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ADIVINHAS DE PEDRO E INÊS AGUSTINA BESSA-LUÍS Guimarães Editores Digitalização e Arranjo Agostinho Costa Este livro foi digitalizado para Ser lido por Deficientes Visuais as decisões da vontade humana frente à soberania da razão momentânea, ditada pelos grupos dominantes e pela natureza regressiva de todas as coisas. A grande alternativa do nosso tempo está em aceitar a aliança com os elementos que compõem uma sociedade, e desse modo chegar ao conhecimento. Assim é o método da nova História; tudo o mais é confusão e temor. Em certo momento Pedro e Inês puderam significar um passo no caminho da autoridade humana. A forma patriarcal do regime é abalada pela paralela competência da ordem homem-mulher. Mas a razão tem o seu calvário próprio e nem sequer se pode dizer que ela é propensão que visa acabamento e perfeição. É sob formas teológicas que nós sustentamos os nossos sonhos de liberdade. O mito corresponde ao sentimento de insegurança perante um acréscimo da razão; e, no entanto, por si ela se move. ADIVINHAS DE PEDRO E INÊS A história de Pedro e Inês recebe aqui um tratamento a situá-la na sua figura própria, que é o carácter da pessoa. A verdade é um estado de fé. Descobrir nos arquivos os sinais dos acontecimentos é menos importante do que descobrir a maturidade do tempo em que os acontecimentos se deram e, por conseguinte, a verdade. Não se trata dum romance nem duma biografia, ou dum pretexto de autonomia em vista duma cultura. É uma obra de investigação, mas fora das indicações imperativas sobre a maneira de conduzir um estudo deste teor. A imaginação, tão corrompida pelo maquinal da razão e do gosto, tem aqui um papel principal, o papel das luzes no sentido mais amplo. Sobretudo o que interessa a Agustina Bessa-Luís é compreender a dependência em que se encontram. AGUSTINA BESSA-LUÍS ADIVINHAS DE PEDRO E INÊS TERCEIRA EDIÇÃO - LISBOA GUIMARÃES EDITORES Copyright-. Agustina Bessa-Luís, 1983 Guimarães Editores, Lda. Reservados todos os direitos Paginação - Cabeçalho I - INÊS PERES. Fui há muitos anos à Quinta das Lágrimas, onde se diz que Inês foi morta. Lembro-me que se transpunha o rio atravessando uma ponte de madeira cujas tábuas gemiam e baloiçavam. Parecia uma ponte militar, para assédio à cidade. A Quinta das Lágrimas esteve para ser comprada pelo meu pai quando ele veio do Brasil e se deixava sugestionar pelas lendas históricas e coisas famigeradas da glória antiga. Havia uma enorme árvore da cânfora nos arredores da casa, que era como uma estufa, com muitos vidros e caixilhos descascados. Numa caleira de pedra corria a água sobre um líquen vermelho. Dizia-se que era «o sangue de Inês». Como disse, a moradia era decepcionante, um pouco ao estilo dos chalés de Sintra em que veraneavam os banqueiros do século XIX e os ricos-homens dos cafezais de São Tomé. Estavam na moda os jardins de Inverno, e nesse tipo de casas havia pavilhões envidraçados onde se tomava chá e bebia água de sifão. Mas não posso garantir que na Quinta das Lágrimas fosse assim. Era numa tarde muito quente, em Maio. O calor de Maio, em Coimbra, traz no coração o perfume da tília em flor; desde o alto do Jardim da Sereia ele abate-se até ao fundo da cidade como um lenço abafante e suave. É um calor e um perfume que deprimem. Acompanham os estudantes quando eles revêem a matéria, fumando com gesto irritado e deixando o olhar parar nas varandas da frente onde outros estudantes mourejam nas páginas das sebentas. 8 - 9 Mas, voltando à Quinta, que está num vale sem horizontes, que seriam dantes os fecundos campos de regadio, com manantes a visitar-Lhe os muros para roubar capões e melancias: estranhei-a, de tão deserta. Não havia um só visitante, ou um morador; e não vi também guardião. Só um cãozito sujo, de pêlo em que a lama secara, me lançava de longe alguns ladridos curtos, sem cólera, por simples obrigação. A casa não tinha cortinas nem vestígios de ser habitada. Havia, em volta, alguns canteiros onde crescera a beldroega e umas açucenas tão altas que podiam chamar-se o bordão de São José. Na parede, uma mancha de água que se infiltrara pelo telhado parecia a sombra de uma mulher; uma mulher alta e corpulenta, que risse, os ombros deitados para trás. Ouvi, ou pareceu-me, um arrastar de passos, mas durou pouco; tudo ficou silencioso outra vez. Porém, quando eu já me afastava vi, sentada numa velha cadeira de verga, uma senhora ainda nova, com uns óculos na mão direita e que olhava para mim com uma frieza condescendente. Se era a dona da casa era uma excêntrica, porque estava vestida com uma saia cor de ferrugem, tendo por cima um vestido verde, aberto, e um cinto dourado. Os cabelos usava-os soltos e eram de um belo loiro carregado com reflexos mais claros sobre as orelhas. O rosto era rosado, mas notava-se que usava carmim, muito fino e brilhante. Estendeu as pernas com um movimento preguiçoso; estavam nuas e eram tão brancas como o ventre das trutas. Até certo ponto parecia muito uma lavradeira abastada, dessas do Alto-Minho que se descalçam ao fim das tardes de Verão para ir regar, que lavam o pescoço com aguardente e que perfumam a boca com folha de hortelã. Têm seis namorados ao mesmo tempo, cantam com voz trinada cantigas de escárnio e casam com um moço meio vadio e bonito que desgoverna a casa, que tem amigas, bastardos e nome de bom paroquiano. - Está calor - disse eu. Ela franziu levemente as sobrancelhas, tão compridas que lhe tocavam as fontes. Tinha olhos ambarinos, extraordinários, e reparei que usava sapatos de couro vermelho, semelhantes aos que usam os corredores nos estádios. 9 A impressão que pode causar a beleza humana é semelhante a um choque, um desmaio dos sentidos que os santos relacionam com o êxtase. É, portanto, uma espécie de vertigem que deixa entrever o mistério da criação em todo o seu poder. Aquela mulher, ao levantar-se da cadeira onde estava sentada, mostrou a compleição dos membros atléticos que podiam bem suportar dois ou mais pares de asas. Não sei porque me ocorreu isto. Os olhos dela eram escuros à distância; porém, vistos de mais perto, notavam-se as estrias verdes e douradas como uma pedra semipreciosa. Não era alta, mas tudo nela - trajo, maneiras, ligeiro alçar do pescoço - contribuía para lhe dar certa majestade. Duas crianças de sete ou de oito anos vieram ao seu encontro; duas meninas, cujo corpo franzino se perdia dentro dos largos vestidos. - Pára, pára... espera por mim - disse a mais desenvolvida, que era, no entanto, a mais nova. Ficou no meio do terreiro, à sombra da árvore canforeira, a gritar: - Má... má... má... - e a ver a mãe que se afastava e que, num instante, desapareceu. Aquilo aconteceu em plena luz do dia, e eu não me surpreendi. É possível que eu sofresse um breve acidente dos sentidos, frequente na gesta clínica da família e a que chamamos «o truque da vaca», pela semelhança que tem com a imobilidade súbita desse animal num campo onde pasta. Fica quieta, desmiolada, entre o selvagem e a pura beatitude. Assim acontece aos humanos colhidos no acinte da civilização; um breve regresso ao mundo pânico, literalmente em catarse, ouvindo ao longe a flauta tutelar. Pensei em Inês, com um certo encanto que depressa se esgotou e perdeu. Muitos anos depois, repentinamente, ocorreu-me tudo aquilo, e Inês corporizou-se na desconhecida de vestido verde tão extraordinário e que só numa dançarina tinha cabimento. Talvez fosse uma amazona do circo com a sua prole contorcionista; ou uma infanta de raro porte que corresse os antigos lugares da sua história, como é comum nos campos de Inglaterra, onde a humidade materializa os espíritos, a soma das almas. Talvez a Fonte dos Amores em dois braços partida trouxesse das profundezas da terra o suspiro que convoca o corpo desaparecido, 10 presente onde amou e morreu. Agradam-me estes pensamentos alucinados, subordinadoscom um humor cálido e amante das coisas que se não sabem e nos convidam ao conhecimento. Um dos agravos de D. Pedro e de que o seu real pai se deu por achado, foi o de ele ter trazido Inês para os Paços de Santa Clara, tão perto do túmulo da Rainha Santa, cujo testamento fora bem explícito: "que ali pousassem os herdeiros com suas legítimas mulheres". Ou D. Pedro estava casado com Dona Inês e desafiava assim a cólera do rei, ou o seu feitio era desapegado de compromissos morais e muito ligeiro com o que se chama as coisas sérias . O povo amava-o talvez por isso mesmo. O que se atreve, honra o homem na sua mesquinha proporção. Não se sabe, no entanto, se Inês vivia contígua aos Paços de Santa Clara, na «quinta» rente ao rio que, nesse tempo, teria um caudal mais amplo, correndo ao fundo de um vale, tendo a cidade-fortaleza sido erguida na colina. Os vestígios que restam de Quebra-Costas e Estrada da Beira (ou berma, que quer dizer o espaço fortificado ao pé da muralha, ou coisa assim) indicam a natureza castrense do lugar, defendido a sul pelo fosso natural do rio. Fora ficavam as terras sob o poder senhorial dos mosteiros, de Santa Cruz mais propriamente, e sujeitos à sua jurisdição e fora da intervenção dos magnates. Aí, gradualmente se edificaram mosteiros sob o patrocínio real, mediante contratos com os seus proprietários, os frades de Santa Cruz, tão poderosos quanto meticulosos nos negócios, como se vê pelos documentos firmados entre eles e a Santa Isabel. A Rainha Santa mandou vir de Salamanca algumas clarissas que instalou à beira-rio, no seu pequeno convento tão mal servido de comodidades que era preciso ir buscar água à corrente do Mondego, como nos tempos bíblicos. Depois edificou os Paços murados de pedra seca e onde viveu em oração e boa paz, aliviada do seu real marido, cujas barregãs ela protegia com dissimulação das injúrias ou prazer delas. Porque isto de ser virtuosa tem tantas rosas como espinhos, e o diabo colhe umas e deixa os outros aos passivos. Depois da