. São, portanto, homem e mulher próximos na 
complementação de metades desiguais. 
As proposições de Agostinho refletirão profundamente sobre o corpo doutrinal da 
Igreja, prestando-se a alguns autores que, ao menos até o século X, viam os atos e 
pensamentos das mulheres como responsabilidades de seus guardiões. O combate à posição 
subordinada do feminino ocorria apenas quando este arrojava a si os instrumentos com os 
quais procurava lutar contra a dominação masculina – sobretudo encantos e poções 
direcionados à sexualidade, meios próprios de sua natureza impura e pérfida. As 
 
36 AGOSTINHO, Santo. A Graça (I). São Paulo: Paulus, 1998. p. 306. 
37 MINOIS, G., op. cit., p. 65. 
38 BROWN, P. Antigüidade Tardia..., p. 294-5. 
transformações culturais operadas entre o século X e o final do século XII colocarão a mulher 
como atuante nos conflitos, retirando-lhe sua característica passiva, ponto fundamental para 
torná-la a serva do Diabo, condutora das mazelas no mundo. 
Em cerca de 1095, Godofredo de Vandoma amplia os discursos sobre a falta feminina 
que tragou o homem para a maldição. 
 
Este sexo envenenou o nosso primeiro pai, que era também o seu marido e pai, estrangulou João 
Batista, entregou o corajoso Sansão à morte. De uma certa maneira, também matou o Salvador, porque, 
se a sua falta o não tivesse exigido, o nosso Salvador não teria tido necessidade de morrer. Desgraçado 
sexo em que não há nem temor, nem bondade, nem amizade e que é mais de temer quando é amado do 
que quando é odiado.39 
 
Já no século XII, observamos o início da expansão da literatura de aversão ao sexo 
feminino, que deixa o domínio exclusivo dos monastérios e atinge canonistas, moralistas e, no 
século XIV, os demonólogos. Jeffrey Richards mostra que neste momento o espancamento 
das esposas era facultado pelas leis civis, que também determinavam a exclusão feminina dos 
cargos públicos devido serem “por natureza frívolas, ardilosas, avarentas e de inteligência 
limitada”, enquanto as leis eclesiásticas embasavam a exclusão no pecado original.40 
É também no século XII que escreve um dos principais, senão o principal inspirador 
dos conceitos (re)lançados no Malleus Maleficarum, e na misoginia cristã de modo geral. 
Tomás de Aquino, servindo-se dos referenciais aristotélicos, coloca a existência de um único 
sexo, o masculino, que reflete razão e virtude, sendo a mulher um macho imperfeito que 
necessita de um companheiro para procriação, sua função natural, e para governá-la, pois o 
homem é mais perfeito por sua razão e mais forte na virtude, com esta afirmativa permeando 
os discursos médicos. 
Dentre vários autores que acompanham o raciocínio acerca da necessidade da esposa 
obedecer a seu marido destaca-se São Bernardino de Siena, que no século XV concederá às 
mulheres a igualdade de espírito frente aos homens, embora permanecendo estessuperiores na 
carne. Entretanto, a inferioridade da mulher levará Tomás de Aquino a conceder ao homem a 
primazia na reprodução, de modo que cabe a ele a transmissão do pecado original desde 
Adão. 
Graciano, em compasso com as idéias de Aquino, apresenta a mulher duplamente 
subordinada ao marido: por ter sido criada a partir do homem, a mulher lhe é inferior; e por 
 
39 VANDOMA apud DALARUN, J., op. cit. p. 34. 
40 RICHARDS, J., op. cit., p. 36. 
ter cedido à tentação do Diabo em forma de serpente e apreciado os prazeres da carne, é 
diabólica.41 Vincula-se o sexo a Satã, surgindo os elementos que comporão o cenário 
privilegiado para os processos contra bruxaria, as nefastas uniões de homens e mulheres com 
demônios súcubos e íncubos. 
Ranke-Heinemann, teóloga detratada pela Igreja que analisa a misoginia cristã desde 
suas bases clássicas, apresenta que, na “raiz da difamação das mulheres na Igreja, encontra-se 
a noção de que são impuras e como tais opõem-se ao que é santo. Na avaliação dos clérigos, 
as mulheres são seres humanos de segunda classe. Clemente de Alexandria escreve: com 
relação às mulheres, ‘a exata consciência de sua própria natureza deve evocar sentimentos de 
vergonha’.”42 Esta proposição, reafirmada continuamente ao longo da Idade Média e que 
encontrou meios práticos de observação nos processos inquisitoriais dos séculos XV ao XVII, 
é demonstrada por Hildeberto de Lavardin, que escreve no século XII, momento máximo de 
reafirmação estrutural da Igreja contra elementos sociais subordinados, mas, ao mesmo 
tempo, ameaçadores. 
 
A mulher, coisa frágil, inconstante a não ser no crime, não deixa nunca espontaneamente de ser nociva. 
A mulher, chama voraz, loucura extrema, inimiga íntima, aprende e ensina tudo o que pode prejudicar. 
A mulher, vil forum, coisa pública, nascida para enganar, pensa ter triunfado quando pode ser culpada. 
Consumindo todo no vício, é consumida por todos, predadora dos homens torna-se ela própria a presa.43 
 
Em De contemptu feminae, obra elaborada por Bernard de Morlas, monge de Cluny no 
século XII, encontramos diversos elementos que serão intensamente repetidos pelos 
demonólogos, tendo alcançado grande difusão com a radicalização do antifeminismo clerical, 
paralelamente à expansão do culto mariano. 
 
