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Resumo de Filosofia- Eremita Concurseiro FILOSOFIA DO DIREITO SOBRE A FILOSOFIA E A FILOSOFIA DO DIREITO De difícil conceituação, a filosofia é conhecida mais em virtude de seu cânone que, contudo, é muito diversificado, de modo que a própria noção sobre o que é filosofia e quem são os filósofos é problemática e sem critérios claros. De maneira simples, porém, pode-se dizer que a filosofia é um método de abordagem do conhecimento sobre as coisas que se consubstancia em uma espécie de tradição consolidada de pensamentos, temas e ideias. Nesta senda, pode-se afirmar que há uma dupla estrutura na filosofia, na medida em que, além de ser uma tradição sistematizada, cujo rol de pensamentos é a sua própria história, a filosofia é também a extração do pensamento humano a respeito de si e do mundo, um enfrentamento do pensamento e da realidade: uma forma de práxis. Contemporaneamente, a filosofia é vista como um produto de pensadores que dialogam, concordando ou discordando, com um cânone referencial estabelecido. A Filosofia do Direito, por sua vez, é um tema dentro da Filosofia, não se configurando em um método filosófico próprio. É de se dizer: vários pensadores, através de suas próprias sistematizações do pensamento, tentaram explicar o Direito, qual o seu conceito, o que é o jurídico. Contudo, a partir de que grau podemos situar determinado conhecimento não no campo da Teoria do Direito, mas no da Filosofia? Segundo MASCARO (p. 25, 2020), “a teoria geral do direito para nos limites internos da construção jurídica técnica. Mas a filosofia do direito pega todo o direito nas mãos”. Assim, embora a fronteira muitas vezes seja tênue, o salto qualitativo ocorre quando passa-se à superação do encerramento técnico, refletindo sobre o justo e as razões maiores e últimas da atividade do jurista. A FD GREGA Desde os tempos de Homero, a coesão da pólis grega tinha por base normas que determinavam os arranjos sociais que lhe subjazem. A lei, nos tempos antigos dos gregos, era expressa pela simbologia de Themis, a divindade que funda a ordem, por meio da força e da batalha. Em tempos mais recentes da história grega, surge Diké. Ao contrário de Themis, Diké não se apoia em uma simbologia de força e autoridade e, sim, de justo. Assim, enquanto Themis refere-se à autoridade do direito, à legalidade e à validade, Diké significa o cumprimento da justiça. Nestes termos, a reflexão sobre o justo e a norma se agudiza e, na medida em que os primeiros filósofos começam a abandonar a mitologia, essas reflexões tornam-se objeto do pensamento filosófico. 1. PRÉ-SOCRÁTICOS O primeiro filósofo dentro os pré-socráticos é Tales de Mileto, que viveu no século VI a.c. Após Tales, diversos outros filósofos despontam e, no campo da filosofia do direito, destacam-se Anaximandro de Mileto, Heráclito e Parmênides. ANAXIMANDRO DE MILETO (610?-545? a.c.): A corrupção das coisas. Tudo que é temporal é corrupto. A corrupção é o pagamento necessário da injustiça das coisas. Faltam mais detalhes porque a maior parte de sua obra se perdeu. HERÁCLITO DE EFESO (540?-480? a.c.): Trata da dimensão do devir, da mudança. Segundo Heráclito, o fogo é a base das coisas, e é o que garante a constante transformação. “No mesmo rio entramos e não entramos; somos e não somos”, “não se pode entrar duas vezes no mesmo rio”. O que é quente torna-se frio. O que nasceu irá morrer. O que foi criado irá perecer. Este fluxo é uma luta entre contrários. É da tensão entre os opostos, do conflito do devir, que surge a justiça do mundo. Justiça é conflito, discórdia. A guerra é o que forma um mundo em comum. PARMÊNIDES DE ELEIA (540 - ? a.c.). A verdade é aquilo que é. O que é único não se muda. Há um princípio da identidade (O que é não pode não ser). Ao contrário de Heráclito, acredita na estabilidade, no conservadorismo. A justiça é uma necessidade lógica das coisas, um conceito. Se as coisas mudam e entram em conflito, a justiça assegurará a estabilidade. 2. SOFISTAS Os sofistas foram os grandes artífices da construção da prática democrática ateniense. Sem apego a quaisquer opiniões ou ideias em especial, exerciam papel ímpar na construção da democracia direta ateniense, na medida em que eram verdadeiros mestres da retórica. Os sofistas formavam a elite política ateniense, ensinando a expor bem qualquer ideia. Há, assim, um relativismo conceitual dos sofistas, que creditavam a verdade, a moralidade, a justiça e demais conceitos à convenção entre os homens. A persuasão é que forma a verdade. PROTÁGORAS DE ABDERA: “O homem é a medida de todas as coisas”. Os sofistas foram muito importantes na construção e fortalecimento da democracia, contribuindo na articulação efetiva. O eixo central do argumento dos sofistas acerca do direito está na dicotomia entre nomos e physis. Nomos seria a construção histórica, convenção humana. Physis é a natureza, a âncora e medida de todas as coisas. Para os sofistas, o direito é nomos, uma convenção dos homens. Sócrates rejeitava a ideia dos sofistas. Opunha-se tanto ao estilo de pensamento quanto ao horizonte filosófico proposto, afirmando que a verdade e o justo não podem ser reduzidos ao nível das convenções sociais. 3. SÓCRATES ( 470-399 a.c.) Sócrates, o primeiro dos três filósofos gregos idealistas, não deixou nada escrito, de modo que tudo o que se sabe sobre as ideias de Sócrates é obtido através dos diálogos propostos por Platão. Os textos platônicos mais importantes ligados à Sócrates são Eutífron, Apologia de Sócrates, Críton e Fédon, no qual este utiliza-se de um método chamado maiêutica que busca, através de sucessivas perguntas, mostrar a contradição do interlocutor e auxiliá-lo a atingir a verdade. Sócrates foi acusado pelo tribunal ateniense de corromper os jovens com novas ideias e trazer novos deuses ao culto ateniense, razão pela qual foi condenado à morte. Em CRÍTON, Sócrates dialoga com seu discípulo rico, que tenta convencê-lo a fugir ou subornar os juízes para não morrer. Sócrates, no entanto, afirma que o único juiz é a verdade, de modo que, apesar de sua condenação ser injusta, Sócrates faz do cumprimento de sua sentença um dever moral, na medida do respeito à pólis. Há em Sócrates uma ideia de respeito às instituições jurídicas, baseada no vínculo necessário entre o destino individual e a organização política. Embora alguns doutrinadores indiquem um certo pioneirismo juspositivista, segundo MASCARO (p.56, 2020), “o pensamento socrático não é, de modo algum, precursor do juspositivismo. Sócrates não se submete às leis por reconhecer seu acerto. Tampouco considera sua sentença justa”. Assim, indica MASCARO que Sócrates não se encaminha pela justeza do direito positivo. Ele cumpre sua sentença por enxergar nela uma obrigação moral e filosófica: acima do direito positivo há um justo, que pode ser compreendido pela razão. Assim, cumprindo a sua sentença injusta, sócrates revelaria, por contraste, o que é justiça aos atenienses. Sua submissão ao veredito é uma ação política de incômodo Sócrates situa, como critérios do justo: a virtude, a razão e a verdade. Assim, embora uma leitura conservadora afirme que Sócrates só não fugiu por devoção à ordem jurídica posta, uma leitura crítica separa a apreciação moral do justo de sua mera afirmação jurídica. Para PAULO BONAVIDES, no mesmo sentido de MASCARO, o exemplo de sócrates leva a um “rompimento da coesão do Estado-Cidade”, de modo que há um jusnaturalismo em Sócrates que busca a essência do direito na razão. Há uma revolta do indivíduo contra o estado que lhe viola preceitos fundamentais que deveriam ser invioláveis, esculpidos na própria razão humana. 4. PLATÃO ( 428-347 a.c.) Platão é a primeira grande expressão genial da história da filosofia, deixando um legado escrito na forma de Diálogos. Platão era o mais importante aluno de Sócrates, descendendo de uma família nobre e aristocrática de Atenas. Contudo, platão renunciou sua atuação na liderança política, situação reforçada com a perseguição à Sócrates. A morte deSócrates em muito afetou os pensamentos platônicos. 