morte de Inês, acontecida nesses famosos lugares, andou sete meses dementado o Infante, queimando e destroçando aldeias e semeaduras; 11 tais flagelos sangravam do seu coração, e o pai lhe correspondia com iguais desacatos de que o povo pediu contas, pois era ele o mais lesado, sem ter na história parte nem sentimento. Fizeram-se as pazes no Moledo, com grandes promessas e desenfadamento, e lágrimas de perdão. Mas o que a alma guardou só o tempo o bolsou. O Infante não era homem para estorvar a vingança com lealdades fagueiras. Viandeiro era ele - que comia carne e, como tal, era, de índole e prazer, carniceiro. A partir desse acordo, consentido mas não sentido, D. Afonso IV atribuiu ao Infante parte do poder, que é táctica de pouca experiência. Porque quem recebe alguns direitos não tarda que os queira todos, pois é natural dos homens tomar a graça pelo merecido. O Beneplácito Régio tem já o seu selo e define a intenção do soberano de chamar a si toda a autoridade. O Beneplácito comprova perante os cidadãos e forças da nação que certa decisão emanada do foro eclesiástico está conforme às leis civis e não ofende as tradições e costumes. Isto, que evidentemente incomoda a soberania da Igreja como uma interpolação nos seus direitos, não causa menos incomodidade na área da nobreza. O Beneplácito impede que todos os contratos com Roma referentes a matrimónios, por exemplo, sejam incontestáveis. Nas Ordenações Afonsinas a letra do Beneplácito aparece de maneira preferente e sem o carácter de extraordinário. Está divulgada como um uso, e por isso goza de melhor imunidade. O Beneplácito, se foi assinado por Pedro I, não seria obra e maquinação do seu espírito. Ele é o que se chamaria nos nossos dias o rapaz mimado, um estoira-vergas, um mandão destinado a servir quem o soubesse treinar. Gosta de comer e de dançar, passa o tempo em caçadas entre os seus solares de Canaveses e de Coimbra, e as boas condições do seu reinado parecem ter sido fruto mais de ministros hábeis que lhe conheciam a fraqueza para o despedirem do trono. A fraqueza do Infante era a justiça, como de outros é coleccionar ou fazer viagens. De resto, ele congregava tudo isso nos itinerários dos seus tribunais, e em dez anos de reinado mal parou em Estremoz para morrer, e depressa. Não é tão enigmático como Pedro o Cruel, de Castela. 12 A sua vida deve ter decorrido entre a sua mesnada e os seus jograis, e uma ou outra abordagem política da parte dos Laras e dos Castros, velhas e ambiciosas famílias do país vizinho. A consumação da Reconquista, que teve na batalha do Salado o seu último arrebatamento, deixou a nobreza num desemprego de energias que se exibiu num movimento migratório para as regiões de poderoso interesse económico. Os fidalgos da Alava e da Navarra, e também portugueses, lançaram-se em busca de terras produtivas próprias ao gado lanígero que o desenvolvimento da navegação tornava um factor de matéria-prima. O vale do Douro, os campos da Estremadura espanhola, as vastas defesas de Salamanca e Zamora, conheceram esse insólito surto de imigração dourada que multiplicou por toda a província o solar campesino, que sucedia ao castelo guerreiro. É sabido que quando os privilegiados se fazem camponeses é para reunirem forças e retomarem os privilégios. Termina a era rolandina, do herói medieval, para começar a prosaica dimensão da oligarquia nobiliárquica, disposta a fazer fortuna com as jazidas de ferro biscainho, mais do que com o fio da espada. E, sobretudo, disposta a tomar o poder por meio das gratificações do destino. Rainhas viúvas e concubinas são sempre uma chamada para projectos audaciosos; ou porque a vingança sempre acompanha os grandes lutos, ou porque a liberdade aconselha as ambições, a verdade é que na Castela de 1350, quando morre Afonso XI, as linhagens de Laras, Manuéis e Guzmáns, se agitam abertamente. A rainha, Maria de Portugal, mostra-se empenhada no poder, tanto mais que é aconselhada pelo seu valido de grande mérito político, João Afonso de Albuquerque, um português. Há quem atribua a Albuquerque a paternidade de Pedro I de Castela; outros dizem que seria filho de um médico da corte e de sua mulher, trocado no momento do parto por uma infanta que nascera à rainha. De qualquer modo, este Pedro, o Cruel, a quem Filipe II mudou o nome para Justiceiro, redimindo-o de famas indignas, é a personalidade controversa e sem dúvida sangrenta que vai dominar a imaginação popular. Os seus crimes, os seus amores, as suas aventuras verdadeiramente capazes de consolidar a memória do povo, 13 entraram no romance e assim floresceram numa espécie de flutuação da imagem real - solitário poder que a constelação colectiva toma como modelo dinâmico, registo de uma tensão entre laços positivos e negativos. A figura de Pedro I de Portugal parece ser decalcada do vulto de seu sobrinho e contemporâneo Pedro I de Castela. A mesma terribilidade, em contraste com a simpatia popular; o mesmo culto pela vingança e desarticulação objectiva. Mas enquanto Pedro de Castela é classificado como um psicopata com mania persecutória, Pedro de Portugal surge como um portador de sociabilidade. Perante a transformação económica e cultural de um país, aparecem os factores que confirmam a instalação no tempo do povo que o habita, a sua integração na terra e nos costumes. A sede de festejos e de participação em movimentos de expansão social significa o desejo de evitar um perigo - que tanto pode ser uma influência como uma crise ou invasão. Pedro I assimilava os imperativos da estrutura local, e a sua popularidade fundou-se nisso. Não foi exactamente um soberano no sentido estatal; foi o modelo de uma etnia e o garante de uma cultura específica na medida em que produzia no inconsciente colectivo, pela invocação da homogeneidade festiva, a condição de uma comunidade autêntica e original. Mas isto é pouco para retratar um homem do Poder. É manifesto que,depois dos primeiros avanços territoriais, a nacionalidade se apresentava precária; o recurso das alianças matrimoniais pareceu o mais eficaz para sedimentar os direitos dos ramos genealógicos nos pequenos reinos. Desde Afonso Henriques, o primeiro monarca, que esse princípio prevaleceu, e é de crer que, se ele fosse desprezado, Portugal teria dificuldades insuperáveis para se fixar como espaço independente. Maria de Portugal, filha de Afonso IV, casou com Afonso XI de Castela. O filho turbulento e de destino violento, que lhe nasceu, em Burgos, em 1334, era portanto sobrinho direito de D. Pedro; este, catorze anos mais velho, reinou, no entanto, tardiamente. Único filho legítimo de um casamento tempestuoso, ensombrado pela assuidade da favorita Leonor de Guzmán que dera à luz 14 uma ninhada abundante de infantes, todos eles bem apadrinhados em grandes casas, o herdeiro de Castela esteve desde o inicio do seu reinado rodeado de inimigos, de predadores, e de objecções temíveis; não é de estranhar que a crueldade se fizesse sua conselheira. O exame do seu crânio parece concluir que foi um psicopata com a mania da perseguição. Mas o que se destaca no carácter de Pedro o Cruel é, antes de tudo, o instinto da morte; toda a sua vida parece ser um longo rodeio, uma dança macabra que ele próprio conduz com a finalidade da destruição, já em si puro preconceito do inadaptado. Tratando-se de Pedro I de Portugal, personagem de primeiro plano nesta nossa história, o instinto de morte parece mais desamparado do que no caso do príncipe castelhano. Este defende-se, enconchando-se na mania de perseguição, e os impulsos punitivos a que a pessoa está sujeita encontram alívio nas censuras da consciência. Porém, Pedro, o de Inês, é uma figura mais dolorosa; ele encontra-se submetido a três perigos simultâneos: o mundo exterior, a paixão, ou seja, a libido reprimida, e a severidade do sentido crítico que deriva do complexo de Édipo. Quando o príncipe é descrito como um grande comedor e bailador, temos que observar que comer pode ser a expressão de sentimentos hostis, assim como de sentimentos afectuosos. A cena de horror que nos é descrita do suplício dos matadores de Inês torna-se mais pungente e alucinante porque Pedro assiste, banqueteando-se. A lenda de que teria chegado a devorar o fígado de um dos criminosos pode significar uma forma de identificação com ele. Estaria de facto Pedro inocente da morte de Inês.'' Esta é uma pergunta que nasce naturalmente de uma série de dados históricos hoje capazes de serem analisados mercê de instrumentos mais aperfeiçoados. O impudor de ser claro não é para todos; mesmo os príncipes o evitam. As paixões demasiado assoladoras pedem remédios aos seus inimigos. Também na Baviera houve um caso igual ao de Inês; o caso de Agnés Bernauer que casou em segredo com o Duque Alberto III em 1432. Dois anos apenas durou este idílio no castelo de Vohburg; declarada como esposa legítima, Agnés ficou sentenciada. O pai de Alberto acusou-a de feitiçaria e mandou que fosse afogada no Danúbio, 15 aproveitando a ausência do jovem Duque. Mas um ano depois reconciliava-se este com o pai e casou com mulher mais aprovada. Não esqueceu, porém, a doce amiga, porque a fez sepultar com honras dignas dos sentimentos partilhados outrora; e os poetas cantaram os amores desgraçados de Frau Agnés. Não é raro que os grandes amores se despeçam com certa dose de consentimento; porque eles são tiranias cuja traição não parece corromper a alma, mas dar-lhe asas. Afonso IV, o pai de Pedro e o herói do Salado, possivelmente incarnou o tipo do repressor como base normal da vida do sentimento. O seu ressentimento contra o irmão bastardo Afonso Sanches e que se traduziu numa perseguição exasperada, desterrando-o para sempre do reino logo que este lhe foi confiado, diz bem da força ascensional não só dos seus afectos, como das representações de aversão. Em 1340, ao publicar leis contra o adultério, está a aplicar a energia do reprimido (cólera