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Razão × emoção Não é fácil definir amplamente o significado de razão e de emoção. Porém, podemos simplificar a questão resu- mindo que ambas são inerentes ao ser humano; a razão como a elevada capacidade mental que o distingue dos outros animais, e a emoção como algo que não pode ser controlado nem escolhido por ele. Ademais, de acordo com o senso comum, a razão está relacionada aos assuntos da cabeça; e a emoção, aos do coração. Embora razão e emoção tenham sido consideradas parâmetros para caracterizar as predominâncias que marca- ram as produções culturais de cada período histórico, esses referenciais não devem ser vistos como opostos, mas sim complementares, já que, quando estamos diante de situa- ções que envolvem a complexidade humana, não há como Fig. 1 Michelangelo Buonarroti, A criação de Adão, 1510, afresco, Capela Sistina, Vaticano. M ic he la ng e lo B uo na rr o ti/ W e b G al le ry o f A rt (D o m ín io p úb lic o ) M ic he la ng e lo B uo na rr o ti/ W e b G al le ry o f A rt (D o m ín io p úb lic o ) Fig. 2 Michelangelo Buonarroti, Davi, 1504, Galleria dell’Accademia, Florença, Itália. estabelecer classificações duras e rígidas que dispensem as inconstâncias próprias do ser humano. Porém, é possível dizer que existe uma alternância no predomínio entre esses tópicos ao longo dos movimentos artísticos ocidentais: a Antiguidade Clássica, o tempo clássico da razão; a Idade Média, uma longa era da religiosidade e da emoção; e a Idade Moderna, um período repleto de mudanças e insta- bilidades com o resgate das nuances desse passado. Obras como a Ilíada e a Odisseia, de Homero, ou a Eneida, de Virgílio, são clássicos por excelência e cons- tituem referências a uma infinidade de produções que surgiram a partir dali. Além dos muitos exemplos que par- tem dessas obras, como as formas métricas e os gêneros literários, o elemento principal a ser estudado no âmbito dessa análise é o foco no ser humano. O Romantismo foi um estilo de época que influenciou a literatura, as artes e o pensamento. No entanto, a mesma palavra que designa essa estética também pode ser utilizada como adjetivo, qualificando uma atitude emotiva diante da vida. Esse uso remonta a um tempo anterior ao próprio Romantismo: O adjetivo romântico tem origem inglesa seiscentista (romantic) e deriva do substantivo romaunt, de origem francesa (roman, romant), que designa os romances me- dievais de aventuras. O emprego da palavra generalizou-se a tudo aquilo que evocava a atmosfera desses romances – a cavalaria e, em geral, a Idade Média – até que, em pleno século XVIII, Rousseau a adaptou em francês, distinguindo romantique e romanesque. Do inglês e do francês, a pala- vra passou a todas as línguas europeias, e já nos primeiros anos do século XIX Frederico Schlegel e Madame de Staël opunham romântico a clássico. SARAIVA, António José; LOPES, Óscar. História da literatura portuguesa. 17. ed. Porto: Porto Editora, 2008. Saiba mais LÍNGUA PORTUGUESA Capítulo 4 Romantismo: o arrebatamento das emoções334 Na Idade Média, esse centro é redirecionado do ho- mem para Deus; mas, já no fim do período e no início da Idade Moderna, época conhecida como Renascimento, resgatou-se a tradição clássica, a qual colocou o homem e a razão novamente como elementos centrais, o que pode ser observado nas imagens da página anterior. O Romantismo começa a se manifestar no fim do século XVIII como um movimento que contesta as formas rígidas anteriores; porém, adquire proporções maiores ao longo de seu desenvolvimento e se torna um marco de inovação e de mudanças. Em meio a elas, merece destaque o fato de a base do Romantismo ser o sujeito, dado que explica sua natureza expressiva: em oposição ao racionalismo, há o apelo à emoção, trazida por sentimentos idealizados e puros. Do culto do “eu”, provêm os sentimentos de amor à nação e a necessidade de se ter a figura de um herói, panorama relacionado às origens do movimento literário na Europa. O Romantismo na Europa No século XVIII, muitas mudanças direcionaram o mun- do ao modelo de contemporaneidade que nos é familiar hoje. O absolutismo entrou em crise, cedendo lugar ao liberalismo político, e a Revolução Industrial e a Revolução Francesa foram os principais acontecimentos que levaram à nova configuração da sociedade; antes disso, o poder e as decisões se restringiam à nobreza e ao clero, concen- trando-se nesses dois grupos sociais. Porém, com o crescimento do comércio, desenvolvia- -se também uma nova classe social: a burguesia. Esta se fortalecia e se lançava em um longo e duradouro processo de ascensão. Os novos grupos se desenvolviam rapidamente, ge- rando uma incompatibilidade e um descontentamento geral com a monarquia. Dessa forma, tais mudanças, que aconteciam no cerne das sociedades europeias, forma- ram a base das revoluções que modificaram o curso da história ocidental. Surgia, assim, um ponto de vista diferente, partindo de uma nova classe social, muito mais abrangente e ampla. Com isso, a literatura e as demais formas de expressão cultural deixavam de se concentrar nas elites intelectuais e se expandiam a essa classe emergente, abrindo espaço para que novos aspectos narrativos entrassem em cena. Duas mudanças culturais merecem destaque: 1. Individualismo: na nova configuração da sociedade, não eram mais apenas os nobres que tinham chances. Assim, surgiam di- ferentes oportunidades de ascensão social e novos valores, o que modificou o entendimento que cada um tinha de si mesmo. 