A mulher ignóbil, a mulher pérfida, a mulher vil 
Macula o que é puro, rumina coisas ímpias, estraga as ações [...]. 
A mulher é fera, seus pecados são como a areia. 
Não vou entretanto caluniar as boas a quem devo abençoar [...]. 
Que a má mulher seja agora meu escrito, que seja meu discurso [...] 
Toda mulher se regozija de pensar no pecado e de vivê-lo. 
Nenhuma, por certo, é boa, se acontece no entanto que alguma seja boa. 
A mulher boa é coisa má, e quase não há nenhuma boa. 
A mulher é coisa má, coisa malmente carnal, carne toda inteira. 
Dedicada a perder, e nascida para enganar, perita em enganar, 
Abismo maldito, a pior das víboras, bela podridão, 
Atalho escorregadio [...], coruja horrível, porta pública, doce veneno [...], 
Ela se mostra inimiga daqueles que a amam, e se mostra amiga de seus inimigos [...]. 
 
41 Ibid., id. 
42 RANKE-HEINEMANN, U., op. cit. p. 141. 
43 Hildeberto de Lavardin apud DALARUN, J., op. cit., p. 38. 
Ela não exclui nada, concebe de seu pai e de seu neto. 
Turbilhão de sexualidade, instrumento do abismo, boca dos vícios [...]. 
Enquanto as colheitas forem dadas aos cultivadores e confiadas aos campos, 
Essa leoa rugirá, essa fera maltratará, oposta à lei. 
Ela é o delírio supremo, e o inimigo íntimo, o flagelo íntimo [...]. 
Por suas astúcias uma só é mais hábil que todos [...]. 
Uma loba não é mais má, pois sua violência é menor, 
Nem uma serpente, nem um leão [...]. 
A mulher é uma feroz serpente por seu coração, por seu rosto ou por seus atos. 
Uma chama muito poderosa rasteja em seu seio como um veneno. 
A mulher má se pinta e se enfeita com seus pecados, 
Ela se disfarça, ela se falsifica, ela se transforma, se modifica e se tinge [...]. 
Enganadora por seu brilho, ardente no crime, crime ela própria [...]. 
O quanto pode, ela se compraz em ser nociva [...]. 
Destruição primeira, pior das partes, ladra do pudor. 
Ela arranca seus próprios rebentos do ventre [...]. 
Ela trucida sua progenitura, abandona-a, mata-a, num encadeamento funesto. 
Mulher víbora, não ser humano, mas fera selvagem e infiel a si mesma. 
Ela é assassina da criança e, bem mais, da sua em primeiro lugar, 
Mais feroz que a áspide e mais furiosa que as furiosas [...]. 
Mulher pérfida, mulher fétida, mulher infecta. 
Ela é o trono de Satã; o pudor está a seu cargo; foge dela, leitor. 44 
 
Alguns dos documentos produzidos no século XII que tratam do feminino são 
analisados por Georges Duby em Eva e os Padres45, embora venham a revelar não a ótica das 
mulheres, sujeitos silenciados, mas o universo masculino de então, suas visões do sexo oposto 
e desejos. As reflexões sobre o Gênesis, tratado primário do condicionamento da mulher ao 
pecado, que vincula a figura humana a três atos, criação, tentação e punição, expressam a 
motivação da inferioridade da mulher frente ao homem – a sexualidade latente, e, em 
decorrência, o pecado. 
O Livre des manières, escrito entre 1174-8 por Étienne de Fougères, bispo de Rennes, 
apresenta novamente a mulher como portadora do mal, citando os pecados femininos. 
Entretanto, sua obra possui um elemento diferencial que consiste na intenção de se atingir a 
corte, sendo escrito em língua vulgar. As damas são o alvo preferencial dos sermões, 
compreendendo-as o autor como disseminadoras do pecado – dada sua posição social, seus 
atos eram mais constantemente observados e copiados. Seus três principais vícios consistem 
na luxúria; na insatisfação frente os desígnios divinos, pois procuram alterar o destino com 
feitiçaria; e na insubordinação ao marido a elas destinado. A relação que o autor acredita 
existir entre mulher e marido é moldada pelas relações de vassalagem: à primeira cabe “amar, 
 
44 PELAYO apud DELUMEAU, J., op. cit., p. 325-6. 
45 DUBY, G. Eva e os padres. São Paulo: Cia. das Letras, 2001. 
servir e aconselhar o homem a quem foi entregue, lealmente, sem mentir”, e os deveres do 
senhor consistem em protegê-la, subordinando-a dentro da estrutura social.46 
A sujeição da mulher enquanto macho deficiente é perpetuada nos escritos de 
Abelardo, que crê ser a mulher inferior ao homem na razão, sendo este mais “perfeito” e 
“terno” na condução daquela (como Abelardo pretendia ser como guia espiritual de Heloísa). 
Os perigos da presença das mulheres, nos textos de Pierre le Mangeur, Robert de Liège e 
Hugues de Saint-Victor, concorrem para a redenção da culpa masculina na fornicação. 
 