e desgosto contra o pai e os bastardos, assim como terna satisfação dada à mãe, virtuosa e exemplar) e a convertê-la num acto de defesa. Ao promulgar leis severas que punem a imagem do prazer na libertinagem paterna está, ao mesmo tempo, a produzir no filho, Pedro, a carreira da angústia. No mesmo ano de 1340 em que são promulgadas as leis contra o adultério, entra em Portugal Dona Constança Manuel, depois de um noivado atribulado e de maus presságios. O casamento com D. Pedro estava ajustado havia quatro anos, mas Afonso XI, que a pretendera e acabou por preferir Maria de Portugal, mostrou-se afectado com a saída do reino da dama Constança; reteve-a prisioneira em Toro, o que originou uma guerra entre Portugal e Espanha. Mas as guerras sempre acabam por acordos e Afonso XI, porque se apagasse o conflito pessoal ou indirecto que se abrira, permite a saída de Dona Constança, decerto depois de discutido um dote substancial. As arras recebidas de D. Afonso IV correspondem a uma espécie de ponto de tratado da conjuntura bélica. De resto, estas guerras, nascidas de um aparente melindre ou destempero familiar, 16 obedeciam sobretudo a imperativos económicos. Os senhores e os barões, afectados pelas crises, a peste, o abandono dos campos, a queda do número consumidor por miséria demográfica, decidiam da guerra como coisa pública e instrumento cívico, o que ainda hoje é processo habitual. A partir de 1300, a guerra não será apenas uma empresa fundamentada nos convénios feudais; a honra não será o melhor fruto das campanhas; elas serão compensadas com salários fixos, e os magnates do Ocidente podem comprometer-se em acordos financeiros face ao interesse das grandes marchas bélicas. Isto produz a consolidação das casas reinantes do Renascimento, e precipita a ruína dos banqueiros. Quando o séquito de Dona Constança Manuel chega a Portugal, decerto não se apresenta como o modelo do luxo castelhano que mais tarde, quando da crise de 1380, há-de atingir as proporções exorbitantes que caracterizam as épocas de inflação. Entre as damas que acompanham Constança está Inês, conforme nos esclarecem os papéis históricos mais ao alcance da mão, na realidade apenas os mais formais. É possível que Inês, de facto, já viesse incluída na comitiva por ordem de D. João Afonso de Albuquerque, em cuja casa se criara e que tivera um papel importante no contrato de casamento de Pedro e Constança. Figura inquietante, a do senhor de Albuquerque, o do Ataúde! Inês é o seu correio, o seu sinete, a sua luva; ela obedece-lhe como a sombra ao corpo que a projecta. Diz-se que os amores de D. Pedro com Inês começaram nesse primeiro encontro. A beleza de Inês exerce efeito sobre o príncipe e satisfaz a sua fantasia. Mas os que se apaixonam sempre estiveram apaixonados. Há um vestígio de recordação de coisas vividas no coração humano e que nem sequer precisam de corresponder a factos reais. São às vezes um discurso incoerente mas em que entra a selecção das ideias na direcção de um núcleo original que a todos nos atrai. A origem das coisas e da vida é o princípio fascinante da nossa inclinação; o amor não significa mais do que um brusco conhecimento da identidade original, o mesmo que nos faz ser difusos no comportamento social, ou religiosos, idealistas e poetas. 17 Para obstar a esse coup de foudre, que decerto toda a Corte presenciou, Dona Constança segue o conselho do clero interessado na intriga do palácio, e pede a Inês para ser madrinha do primeiro filho, D. Luís; o parentesco assim fomentado na pia baptismal reprimia ainda mais o adultério que, a efectuar-se, teria já carácter de incesto. Mas o infante morre e quebram-se os laços parentais; de resto, é problemática a aptidão de D. Pedro para obedecer. Ele sofre, mais do que da paixão por Inês, da paixão pela transferência de profundos sentimentos que não são exactamente amorosos. Isso não o deixa ver as relações objectivas, quaisquerque elas sejam. É possível que não haja relações humanas genuínas; umas interferem nas outras, evoluem, dissipam-se, voltam a reanimar-se na pegada da memória. Até que ponto Inês, «colo de garça», com a sua formosura intencional, trazendo na pele o fulgor da bastardia e com ela toda uma inveja tendenciosa que comunica uma histeria de gestos sem precaução, de desejos de converter tudo no seu próprio corpo, o mundo todo com as suas honras e os seus prazeres, agiu em Pedro como um princípio de omnipotência, não o podemos bem imaginar. Sem dúvida, ela era própria para despertar em Pedro a fase simbólica da infância. Mas debrucemo-nos sobre uma cena do mundo exterior onde o combate dos sentimentos opostos, amor e ódio, apetite e renúncia, nos pode dar o sentido da realidade. A dama Inês, sem véu, os cabelos soltos e abundantemente frisados, estava um pouco atrás da rainha, que usava o trajo de mulher casada, esta com véu branco e manto drapeado. Ambas se aproximavam da silhueta ideal da época: o seio apertado de maneira a parecer sem relevo, mas o ventre avançado como se estivessem em estado de gravidez. Um pormenor escandalizava a corte - o forro da capa de Pedro era de um amarelo brilhante. Na linguagem medieval e trovadoresca, o amarelo queria dizer amor recíproco. Ninguém podia, no entanto, descobrir até que ponto os favores da dama tinham sido concedidos. Desde os primeiros encontros, nos saraus e nos banquetes, Pedro exibira essa linguagem das cores com singular impudor. 18 Primeiro fora O gibão verde, as luvas verdes, o que queria dizer pretensão ao amor, recato porém no sentimento ainda inconfessado. Depois vestira-se de branco e pusera-se a cortejar outra jovem que não teria mais do que dezasseis anos e era prima de Inês. Ela trazia uma bandelete de oiro, o que lhe marcava a testa com um vinco, e olhava Pedro com receio e admiração, vendo-o mover-se como se dançasse. O porte e as maneiras dos gentis-homens tinham todos essa característica bailarina e deslizante. O tipo do cavaleiro delicado, que o rei Fernando havia de personificar, o que o tornava tão atractivo para as mulheres, fixara-se. O homem que tomava modos seguros e autoritários, guerreiro, provocador, era substituído pela imagem de Parsifal, o herói justo e proporcionado aos sonhos de piedade e de grandeza; mas grandeza que exprime uma inibição e bloqueio dos processos psíquicos normais. Rolando e Ganelon, com as suas espadas mágicas e os sumptuosos mantos de marta, não estão mais na moda. Pelo menos, Pedro não reflecte esse ideal cuja piedade está impregnada do desejo de morte, e que vê no inimigo, no infiel, uma via de salvação - a de perder-se com honra, o rosto voltado para o lado do horror que é o desejo da morte. Pedro é uma pessoa infinitamente mais tímida; por isso ele é cruel, e justo. A influência das mulheres na sociedade produzia um estado de concentração, uma espécie de rotura com a polipolarização da energia. Esta era orientada numa única direcção: a guerra, como desvio de uma proibição inconsciente que ameaçava de impotência o homem. Em todas as épocas demasiado apoderadas pela materialização feminina, estabelece-se uma estrutura de castração. Vemos como D. Afonso XI era dominado pela Guzmán, como Pedro, o Cruel, esteve sob o mandato de Maria Padilla de maneira tão absorvente, e como Maria de Portugal, sua mãe, com a sua corte de mulheres políticas reunidas em Toro, decidia dos destinos de Castela. A guerra era a única saída para essa hipocondria básica que o romance de cavalaria retratara; a libido reconhecida como perigosa (sua demonstração na figura de Sir Galaad) aparece como alucinação, materializando-se em acções histéricas-heróicas, enriquecidas por símbolos libidinais. 19 A guerra, como estigma histérico, resulta de uma pressão social comandada pelas mulheres e em que predomina a vingança como princípio de castração. No Romance do Graal, de Chrétien de Troyes, observamos essa impiedosa carga libidinal imposta aos homens pelas orgulhosas jovens do medievo. Eis como Messire Gauvain é tratado pela demoiselle "mais branca que fresca neve" e que tecia uma coroa de brocado no prado verde. Primeiro manda-o trazer-lhe o seu palafrém, e depois impede-o de tocar sequer as suas roupas. Por meio de ameaças encobertas e palavras cruéis, mantém Gauvain a distância. Grosseiramente, injuria-o e diz-lhe: "Que te impele a apalpar o espaço que circunda o meu corpo, a minha boca, a minha cabeça, os meus cabelos?... Sigo-te pelos caminhos, para saborear a tua vergonha, a partir de hoje mesmo, se Deus quiser." Esta provocação de uma pureza ameaçadora e que contém mais prazeres que os favores concedidos, é a arte do amor que o século XIII inventou. Brancaflor, como amante, serve um ritual que encoraja e inibe o amor. Compreendemos que a virtude não passa do trato interrompido de práticas na verdade ardentes; e quando Brancaflor regressa à sua câmara, onde repousam as damas, adormece "toda vestida de beijos". O belo Parsifal vai realizar na morte o cerimonial da neurose que lhe compete e que a amiga lhe proporciona sob os auspícios da castidade. Na realidade, trata-se de uma galanteria duvidosa e em que a mulher sai triunfante, livre de contactos que a engravidem e que destruam a sua beleza. E, para mais, senhora da alma insatisfeita em que ela depositou o ninho de serpentes que agitam o sono de Parsifal. Mas no Portugal recentemente acreditado no espírito das nações cristãs, a mulher não atinge a condição cortês a não ser passando pela mística religiosa. Como acontece talvez com Dona Isabel, mulher muito ferida de infidelidades e agravos numa corte de homens para quem o amor é mais folgar do que servir. E o Cancioneiro parece um jogo de bem trovar entre amigos e moradores de um mesmo paço, e não solitários e enganados. 