2. Originalidade: nesse momento, os valores clássicos perdem sua posição soberana, e as novidades passam a ser valorizadas. Atenção F ra nc is co d e G o ya y L uc ie nt e s/ W e b G al le ry o f A rt (D o m ín io p úb lic o ) Fig. 3 Francisco de Goya y Lucientes, O três de maio, 1808: a execução dos defensores de Madri, 1814, óleo sobre tela, Museu do Prado, Madri, Espanha. Após a Espanha ser invadida por Napoleão, parte dos revoltosos de Madri são fuzilados pelos pelotões franceses. Ao explorar a luminosidade das cores, o artista dá destaque ao homem de braços abertos, transformando-o em uma espécie de mártir, herói. F R E N T E 2 335 Com a queda da monarquia e a ascensão da burguesia, as histórias deixaram de retratar reis e rainhas contando, em linguagem rebuscada e erudita, seus grandes feitos heroicos, suas artimanhas políticas, suas conquistas, seus triunfos e suas vitórias. Em seu lugar, ganharam espaço as histórias com personagens que partiam do anonimato, viviam junto ao povo e transformavam-se em heróis. O Romantismo nasceu nessa época de transforma- ções da sociedade ocidental e é muito mais que um movimento de histórias de amor pleno e de sentimen- talismo, nas quais a emoção sempre é colocada à frente de qualquer razão. As obras desses novos tempos bus- cavam a representação de um mundo dinâmico, em que a transformação das personagens ocorria paralelamente aos acontecimentos retratados. O que é o Romantismo? Uma escola, uma tendência, uma forma, um fenômeno histórico, um estado de espírito? Provavelmente tudo isto junto e cada item separado. Ele pode apresentar-se como uma dentre uma série de denominações [...] Ela não é apenas uma configuração estilística ou, como querem alguns, uma das duas modalidades polares e antitéticas – Clas- sicismo e Romantismo – de todo o fazer artístico do espírito humano. Mas é também uma escola historicamente definida, que surgiu num dado momento, em condições concretas e com respostas características à situação que se lhe apresentou. GUINSBURG, Jacó. O romantismo. São Paulo: Perspectiva, 1985. p. 13 4. Nesse momento, o que merecia atenção eram as novas configurações da sociedade. Assim, houve uma mudança profunda nessa nova forma de representar, que começou a revelar os conflitos internos da sociedade, divergindo da noção pacífica de um mundo predeterminado que as escolas anteriores procuravam imprimir. Dotado de novo aparato literário, o Romantismo deu ori-gem a obras completamente novas, cujos valores e qualidades são, também, diferentes. Assim, desenvolveu-se não somente uma escola literária, mas todo um sistema regido por novos escritores, os quais atenderam a uma demanda profissional de produção literária e foram estimulados a escrever, por motivos diferentes, a um público ampliado. Esses novos modelos con- tinuaram a se desenvolver até constituir um mercado editorial, o qual vem crescendo até hoje. Dali em diante, o romance se tornou um gênero moderno de muita repercussão. O Romantismo e as suas diferentes vertentes surgem em três países: Alemanha, França e Inglaterra. Na Alemanha, a nova estética é marcada pelo sentimento de pertencer a uma nação, e a pátria torna-se tema de romances e poemas, entre os quais se destaca a produção literária de Goethe. Na Inglaterra, os escritores tomam gosto pelo exotismo, o mórbido e o grotesco, retomando traços da tradição gótica medieval im- pressos em romances como Frankenstein, de Mary Shelley, e O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson. Já na França, o Romantismo cultiva o gosto pelas questões sociais, uma vez que é ali onde acontece a mais importante das revoluções burguesas: a Revolução Francesa e seus ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Nesse contexto, na França, ganha destaque a produção literária do escritor Victor Hugo em romances como Os miseráveis, a mais contundente tradução dos anseios de transformação daquela sociedade. Saiba mais Fig. 4 Eugène Delacroix, A liberdade guiando o povo, 1830, óleo sobre tela, Museu do Louvre, Paris, França. O quadro ilustra um acontecimento histórico: a rebelião dos republicanos e liberais contra o rei da França. Há emoção e subjetividade no quadro: a liberdade personificada na imagem de uma mulher cria uma esfera de heroísmo e, ao mesmo tempo, de fantasia. O Romantismo no Brasil A chegada dos portugueses ao Brasil implicou um mo- delo que determinou toda a história a partir de então, já que a colonização foi responsável por enquadrar nosso país no estilo ocidental, ao qual acabamos pertencendo sob todas as esferas. Essa importação do modelo europeu, no entanto, não aconteceu de forma natural nem livre de conflitos. A cultura e as estruturas sociais historicamente estabelecidas em Por- tugal foram transpostas a um local povoado por indígenas, os quais falavam outras línguas e viviam de acordo com padrões completamente diferentes dos europeus ou, mais que isso, com modelos de vida incompatíveis entre eles. Fig. 5 Victor Meirelles, Moema, 1866, óleo sobre tela, Masp, São Paulo, Brasil. O surgimento da literatura brasileira foi, portanto, um processo artificial, forçoso e, de maneira inicial, inteira- mente articulado pelos portugueses – os quais, por sua vez, atuavam também sob influência de outras nações, sobretudo Inglaterra, Espanha e França. Assim, o modelo de escrita que marca os primeiros registros no Brasil está em total conformidade com o sistema europeu, que, nesse momento, vivia sob influência do Renascimento e prezava por formas cultas e refinadas que resgatassem a tradição greco-romana. E ug è ne D e la cr o ix /W e b G al le ry o f A rt (D o m ín io p úb lic o ) V Ic to r M e ire lle s/ W ik im e d ia C o m m o ns (D o m ín io p úb lic o ) LÍNGUA PORTUGUESA Capítulo 4 Romantismo: o arrebatamento das emoções336
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