Identificam-se com Adão a quem Eva estende a maçã. O que era o fruto proibido? O corpo dessa 
mulher, suave e delicado ao olhar, deleitável. Sabem o que é ser tentado e estão cheios de indulgência 
para com Adão. Sua tendência é de minorar a culpabilidade do homem e, assim, sua própria 
culpabilidade. Como resistir, cercados por tantas mulheres oferecidas?47 
 
A construção de uma moral condicionada ao combate dos vícios e à manutenção do 
controle das filhas de Eva, ultrajadas por seu sexo, propõe meios de controle dos vícios 
femininos, dentre os quais se destacam a vaidade, a luxúria, a insubordinação e a prática de 
magia, a fim de moldarem-se as damas segundo as orientações de seus senhores. A mulher 
poderia subtrair suas culpas com a castidade ou, para aquelas casadas, com a moderação da 
conduta sexual, destinada exclusivamente à reprodução. As mulheres deveriam superar sua 
condição inferior, elevando seu espírito ao Altíssimo, pois este era também seu marido, e o 
mais importante. 
Neste momento, o casamento é afirmado pela Igreja como o sétimo sacramento, 
paralelamente às transformaçõesnas condutas dos homens, frente às uniões consensuais 
desenfreadas e repúdio de esposas, servindo também às motivações da nobreza de afirmar 
suas linhagens e a transmissão hereditária do poder. Ressalta-se então o principal elemento de 
resgate das pecadoras contido nas Escrituras: 
 
A mulher ouça a instrução em silêncio, com espírito de submissão. Não permito à mulher que ensine 
nem que se arrogue autoridade sobre o homem, mas permaneça em silêncio. Pois o primeiro a ser criado 
foi Adão, depois Eva. E não foi Adão que se deixou iludir, e sim a mulher que, enganada, se tornou 
culpada de transgressão. Contudo, ela poderá salvar-se, cumprindo os deveres de mãe, contanto que 
permaneça com modéstia na fé, na caridade e na santidade.48 
 
 
46 Ibid., p. 39. 
47 Ibid., p. 64. 
48 BÍBLIA, N. T. I Timóteo. Português. Bíblia Sagrada. op. cit. Cap. 2, vers. 11-15. 
A salvação da mulher através da maternidade aponta para sua principal função: a 
procriação, condicionadora do casamento e de sua relação com o sagrado. Mas a fêmea, 
ambivalente, não é somente portadora da vida, também carrega a morte. Martins analisa a 
maternidade associada às representações da malignidade feminina, discutindo a junção dos 
elementos de repúdio e de louvor em uma mulher que, tal qual uma feiticeira que tentava os 
homens e poderia desviá-los do caminho da glória, ou que se aproxima do modelo ideal da 
masculinização, gera um rebento maligno, mas não é condenada por trazê-lo ao mundo, 
pois o mata em redenção.49 
No Medievo, observamos o relevo acentuado da imagem da mãe sofredora com seu 
filho aos pés da cruz; nas palavras de Jacques Dalarun, a “uma Eva inonimada opõe-se uma 
Maria inacessível”.50 Salva-se uma imagem positiva de determinado tipo de mulher, 
compensando Eva por Maria (Ave, a inversão da primeira), na oposição entre carne e espírito. 
O século XIII com os mendicantes, sobretudo franciscanos, apresenta o triunfo da mulher 
como mãe e realça a imagem da Virgem da dor, de modo que a purificação de Maria torna-se 
santificação. 
As mulheres destacam-se no plano religioso. Insurgem em movimentos heréticos, 
ordens ou mesmo fora da instituição, em conjunto com seu papel na sociedade intermediado 
pelo pai ou marido, figuras do protetor e decisor. Ocorre no período um apelo por 
determinados setores da Igreja ao cristianismo primitivo, que tendia a refletir uma igualdade 
entre homens e mulheres. Jesus cercou-se de mulheres, destacando-se a meretriz, encarnação 
do pecado, sendo elas as primeiras a testemunharem a ressurreição. Contudo, a elevação da 
mulher encontrou dificuldades de ser posta em prática nas sociedades patriarcais e no 
contexto cultural onde foi difundida. Sua figuração poderia ser indispensável, mas permanecia 
subjugada. 
As heresias, cujo alcance era acompanhado da perseguição, forneceram os elementos 
que construíram o estereótipo do sabbat e da bruxa e, ainda no século XII, é relatada a ligação 
 
49 Examinando a linguagem cinematográfica, a autora escreve acerca da protagonista de Alien: “Ela 
não deixa de ser a representação da mulher poluidora, mas ao tomar consciência de que gesta o Mal passa a 
ser salvadora, mesmo que o preço da salvação seja a sua morte. O martírio da tenente Ripley, portanto, 
articula representações diferentes da mulher em torno do embate mítico do Bem e do Mal, reabilitando a 
figura feminina que desde as primeiras narrativas cristãs esteve associada ao Mal.” MARTINS, A. P. V. O 
martírio da tenente Ripley: a mulher e o Mal no cinema de ficção científica. In: Cadernos de Pesquisa e 
Debate. Representações de gênero no cinema. N. 2, dez. 2003. Núcleo de Estudos de Gênero da Universidade 
Federal do Paraná. 
50 DALARUN, J., op. cit., p. 39. 
entre o Diabo, hereges e desvios sexuais.51 Jeffrey Richards apresenta a grande participação 
de mulheres nos movimentos heréticos em virtude de uma série de fatores que intervieram 
conjuntamente ao chamamento para o ascetismo: maior porcentagem de mulheres nas 
populações, as poucas vocações que lhes eram destinadas e a não-ordenação. Assim, seitas 
como a cátara e a valdense, que propunham igualdade e ampla participação, poderiam 
representar um meio de promoção social.52 
Esses elementos apontam para uma certa valorização da mulher, com a exaltação da 
Virgem Maria e também com o amor cortês. Entretanto, a adoração da primeira levou à 
reprimenda da sexualidade; e o amor cortês, embora tenha promovido uma adoração do 
feminino, exaltou uma imagem da perfeição, a idealização de um modelo de mulher irreal, 
não do conjunto feminino, permanecendo inalterada a estrutura social. 
A passagem do amor cortês ao amor platônico marca uma acentuação das 
características negativas da mulher real, apontando para sua demonização, como se vê na 
produção de Petrarca: 
 