20 A dama Inês, bastarda de uma casa em que predominavam os homens, entre os quais se destaca o pai, Pedro Fernandez de Castro, chamado "O da Guerra", não seria exactamente ingénua, como não eram as jovens desses tempos tão propícios a fixações incestuosas, conflitos emocionais, e o que se chama globalmente vivências traumáticas. A linguagem de uma senhora da corte era tão licenciosa como a de uma labrega. Praticamente foi a intenção de dominar profundamente o «protesto masculino» que desenvolveu a cortesia, verdadeira estratégia da mulher para obter a sagração da inferioridade masculina. Para responder a esta táctica foi que o homem promoveu a teoria da cultura europeia desenvolvida no princípio da virilidade e do poder e em que as mulheres aparecem como seres inacabados, como as crianças, e necessitados de tutela. Os aspectos de perversão que apresenta a conduta de Pedro I, sobretudo na fase em que se segue à perda de Inês, dizem quanto ele estava possuído por uma insegurança interior, absorvido como era pelas figuras poderosas que foram o pai e a amante. É mesmo possível que outra pessoa, esta absolutamente na sombra dos acontecimentos, estivesse na base do conflito. Os conflitos têm sempre origem na exigência de poder contrariada pela sociedade; mas neste caso não um poder estatal ou meramente público, o que D. Pedro obtinha como príncipe gratificado com o sentimento social. Também não se pode dizer que o seu amor fosse reprimido, pois Afonso IV, perante o interesse que esse enamoramento suscitava no meio ambiente, achou o casamento conveniente. E o que de certo modo parece incoerente é que D. Pedro recusasse essa hipótese, declarando que Inês não seria nunca sua esposa. De resto, a paixão é sempre de índole auto-afirmativa em relação a uma sanção de cultura, mais do que a sanção paterna. O que acontece é que a inibição de base cultural é deslocada para uma pretensa agressão dominadora do pai. Da magnífica petição do Doutor João das Regras, que trata da bastardia dos filhos de Inês e Pedro, tira-se alguma luz, se bem que os pontos mais elucidativos não sejam os hábeis raciocínios, masos factos concretos de toda a gente conhecidos. Inês de Castro teria vindo 21 como donzela da Rainha Dona Constança Manuel e, no íntimo trato do paço, Pedro dedicou-se a ela, quer movido pelos seus encantos, quer afrontado pelo próprio casamento com uma mulher mais velha e já repudiada pelo rei de Castela, que lhe preferira Dona Maria de Portugal. As atenções de Pedro foram desde o início tão evidentes que parecem qualificar-se como afã neurótico do amor, ou seja, uma defesa contra a angústia. Primeiro, Dona Constança trata de colocar uma barreira entre Inês e Pedro, fazendo-a madrinha do infante D. Luís. Quem conhece a grosseira e obstinada urdidura da intriga palaciana, que se satisfaz mais da sugestão do que do argumento sólido, pode entender o que seria o terreno desses primeiros impulsos ternos e fantásticos em que até a sexualidade desempenha escasso papel. Chegou a aventurar-se que D. Pedro aconselhara a dama Inês a não proferir as palavras do baptismo, para desse modo não serem os laços sagrados impedimento aos seus amores. De qualquer maneira, perante o desenrolar dos acontecimentos, o rei mandou retirar Inês do paço e confiá-la a sua tia Dona Teresa Martins, que a criara no paço de Albuquerque, na Estremadura de Espanha. "E estando assim com ela, aconteceu de morrer Dona Constança", diz Fernão Lopes. Morreu a rainha em Santarém e é de crer que acabasse não exactamente de desgosto, pois não há indício de que D. Pedro a desacompanhasse e lhe fizesse injúria muito escandalosa. O natural é que Dona Constança morresse de andaço e peste, que os diagnósticos eram precários e as medicinas duvidosas. Ou então, minada pela tuberculose, que o filho D. Fernando havia de herdar com o jeito amavioso, partiu para lugares mais saudáveis, que não as lezírias onde pastavam os gados negros e corredores. "Achá-lo-ás maior do que o de um touro" - diz Pêro Coelho ao carrasco, referindo-se ao coração que ele lhe ia arrancar - "e mais leal do que o de um cavalo". Estas imagens são as dos lidadores da lezíria, e evocam talvez a mocidade do rei nos seus paços campinos. Cerca de Peniche, ele tinha o curro dos seus touros de lide e possivelmente gostava de os matar a punhal, à maneira marroquina. Foi assim que procedeu com os assassinos de Inês; o suplício deles, que nos parece arrepiante, não significava mais do que um golpe mortal, 22 o mesmo que era usado para o touro cego de força e de espanto. E, sobretudo, era um método de execução sancionado pela lei. Quando Fernão Lopes fala da «benquerença trespassada», refere-se bem claramente aos amores adormecidos do príncipe e que, com a morte da mulher, se reavivaram. A dor move a euforia do seu contrário. Por isso, sobre muitos túmulos se realizam casamentos. D. Pedro procura a insignificante Inês Peres, quase esquecida na casa da tia, e que já não pensava decerto nesse príncipe de vinte anos, gago, tímido e não muito inclinado às mulheres. A espectacular maneira de se mostrar apaixonado não passava da imediata forma de impressionar a própria inibição. A sua expansividade é um disfarce da agressão. Ou fosse porque a sua educação tivesse sido demasiado dura ou demasiado terna, o certo é que essas ambas formações produzem uma tendência a afirmar as atitudes; como se a forma da infância constrangida no amor ou na severidade contivesse um modelo de homem, mas modelo falseado e inibido. Morta Dona Constança, a inibição aparece mais acentuada. A falta de clareza dos sentimentos de Pedro é compensada pela tenacidade que lhes imprime. Ele está ansioso por objectivos, e o primeiro que se lhe apresenta é a recuperação de Inês, não como objecto sexual, mas como uma compensação que se considere como algo de sexual. Decerto para surpresa da corte, onde ele vivera em acordo com Dona Constança e os filhos dela, Pedro comporta-se de maneira que se classificaria hoje como histérica. Enfrenta a situação com uma rapidez que parece determinação há muito elaborada. Na realidade, ele não pretende Inês, mas procede como se esse fosse o seu desejo mais ardente. As intenções conscientes obedecem às atitudes. Com alguns homens da sua mesnada, ricamente vestido, usando a veste sem mangas forrada de pele, Pedro chega a casa da dama Teresa e, decerto sem muitos rodeios, pede que chamem Inês; ou ele próprio a vai buscar à sala das mulheres onde, sentada num estrado à maneira mourisca, ela está mergulhada na ociosidade palreira e colorida dessas comunidades caseiras que exprimiam uma forma raquítica e sonolenta da existência. 23 Mulheres velhas, cujo conselho reflecte a agressão das misérias esquecidas, reprovam as mulheres novas, a sua magreza em forma de I, a mania de tingir os cabelos com casca de cebola para os tornar loiros. É possível que na casa de dama Teresa houvesse uma escrava moura, hábil em tratar dos penteados e tão lasciva e festiva, que a sua intimidade se tornava um vício. É sabido como Filipe o Belo expulsava as criadas berberes da companhia da sua mulher Joana; e horas depois elas ocupavam de novo o posto, com as suas receitas, os seus cantares, o jeito para os malefícios de amor e as mezinhas para os partos difíceis. Não havia dama de alto nascimento e criação cristã que não tivesse dessas mulheres na sua privança; como Leonor de Guzmán, a concubina poderosa de Afonso XI, que confiava a uma feiticeira moura os torvos desígnios que lhe favorecessem a prole bastarda. Pedro o Cruel de Castela teria nascido de Maria de Portugal graças às artes de Pêro Gil, um judeu, provavelmente médico, e que começou por escorraçar uma parteira moura. Digamos que Pedro entrou desabridamente pelas salas do solar dos Albuquerque e encontrou Inês, a quem arrastou consigo, mais do que convidou a segui-lo. Quando condenada a morrer às mãos dos privados de Afonso IV, ela diz que é inocente, pois não podia resistir a um príncipe; achamos comovente esse desastre de mulher, que acaba como um animal doméstico, apanhado ao canto do curral, sem mais terror do que o que foi acumulado pela servidão. Pedro tem um olhar rápido para a bela jovem, delgada e alta, que veste um vestido sem cinto e que o olha sem surpresa; as mulheres recuam, escondendo a cara no manto de trabalho. Não se imagina tímida, Inês Peres. Sorri e avança no seu andar que tem a elegância dançarina das donzelas da corte. Pedro beija-a gravemente e, com uma breve reverência a dama Teresa, parte enquanto atrás dele e da sua comitiva se fecham as pesadas portas de castanho. O solar parece morto; a poeira assenta lentamente no terreiro, e a grande nogueira cujos ramos alcançam a varanda aberta sobre os olivedos ensombra os ares onde os corvos passam com gritos ásperos. Numa mula cinzenta, própria para os caminhos rochosos, vai Inês. Leva consigo algumas jóias, 24 e um véu de mulher casada flutua nos ombros dela. Pedro fala com os seus homens; a desesperação com que ele encara qualquer situação de tentação ou que o desiluda, dá lugar a uma enorme confiança. Graceja, e o seu espírito vivo, que às vezes parece endemoninhado, próprio da estrutura depressiva, faz rir o mesnadeiro e os acompanhantes. Não é uma gente muito distinta, pois foi colhida ao acaso quase, entre desterrados, homiziados, ladrões até. Uns provêm das cortes hispânicas que se guerreiam e têm sempre grande soma de desertores e conspiradores - homens dos infantes, dos bastardos, dos simples senhores bandeados contra o rei de Castela, cuja política imperialista se consolida em 1355, ano em que Inês é morta. A tese da hegemonia peninsular revivia na mente de Pedro de Castela, e é possível que o Infante D. Pedro, com a sua natureza inibitória, estivesse inclinado a uma política de abandonismo no que se refere a Portugal. Não há, no entanto, uma atitude coerente nas suas maneiras; incapaz de concentrar-se em si mesmo, Pedro prefere jogar com a personalidade do desinteressado. Prefere ter amigos a ter lucros, e mesmo a ter razões. Em geral, homens como eletêm necessidade de um exemplo, e o exemplo aqui é Pedro, o Cruel, de Castela. Não é influenciado por outro Pedro, o Cerimonioso, porque o seu perfil de letrado e mestre de intrigas políticas e financeiras lhe parece decerto um modelo de maturidade que o constrange. Enquanto o Cerimonioso é tão discreto que as fantasias da juventude lhe são estranhas, Pedro de Portugal nunca perde a tumultuosa e histérica maneira de proceder e de se relacionar. Trazida Inês, decerto quase raptada do castelo de Albuquerque, na Estremadura, ou seja, do paço do famoso filho de D. Dinis, Afonso Sanches, já falecido, o Infante tratou de instalar a amante em lugar escondido, para não alterar os ânimos do pai, a quem a dama Inês Peres devia causar singular desagrado. Primeiro, o seu aparecimento na comitiva de Dona Constança era motivo de cogitações. Donde vinha ela, essa donzela peregrina, moldada ao gosto medieval e que devia causar nos homens novos a mesma impressão que hoje causam os modelos da Vogue ou das marcas de aperitivos? 