4.1. MUNDO DAS IDEIAS Segundo Platão, a apreensão sensível das coisas não permite que se atinja a razão imutável.. A busca pela realidade é contingente, falha e limitada. Somente através da dialética é possível sair do mundo sensível e alcançar o mundo das ideias. Como exemplo de sua teoria, Platão conta o Mito da caverna. A realidade sensível é uma corrupção das plenas Ideias. Platão define a dialética como a arte de pensar, questionar e hierarquizar ideias. O termo dialética é utilizado por Platão na referência a qualquer método que possa ser recomendado como veículo da filosofia. Para Platão, a dialética é um instrumento que permite o alcance a verdade. a compreensão da essência, da Ideia suprema, através da dialética, é o que levará para a verdade. 4.2. POLÍTICA, DIREITO E JUSTIÇA SOCIAL Para Platão, justiça e direito são indissociáveis. Em grego, a mesma palavra “dikaion” é utilizada de maneira intercambiável nos textos platônicos. Assim, em Platão há uma visão claramente jusnaturalista, na qual uma lei injusta não é direito. O direito precisa ser compreendido a partir da política e da virtude. A lei posta matou Sócrates, o mais justo dos homens. Assim, o conceito platônico de justiça situa-se acima de todas as normas humanas, detendo origem na íntima natureza do ser. Segundo Sócrates, o justo não pode ser identificado como mero cumprimento obrigacional. A ideia do justo está ligada ao cumprimento pelo indivíduo do seu papel na pólis. Há, aqui uma noção de que a adequação à sociedade é a chave para a essência do justo. A justiça, para Platão, é necessariamente Justiça Social. Diferentemente da nossa noção contemporânea e individualista, para Platão, não há homem justo em uma sociedade injusta, porque a medida da justiça é social. E como atingir esta justiça social? Para platão, principalmente em A República, há uma série de realizações, com vistas à busca das aptidões mais apropriadas para cada qual dentro da sociedade. Há uma preocupação, inclusive, com a educação. Há uma tentativa de estruturar o justo a partir dos alicerces da sociedade, não apenas no nível normativo. O justo não se reduz à lei justa. O artesão, o escravo, a mulher, o cidadão livre, o filósofo, todos tem o seu papel na sociedade. Assim, por exemplo, seria papel específico atribuído ao legislador o descobrir do justo. Não é do debate que se extrai o justo, mas da razão. Neste sentido, a democracia não é o modelo perfeito para atingir a Ideia de Justiça. Platão rejeita a democracia. A democracia matou Sócrates. Surge, aqui, a ideia do Filósofo-Rei. O rei deveria ser um sábio, treinado para ocupar o cargo e lidar com os problemas sociais. Embora algumas leituras atribuam à Platão uma visão totalitária, há, na verdade, um germe da desobediência civil, na medida em que se um governante não é sábio, ele não deve permanecer no poder. No livro As leis, Platão mitiga um pouco das suas visões expostas em A República, afirmando, contudo, que há uma dificuldade prática em que o filósofo venha a se tornar rei, de modo que, no final da sua vida e obra, Platão cai em uma forma peculiar de positivismo jurídico. O direito deveria emanar apenas do filósofo. Como não há filósofo, entrega-se o direito à ditadura do príncipe. 5. ARISTÓTELES ( 384-322 a.c.) Aristóteles representa o apogeu do pensamento filosófico grego. Filho de médico, desde sua infância esteve em contato com os casos clínicos. Esta empiria moldou sua filosofia, de modo que Aristóteles tem por base as realidades que se apresentavam ao seu estudo. Platão apontando para cima e Aristóteles para baixo. Platão defendia o Inatismo; Aristóteles era um filósofo que defendia o Empirismo. Aristóteles foi um grande sistematizador da filosofia, construindo ele mesmo um sistema que se organiza por cadeias discursivas, premissas e silogismos. Aristóteles propõe uma verdadeira Ética das Virtudes. Menciona nove virtudes cardeais: sabedoria; prudência; justiça; fortaleza; coragem; liberalidade; magnificência; magnanimidade; temperança. Segundo Aristóteles, as virtudes são práticas, são ações e não mero conhecimento ou algo natural de cada ser humano. A prática das virtudes deve ser constante como um hábito. A prática da virtude inclina a pessoa para o bem, que é a busca pela felicidade (eudaimonia). O excesso ou a deficiência levam aos vícios. A excelência da virtude (areté) está no meio-termo. No âmbito específico da Filosofia do Direito, Aristóteles desenvolveu a Justiça em dois grandes campos: a Justiça Universal e a Justiça Particular. 5.1. JUSTIÇA UNIVERSAL Na perspectiva universal, a justiça é uma manifestação geral da virtude e, também, uma apropriação do justo à lei, na medida em que o respeito à lei (geral) é característica do justo. Importante salientar, contudo, que o conceito de lei em Aristóteles corresponde à lei justa, isto é, produzida na pólis, a partir de um princípio ético; há, aqui, uma noção de conteúdo justo da lei, de forma que uma lei injusta não é lei. Enquanto manifestação geral da virtude, a justiça é a virtude presente nas demais virtudes. É a virtude universal. Por exemplo, ter paciência com um chefe, mas impaciência com um subordinado, demonstra ausência da virtude da paciência. Agir de maneira paciente seria agir com justiça. 5.2. JUSTIÇA PARTICULAR Aqui Aristóteles fala da Justiça em sentido estrito, ou seja, da virtude em si mesma, em sentido particular. Aqui, neste sentido, justiça corresponde à regra de ouro: dar a cada um o que é seu. Como qualquer outra virtude, consubstancia-se em uma ação. No âmbito da justiça particular, para explicar o que é dar a cada um o que é seu, Aristóteles fala de JUSTIÇA DISTRIBUTIVA e JUSTIÇA CORRETIVA, além de um caso especial de justiça chamado de reciprocidade, que é menos estudado. JUSTIÇA DISTRIBUTIVA: é uma espécie de função matemática de proporção geométrica, na qual o critério fundamental para distribuição de riquezas, benefícios e honrarias está no mérito de cada um. A proporcionalidade em dar a cada um o que é seu de acordo com seu mérito caracteriza o justo. Contudo, segundo Aristóteles, só se pode falar em mérito entre aqueles que possam ser considerados minimamente semelhantes. Ex: um professor que aplica uma prova será considerado justo em sua correção na medida em que distribuir as notas de acordo com os acertos de cada aluno. JUSTIÇA CORRETIVA/DIÓRTICA: aqui, há uma proporção aritmética que consiste em reparar o quinhão que foi voluntária ou involuntariamente subtraído, na exata metida da subtração. É irrelevante se uma pessoa boa lesa uma má. Para a justiça corretiva, todas as pessoas são tomadas formalmente como iguais. RECIPROCIDADE: consiste na igualdade de trocas, na qual a moeda faz o papel de uma equivalência universal entre produtos e serviços. Há aqui, pela primeira vez, uma ligação entre direito e economia. 5.3. DA EQUIDADE A reflexão aristotélica culmina na exaltação da equidade enquanto expressão máxima da justiça. Acima da justiça da lei, há a justiça do caso. A lei é geral, de modo que pode conter distorções. A lei deve ser corrigida e aplicada no julgamento de cada caso concreto. A esta adaptação do geral ao específico, Aristóteles chama de equidade. A equidade não é distinta da lei, é apenas sua complementação. É a equidade que corrige a lei, estendendo o justo até as minúcias. Aristóteles compara a equidade com a Régua de Lesbos, demandando a flexibilidade do jurista. Desta forma, o direito natural complementa o direito positivo. O direito natural não é uma ideia universal, mas é uma apreensão da natureza das coisas, em cada caso, cada circunstância. Direito, assim, é a arte do justo. 