A mulher [...] é um verdadeiro diabo, uma inimiga da paz, uma fonte de impaciência, uma ocasião de 
disputas das quais o homem deve manter-se afastado se quer gozar a tranqüilidade [...]. Que se casem, 
aqueles que encontram atrativo na companhia de uma esposa, nos abraços noturnos, nos ganidos das 
crianças e nos tormentos da insônia [...]. Por nós, se está em nosso poder, perpetuaremos nosso nome 
pelo talento e não pelo casamento, por livros e não por filhos, com o concurso da virtude e não com o 
de uma mulher.53 
 
A mulher da Renascença, herdeira da misoginia medieval e do medo disseminado 
pelos pregadores, é encarada como um “mal necessário” cuja lascívia representa uma 
“tentação natural” ao homem, possuidor de uma natureza menos carnal. Paradoxalmente 
objeto de devoção e medo, nela se conjugam passividade e luxúria, idealização e 
marginalização, permanecendo à sombra da figura masculina como um “segundo sexo”. 
A abundante literatura hostil à mulher, assim como a influência crescente da imprensa, 
acarretou no aumento do impacto das pregações após as reformas religiosas, tendo grande 
alcance popular. Os sermões, que procuravam tipologizar a mulher, colocam-na como um 
“diabo doméstico” e propagam o medo do feminino na mentalidade coletiva, de modo que 
 
51 Richards, op. cit., apresenta as várias heresias que, durante o Medievo, rebelaram-se contra a 
ortodoxia, sendo, na maioria, decorrentes da crise de materialismo após o milênio. O autor mostra como 
valdenses, cátaros, publicani, beguinos, amalricianos, pseudo-apóstolos, hussitas e milenaristas, entre outros, que 
pregavam a castidade e a pobreza, foram satanizados pela Igreja e apresentados como desviantes sexuais. 
52 Ibid., p. 80. 
53 PETRARCA apud DELUMEAU, J., op. cit., p. 319. 
“toda a Igreja discente foi convidada a confundir a vida dos clérigos e a vida dos leigos, 
sexualidade e pecado, Eva e Satã”.54 
Diversos manuais foram redigidos com o propósito moral de ensinar sobre a 
verdadeira natureza maléfica das mulheres. Um dos maiores instrumentos de combate ao 
feminino, empregado a partir do século XIV, foi o De planctu ecclesiae, redigido pelo 
franciscano Alvaro Pelayo a pedido de João XXII, em torno de 1330, sendo reeditado por 
várias vezes. Dirigido a todos os fiéis, foi utilizado principalmente pelo corpo sacerdotal, 
encarregado de guiar a consciência de seu rebanho. De acordo com seus argumentos 
principais, Eva é a pecadora que provocou a perda do paraíso, desse modo a mulher é a 
perdição, é a ‘arma do diabo’ que atrai o homem com seus ardis a fim de arrastá-lo para a 
luxúria. 
Pelayo apresenta as mulheres como um conjunto de advinhas, que produzem poções 
mágicas, usam ervas, lançam mau-olhado, são capazes de matar seus filhos, e auxiliam em 
adultérios. É a mulher a culpada por um homem cometer apostasia, já que é idólatra. A 
mulher é ‘insensata’, ‘lamurienta’, ‘inconstante’, ‘ignorante’, ‘tagarela’, ‘briguenta’, 
‘colérica’, ‘invejosa’, ‘quer tudoao mesmo tempo’. ‘Ela despreza o homem, então é preciso 
não lhe dar autoridade’, devendo-se sempre desconfiar de seres tão vis, que com suas 
conversações e sua imbecilitas perturbam a harmonia das missas e sermões. A repetição de 
argumentos há muito difundidos tem, neste escritor franciscano, um caráter inovador pela 
preocupação em cuidadosamente fundamentar a obra nas Escrituras e pela dedicação à 
disseminação das verdades religiosas a um público amplo.55 
A malignidade inerente à mulher a colocará como principal agente do Diabo no 
mundo, buscando o aniquilamento da humanidade através da bruxaria. Jean Delumeau relata 
que treze tratados sobre o tema foram escritos entre 1320 e 1420, e vinte e oito entre 1435 e 
148656, ficando patente o crescimento das preocupações em torno da temática. Dentre estes 
tratados, o que obteve maior influência, juntamente com a obra de Kramer e Sprenger, 
consiste no Formicarius (1435-7), de Johannes Nider, prior dos dominicanos da Basiléia, a 
primeira obra a enfatizar as mulheres como feiticeiras, colocando-as como especialistas em 
filtros de amor, raptos de crianças e antropofagia. 
 
54 DELUMEAU, J., op. cit., p. 322. 
55 Ibid., p. 322-6. 
56 Ibid., p. 353. 
Mostra-se evidente que em um período no qual confluíram pestes, cismas, guerras e o 
pânico da eminência do final dos tempos, quando a Igreja lutava para consolidar e apregoar 
valores como a castidade dentro do corpo sacerdotal, que a reprimenda da libido resultaria em 
agressividade, e a direção mais óbvia que esta poderia tomar seria a da mulher, já 
inferiorizada e ameaçadora. “Seres sexualmente frustrados que não podiam deixar de 
conhecer tentações projetam em outrem o que não queriam identificar em si mesmos.”57 
As mulheres como uma ameaça e uma negação da continência são apresentadas como 
armadilhas demoníacas, e a visão do feminino que foi insistentemente construída pelo 
cristianismo, e introjetada nas estruturas sociais do Medievo, servirá da mesma forma à 
construção da imagem da bruxa. Os “homens de Deus” lançaram as perseguições contra a 
herege que teve sua natureza, motivações, práticas e modo de ser combatida minuciosamente 
relatados no Malleus Maleficarum. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
57 Ibid., p. 320. O autor apresenta um interessante número referente à Baviera contemporânea a Trento, 
quando se verificou na região que somente 3 ou 4% dos padres não possuíam concubinas. 
CAPÍTULO II. A demonologia e o mais divulgado manual da Inquisição: o Malleus 
Maleficarum. 
 