25 Com a sua silhueta alongada, os cabelos loiros soltos nos ombros e o ar cheio de vago ardor, que parece promessa e é só um desejo frio que toca ambições no sentido comum, Inês parecia talhada para enfeite da sociedade. Quando Afonso IV a vê na corte, não pode deixar de mostrar inquietação e antipatia. Inês foi criada no paço de Afonso Sanches, o bastardo de D. Dinis que o herdeiro do trono tanto detestava e que desterrara para Castela, confiscando-lhe os bens, retirando-lhe as honras, que eram muitas. A intervenção da Rainha Santa Isabel moderara essa explosão de raiva, e decerto Afonso Sanches voltou ao poder dos bens, porque com a mulher, Dona Teresa Martins, fundou o convento das clarissas de Vila do Conde, onde jaz, em túmulo quase real. O edifício conventual diz da grandeza do fundador. Foi o senhor desta casta controversa quem recolheu Inês Peres e a educou. Afonso IV não tinha razões para acreditar que a sua presença na corte fosse inocente. Não era decerto só bela, a dama Inês; devia ter as prendas da época, sabia cantar e tocar hinos e melodias, alaúde e viola andaluza, aprendera algumas artes de encantamento com feiticeiras mouras e alcoviteiras cristãs. Era isto o que lhe atribuíam, um talento para atrair os homens e trazê-los ao seu regaço com singular habilidade. O ódio que o príncipe mostrou por bruxas e intrometidas em coisas de amor, os bárbaros castigos que lhes decretava, dizem do rancor surdo que prevalecia sobre o encantamento de Inês, e talvez a fama que a tocou. A sua morte foi a meta compensatória que resolveu as coisas; como se a evasão de um perigo se desse por meio de uma intensidade de instintos tão secretos como infalíveis. Uma figura que a História reduz a um objecto de talha nos altares é a rainha Dona Isabel. A sua santidade relaciona-se com a prudência e dissimula até uma vocação governativa bastante acentuada. Em coisas práticas é tão conhecedora como em coisas sobrenaturais; e no famoso processo de Dona Mor Dias, que foi mulher de grande fortuna e cobiçada de todo o corpo mongil de Santa Cruz, a rainha aparece com muito siso. Recupera debaixo do seu manto o testamento de Dona Mor para o aplicar no mosteiro de Santa Clara já fundado pela rica senhora; e assim anula as pretensões dos frades de Santa Cruz, 26 que acusavam Dona Mor como perjura, antes professa da sua ordem. Para evitar essas batalhas de tribunal, não de todo celestial, Dona Isabel nunca toma o hábito de clarissa e usa-o só como «pannus securitas», ou seja, padrão de humildade. Foi por seu conselho que Dona Mor Dias, depois de malquistada com Santa Cruz, se lançou na construção do convento de Santa Clara, dedicado a Santa Isabel da Hungria, tia da rainha e da qual já constava o episódio das rosas. Entende-se que Dona Isabel era boa advogada de causas barulhentas e perniciosas; e tão impertinente, como as santas sabem ser, que D. Dinis a teve detida em Alenquer. As excomunhões voavam entre Coimbra e Lisboa, e os delegados da Santa Sé não podiam estar sempre disponíveis para os reis. A questão durou quase trinta anos e, através da onda de documentos, de árbitros, legados, cónegos e juízes, entende-se o génio abelhudo e litigante da rainha. Há uma pública-forma datada de 29 de Maio de 1319 que é redigida na Serra de Atouguia, portanto do paço preferido de D. Pedro e onde Dona Isabel se encontrava. A morada de Serra d'El-Rei fora antes residência da Rainha Santa e seu retiro em coisas de oração e jogos tabeliónicos. Entre a morte de Dona Mor Dias, ocorrida em 1305, e a solução do pleito obtida pela soberana, vão catorze anos, o que dá bem para negociar com a alma de Dona Mor e os seus bens acumulados nas chancelarias reais e cofres do almirantado. O convento de Santa Clara tinha nos alicerces a maldição dos frades crúzios; o que não é coisa pouca para que deixe de constar. Em vez de rosas, antes punham nas abas do vestido real uma data de papéis, cartas, autos, sentenças e provisões e protestos; e enxofre no caixão, em vez de bálsamos. É possível que a primeira pessoa a reparar seriamente em Inês fosse D. Afonso IV. Imediatamente desconfiou dela, sabendo que viera da casa do detestado Afonso Sanches, com quem travara guerra aberta. Provavelmente informadores e polícia política traziam-lhe notícias pormenorizadas da bela bastarda do Castro da Guerra. A sua animosidade fez-se um motivo de intriga, e Pedro acabou por se interessar. O motivo, que era Inês, para atingir a sua realização tinha a seu favor a pressão da energia, que era a cólera do rei. 27 Ou porque este estivesse bem informado e Inês viera para seduzir o infante; ou porque a intensidade dos seus cálculos e temores agisse sobre a imaginação do filho, o certo é que Inês estava situada de repente na hierarquia dos objectivos de ambos os principais personagens - D. Afonso IV e D. Pedro. Temos que admitir que o rei amava o filho, mas entre o movimento do instinto e a vontade haveria alguma confusão. Pretendia que D. Pedro o amasse, como outrora desejara o amor do seu próprio pai D. Dinis, amor repartido com os bastardos, especialmente com Afonso Sanches. Mas Afonso IV não tinha conhecimento das suas próprias forças, como se vê na ocasião de mandar executar Inês, sentença que quase revoga, dizendo aos conselheiros "fazei o que quiserdes". O conhecimento das próprias forças refere-se a uma situação interior que o rei ignorava. Ignorava que toda a face oculta da perseguição a Inês não era a táctica política, mas ainda o ódio mal extinto contra Afonso Sanches, em casa de quem ela possivelmente se criara. Afonso Sanches, poeta e cavaleiro tão querido por D. Dinis, senhor de altos cargos e até consentido na corte por Dona Isabel, a Santa, fora decerto desde a infância um espinho difícil de arrancar no coração de Afonso IV. O jogo entre conhecimento interior e motivação está patente no conflito violento que se abre entre os motivos, estes continuamente e ferozmente antecipados. Antes de Pedro reparar em Inês, o rei já avaliava e futurava a conduta de ambos. Estão inocentes e são já marcados pela imposição de uma acção intencionada. O conflito surge e toma proporções desmesuradas, não porque Pedro ame Inês e a deseje, mas porque as consequências desse acto se antecipam. Pedro sabe que o resultado desses amores é um castigo, mais do que o prazer. O medo da sanção e o apetite amoroso entram em conflito, e a sua forma de conduta torna-se irracional. A melhor maneira de compreender a história inesiana é ouvir o que nos conta o próprio D. Pedro, numa época em que se aplacou nele a pressão das suas energias e é, por sua vez, soberano. Morto D. Afonso IV, morta também Dona Brites, a mãe, desaparecem os obstáculos, Pedro tem acesso a uma conduta baseada no sentido comum. 28 Deixando de parte os juramentos e os pactos que firmara, vinga-se, e recupera Inês por todos os meios ao seu alcance. Tinham passado sete anos depois datragédia do Paço de Santa Clara, e há cinco anos que seu pai falecera; as areias do esquecimento tinham varrido muitas pegadas, apagado muitas vozes, tanto de júbilo como de dor. E quando Pedro, em boas relações com os monges brancos de Alcobaça, contrata com eles a realização do túmulo de Inês. Em 1366 o rei está doente, e provavelmente esse aviso de uma morte próxima é o incentivo para completar as instruções sobre a sua própria jazida. Uma coisa que é reconhecida nos nossos dias é que os lavores dos túmulos contêm a biografia dos dois famosos amantes. Sobretudo, a rosácea aberta na cabeceira de D. Pedro relata, como contada por ele próprio em horas de febre e recordação, a sua dolorosa história. E pois a leitura da rosácea o que este livro descreve: a leitura das suas pétalas interiores e exteriores, consagradas respectivamente aos amores idílicos e aos amores punidos. Uns representam a pequena história, recatada e provinciana, decorrida nas terras da Lourinhã e na quinta do Canidelo. Outros são já formas de conduta em plena colisão, e que se derramam na loucura e no crime. A acção condicionada pelo instinto e pela vontade estabelece a confusão e a desordem. A confissão de D. Pedro, obtida decerto num período de doença e convalescença, em que o esquema inconsciente estava relacionado com a razão, tem de ser verdadeira. Tudo o que se protege verdadeiramente exclui o fingimento. Pedro protege Inês e, na pressão do motivo, positiva neste caso e que se destina a adoptar uma atitude capaz de realizar um fim, e não a pressão negativa que apenas conduz à evasão de um perigo, ele vai narrar os acontecimentos como de facto se deram. A narrativa da rosácea baseia-se claramente numa esperança, como todos os actos dirigidos a um fim. É a esperança que auxilia a acção. Esta, pela primeira vez na vida de Pedro, é clara e soberana. II - A COROA EXTERIOR. A leitura da rosácea tem-se feito umas vezes partindo da coroa exterior, outras vezes da coroa interior. Eu parto da primeira ordem das edículas, movida por