5.4. DO ÂMBITO DA JUSTIÇA E DA PRÁTICA DA JUSTIÇA: PHRONÊSIS Da leitura das justiças distributiva e corretiva se extrai que o justo não é uma medida fixa, mas se trata enquanto proporção matemática apenas entre aqueles relativamente iguais. Entre os desiguais, não há justiça. Aristóteles afasta escravos,crianças e mulheres do âmbito de aplicação do justo ou injusto. Embora seja uma posição altamente conservadora, ela revela um potencial crítico, na medida em que, pensando com Aristóteles e contra Aristóteles, pode-se concluir que a justiça pressupõe uma condição social mínima que deve ser garantida. Há, aqui, uma reflexão que futuramente será aproveitada por Karl Marx no desenvolvimento de sua obra. Esta ação, contudo, não pode ser acidental. Deve ser deliberada. Não se considera justo um juiz que, bêbado, decide condenar um réu que, posteriormente, revela-se culpado. No pensamento Aristotélico a pesquisa do justo não se faz a partir de um procedimento formalista. É uma mirada à realidade o método por excelência de Aristóteles para a compreensão do direito e do justo. Assim, a justiça se manifesta e se completa com a virtude prática da phronêsis (sabedoria prática; prudência) - conhecimento do que fazer, conhecimento da verdades que mudam, comandos de questões. A prudência não é uma definição abstrata mas, por ser uma sabedoria prática, surge do próprio agir dos homens prudentes. É uma disposição prática que concerne à regra de escolha, uma busca humilde e artesanal do justo. Neste sentido, o agir do jurista é contingente, dependendo do melhor que possa oferecer. 5.5. POLÍTICA E JUSTIÇA: ZOON POLITIKON Se a justiça presume uma situação de igualdade, como definir que os homens estão em uma situação de igualdade? Se a distribuição deve se dar de acordo com os méritos, qual o critério para aferir o mérito? Respondendo estas questões, para Aristóteles, o fundamento último do justo é político, na medida em que a ação dos homens em sociedade é que dá o fundamento do mérito e da igualdade. Assim, é a vontade política que reduz ou aumenta desigualdades, mantendo os níveis de distribuição de riquezas. É a unidade política, social, econômica, cultural e afetiva da pólis que dá o sentido à reflexão sobre o justo, na medida em que, para compreender a justiça, deve-se perquirir sobre as razões de ser da própria sociedade. Para Aristóteles, não há oposição entre organização política (Estado) e vida social (sociedade). O mundo grego não conhece tal distinção. No mesmo sentido, há uma relação de complementaridade entre o indivíduo e o todo. O homem é um animal político (zoon politikon). Aquele que não precisa de outros, ou é um deus, ou um bruto. A sociedade é o eixo do indivíduo. Aristóteles, por fim, divide o poder soberano por finalidade, e não por extensão, em uma classificação que, por esse próprio motivo, revela-se estranha à sociedade atual. FORMA PURA FORMA CORROMPIDA MONARQUIA TIRANIA ARISTOCRACIA OLIGARQUIA REPÚBLICA DEMOCRACIA A FD MEDIEVAL Com o advento do Cristianismo, uma visão de mundo totalmente estranha àquela conhecida pela cultura greco-romana surge. O fundamento do cristianismo é a vida e o exemplo de jesus. Cria-se uma filosofia que se faz em torno do Jesus. A filosofia somente se legitima nos limites da verdade já revelada pela religião, que não comporta crítica e nem indagação. Neste contexto, a fé passa a ser considerada mais importante que a razão, havendo um empobrecimento da qualidade da reflexão racional sobre o mundo. Diferentemente do hebraísmo, o “povo prometido”, o cristianismo é universalidade, pregando que todos são filhos de Deus, de modo que todos podem receber as dádivas do Pai. A Igreja Católica se instala enquanto intermediadora oficial da religião; contudo, faz-se necessário um corpo dogmático que sustente a crença, surgindo a PATRÍSTICA, filosofia produzida pelos padres da Igreja Católica. 1. PAULO DE TARSO (Tarso, Cilícia, c. 5 - Roma, 67) “Ainda que eu falasse a língua dos homens, e falasse a língua dos anjos, sem amor, eu nada seria” Apóstolo de Jesus. É o primeiro responsável por toda a filosofia cristã do final da Idade antiga e de toda Idade Média, ainda que indiretamente. Segundo Paulo, o homem justo não é o que age com justiça, mas o que está sob a graça de Deus. A fé e a palavra de Deus estão acima da lei humana e dos atos humanos. Como não há autoridade que não proceda de Deus, todas as autoridades que existem foram por ele instituídas, de modo que deve haver, do homem, uma submissão à autoridade. Desta forma, não há que se discutir se o governo é bom ou mau, justo ou injusto. não há que se pensar em agir político visando ao justo. Justiça é se submeter à autoridade divina. A filosofia de Paulo leva a um conservadorismo do poder terreno. A crítica que se faz, contudo, é que o próprio Jesus jamais cometeria a blasfêmia de dizer que o poder de César vinha diretamente de Deus, e que quem se revoltasse à César estaria se opondo à ordem divina. 2. SANTO AGOSTINHO (354 d.C - 430 d.C) No final da Idade Antiga, a patrística começa a enfrentar objeções a partir da filosofia greco-romana e heresias religiosas. É neste contexto que surge Santo Agostinho, defensor da ortodoxia religiosa e afirmando uma filosofia cristã que dialoga com a clássica. A marca do platonismo é muito forte no pensamento agostiniano, sendo A Cidade de Deus a sua principal obra. Segundo Agostinho, apenas a graça de Deus leva à salvação, de modo que ao homem cabe a submissão a Deus. Assim, Agostinho propõe uma distinção entre a cidade humana, eivada de vícios, instabilidades e injustiças e a cidade de Deus, que seria perfeita e justa. Não é possível mensurar atos justos, pois o justo é uma graça divina. Diferentemente dos gregos, que pregavam que o direito natural estava baseado na natureza das coisas e, como defendia Aristóteles, era flexível, histórico e social, para a tradição medieval, o direito natural baseava-se na lei eterna, de modo que se consubstancia em um rol de regras inflexíveis. Esse direito natural, contudo, não deriva nem da natureza, nem da razão e nem da sociedade, mas do desígnio divino. Apenas a fé salva (sola fide). Apesar de reconhecer a corrupção do mundo, sua injustiça e provisoriedade, Agostinho defende um pensamento próximo a Paulo de Tarso, no sentido de que o homem deve se submeter à lei posta, ainda que injusta. Ainda que os juízes errem, por serem humanos, ainda que se valham da tortura, a autoridade faz-se necessária para manutenção da ordem social. A injustiça das decisões decorre da miséria do homem, e não da maldade do juiz. E Deus quis e fez o homem e as autoridades assim. Há, aqui, uma antecipação do juspositivismo que marca o pensamento jurídico moderno, com raízes no cristianismo. Agostinho também respalda a escravidão e a servidão com base na vontade de Deus. 3. SÃO TOMÁS DE AQUINO (1225 - 1274) Ao longo dos séculos, o pensamento agostiniano consolidou-se como a doutrina imediata e oficial da Igreja Católica. As filosofias gregas perdem-se enquanto meros ecos filosóficos que se ajustam às ideias de Agostinho. Os debates medievais ignoram fontes filosóficas distintas. Contudo, nos séculos finais da Idade Média, há uma mudança no pensamento. Há um florescimento cultural árabe-judaico, que nunca abandonou a filosofia grega e aristotélica. A invasão moura e as cruzadas em meados do século VIII levam a uma aproximação dos árabes e judeus com os cristãos. O pensamento cristão, por sua vez, era incapaz de lidar em nível de igualdade com as linhas de pensamento sofisticadas e racionais desses povos. Há, nesta época, uma redescoberta de Aristóteles. Se, em uma primeira fase, a Igreja Católica tenta perseguir e rejeitar o Aristotelismo, à época de São Tomás de Aquino a Igreja põe-se a dialogar com o pensamento de Aristóteles. O trabalho de São Tomás de Aquino une as obras de Aristóteles à teologia, através do método de escolástica. Sua principal obra é a Suma Teológica. Para Agostinho, a fé é o meio fundamental de acesso à virtude e ao justo, enquanto a Terra é um ambiente de corrupção de valores. Contudo, Tomás de Aquino enxerga o pecado original não como uma morte, mas como uma doença, da qual se pode conseguir cura. Os homens não estão necessariamente condenados a produzir injustiça na vida terrena.Assim, não apenas a fé salva, mas também os atos. Há uma relação de complementaridade entre fé e razão que abrem espaço à racionalidade da justiça na própria ação dos homens. 