A junção da misoginia cristã ao pânico desencadeado pela presença constante do 
Diabo levou à culpabilização da mulher, agente do Mal, enquanto responsável pelas agruras 
que afligiam os homens de fins do Medievo e inícios da Idade Moderna. O período conhecido 
como “outono da Idade Média”, séculos XIV e XV, assinala intensas crises que assolaram a 
sociedade européia, paralelamente ao extravasamento da imagem obsedante de Satã dos 
universos eclesiásticos para os universos laicos e à afirmação da crença na bruxaria. 
 A singularidade que o Demônio e o Inferno adquirem neste momento, impregnada no 
imaginário coletivo e nos valores de uma sociedade em constante transformação, produzirá, 
para Robert Muchembled, uma nova identidade coletiva do Ocidente, em torno do 
cristianismo unificador que se impunha sobre múltiplos poderes locais conflitantes. O 
crescimento do medo corresponde ao crescimento do poder simbólico da Igreja, que constrói 
a imagem do Maligno e da feiticeira num combate acirrado aos resquícios do paganismo 
demonizado. “Arma para reafirmar em profundidade a sociedade cristã, a ameaça do inferno e 
do diabo aterrador serve como instrumento de controle social e de vigilância das consciências, 
incitando à transformação das condutas individuais.”58 
As crenças populares, tomadas como “superstições” pela religião inconteste, eram 
incapazes de fornecer todos os elementos que foram agrupados num universo demoníaco 
estruturado. Assim, teses como de Margaret Murray, que tomou o sincretismo religioso ainda 
presente como um elemento de distinção ao cristianismo e, mais recentemente, de Carlo 
Ginzburg59 que, seguindo os rastros da antropóloga, remonta elementos folclóricos dispersos 
numa crença única anticristã que se impunha em todo o continente, merecem análises 
cuidadosas, pois tratam de populações que foram cristianizadas e se pensavam dentro do 
 
58 MUCHEMBLED, R. Uma história do Diabo: séculos XII-XX. São Paulo: Bom Texto, 2001. p. 36. 
59 A esse respeito ver: GINZBURG, C. História noturna: decifrando o sabá. São Paulo: Cia. das 
Letras, 1991, e _____. Os andarilhos do bem: feitiçaria e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. São Paulo: 
Cia. das Letras, 1989. Neste, o autor coloca os benandanti em franca oposição à Igreja, como uma força 
concorrente; porém, os próprios não se pensavam assim, podiam ser colocados dentro do estereótipo do sabbat 
por força de interrogatórios sugestivos, mas não se compreendiam como desagregadores da unidade católica. 
Tomando um testemunho, com alguns elementos próximos aos benandanti, Ginzburg aponta “um núcleo de 
crenças bastante coerente e unitário” (p. 79), mapeando semelhanças dispersas em um amplo território, 
apontando uma única e ancestral origem. A partir de um caso isolado, do lobisomem lituano, que fornece 
indícios sobre crenças no mundo dos mortos, afirma: “é evidente que nos encontramos diante de um único culto 
agrário que, a julgar por essas sobrevivências tão distanciadas entre si – a Lituânia, o Friul – deve ter-se 
difundido numa área bem mais vasta, talvez em toda a Europa central.” (p. 52). 
sistema cristão, mesmo com fundos culturais pagãos ainda não assimilados de todo, 
especialmente nas áreas campesinas. 
 
as populações se consideravam cristãs e não tinham o sentimento de aderir a uma religião condenada 
pela Igreja. E devem ter sido muito surpreendidas pela aculturação intensiva conduzida na Europa pelos 
missionários das duas Reformas que, eles sim, viram paganismo por toda parte. Este era há muito tempo 
um espelho partido, um universo rompido. Certamente subsistiu em nomes deformados de divindades e 
sob a forma de mentalidades e de comportamentos mágicos, mas sem panteão um pouco organizado 
que fosse, nem sacerdotes (ou sacerdotisas), nem corpos de doutrina. Era talvez vivido, mas não era 
pensado nem desejado.60 
 
A junção do pensamento eclesiástico e da imaginação popular formou um “corpo de 
doutrina angustiante”,61 que culmina no século XV com a demonologia, conjunto das obras 
elaboradas pela Igreja que procuravam provar a presença do Diabo na Terra e sua ação por 
intermédio das bruxas, relacionando diretamente o Mal à mulher, fundamentando-se, 
sobretudo, em Tomás de Aquino. A malignidade de todos os demônios já havia sido 
estabelecida, de maneira que antigas tradições estruturadas dentro de um sistema mental que 
comportava o elemento mágico – como a crença nos daimones, espíritos de proteção familiar 
– viram-se transplantadas para a esfera do Mal no sistema cristão. E tal aculturação 
certamente surpreendeu inúmeros indivíduos convocados a testemunhar diante de juízes que 
não compartilhavam do mesmo fundo cultural. 
As práticas mágicas, durante a Alta Idade Média, foram vistas com indulgência pela 
Igreja, que se colocou contra as perseguições de mulheres e afirmava serem ilusórias as 
antigas crenças em cavalgadas noturnas ordenadas por Diana ou pelo próprio Satã. Burchardo 
de Worms cita em suas instruções aos clérigos como punir os recorrentes às superstições: 
‘Acreditastes ou participastes nesta impiedade, que uma mulher por malefícios e 
encantamentos pode transformar a mente dos homens, transformando ódio em amor e amor 
em ódio, e através de feitiços possaroubar ou destruir os bens humanos? Se acreditastes ou 
participastes um ano de penitência nas festas legítimas.’62 
Contudo, havia uma tradição eclesiástica, expressa fundamentalmente por Agostinho, 
que observava vividamente as práticas mágicas, reunindo-as em um mesmo grupo maligno, 
desconsiderando suas diferenças (como a magia propriamente, a goecia e a teurgia) e 
colocando-as como produtoras de sortilégios e encantamentos demoníacos. Em fins do século 
 