um pormenor que me parece o remate dramático mais conseguido pela narrativa de D. Pedro: a figura da pétala interior da rosácea sobre a inscrição «até ao fim do mundo», exactamente o epitáfio do rei deitado e amortalhado. Trata-se de uma mulher nua, em atitude de ascenção, como as almas que se elevam na iconografia cristã. Foi descrita como sendo Dona Constança Manuel; o ventre avultado representa uma mulher grávida, e a nudez é propositada para melhor revelar esse estado, uma vez que o vestuário feminino da Idade Média tinha tendência a figurar a prenhez como louvor da fertilidade, sobretudo nas classes abastadas. Mas não é admissível que na tão exclusiva memória de Inês, à hora da morte, Pedro incluísse Dona Constança, o luto por ela, e evocasse o seu último e infeliz parto. O mais natural é que quisesse pormenorizar o delito feito em Inês, dizendo que ela se achava grávida quando foi morta. Isto enegrecia mais o crime de Afonso IV, sem que, no entanto, o denunciasse claramente. Quero chegar ao facto de, sendo a coroa interior iniciada pela ascenção de Inês ao reino dos Céus, ela descrever os lances imaginários da eternidade. Na coroa exterior estão patentes as fases idílicas até à consumação da tragédia. Mas também é possível que canteiros e frades instrutores da obra 30 não respeitassem uma ordem cronológica muito rigorosamente; ou o estado das figuras, mutiladas pelos repetidos vandalismos ou simples consequência da remoção dos túmulos, não permita uma leitura exacta. De qualquer modo, quando aparecem Pedro e Inês lado a lado, em atitude contemplativa, mas separados por uma colunata, isto no túmulo da Infanta, podemos interpretar que viveram separados enquanto não casaram. O facto de ela aparecer primeiro à esquerda do príncipe e depois à direita explica o formalismo das suas relações. O temor que Pedro sentia perante o pai era fundado no carácter do rei, severo, decerto marcado pela edificante presença da Rainha Santa. A última fase da vida de D. Pedro é ocupada pela obsessão dessa severidade levada até à demência. Castiga duramente os mais dilectos amigos e servidores, enquanto as lágrimas rompem dos olhos e se encontra desamparado pelo acto de justiça que vai ordenar. Não é um homem cruel, mas um homem afligido pelos transtornos da integração. Não é capaz de superar os próprios actos integrando-os na capacidade de defesa; actos em que se inclui a ética da situação face à ordem da comunidade. No fundo, é indeciso e não tem confiança nele próprio. Todas as suas experiências decerto não correspondiam a um estado de necessidade, e por isso falhavam. O seu desejo pelas mulheres era fraco ou, pelo menos, tornara-se muito próximo da impotência graças aos casamentos precoces: primeiro com uma princesa débil mental, enferma e que acabou por ser repudiada, sendo, no entanto, consumado o casamento. Tendo o infante oito anos de idade, é possível que Dona Branca esperasse em Portugal a idade núbil do noivo, e só então surgisse a incompatibilidade. Pedro é de novo casado por procuração aos dezasseis anos com Dona Constança Manuel, que já fora noiva de Afonso XI, que lhe prefere «a formosíssima Maria», irmã de Pedro. Constança, por razões complexas a que não eram estranhas as de ordem política, é encarcerada em Toro, e só quatro anos depois, quando é assinada paz com Castela, pode entrar em Portugal. Pedro tem vinte anos e uma experiência matrimonial atribulada. Esperança afectiva e confiança na sua própria capacidade 31 para resolver situações, não atingem a maturação. Era, nesse tempo, um jovem que preferia com certeza a companhia dos monteiros e dos seus cães, à dos condestáveis e mestres mareantes. A figura do pai, herói do Salado, ocupa todo o horizonte social; Pedro toma o partido dos rufiões e gente miúda, é visto no meio da populaça a dançar de maneira bastante indecorosa. Mas não se atreve a dar escândalo de maior, o seu tempo é gasto em caçadas e viagens pelo reino, permanecendo regularmente no seu paço da Serra, na Mata d'El-Rei, cerca de Atouguia. O facto de ter havido em Serra d'El-Rei um convento de Regrantes de Santo Agostinho que passou à Ordem de Cister, determinou a afeição de D. Pedro a esses lugares. Esses terrenos estremenhos tinham sido doados por D. Afonso Henriques aos frades de Alcobaça; a peste de 1191 fez perecer todos os religiosos do lugar, mas os terrenos de caça serviram de pretexto à presença de D. Pedro, afeiçoado, como se sabe, aos monges de Alcobaça. É provável que estes, em uso de tais terras, intercedessem na edificação do paço, restos do primitivo convento, e que D. Pedro utilizava nas suas correrias venatórias pela Serra. Em 1360, já depois da morte de Inês, mandou ampliar a casa do chamado Lugar da Serra, a que o ligavam recordações amáveis. O paço é de aspecto modesto, não porque obedecesse a qualquer espécie de mau gosto, mas porque os grandes senhores não cuidavam do alojamento senão tratando-se de Deus e sua Corte. Serra d'El-Rei, outrora Serra da Pescaria, com Alfeizerão e Paredes, eram portos de mar já assoreados quando Fr. Manuel dos Santos faz a sua Descrição do Real Mosteiro de Alcobaça, em princípios do século XVIII. Ele diz que as areias os tinham fechado "há menos de cem anos", o que significa que, em tempo de D. Pedro, Serra da Pescaria tinha ainda esse nome e era porto de mar. Pertencia às terras da Estremadura, propriedade da Real Abadia de Alcobaça e que se inscreviam numa imensa área de cultivo, de pesca e de caça, entre Leiria, Óbidos e Porto de Mós, a poente delimitadas pelo mar. Foi a Serra da Pescaria que D. Pedro escolheu para sua morada habitual; aí devia possuir pavilhão de caça com a sua grande turba de monteiros e batedores, falcoeiros e mouros peritos em adestrar aves 32 - 33 de presa e apresá-las. A caça era o vício de senhores e de plebeus, e quando o rei saía com os seus noventa falcoeiros vestidos de linhode cor e as penas dos gerifaltes e das garças a brilhar sobre as mangas, decerto que era um bonito espectáculo. A matilha corria e fossava toda a lura ou fresta; não havia aberrada ou perdiz a salvo em tempo de muda. As casas de caça, paços rústicos, tinham salas sobre currais, onde dormiam os homens. O tumulto, a conversa, o assunto, era a caça. Quando o falcão largava a pena e a lebre fazia a cama. Se os ninhos se perdiam com as cheias de Primavera, ou se a raposa trazia a raiva. O rei, com o seu curto saio de lã churra, não se distinguia dos seus campeadores; excepto depois D. Fernando, cuja formosura o punha logo em destaque e parecia tão elegante com o fato à moda de Borgonha, como com o colete de lavrador. Porque na verdade receava o pai, D. Pedro não vivia com Inês. Acomodou-a no lugar de Moledo, à distância de uma légua, e ia vê-la de noite com todo o sigilo e precaução. Uma lenda oral da região diz que o infante mandara ferrar os cavalos com as ferraduras ao contrário para que elas não deixassem vestígios na direcção da amante. É uma tradição ingénua, mas que informa suficientemente do temor com que Pedro encarava a reacção do rei aos seus amores. O facto de ter tido abrigo nos domínios conventuais diz da sua afeição pelos monges brancos que, de resto, possuíam no reino grandes privilégios. O abade de Alcobaça tinha lugar no Conselho do Rei, e é possível que em dado momento os religiosos da Abadia influíssem junto de D. Afonso IV para que ele aceitasse Inês como esposa do filho. Se houve casamento, como é de crer, os frades brancos deviam ter conhecimento dele; e talvez a cerimónia fosse efectuada na capela do paço da Serra, atrás daquelas muralhas que pareciam mais de fronteiro-mor do que de príncipe caçador. O certo é que o cronista da Ordem, Fr. Manuel dos Santos, não recusa a Inês a reverência própria de uma rainha. E faz notar: "com garboso donaire tem nas mãos uma luva calçada, e outra sem ela". Este pormenor leva-nos ao encontro da lenda do beija-mão, que teria tido veracidade; só que foi a mão de mármore que decerto teve esse preito de vassalagem. O paço de Inês em Moledo estaria na margem direita do rio Atouguia, ou Touria, nome derivado do touril de D. Pedro que, provavelmente, tinha o gosto da lide. Lide a pé, muito selvagem, em que dantes se usavam forçados e criminosos para combater, sendo mais exactamente um espectáculo de circo do que uma afición de cavaleiros. Entre 1346 e 1352, D. Pedro e Inês Peres viveram discretamente nas terras estremenhas; mas em 12 de Junho de 1352 aparece uma doação a Inês de Castro, do padroado de Santo André de Canidelo, Vila Nova de Gaia; doação feita pelo infante à sua amante e recebida dos cavaleiros João Coelho e seu sobrinho. Este padroado estava ligado à quinta do Canidelo, Vila Nova de Gaia; doação feita pelo infante à sua amante e recebida dos cavaleiros João Coelho e seu sobrinho. Este padroado estava ligado à quinta de Canidelo, propriedade de ambos, o que faz pensar no casamento, visto que se trata de bens comuns. No entanto, Dona Inês é o nome com que figura no acto notarial lavrado no Mosteiro de São Francisco; D. Pedro não lhe chama mulher, como é de uso em tais documentos, mas também não é de supor que ele quisesse revelar esse facto. É muito possível que a data da doação coincida com a data do consórcio, e Pedro e Inês tenham casado no Mosteiro de São Francisco em 1352; ou mais verosímil é que o acto solene decorresse à puridade, na casa da quinta de Canidelo. De qualquer forma, o cavaleiro João Coelho e um seu sobrinho do mesmo nome, descendentes de Egas Moniz, com muita entrada no paço de Afonso IV, são quem faz a doação do padroado da Igreja de Santo André ao Infante, em pagamento das mercês que lhe deviam. Dois dias depois, perante o mesmo tabelião, no Verão de 1352, o infante D. Pedro renuncia ao dito padroado em favor da "dicta Dona Eines". Depreende-se que esta gente dos Coelhos estava muito próxima dos segredos do príncipe. O irmão, Estêvão Coelho, seria testemunha de D. Pedro e o pai do doador do padroado de Canidelo; e o famoso Pêro Coelho, que acabou miseramente às mãos do príncipe, era também seu filho. Eram pois fidalgos de muita confiança, tanto de Afonso IV como de D. Pedro. 