3.1. DAS LEIS Tomás de Aquino insiste no fato de que o homem pode descobrir, na natureza, atos, comportamentos e medidas justos, derivados indiretamente de Deus. A lei natural é uma participação da lei eterna de Deus na criatura racional. Há uma distinção entre a Lei Eterna/Divina, a Lei Natural e a Lei Humana. Enquanto a Lei Eterna divina é incognoscível, a lei humana deve buscar aproximar-se da lei natural que nos é revelada. A lei natural para Tomás de Aquino, revelada pela razão de que Deus dotou o homem, não é eterna e pode mudar. Isto porque a natureza é voltada à plenitude em Deus, e movimenta-se em direção a Ele, não sendo um direito inerte. A lei natural é flexível.Novos tempos, novas situações e novas demandas podem levar à adaptação do direito natural. A lei humana, por sua vez, é a lei positiva. Ela não é necessariamente injusta, pois o homem possui fé e razão, podendo confeccionar leis racionais, próximas à lei natural, que auxiliarão na paz e no desenvolvimento de virtudes. A lei é uma regra e medida dos atos humanos. Diferentemente dos modernos, para os quais basta a validade formal da regra, em consonância com o pensamento clássico, Tomás de Aquino defende que uma lei que não é voltada ao bem comum não é lei. 3.2. DA JUSTIÇA Tomás de Aquino segue o pensamento de Aristóteles, na medida em que justiça é o bem do outro, podendo ser distributiva ou retributiva. Há um caráter causal e não taxativo do direito natural, que é uma distribuição do justo entre os iguais, podendo ser aprendida através da observação e da razão. São Tomás de Aquino afirma que é vantajoso, assim, ao escravo, às mulheres e aos filhos, serem governados pelo senhor mais sábio. 4. GUILHERME DE OCKHAM (1285 - 1350) Ockham era franciscano, apregoando a pobreza como guia de conduta. Os membros da ordem francisca não possuem bens pessoais. Isso levou à ordem franciscana à vários problemas jurídicos. Os membros usavam prédios, vestiam-se, comiam. Como regular o uso, se ninguém é proprietário? A cúpula da ordem franciscana opunha-se ao papa, que os perseguia. Neste contexto, a ordem franciscana encontra apoio no imperador Luis da Baviera, que estava em conflito aberto com a Igreja. Ockham, perseguida, refugia-se sob a proteção do imperador na corte, dedicando-se a uma obra política voltada contra o papa, abrindo as portas à legitimação do poder secular. Conforme leciona Ockham, o papa não é o juiz de todos os cristãos, pois o seu poder está circundado à esfera espiritual. Há uma defesa da estrita subordinação às normas do imperador em detrimento à apreciação natural das coisas. Opondo-se ao tomismo e ao aristotelismo, o pensador afirma que não se segue a lei de Deus porque ela é boa ou racional, mas sim porque deve-se aceitar a determinação divina. 3.1. A NAVALHA DE OCKHAM Ockham segue um movimento filosófico chamado de nominalismo. Assim, um indivíduo é apenas um indivíduo. Filiação, paternidade, humanidade não são atributos universais ou intrínsecos da natureza das coisas, mas apenas uma palavra que denota certa relação. Esses atributos são excessos filosóficos sem realidade própria, que devem ser extirpados do estudo do ser, que deve levar em consideração apenas a coisa em, e não os atributos relacionais. O eixo do mundo está na individualidade, na unidade do ser. O resultado da filosofia nominalista de Ockham é esvaziar a natureza como medida do direito e do justo. Sua filosofia antecipa as posições individualistas que dominarão a Idade Moderna. Ockham sepulta o direito natural clássico, afirmando que a única via possível ao direito e à justiça é a própria autoridade da norma. A FD MODERNA I: NOÇÕES 1. RENASCIMENTO Conquanto no final da idade média o debate teológico ainda prospere, com católicos e protestantes mantendo o problema filosófico e jurídico nos limites da teologia, uma liberdade crescente em face da teologia, somada ao resgate do pensamento clássico, dá surgimento ao Renascimento. Os renascentistas inspiram-se nos clássicos, deslocando o eixo dos fundamentos teóricos de Deus para o Homem (Humanismo). Os pensadores renascentistas abdicam da tradição de imaginar a sorte política como sendo emanação da vontade divina. O poder pertence aos homens, ao seu engenho e a sua astúcia e capacidade. Nicolau Maquiavel (1469-1527) é um dos nomes mais expressivos desta época. Rompendo com a visão tradicional medieval, insiste na ideia de que a ação do político é a fonte diretriz do governo. O príncipe que se apoia na sorte, arruina-se. Há um deslocamento do eixo da filosofia: da destinação divina para a ação humana. Em virtude disso, a Igreja adotou o adjetivo “maquiavélico” a tudo que lhe seja contrário ou mau, trazendo preconceito à visão de mundo realista na qual o eficiente exercício do poder político não está ligado a virtudes ou qualidades morais. Maquiavel, embora trabalhe com o horizonte da ordem social e do bom governo, abre espaço para a tradição absolutista. 2. ABSOLUTISMO O Absolutismo representa uma solução político-jurídica original lastreada em uma longa trajetória de apoio filosófico. A noção de que o poder humano é derivado do poder divino retorna. Surge a teoria dos DOIS CORPOS DO REI, uma ramificação do pensamento teológico cristão na qual o soberano possui “um corpo místico”, uma alma, individual, e um “corpo político”, que nunca morria. A teoria do poder divino do rei surge para tentar neutralizar as disputas de interpretação entre católicos e protestantes. Católicos e Protestantes concordam em um único ponto: o objetivo do governo é o de preservar a “verdadeira religião”. Qual seria a verdadeira religião? Assim, a tentativa de ambos os movimentos de caírem nas graças do rei desloca o problema teológico do campo da argumentação e da justificativa moral para um campo diferente: o rei está acima dos reclames morais, pois seu poder vem de Deus. O poder do rei é exercido como uma espécie de mandato que recebe de Deus. Há uma delegação de poderes que permite ao rei fazer tudo. Os pensadores da época, contudo, percebem que para a obtenção da paz cívica, os poderes do Estado teriam que ser desvinculados do dever de defender determinada fé. Assim, o absolutismo, embora surja lastreado em bases teológicas, leva a um deslocamento da fundamentação moral do poder para a política prática. Desloca-se a discussão do conteúdo da moral e da justiça para a forma. O Estado é o fundamento para o jurídico e o justo. Surge um contraponto à teoria Absolutista com os movimentos filosóficos dos séculos XVII e XVIII. Locke, Voltaire, Rousseau, Montesquieu, Kant, e muitos outros, formam o cânone do movimento do Iluminismo. 3. ILUMINISMO O iluminismo prega que devemos sair das trevas da fé para encontrar as luzes da razão. A filosofia absolutista, assim, acabará por se tornar radicalmente antiabsolutista, em virtude, em especial, do surgimento e da consolidação do capitalismo, que levaram a uma reflexão específica sobre as relações da sociedade, lastreada no individualismo e na propriedade privada. O capitalismo enseja novos conhecimentos e perspectivas filosóficas. As relações tornam-se dinâmicas, baseadas na troca e no comércio. Se, no início, o absolutismo foi interessante à classe burguesa, posto que as atividades burguesas clamavam por uma unidade territorial maior do que os burgos, os privilégios do monarca e dos aristocratas contrapõem-se às necessidades burguesas emergentes. Assim, contra as teorias legitimadoras do poder do estado iniciadas com Maquiavel, Bodin e Hobbes, inicia-se uma reflexão sobre a liberdade individual burguesa, direitos subjetivos e limitação do estado. A filosofia moderna iluminista é antiabsolutista e fundamenta-se no contratualismo, no direito natural racional e nos métodos de apreensão de conhecimento empiristas e racionalistas. 