60 DELUMEAU, J., op. cit., p. 373. 
61 MUCHEMBLED, R., op. cit., p. 50. 
62 Apud NOGUEIRA, C. R. F. Bruxaria e História: as práticas mágicas no Ocidente cristão. São 
Paulo: Ática, 1991. p. 28. 
XII, com a afirmação de heresias que arrebanhavam os fiéis do clero católico, a Igreja adota 
uma nova posição quanto à complacência, procurando reprimir os vínculos com um universo 
não ortodoxo que rivalizava com seus ensinamentos. A diabolização dos hereges é verificada 
na primeira descrição do beijo satânico por Walter Map, perseguidor dos publicani que 
atingiram a Inglaterra, em De Nugis Curialium, escrito entre 1181-1192. 
 
Ao cair da noite (...) cada família se senta esperando em silêncio em cada uma de suas sinagogas; e 
então desce por uma corda pendurada no centro um gato negro de proporções assombrosas. A esta 
visão, apagam as luzes e não cantam ou repetem hinos de modo distinto, mas murmuram-nos entre os 
dentes cerrados, e encaminham-se para perto do lugar onde viram seu mestre, tateando para encontrá-lo, 
e, quando o encontram, o beijam. Quanto mais quentes seus sentimentos mais baixos serão seus alvos; 
alguns preferem seus pés, mas a maioria a cauda e as partes pudentas. Então, como se esse contato 
daninho libertasse seus apetites, cada um se deita abraçado ao vizinho e se satisfaz dele ou dela com 
todas as suas forças. Seus anciãos sem dúvida sustentam, e ensinam a cada novato, que o amor perfeito 
consiste em dar e tomar, consoante possam o irmão ou irmã solicitar ou exigir, cada um saciando o fogo 
do outro.63 
 
Em 1231, Gregório IX nomeia o primeiro inquisidor oficial da Alemanha, Conrad de 
Marburgo, que lutava contra uma seita satânica secreta próxima do estereótipo do sabbat: os 
iniciados beijavam o traseiro de um sapo ou de um gato preto, homenageavam “um homem 
pálido, magro e frio como gelo”, adoravam a Lúcifer e se entregavam a orgias, e na Páscoa, 
em especial, recebiam o corpo de Cristo para cuspi-lo nas “imundícies”.64 
A vinculação da acusação de heresia a grupos ou indivíduos rivais da ordem 
estabelecida é observada já nos primeiros processos contra aqueles que se acreditava serem 
aliados do Diabo: os templários, processados entre 1307 e 1314, foram torturados até que a 
Igreja obtivesse a confissão de que renegavam Cristo; um bispo de Troyes recebeu a acusação 
de ter usado magia para matar a rainha da França; Enguerrand de Marigny, guarda do tesouro 
de Felipe, o Belo, foi enforcado em 1315 sob a acusação de ter tentado provocar a morte do 
rei utilizando-se de mágicos e bonecos de cera. Diante de tais acontecimentos que 
escandalizavam a ortodoxia cristã, o papa João XXII, na bula Super illius specula de 1326, 
equivale os malefícios à feitiçaria diabólica, sendo esta doravante considerada heresia, 
legitimando a perseguição inquisitória.65 
Entre 1330 e 1340, em um processo contra feiticeiros de Toulouse, aparece pela 
primeira vez o termo sabbat referindo-se às reuniões de bruxas e demônios, que permanecerá 
aludindo a tais encontros, juntamente com “sinagoga”, em uma associação clara com os 
 
63 Apud RICHARDS, J., op. cit., p. 70. 
64 DELUMEAU, op. cit., p. 351. 
65 Ibid., p. 351-2. 
judeus, minoria que intentava contaminar a sociedade dentro da ótica cristã. Sob tortura, as 
mulheres acusadas afirmaram adorar Satã, encarnado em um bode, e renegar Cristo, profanar 
a hóstia e os cemitérios em seus encontros noturnos, quando se entregavam a todo tipo de 
libertinagem.66 Mesclam-se elementos pagãos demonizados pela Igreja e as ofensas ao 
sagrado cristão, destacadamente as orgias que lesavam o prescrito resguardo dos corpos, 
construindo-se uma imagem que terá elementos acrescidos, mas cuja essência permanecerá ao 
longo da caça às bruxas. 
O crescimento das acusações de heresia passa a atingir grupos religiosos discordantes, 
e os conflitos internos do papado expressos no Grande Cisma (1378-1417) e no Concílio de 
Basiléia (1431-49), que subordina o papa, revelam uma Igreja em crise com múltiplos grupos 
de interesses, que viam seus adversários como heréticos ou ao menos procuravam lhes 
impingir tal estigma. A literatura surgida das reflexões do Concílio, destacadamente o 
Formicarius de Nider, juntamente aos processos contra a vauderie (seita constituída pelos 
seguidores de Pierre Valdo), assinalam a padronização dos relatos acerca dos grupos heréticos 
– pacto diabólico, orgias, infanticídio, malefícios. 
Norman Cohn insere o sabbat a partir da disseminação da propaganda eclesiástica 
contra as minorias heréticas ainda no início do século XI, quando a Igreja diabolizou os 
participantes de uma seita em Orléans, condenando-os à morte na fogueira. Os estereótipos do 
culto satânico desenvolvem-se a partir de então, unindo tradições populares de origens pagãs 
até então tida como ilusórias – como a crença dos romanos nas strigae e, especialmente na 
Idade Média, nas ‘damas da noite’67 –, magia, bruxaria e culto ao Demônio.68 
Para Muchembled, o termo vauderie, que designava heresia de modo geral, passa a 
evocar diretamente o sabbat entre 1428-30 justamente nas terras do duque de Savóia-
Piemonte, que viria a ser eleito o antipapa Félix V em 1439, fato devidamente inserido pelo 
autor nas querelas entre papas e antipapas que dividiam a cúpula cristã. O impulso da 
identificação dos inimigos e sua elevação ao nível da traição maior, a renúncia a Deus e a 
Cristo, adquire então uma nova luz, revelando um “excesso de tensões, característico de uma 
Igreja em crise até 1449. A concentração em um inimigo simbólico talvez tenha servido, ao 
 