34 Mas teriam conhecimento do casamento, ou o infante evitara dar-lhes a saber dessa diligência, decorrida em sigilo? Com vista à habilitação dos filhos de Dona Inês aos direitos reais, doze anos depois da morte de sua mulher, Pedro intenta provar a legitimidade dos infantes. Tudo parece cheio de evasivas e de lacunas; a própria rosácea do túmulo, feita em jeitos de roda da fortuna, não descreve a cena do casamento. D. Pedro afirma que se casou em Bragança, e o criado Estêvão Lobato declara que foi testemunha do acto "na câmara dos Paços onde esse Senhor então pousava". Um fidalgo bragançano, Lourenço Martins de Bornes, teria também testemunhado a cerimónia, mas não é solicitado para depor. As datas são fugidias, João das Regras aproveita isso para insistir sobre a pouca veracidade dos factos. Aparece o dia 1 de Janeiro, mas não o ano. Ora, Inês foi morta em 7 de Janeiro de 1355, o que faz pensar numa denúncia logo seguida de sentença e execução da pena. Qual pena? D. Afonso IV estatuíra como crime público os casamentos clandestinos; aqui estaria portanto a chave de tantas pistas apagadas, do silêncio dos nobres e até da evasiva de D. Pedro em querer declarar a data exacta do casamento ou cronologicamente a apontar no túmulo. Isso tornava-o réu, provavelmente não só de casamento clandestino, mas também de rapto, o que por lei de D. Dinis era punido como crime grave. E quem estremece com o rigor das penas tem que pensar antes que, na sua severidade, Afonso II já as circunscrevera ao foro real, retirando assim o quadro primitivo, em que o crime estava sujeito ao critério do particular, com toda a barbárie e arbitrariedade da justiça privada. O testamento da Rainha Isabel era claro quanto à vontade de deixar os Paços do Convento de Santa Clara para pousada dos príncipes e suas mulheres. Ao instalar-se lá com Inês e os filhos, Pedro estava a confessar publicamente a legalidade do seu estado. Legalidade recente, com certeza. Fr. Rafael de Jesus, em 1682, parece ter dados para assegurar que "ainda este ano [1351] não era nascida Dona Brites, 4º fruto". Ela nasce no Canidelo, ou quando se dá a mudança para Coimbra. E nesta cidade deve ter casado o príncipe, em 1 de Janeiro, do que diz depois ter perdido a memória; quando, como bem argumenta 35 João das Regras, o dia 1 de Janeiro é por demais fasto e notório para cair no esquecimento. Mas pergunta o doutor hábil e perseverante: porque não confessou D. Pedro, morto o velho rei que tanto o assustava, o casamento? Porque era viva Dona Brites, sua mãe; e decerto por não causar-lhe paixão, se calou. Porém, falecida a rainha, em 25 de Outubro de 1359, D. Pedro anuncia o seu casamento com Inês, passados que foram os meses de luto. Em 1360, os filhos, até aí tidos por bastardos, são intitulados infantes. E é tal a certeza dos seus direitos que D. Dinis, o filho segundo, depois da morte de seu irmão, se quis chamar rei de Portugal, usando de precárias investidas no sentido de tocar o trono, se não com a mão, ao menos com a espada. Mas o Mestre de Avis levava-lhe vantagem, porque não trazia na pele a amargura de infâmias mal esclarecidas. D. Dinis fez-se sepultar em Guadalupe, com a inscrição de Rei de Portugal. Esse anonimato em que se obstina o orgulho deixa pensativo Filipe II, um dia que passa pela igreja da Estremadura espanhola. A verdade é que D. Pedro, em vida do pai, não podia confessar o seu casamento com Inês. Isso tornava-o réu de delito público, o que era desonra e motivo para pôr em precária situação os seus direitos morais ao trono. Desde D. Afonso II notamos a preocupação do soberano em munir-se de leis que funcionassem como garante da justiça real, a única a ser observada,tirando ao particular a possibilidade de exercer represálias ou agir conforme o seu poder de mesnada. O reino, para ser confirmado, tinha que encontrar nos preceitos, por vezes ferozes, a confiança da comunidade sujeita a privações de protecção e da ordem. As nações só resistem ao conflito da dinâmica humana, que visa o prazer e não a ideia, se contratam juristas antes das lanças. Rui de Pina é claro em transcrever a palavra de D. Pedro "que depois do falecimento da Infanta Dona Constança, ele recebera logo por sua mulher por palavras de presente a dita Dona Inês". É o caso que cai sob alçada da lei que fez Afonso IV, compreendida no Livro V das Ordenações, Título XIII e que começa: "Porque também 36 no nosso tempo, como no tempo dos Reis donde nós vimos, usavam os homens de casar escondidamente com mulheres virgens, ou que viviam com alguns, que as criavam em suas casas". Esta é a única lei que está datada e foi promulgada em 21 de Setembro de 1340. Em Fevereiro do ano de 1336 firmou-se o casamento de D. Pedro e Dona Constança, por procuração, na cidade de Évora, paços de São Francisco, com muita solenidade, ficando acordado que a noiva viria para Portugal na época de São João próxima. Mas nesse tempo de Junho de 1336 a corte está de luto pela morte da Rainha Santa, e Dona Constança retida em Toro por ordem do rei de Castela. Posto em grandes pensamentos e em "ondas e tentos e diversos cuidados", Afonso IV declarou guerra ao castelhano. "Por isto serem paixões dentre pais e filhos", como disse o rei, não desejava abrir hostilidades senão as que o coração guarda. Porém, são mais fortes os conselhos da violência do que os da brandura, e a guerra desencadeou-se, com muito dano de pequenas gentes, entre roubos e cativeiros. Na Galiza deixaram os portugueses estragos cruéis; de Castro Marim levaram os castelhanos muitos prisioneiros, e o seu convento de Cristo sofreu tais efeitos predadores, que daí se transferiu a Tomar. Só em Agosto de 1340, concertada a paz, Dona Constança vem para Portugal. Imediatamente, um mês depois, a lei sobre os casamentos escondidos é redigida. "... e por razão desses casamentos, se seguiram muitos danos a essas mulheres, casando às vezes com tais, que as não mereciam, ficando algumas difamadas, porque não podiam provar o casamento, e os filhos, que delas haviam, ficavam por nome lídimos; e demais recresciam muitas mortes, e homízios entre parentes delas, e aqueles que casavam, porque estes, que tais casamentos faziam, não haviam escarmento por justiça, segundo os direitos que deviam haver." É estranho e quase maravilhoso o facto de D. Pedro ser, desde a hora dos seus esponsais, apertado numa lei que parece ser-lhe destinada e com cuja letra terá de bater-se a vida inteira. Mais do que uma lei, é um vaticínio. "... que as criavam em suas casas." Dona Inês criara-se, depreende-se, na casa de Albuquerque, senhorio de Afonso Sanches, 37 que fora inimigo mortal de D. Afonso IV. A tia de Albuquerque, que aparece como protectora de Inês, e sua prima de sangue, é a mulher de Afonso Sanches. Surge uma interrogação bastante aceitável: o infante conhecia já Inês antes do casamento com Dona Constança, ou, mais exactamente, antes da entrega da noiva em Portugal? Na livraria antiga do Mosteiro de Alcobaça existe, ou existia, a memória dos terramotos ocorridos no reino, e adverte que "no ano de Cristo de 1335, hum sábado 11 de Julho tremeo a terra em Alcobaça com grande espanto dos moradores". E diz mais o registo do acontecimento que foi quando "romperam guerra el Rey Affonso 4 e seu filho o infante D. Pedro". Nessa data nem Pedro era casado com Dona Constança, o que sucedeu no ano seguinte, por procuração em Évora; nem havia vestígios de Inês. Qual a causa do desentendimento? Os cronistas calam-se, mas há na Crónica de Ayala, no ano quinto do reinado de Pedro de Castela e ano de 1354, um capítulo esclarecedor. Começa assim o capítulo VIII: "Estando o Conde Don Henrique e o Mestre Don Fradique seu irmão, e Don João Afonso de Albuquerque já entre todos concertados, chegou ao pé deles Don Álvaro Perez de Castro, que vinha ver Don João Afonso por dívida que tinha com ele". Pediram-lhe os fidalgos que ele falasse com Dom Pedro de Portugal, a título de ele ser neto legítimo do rei D. Sancho de Castela, para lhe propor o trono, porque eles o apoiariam. E Don Pedro ouviu "de buen talante à Don Alvar Perez lo que le decia, é plógole dello, é quiseralo facer". O pai interveio com rapidez a estorvar esses planos, e em consequência manda executar Inês. Álvaro Perez de Castro era irmão de Inês, como ela bastardo e íntimo da sua casa; e, como ela, possivelmente criado no castelo de Albuquerque, chegado desde a infância ao famoso João Afonso de Albuquerque, privado, conselheiro, quase soberano de Castela e de origem portuguesa porque era filho de Afonso Sanches, o odiado irmão de Afonso IV. Não podendo elevar Inês a princesa no seu país, Pedro pensou seriamente em coroá-la rainha de Castela. Essa foi a sua sentença de morte, e temos de admitir que a razão era poderosa e se justificava uma medida drástica. Continua Ayala dizendo que por esse mesmo tempo 38 a rainha Dona Maria saiu de Portalegre e não quis tomar o caminho por onde estava D. João Afonso, ou seja, o caminho de Albuquerque "E iba con ella el Infante Don Pedro su hermano, que fué despues Rey de Portugal, é D. Alvar Perez de Castro..." O trajecto que seguiram foi o de Niza, cerca de Castelo Branco, onde se demoraram oito dias; Inês é possível que viajasse também na comitiva, que continuou pela Guarda, Trancoso e Mogadouro, até que o Infante, deixando a irmã fora da fronteira de Portugal, voltou para trás. Esta viagem acabou mal. Em Toro, onde a rainha pousou com os seus cavaleiros (e com eles Afonso Telo, que levava o seu cavalo pela rédea e que se dizia seu amante), Pedro de Castela, o filho contra quem ela conspirava, fez larga matança na ponte do Alcazar. Com maça uns, outros com punhal, ali ficaram mortos os validos de