3.1. EMPIRISMO, RACIONALISMO E UNIVERSALIDADEComo conhecemos? Para os filósofos modernos iluministas, todos os sujeitos devem ser capazes de conhecer a razão, que precisa ser universal. As respostas, assim, vem do empirismo e do racionalismo. Para os racionalistas, como RENÉ DESCARTES, o conhecimento se faria por categorias racionais que todo sujeito formularia em virtude da razão que é dotado. Para os empiristas, como DAVID HUME, a verdade não é um dado prévio interno; é por meio da própria experiência e percepção que o homem compreende a natureza das coisas. Qualquer que seja a visão adotada, há uma busca iluminista por uma verdade estável, eterna, universal e racional. Todos teriam aptidão de conhecer o verdadeiro e distingui-lo do falso. Há uma busca essencial pela afirmação de direitos naturais lastreados em leis universais. Se fossem possíveis vários julgamentos a respeito do justo, estaria inviabilizado o projeto jurídico moderno de assentar as bases da sociedade nos interesses da burguesia. Mas como é possível que duas pessoas concluam as mesmas coisas das mesmas experiências? Como é possível que duas pessoas valham-se de suas referências racionais e conclua que o mesmo princípio é justo de maneira absoluta? A resposta empirista dá ensejo ao common law, característico da inglaterra, enquanto o racionalismo dá ensejo ao civil law, ou direito legal, de tradição romano-germânica. Apesar das diferenças, há uma identidade fundamental entre os dois métodos: a conclusão por uma justiça inflexível e universal baseada no interesse burguês. 4. POLÍTICA MODERNA Para os modernos, a sociedade é apenas uma união de indivíduos que vivam isolados e, que em momento posterior, por diversos motivos, passam a viver em sociedade. Essa é a teoria do CONTRATO SOCIAL. A ideia do contratualismo leva a um contraste entre sociedade civil e Estado nunca antes existente no mundo, o jusnaturalismo moderno leva a um deslocamento do objeto de pensamento para o homem. O direito natural é a fonte de todo o direito. O Estado existe para garanti-lo. A legitimação do Estado, assim, surge a partir do consenso ou a partir da força. A vida social é artificial; contudo é um momento superior em relação ao estado de natureza em que o homem vivia. 5. O DIREITO MODERNO O Direito natural moderno diferencia-se do clássico, podendo ser chamado de jusracionalismo, o direito natural da razão. Porém, diferentemente de Aristóteles, a razão é construída por outros métodos. Há uma base individual de origem do direito natural, com caráter universal e eterno. A filosofia moderna é muito influenciada pelas ciências exatas. Assim, o homem é um ser físico e, assim como outros corpos, é governado por leis invariáveis. Há uma espécie de física geral da socialização. Esses direitos individuais são anteriores a sociedade civil e ao Estado. O Estado apenas declara e positiva juridicamente os direitos naturais. A sociedade não é a origem ou a medida dos direitos. Os pensadores iluministas chegam à ruptura entre razão e fé, defendendo a liberdade de consciência como direito individual fundamental face ao Estado e à Igreja. Contudo, há um paradoxo pela tensão entre a tolerância do diferente e a razão jurídica que se pretende universal. Essa tensão opõe o universalismo ao relativismo histórico cultural e, em última análise, redundará em uma filosofia do direito de matriz burguesa liberal. Surge uma filosofia do direito baseada na razão burguesa, individual, laica, universalista e atemporal. A filosofia burguesa, embora progressista em face do passado, é conservadora em face do futuro. A FD MODERNA II: AUTORES 1. THOMAS HOBBES (1588-1679) A filosofia de Thomas Hobbes é um dos pontos altos da modernidade dado o seu caráter original e peculiar. Inglês, Hobbes viveu tempos de turbulência política no seu país que influenciaram diretamente na sua obra principal - O Leviatã. Embora classificado como contratualista, Thomas Hobbes antecede os verdadeiros contratualistas, realizando um amálgama entre o Absolutismo e o Contratualismo. Para Hobbes, o absolutismo deriva de uma empiria, de uma necessidade da natureza humana, do que por una fundamentação divina do poder. 1.1. CONTRATO SOCIAL EM HOBBES Hobbes inicia a sua filosofia política de um ponto exatamente oposto ao de Aristóteles: o indivíduo, e não a sociedade, é a base do seu pensamento. O homem não é um animal social. Segundo Hobbes, o estado de natureza é um estado de guerra no qual o homem é o lobo do próprio homem. Não há direito de propriedade. Há uma inclinação do homem à satisfação de seus próprios interesses. Contudo, a vida solitária gera preocupações, fragilidades e medo, que levem os homens a se associarem. Assim, o homem renuncia os seus plenos poderes em favor da paz. Há a transferência a um soberano do direito de todos a todas as coisas, a fim de que se atinja a paz social. O soberano detém vontade úncia acima da sociedade. É um mal necessário. 1.2. O DIREITO NATURAL EM HOBBES Para Hobbes, o primeiro direito natural é o direito à autopreservação. Consiste esse direito na liberdade que os homens possuem de fazer tudo que julgarem necessário à preservação da própria vida. Mesmo que tal direito não lhes fosse permitido, os homens fariam do mesmo modo, havendo uma fusão entre ser e dever-ser. Embora diversos outros direitos naturais possam ser extraídos da razão humana natural e imutável, a inclinação do homem às suas paixões levam a um estado de incerteza que exige um poder que garanta a segurança. Tendo em vista que todos os direitos são transferidos ao soberano, a mais alta expressão de justiça está em cumprir as determinações do soberano. Mas e a pena de morte? Deve ser cumprida? Para Hobbes, ainda que a norma que estabelece a pena de morte seja plenamente válida, há impossibilidade de renúncia ao direito natural de autodefesa, de modo que ser condenado à morte leva a um rompimento do pacto social em relação ao indíviduo, que não o obriga a obedecer. Esse pacto é nulo. O indivíduo possui o direito natural de preservar a própria vida que se impõe contra o direito positivo. Surge assim a possibilidade de desobediência civil. Existe uma liberdade inalienável em face do próprio soberano. Segundo MASCARO, contudo, isso não serve para afirmar que Hobbes fundamenta o jusnaturalismo; pelo contrário: Hobbes possui uma visão muito positivista, justamente por isso que essa defesa absoluta do direito de autopreservação é excepcional. Assim, o direito em Hobbes é formalista e imperativista, visto como um comando do soberano, ideia precursora do juspositivismo, que será posteriormente aproveitada por JOHN AUSTIN. 2. JOHN LOCKE (1632-1704) É o mais destacado pensador da filosofia burguesa, envolvido muito próximo da revolução gloriosa e outro ferrenho defensor do empirismo que também alimentou o pensamento hobbesiano. Para Locke, o indivíduo não possui ideias inatas, de modo que o conhecimento se faz, no indivíduo, a partir de uma tábula rasa. Tal modo de pensar irá se refletir em suas conclusões sobre o direito e sobre a sociedade. Não há poder inato que venha de Deus. O poder é uma construção humana. 2.1. O CONTRATO SOCIAL EM LOCKE Inicialmente, Locke refuta a popular teoria de Robert Filmes de que o poder do soberano derivaria de Adão, pois Adão não possuiria nenhum direito divino e, mesmo que tivesse, não se pode dizer que o transmitiu aos seus filhos e, mesmo que tivesse transmitido, é impossível comprovar a sucessão desta linhagem. O soberano não pode justificar o seu poder como domínio de uma jurisdição paterna derivada de Adão. Para Locke, o poder político não pode ser mensurado como se fosse um poder familiar, passado de pai para filho. O poder político tem uma característica específica que o difere dos demais poderes. A base do poder político é o contrato social. A sociedade civil se levanta a partir de um pacto entre os indivíduos que, antes de tal acordo, viviam em estado natural. O fundamento do poder é o consentimento dos próprios cidadãos. Ao contrário de Hobbes, o estadode natureza é pacífico, e os homens possuem uma compreensão da lei natural. Em estado de natureza, todos são iguais e livres, sendo a guerra um resultado de desrespeito desta lei que se apresenta enquanto possibilidade de um estado de natureza, e não uma consequência direta. Contudo, este estado potencial de guerra não encontra meios suficientes para ser apaziguado apenas com a força individual do homem, o que leva à falta de proteção da propriedade (Locke situa de modo amplo como vida, liberdade e bens). Assim, a finalidade precípua do contrato social é a garantia desta propriedade privada, direito natural do homem. O direito à resolução de conflitos é retirado dos indivíduos, passando ao Estado julgar. Assim, para Locke, a transferência de direitos ao Estado é extremamente limitada: os indivíduos renunciam a um único direito, que é o de fazer justiça com as próprias mãos. O direito de propriedade já é perfeito em estado de natureza. A monarquia absolutista é incompatível com a sociedade civil. O poder legislativo deve ser escolhido pela maioria, sendo supremo em relação aos demais. 