66 Ibid., p. 352. 
67 Grupos de espíritos femininos que eram vistos ora como benéficos, ora como maléficos, comandados 
por uma divindade nomeada Diana, Holda, Heródias ou Abundia (dama Abonde). Os camponeses deixavam 
comida e bebida na soleira de suas portas durante a noite, especialmente no dia de Finados (2 de novembro), de 
maneira a não lhes despertar a fúria. Maiores informações em: GINZBURG, C. Os andarilhos do bem..., p. 63-
7; RICHARDS, J. op. cit., p. 86-7. 
68 RICHARDS, J., op. cit., p. 86. 
mesmo tempo, para relaxar a pressão interna geral e para expressar a legitimidade e a 
ortodoxia dos grupos de influência envolvidos, particularmente eclesiásticos, que cercavam o 
antipapa Félix V.”69 
A literatura acerca da feitiçaria começa a se infiltrar nos meios laicos 
coincidentemente com Martin Le Franc, secretário do duque de Savóia, que escreve a 
primeira obra em francês sobre a temática, com um teor altamente misógino, dissimulado sob 
o título Defensor da Causa das Mulheres.70 As idéias que caracterizavam as heresias 
expandem-se, e os processos contra feitiçaria alastram-se nas áreas que foram atingidas pelos 
valdenses, mostrando que “era a repressão que alimentava a demonologia teórica e esta se 
estiolava rapidamente se os casos concretos não se multiplicavam.”71 
A proliferação dos tratados acerca das heresias e da feitiçaria impulsionou as 
perseguições. Entretanto, os tribunais e a divulgação dos delitos ao invés de reprimirem a 
bruxaria contribuíram para a propagação das crenças. Os inquisidores, mediante muitos 
testemunhos fantasiosos, encontravam nos culpados as causas das mazelas sociais, e a captura 
e punição das bruxas comprovavam a existência das práticas mágicas e a realidade da 
bruxaria,justificando a repressão. 
Diante da incredulidade de clérigos e leigos quanto aos malefícios e do assalto das 
forças demoníacas em algumas regiões da Alemanha, o papa Inocêncio VIII, na bula Summis 
desiderantes affectibus divulgada em 09 de dezembro de 1484, delega plenos poderes aos 
inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger72 para agirem de acordo com suas 
atribuições, sem quaisquer impedimentos. Os dois inquisidores, que vinham encontrando 
resistências locais, afirmavam terem se deparado com toda sorte de maquinações diabólicas – 
ação de íncubos e súcubos, abortos, destruição de plantios, perseguição de homens, mulheres 
e animais, quebra da força reprodutora e das relações sexuais entre esposos. E, sobretudo, a 
renúncia à fé católica. Kramer e Sprenger passam a contar diretamente com o apoio papal, que 
determina a recorrência aos juízes seculares em caso de necessidade e o estabelecimento da 
pena de acordo com a ofensa cometida.73 
 
69 MUCHEMBLED, R., op, cit., p. 55. 
70 Ibid., p. 53-6. 
71 Ibid., p. 80. 
72 Os referidos eclesiásticos são encontrados em diversas obras nomeados como Henry Institoris e 
Jacques ou Jacob Sprenger, entretanto, sigo aqui com os nomes que constam na tradução do Malleus 
Maleficarum que utilizo. 
73 KRAMER, H.; SPRENGER, J. O martelo das feiticeiras – Malleus maleficarum. Rio de Janeiro: 
Rosa dos Tempos, 1991. p. 43-6. 
O pronunciamento papal, “carta constitutiva da caça às bruxas”74, abre a maioria das 
edições do Malleus Maleficarum, obra apresentada às autoridades teológicas e lavrada em 
1486, vindo a se constituir no guia dos inquisidores até o final de sua atuação na caça às 
bruxas. Sua audiência alcançou toda a Europa ocidental, sendo utilizado não somente nos 
países católicos, mas também nos que passaram pela Reforma e adotaram o protestantismo, e 
tanto por juízes eclesiásticos como por seculares. 
Em um período em que a Igreja e o Estado caminhavam juntos, este se utilizou tanto 
do poder temporal como do religioso, empregando a linguagem da Igreja. Os eclesiásticos 
forneceram a ideologia e o poder civil estabeleceu as armas de repressão, dessa forma, o 
Malleus tornou-se o principal instrumento para a condenação de mulheres acusadas de 
bruxaria. A ampla difusão da obra é registrada nos seguintes números por Robert 
Muchembled: 
 