Dona Maria, que caiu, ela, sem sentidos e não sem a vida, perante o triste espectáculo. Pediu a rainha para ser mandada para Portugal, para junto de D. Afonso IV, seu pai. Mas demorou em Toro, decerto a ordenar coisas das suas finanças que lhe permitissem um exílio abundante e para prosseguir na conspiração. Nesse mesmo ano de 1354 morre João Afonso de Albuquerque, e a sua morte é atribuída a veneno mandado ministrar por Pedro de Castela. Inês está agora mais indefesa e, enquanto perante Toro desfilam as tropas dos nobres rebeldes, levando o cadáver de João Afonso de Albuquerque como bandeira, ela está à mercê de Afonso IV nos Paços de Santa Clara, perto da corte que pousa em Montemor-o-Velho. Pedro não mostra grande preocupação em escondê-la e deixa-a demasiado em evidência, sem guarda armada, visto que não houve, ao que parece, recontro entre os cavaleiros do rei e os homens do infante. Enquanto que em Castela Pedro sempre vela pela sorte de Maria Padilla, a sua querida, e por ela abandona Toro, última posição onde podia resistir à facção dos nobres ainda indecisos e mal afeitos à rebelião, Pedro de Portugal mostra-se mais desatento ao destino de Inês. Em Toro, sua irmã Maria, num conselho de mulheres ofendidas, que valem por uma legião de capitães arrojados (entre elas está a viúva de Albuquerque), prepara a capitulação do rei e a sua perda. Pedro de Castela é preso e, 39 à mercê dos nobres rebeldes, pode jogar com as pedras de xadrez que são os homens com diversos pretextos a movê-los: a ambição ou o simples estado de necessidade. A pressão dos motivos é desigual em todos eles, e Pedro, concedendo, pagando, corrompendo, obtém aliados. Entre estes está Álvaro Perez de Castro, o irmão de Inês. Nos primeiros dias de Janeiro de 1355, debaixo da protecção do nevoeiro que sobe do rio, Pedro consegue escapar aos seus camareiros escolhidos entre a maior nobreza inimiga. Lança o cavalo a galopee foge à vigilância de Fernando de Castro seu mordomo (outro dos irmãos de Inês), e deixa para trás as terras de Toro, onde caçava, como prisioneiro de rebeldes pouco convencidos. A sua posição parece outra vez segura, tanto mais que, sem resistência, os selos reais lhe são entregues, e em Toro há confusão entre os nobres. 1355 é um ano sangrento, e Inês vai ser mais uma vítima. É em Janeiro e Fevereiro de 1355 que os Infantes de Aragão reforçam a posição do rei; esta deserção causa o pânico em Toro, e Fernando de Castro retira-se para o seu paço da Galiza. É de prever que Afonso IV aproveitasse essa convulsão, em que os Castros parecem dissipar-se e não estarem confiantes no rumo a tomar, para se livrar de Inês. Mas persiste a pergunta: porque estava Inês tão publicamente instalada nos paços do Mondego? Conforme as declarações de Pedro, em 1360, o casamento com Inês teria sido celebrado em Bragança, há mais ou menos sete anos, no dia primeiro de Janeiro. É aqui que o doutor João das Regras põe reservas; porque a dúvida do rei ao precisar a data da cerimónia, que lhe devia ser tão preciosa e decisiva no seu destino, não afiança a sua verdade. Mas admitindo que Pedro, com desprezo pelo pormenor, acrescido do mal-estar em dar explicações humilhantes, casou de facto entre 1353 e 1354, a sua vinda para Coimbra é uma prova a considerar. De resto, os cronistas, os conselheiros, o próprio Afonso IV podem ter mentido. E quando o pai solicita a Pedro que se case com Inês para atalhar os murmúrios do povo (o papel do povo não é deixado em branco pela inteligência da época, que sempre serve a política), pode ter recebido uma resposta positiva, "...a fantasia do filho, que casar-se não queria", 40 que o Camões descreve, não passaria de uma acção dirigida ou simplesmente a atitude conveniente para atingir um fim, que era a desconfiança popular face ao ilógico. Pedro, nesse caso, toma a mensagem do pai como um pólo de esperança dos seus próprios desejos, e casa-se em Bragança. As suas testemunhas deviam ser mais qualificadas e mais abundantes do que aquelas que aparecem a declarar o acto. O facto de se casar nessa cidade faz-nos pensar se o casamento não se efectuou quando da viagem da rainha Maria, de Portalegre a Toro, seguindo os caminhos transmontanos. Eram dias extremamente convulsos e desordenados; as «pleytesias», como diz Ayala, entre as facções, que firmavam pactos e logo os alteravam, sem dar à memória tempo de os consentir, nem à necessidade hora de os desejar, não permitiam que a história tivesse nexo e coordenação. Há, nessa data, um facto estranho, que os cronistas não acertam em decifrar. É o casamento de Pedro de Castela com Joana de Castro, esta irmã de Inês, mas de ramo legítimo. Casamento sem grande glória, porque os Castros, Álvaro e Fernando, se bem que influentes, não eram de sangue real. Álvaro de Castro estava do lado dos rebeldes e, como sabemos, fora o mensageiro da proposta dos nobres castelhanos para oferecer a coroa de Castela a Pedro de Portugal. Aqui aparece o motivo forte para o casamento com Inês, mas casamento não tão secreto como se pode supor. Pelo menos Álvaro de Castro devia estar presente, senão D. Rodrigo, mestre da Ordem de Cristo, que acompanhava o infante também. Mas resta enigmático o casamento de Pedro de Castela com a irmã de Inês, acto impolítico em todos os sentidos e que parece mais um movimento de desforra pessoal, do que uma conduta baseada em razões políticas. O certo é que as frustrações provocam uma reacção primitiva, e a maneira de lhes escapar é deformar a realidade. Quando a criança não pode descarregar a pressão das frustrações, torna-se agitada e comete toda a espécie de diabruras. Casar ou, por exemplo, em termos mais explosivos, ir ao cinema, tem por fim uma quebra da pressão interior. O casamento de Pedro de Castela com Joana de Castro, viúva e pouco brilhante partido, só significava uma «maldade», como se diz em linguagem pueril. 41 Ele estava talvez em crise com Maria Padilla, a mulher da sua vida, e esta pensara tomar o hábito no mosteiro de ÁstudiUo, por ela fundado; a rebelião dos nobres, obstáculo externo, junto ao obstáculo interno das relações com a amante, eram motivos suficientes para afectar o campo das suas experiências. A sua conduta tinha que desintegrar-se e, por isso, ele comete erros. Mas esse casamento com Joana de Castro pode ter tido consequências imprevistas na atitude do tio, Pedro de Portugal. Enquanto Pedro de Castela casa em Cuéllar, e logo se separa da nova esposa para voltar aos braços da insubstituível Maria Padilla, Pedro de Portugal toma possivelmente a decisão de casar com Inês. É de supor que o casamento se efectuasse quando do regresso de Pedro de acompanhar sua irmã Maria e pousando em Bragança com Inês e Álvaro de Castro. O rei de Castela, vindo do castelo de Albuquerque que estava à guarda do português Martim Afonso Botelho depois da fuga de João Afonso para Sant Felices de los Gallegos onde provavelmente encontrou a morte pela peçonha (e este foi outro erro do soberano, porque os grandes inimigos não se aniquilam em tempo de guerra, só em tempo de paz), casou inopinadamente com Joana de Castro em Março de 1354. É portanto de supor que, caindo na mistificação de Afonso IV, de repente conciliador com os amores do filho, ou em grande parte movido pelas promessas da nobreza castelhana, em luta aberta com o soberano, Pedro casasse em Bragança; e se atrevesse a instalar a família nos paços de Santa Clara, prova pública do seu estado de legitimidade. Era um facto a veneração que o povo de Coimbra tinha por Santa Isabel, exemplo da matrona de elevada condição, activa no sentimento da justiça que é muitas vezes a coroa do ressentido. Ela não só suportara o marido com requintes de tolerância (salvo pô-lo em ridículo com um talento virulento notável, como no caso da «alumiação» dos pobres no pinhal de Leiria), porque velara pelos seus bastardos e amas deles com singular solicitude, como era curadora de dores humanas por imposição das suas mãos. Esta senhora imponente, de família mística, como eram os príncipes de Aragão (um foi o rei chamado o Casto e que morreu no burel franciscano; 42 - 43 outra irmã, Dona Violante, casou em casa de santos), tinha índole estranha, com tendência a seguir a imagem idealizada que o próprio pai lhe descreve na hora em que dele se separa: "Deus que na terra onde nasceste te amou, e quis que de todos sempre fosses amada, endessa tua vida e teus feitos nessa para onde vás..." Este adeus é comovente, estando Pedro de Aragão em apertado abraço com a filha, e ela posta em perfeita obediência que é o amor sem cuidados. Parece que nunca mais se apartou desse abraço; e, assim, a sua virtude reveste-se de certa frieza doce, recato de uma felicidade que é memória que se não confessa porque seria trair o estado presente. Dona Isabel é entregue à comitiva portuguesa em Bragança, e talvez por isso seu neto escolhe esse lugar com veneração para se casar com Inês. Ao habitar os paços de Coimbra com a mulher e os filhos está a pôr-se sob a protecção da Rainha Santa, "por cujo virtuoso meio" se concertaram discórdias de família que são as mais difíceis de acordar, porque são soluções expansivas de grande força. A estas chamadas soluções expansivas, ou seja, o desejo de poder sobre os outros indivíduos, e que se manifestam nas querelas de irmãos tão frequentes nos reinados de D. Dinis e D. Afonso, opõe-se a solução anuladora, preferida por Santa Isabel. A sua actividade caritativa, a sua austeridade nem sempre maviosa, são uma chamada quase exibidora para ser amada. Nela, a resignação tem o mesmo conteúdo que a expressão dançarina de Pedro, o seu gosto de viver com um bando de gente turbulenta, decerto colhida nos coutos do convento de Alcobaça, onde se abrigavam malfeitores e fora-da-lei em tal número que constituíam uma povoação dentro dos muros da clausura. Também a licença é uma forma
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