2.2. DIREITO NATURAL EM LOCKE Como Locke segue um modelo empirista, de que o conhecimento é alcançável apenas por intermédio da experiência dos sentidos, não há um direito natural advindo de uma razão inata. O direito natural não se identifica com a sociedade, mas com o estado de natureza individual. O direito natural que já existe em estado de natureza é o direito de propriedade. Se Hobbes não reconhece a propriedade privada em estado de natureza, afirmando que este só surge a partir da sociedade civil, para Locke a propriedade está entranhada no próprio indivíduo, de modo que o Estado deve respeitá-la, não tendo ingerência sobre ela. A propriedade é a razão de ser do próprio contrato social. O fruto colhido por meio do trabalho faz com que haja propriedade do trabalhador sobre ela. O objeto trabalhado torna-se de propriedade de quem trabalhou. Na terra, o homem planta, ara e cultiva, fazendo desta sua. Contudo, o dinheiro surge como uma conveniência dos homens, por ser uma medida dos bens consensual, imperecível que permite a dissociação da propriedade em relação ao simples uso. Se um homem possuísse muitas frutas e não pudesse comer todas, elas pereceriam sem utilização, havendo uma situação injusta, pois a propriedade está intrinsecamente ligada ao uso. O dinheiro (ouro, prata) se torna a medida da propriedade. Os homens concordaram com a posse desigual, por consentimento tácito. É a instituição do dinheiro que leva os homens à vida em Estado, pois necessitam de juízes e regras para arbitramento das controvérsias que surgem sobre a propriedade privada. O governador que atenta contra essa propriedade atua de forma tirana e ilegal. Há um direito legítimo de resistência. Todo homem é naturalmente proprietário único de si mesmo e de suas capacidades, não devendo nada a ninguém por isso, podendo livremente alienar a sua capacidade de trabalho. Locke, assim, se torna o principal teórico da filosofia liberal burguesa. 3. JEAN-JACQUES ROUSSEAU (1712-1778) Rousseau foge do pensamento comum dos contratualistas sendo, por isso mesmo, alvo de muita polêmica e admiração. Rousseau possuiu uma vida pessoal muito atribulada. Passou por fome e necessidades que lhe levam a uma visão mais crítica sobre o contrato social. Conforme o pensamento de Rousseau, a civilização não poderia ser considerada o apogeu da vida humana, sendo, na verdade, culpada pela degeneração da moral do homem natural. O homem em estado de natureza é um bom selvagem. A sociedade cria necessidades artificiais, dando importância a luxo e vulgaridades, de modo que os homens passam a ser escravos de tais caprichos. O homem não pode ser visto apenas como a razão. O homem deve ser buscado em sua totalidade, em sua interação com a natureza e seus sentimentos. Para nós, existir é também sentir. A inteligência e a sociabilidade não necessariamente nos melhoram. Retornar ao estado natural, contudo, é impossível. Será que ainda temos solução? Rousseau aponta os vícios da sociedade justamente para corrigi-las, defendendo que devemos defender um outro modelo de civilização 3.1. ESTADO DE NATUREZA EM ROUSSEAU Rousseau não faz antropologia para dizer como era ou como não era o homem em “estado de natureza”. Ele trabalha no plano das hipóteses, em nível argumentativo, e não empírico. O primeiro estágio é o estado de natureza. O homem em estado de natureza não se vale de engenhos, ferramentas, técnicas ou palavras, de modo que não apresenta vícios e nem necessidades artificiais criadas pela civilização. Embora haja uma desigualdade natural e física, o homem é plenamente livre. Não há desigualdades convencionais como as morais e políticas como riqueza, reverência e poder. Se alguém impede um homem de deitar sobre uma árvore, ele procura outra árvore. O homem está limitado apenas por sua relação com a natureza. Contudo, há uma dialética rousseauniana no estado de natureza: o homem selvagem não se projeta além de suas necessidades, mas possui limitações e dificuldades que tal condição natural lhe apresentam. A arte perece com o artista, não há educação e nem progresso. O homem é uma eterna criança. A ignorância leva o homem à calma das paixões; contudo, sua condição originária não é estática. A possibilidade de aperfeiçoamento diferencia os homens dos animais. O homem consegue atingir mais do que seus instintos naturais. Embora isso leva o homem natural ao amor próprio e a uma piedade inata, derivada da empatia pelo outro homem, também pode conduzi-lo à infelicidade. Corrompido por suas próprias paixões, o homem se degrada. O surgimento da propriedade privada marca a destruição da condição de felicidade natural, impondo ao homem os sofrimentos sociais. "O primeiro que, tendo cercado um terreno, atreveu-se a dizer: 'isto é meu', e encontrou pessoas simples o suficiente para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassínios, quantas misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, houvesse gritado aos seus semelhantes: 'Evitai ouvir esse impostor. Estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não é de ninguém'." É a apropriação dos bens naturais por alguns que gera a vida social. Saindo-se do estado de natureza, chega-se a um segundo estágio no qual o conflito se instaura a partir da propriedade privada: o estado de guerra Passa a existir ambição, avareza e maldade entre os homens. Mas as facilidades da vida em sociedade não permitem que o homem apenas renuncie a tal estado de vida social. Os poderosos conclamam os fracos a um pacto para a manutenção da propriedade privada. Aqui surge o terceiro estágio, a sociedade civil. “Unamo-nos para resguardar os fracos da opressão, conter os ambiciosos e assegurar a cada qual a posse do que lhe pertence.” O direito e as leis surgem de um CONTRATO SOCIAL ESPÚRIO. Com este contrato, está fixada para sempre a lei da propriedade e da desigualdade. Estabelece-se a lei e o direito de propriedade; a magistratura; e a mudança do poder legítimo para o poder arbitrário. Rousseau revela-se pessimista. O contrato social imposto leva à garantia da ordem jurídica e política da exploração dos mais pobres. Há, em Rousseau, uma crítica à condição humana. 3.2. CONTRATO SOCIAL EM ROUSSEAU Em seu livro “O Contrato Social”, Rousseau começa a pensar na possibilidade de se levantar uma nova ordem, a partir da desgraçada situação na qual a vida social e as instituições já se apresentam. Trata-se de um movimento de transformação da sociedade já existente, baseada em um contrato social espúrio. Se retirarmos do pacto social o que não é de sua essência, compreenderemos que há uma direção da vontade geral, sendo cada um parte indivisível de um todo. A vontade geral não é apenas a média matemática dos interesses individuais e, sim, uma vontade orientada para o bem comum. O indivíduoé um membro ativo da comunidade. Cada um deve se alienar inteiramente à comunidade, em prol de uma igualdade. Todos, individualmente, perdem tudo, mas todos ganham tudo por meio da comunidade. Rousseau explica que aquele que segue apenas os instintos não é livre, mas escravo de si mesmo. Livre é quem segue as leis, ainda que por si mesmo determinadas. Há, assim, uma liberdade que é mantida, porém em outro nível e instância. O homem perde uma liberdade natural pelo contrato social, mas ganha uma liberdade civil e a propriedade de tudo. Para Rousseau, o bem comum é a diretriz da coletividade. Os indivíduos se associam como legisladores e impõem leis como se fossem leis dadas por si mesmo. Há uma visão radicalmente democrática, baseada em uma cidadania ativa, que permite que os indivíduos participem da soberania. O pensador defende uma democracia direta com assembleias permanentes que reúnam todos os cidadãos. Neste contexto, é a lei que consubstanciará a vontade geral. Assim, não há nenhuma delegação de poder. O poder eternamente soberano é do povo, sendo o governo o seu subordinado. Apenas a democracia direta, participativa, a educação e a formação moral dos cidadãos podem impedir o perecimento social. 