Segundo um recenseamento feito com base em grandes catálogos de bibliotecas, a obra teve pelo menos 
15 edições até 1520, quase todas nas cidades do Reno ou em Nuremberg, salvo duas em Paris, em 1497 
e 1517, e em Lyon, em 1519. Se calcularmos a uma tiragem média de 1.000 a 1.500 exemplares por 
edição, isso significa que mais de 20.000 exemplares do livro puderam circular antes da Reforma, 
alguns milhares dos quais na França, o resto no Santo Império. O tratado passou abruptamente de moda 
entre 1520 e 1574, depois experimentou uma segunda vida, com 19 outras edições conhecidas, das 
quais três em Veneza, de 1574 a 1579, e dez em Lyon, entre 1584 e 1699.75 
 
O início do século XVI vê o medo do Diabo se intensificar, o que resulta numa 
implacável perseguição que só é interrompida diante de um mal maior: a Reforma. Diminui 
então o número de processos contra a feitiçaria e de edições do Malleus Maleficarum, 
identificando-se a quebra nas vendagens. Apoderando-se do mito criado pelos católicos, os 
reformadores vêem emergir nas terras de Lutero uma influente cultura de medo e 
desconfiança do Demônio, atiçada pelo pavor da iminência do Final dos Tempos. 
Como visto, a centralização dos autores na região renana não impediu a utilização de 
seu tratado em um amplo território e em diferentes momentos da perseguição às feiticeiras. 
Ambos dominicanos e professores de teologia, embasaram-se em uma longa tradição que 
vinculava o mal à mulher, estabelecendo uma ligação direta entre a heresia e a feitiçaria, e 
esta com a agente favorita do Diabo. A análise do conteúdo do manual permite retomar 
diversos elementos significativos nesse processo, que irá tornar o discurso misógino 
estereotipado na Idade Moderna. 
 
74 SALLMANN, J-M. As bruxas: noivas de Satã. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. p. 32. 
75 MUCHEMBLED, R., op. cit., p. 61. 
Henry Kramer (?1430 – ?1505), prior do convento de Selestat, feroz inquisidor em 
áreas da Alemanha do Norte, atuou nas dioceses de Mainz, Colônia, Trèves, Salzburg e 
Bremen, áreas que recebiam idéias humanistas e transformações artísticas e culturais, além 
dos discursos eclesiásticos. “O confronto entre as formas de expressão e os tipos de 
pensamento, entre o antigo e o novo, aí se exacerbava.”76 Conseqüentemente, as heresias eram 
vistas mais intensamente, e Kramer perseguiu, além das bruxas, hussitas e valdenses, jamais 
sendo encontrando após partir para uma investigação (o que relembra o destino de alguns 
inquisidores que vieram a ser assassinados no exercício de sua temida missão, como Conrad 
de Marburgo). É o principal, senão único, elaborador da obra. 
James Sprenger (1436 – 1496), nasceu nas proximidades da Basiléia e estudou em 
Colônia, tornando-se prior do convento dominicano da mesma cidade. Sua atuação como 
inquisidor deu-se às margens do Reno, nas dioceses de Salzburg, Bremen, Trèves e Mayence. 
Jean-Michel Sallmann aponta-o como um estudioso de grande autoridade devotado a sua 
ordem, desempenhando funções administrativas, mas limitado em sua esfera de ação como 
inquisidor.77 Tal fato denuncia a pouca participação na redação do Malleus junto a Kramer, 
sendo no certificado de aprovação da obra “especialmente apontado como colaborador do 
primeiro”.78 
Obra máxima produzida pela mania persecutória da Inquisição, o Malleus 
Maleficarum é composto por três partes que atestam a ação demoníaca no mundo através de 
seus agentes – a bruxa ou o bruxo, sendo a mulher sensivelmente mais atraída por Satã do que 
o homem. A primeira parte, “Das três condições necessárias para a bruxaria: o Diabo, a bruxa 
e a permissão de Deus todo-poderoso”, trata de enaltecer o Anjo Negro e atribuir-lhe poderes 
imensos (permitidos por Deus), ligando a ele a prática da bruxaria que resulta, sobretudo, da 
fraqueza feminina. Na segunda parte, “Dos Métodos Pelos Quais se Infligem os Malefícios e 
de que Modo Podem ser Curados”, os autores explicitam as maneiras de se firmar o pacto 
com o Tinhoso e diversos exemplos de malefícios. Para estes são determinados castigos 
proporcionais na terceira e última parte da obra, “Que Trata das Medidas Judiciais no 
Tribunal Eclesiástico e no Civil a Serem Tomadas Contra as Bruxas e Também Contra Todos 
os Hereges.” 
 
76 Ibid., p. 62. 
77 SALLMANN, J-M., op. cit., p. 33. 
78 KRAMER, H.; SPRENGER, J., op. cit., p. 518. Grifo meu. Entretanto, Robert Mandrou cita 
freqüentemente Sprenger como autor do Malleus, omitindo Kramer na autoria. 
A apresentação de argumentos contrários ao pensamento dos demonólogos, que os 
refutam baseando-se em diversos textos, colocando seu raciocínio como a verdade absoluta, 
permeia a disposição da obra. A descrença nos postulados estabelecidos é vivamente 
considerada manifestação herética, submetendo ao juízo divino, representado pelos poderes 
religioso e secular, a purgação dos culpados, que infectam toda a sociedade com suas ofensas 
ao Criador. Pois “qualquer homem que erra gravemente na interpretação das Sagradas 
Escrituras é corretamente considerado herege. E quem quer que pense de outra forma a 
respeito de assuntos pertinentes à fé que não de modo defendido pela Santa Igreja Romana é 
herege. Eis a verdadeira Fé!”.79 
A renúncia à fé católica ou a negação de alguns postulados, a dedicação ao mal, a 
oferenda de crianças não batizadas ao Demônio, a lascívia de íncubos e súcubos: 
comportamentos padrões dos acusados de bruxaria, atormentam a boa consciência cristã que 
deve

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