3.3. DIREITO NATURAL EM ROUSSEAU Rousseau também defende um direito natural muito distinto dos outros contratualistas, de modo que, no limite, pode-se inclusive dizer que ele não é um jusnaturalista. Pela mera razão, independentemente da consciência, não pode ser estabelecida nenhuma lei natural. O direito natural não é produto de uma razão cerebrina do indivíduo e, sim, construído pelo turbilhão de sentimentos e afeições humanas. É do coração do homem que nascem as primeiras noções de justo, injusto, bem, mal, amor e ódio. O homem é razão e também emoção. Assim, o que o pensador chama de direito natural são, na verdade, os fundamentos lógicos de toda convenção social: a liberdade e a independência em composição com o amor próprio (autoconservação) e a empatia e piedade natural pelo próximo. Como esse “direito natural” é fundamento da convenção, é a partir da lei civil, do contrato social, que se revelam os “direitos naturais”. A razão e o sentimento não são dados estáticos. É possível outra natureza aos homens. O direito natural em Rousseau não se baseia em uma lei eterna e imutável como a dos outros contratualistas. Não é estático, e sim dinâmico. O justo é uma mudança dos homens, que transforma seu individualismo em solidariedade. O justo se concretiza historicamente de acordo com as condições e necessidades do povo. O pensamento de Rousseau representa uma crise do jusnaturalismo. Embora o autor ainda esteja preso aos limites político-econômicos da burguesia, ele dá um passo em direção à compreensão crítica do indivíduo e da sociedade em face da economia e da propriedade privada. Há, aqui, o germe para a liberdade igualitária que será desenvolvido, dentre outros pensadores, por Dworkin. FD EM KANT IMMANUEL KANT (1724-1804) desenvolve a sua filosofia em um período de ascensão da burguesia e dos ideais liberais, trazendo inúmeras referências do iluminismo. 1. CRÍTICA DA RAZÃO PURA Embora influenciado pela teoria empirista de David Hume, Kant elabora uma teoria em superação ao racionalismo ou empirismo puros, afirmando que há uma relação superior entre realidade e razão, de modo que o conhecimento não é exclusivamente empírico, embora também haja impossibilidade de um conhecimento ideal prévio. Kant inicia sua teoria da Crítica da Razão Pura afirmando que reconhece a existência de um conhecimento empírico, que ocorre com base na experiência; contudo, o que se conhece através da percepção é apenas o fenômeno, e não a coisa em si. Assim, não há possibilidade de universalização do conhecimento exclusivamente por meio da realidade objetiva. A fim de conhecer a coisa, precisamos de mecanismos, ferramentas e meios que não são do objeto e, sim, do próprio sujeito, nós. Para Kant, todos compreendem os fenômenos por meio das mesmas ferramentas. Há, no sujeito, estruturas prévias, apriorísticas, que organizam o seu próprio conhecimento empírico. Tais estruturas de pensamento universais são ferramentas da razão humana. Assim, ao lado das formas de sensibilidade, que possibilitam o conhecimento empírico direto, o homem possui categorias apriorísticas, que são estruturas universais e necessárias, como por exemplo quantidade, qualidade, causalidade, necessidade, entre outras. Se eu caminho pela rua todo dia e, em um dia, percebo uma parede recém-pintada, consigo extrair das estruturas de pensamento que a parede foi pintada por alguém (causalidade). Logo, todo ato de intelecção é um ato de julgamento da empiria, por meio das categorias apriorísticas. Todo pensamento é um juízo. Para cada categoria a priori, há um juízo. Prossegue o autor explicando que há juízos analíticos. Por exemplo, quando se diz que um triângulo tem três lados, não há produção de um conhecimento novo, mas mera extração de uma noção. Os juízos analíticos não possuem grande importância filosófica. Contudo, quando consigo extrair que a parede foi pintada por alguém, utilizando determinada tinta, eu faço um juízo sintético. O juízo sintético junta elementos e permite a produção de conhecimentos novos, a partir das categorias universais apriorísticas. Assim, o homem não nasce com ideias inatas. Contudo, embora o conhecimento seja calcado na subjetividade, há categorias prévias à experiência, e universais, que permitem a universalização de juízos por todos os indivíduos. 2. A RAZÃO PRÁTICA A razão pura trata do conhecimento dos fenômenos. A razão prática trata de considerações sistemáticas de um tipo prático, cujo núcleo reside nos imperativos categóricos. O mundo dos valores tais como justiça ou injustiça, bem ou mal, belo ou feio, correto ou incorreto, não pode ser conhecido através da experiência, das sensações ou do empirismo. É a razão prática, assim, que trará as bases acerca da ética, da moral, do direito, da política. Segundo Kant, para estruturar a razão prática é preciso distinguir entre dever e moralidade. Agir conforme o dever é empreender ações que sigam os trâmites de determinada legalidade. Isso não significa, necessariamente, o cumprimento da moralidade, pois a moralidade não é apenas o cumprimento do dever. Alguém pode, por exemplo, cumprir o dever por mero interesse. Segundo Kant, o querer somente pelo querer, sem outras intenções, é o fundamento último da moralidade. A moralidade em Kant não busca nenhuma finalidade, como Aristóteles, que afirma que a finalidade última é a felicidade. O querer é suficiente, por si mesmo, pouco importando o seu resultado, que pode inclusive desfavorecer quem age moralmente. 2.1. O IMPERATIVO CATEGÓRICO É onde se situa o núcleo do pensamento kantiano sobre moralidade, dando as bases para o agir moral racional. Racionalmente, a moralidade se apresenta como um imperativo, um dever-ser. A vontade, se dominada pela inteligência, leva o homem ao imperativo categórico. Diferentemente do imperativo hipotético, modo de ação típico da técnica ou do pragmatismo, o imperativo categórico não visa determinado objetivo, não servindo como meio a um fim, sendo independente de condicionantes concretas e, portanto, universal. Na palavra de Kant, a lei fundamental da razão pura prática é: “age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal”. Kant estabelece uma lei universal da razão na qual o indivíduo é sempre imaginado como um fim em si mesmo. A universalidade do imperativo categórico é inabalável. A crítica feita ao imperativo categórico é que há multiplicidade de interesses e compreensões dos indivíduos. O que poderia ser uma máxima universal para um, não será para outro, a não ser que se abstraia de seus interesses e circunstâncias. Kant afirma, contudo, que o imperativo deve se valer de uma “boa vontade” do indivíduo na superação de seus interesses em favor de um padrão universal demedida. Kant, neste ponto, estabelece presunções destoantes da realidade. 2.2. O DIREITO EM KANT A transposição da filosofia prática Kant para o problema moderno do direito natural é imediata: apenas os imperativos universalizados podem ser direito natural, por serem justos e racionais. Tal concepção leva ao fim dos privilégios do absolutismo, tendo em vista a legitimação da universalidade sem qualquer flexibilização, no exato oposto da régua de lesbos (equidade) de Aristóteles. O direito deve valer para todos igualmente. Somente as normas universais podem ser pensadas como sendo justas. Tratando com mais especificidade sobre o direito, contudo, Kant irá afirmar que este não se confunde com a moralidade. Embora os princípios que regem racionalmente os direitos advém da mesma fonte lógica dos que regem a moral, o direito independe de uma motivação pessoal, impondo-se como uma ação exterior que se satisfaz no cumprimento, ainda que por razões imorais. Para Kant, há um direito natural derivado da razão, que pode inclusive contrastar com o direito posto quando este mostrar-se irracional. O direito justo e racional baseia-se na pura razão prática de justiça e, por isso mesmo, não visa ao bem comum e não se mede pelos proveitos. É a justiça pela simples ideia de justiça. Um tratamento livre e igual a todos. O direito é a soma das condições sob as quais a escolha de alguém pode ser unida à escolha de outrem de acordo com uma lei universal de liberdade (KANT, Metafísica dos Costumes, 2003, p.73). O imperativo é o mesmo para a moralidade e para o direito, embora o direito se revele por meio de uma coerção externa promovida pelo Estado, que pode ser indiretamente ético. Assim, a posse meramente física da terra já é um direito, sendo um pressuposto verificado em estado de natureza. Contudo, somente se torna propriedade privada quando garantida por meio do Estado. O direito público é, no pensamento kantiano, uma decorrência necessária do exercício de interesses privados, dando as condições de liberdade dos indivíduos para conviverem de maneira harmônica. A legitimidade do direito se funda na pressuposição da vontade geral do povo. Como não é possível fundar a sociabilidade apenas na moralidade cerebrina que busca a si mesma, com todos os indivíduos racionais agindo moralmente, o direito se faz necessário, lastreado na coerção estatal, que se mostra um elemento problemático na estrutura de pensamento kantiano. Logo, a relação entre direito e moralidade é complementar. Além do direito público, que deve respeitar a liberdade individual Kant menciona o direito das gentes e o direito cosmopolita. No que tange ao direito das gentes, Kant afirma que os Estados devem superar a situação de guerra ou de hostilidade, que se assemelha ao estado de natureza. Assim, a ideia de um estado soberano deve ser abandonada em prol de uma Federação de Estados livres Além do direito estatal (interno) e o direito das gentes (relações entre estados), em seu livro Paz Perpétua, Kant acrescenta a dimensão do direito cosmopolita, que seria um direito dos cidadãos do mundo, Kant apresenta assim o seu projeto de paz perpétua, baseado em um direito cosmopolita que deve se limitar às condições de hospitalidade universal. O colonialismo ou imperialismo são abomináveis. Há, aqui, um embrião teórico da Organização das Nações Unidas. DIREITO ESTATAL: DIREITO INTERNO DIREITO DAS GENTES: ENTRE ESTADOS DIREITO COSMOPOLITA: INDIVÍDUO CIDADÃO DO MUNDO 3. O CONTRATO SOCIAL O contrato social mostra-se não como realidade, mas como uma necessidade de pensamento kantiano, tendo em vista que o Estado de direito pressupõe o resguardo institucional da liberdade dos indivíduos. O próprio estado de natureza é apenas uma ideia. Para Kant, contudo, o Estado de Direito garante apenas a justiça para todos, e não o bem estar das pessoas. Há apenas uma garantia das possibilidades de liberdade. O contrato social é uma ideia que organiza a concretização da justiça enquanto garantia da liberdade. Kant, em sua teoria, afirma que o trabalhador subordinado é apenas um cidadão passivo, de modo que o poder legislativo só pode ser exercido por quem é proprietário, excluindo também as mulheres, pois controladas pelo homem. Há uma visão, surpreendentemente, não universalista de voto e de participação popular em Kant, que apresenta uma teoria da democracia mais conservadora do que todos os demais filósofos burgueses. Além da cidadania, kant afirma que, ainda que o soberano seja injusto, não há direito de resistência, devendo o povo se conformar com a condição jurídica dada, pois o poder legislativo é soberano, e quem contra ele atentar é um traidor que deve ser punido com a morte. Em Kant, há o maior conservadorismo jurídico burguês dentre os pensadores da época. JEREMY BENTHAM (1748-1832) Thomas Hobbes, no século XVII, foi o maior teórico da onipotência do legislador, que toma forma com a teoria da codificação desenvolvida por Jeremy Bentham, conhecido como “Newton da legislação”. O pensamento de Bentham teve uma enorme influência em todo o mundo civilizado, contudo, curiosamente, não vingou na própria Inglaterra. 1. UTILITARISMO Bentham, muito influenciado pelo positivismo, busca desenvolver uma ética objetiva, isto é, uma ética que possa se fundar em um princípio objetivamente estabelecido e cientificamente verificado, do qual se possa deduzir todas as regras para o comportamento humano, da mesma forma que leis matemáticas ou naturais. Segundo Bentham, cada homem, em suas relações, busca a sua própria utilidade: a ética se torna assim o complexo de regras segundo as quais o homem possa conseguir a própria utilidade de forma melhor. A ética utilitarista desenvolvida por Bentham, dessa forma, se exprime pela forma: “a maior felicidade do maior número”, consistente em aumentar o prazer e diminuir a dor, repetindo praticamente de maneira literal a frase de Beccaria: “a maior felicidade dividida no maior número”. Esta seria uma regra universal de moralidade. 2. A CRÍTICA DO COMMON LAW E A CODIFICAÇÃO Precisamente em virtude de sua convicção em uma ética objetiva, Bentham justifica a sua fé no legislador universal, capaz de estabelecer leis racionais válidas para todos os homens, uma ideia tipicamente iluminista. “A finalidade da lei é dirigir a conduta dos cidadãos. Duas coisas são necessárias para o cumprimento desse fim: 1) que a lei seja clara, isto é, que faça nascer na mente uma ideia que represente exatamente a vontade do legislador; 2) que a lei seja concisa, de modo a se fixar facilmente na memória. Clareza e brevidade: eis as duas qualidades essenciais (Traités de législation civile et pénale, 1802, cap. XXXIII). O filósofo propôs a diversos políticos da época as suas ideias, que não foram acatadas senão depois de sua morte. As concepções de Bentham podem ser divididas em três fases: Em um primeiro momento, Bentham propõe uma reforma e uma reorganização sistemática do direito inglês nos seus vários ramos. O direito inglês era - e ainda é - um direito essencialmente não codificado, cujo desenvolvimento era essencialmente confiado ao trabalho dos juízes. Tal direito, portanto, não se fundava em leis gerais, mas em casos, tornando-se assistemático, razão pela qual Bentham desenvolve severas críticas em relação ao common law. Consoante pontua Bentham, cinco são os defeitos fundamentais do common law: A. Incerteza do common law: “Onde quer que se deixa subsistir uma jurisprudência não escrita, um direito consuetudinário, ou que se chama na Inglaterra de direito comum, não há segurança para os direitos individuais, ou ao menos não há senão um grau de segurança muito inferior àquele que se pode obter com leis escritas (De l’organisation judiciaire et de la codification, p. 391)” Em primeiro lugar, não é absolutamente possível individualizar a fonte do direito consuetudinário e, portanto, o autor. Assim, embora os defensores do common law digam que o juiz está vinculado ao precedente, por ser este rationabilis, combase em que o juiz decide se adota ou rejeita um precedente? Os juízes disfarçam sua atividade criativa. B. Retroatividade dos entendimentos fixados em julgamento Quando o juiz cria um novo precedente, ele resolve o caso com uma norma que, na realidade, acaba de ser criada e, portanto, é aplicada retroativamente ao caso, pois regula um comportamento que foi assumido quando esta norma ainda não existia. C. Ausência do princípio da utilidade O common law não é fundado no princípio da utilidade. Enquanto o legislador pode criar um sistema completo de normas jurídicas que se fundam em princípios basilares, o juiz decide com base nos interesses em jogo no caso a ser resolvido. D. juízes decidem mesmo quando não detém competência específica Segundo Bentham, o dever que o juiz tem de resolver qualquer controvérsia que lhe seja apresentada o leva a decidir a respeito de casos nos quais lhe falta uma competência específica nos diversos campos regulados pelo direito. Esse inconveniente é eliminado com a produção legislativa do direito, visto que a redação de códigos e leis é confiada a indivíduos ou comissões dotados de competência específica E. ausência de participação popular (crítica política). O povo não pode controlar a produção do direito por parte dos juízes. O direito criado pelo legislativo, por sua vez, é expressão da vontade do povo. Em sua segunda fase, Bentham projeta uma espécie de Digesto do direito inglês, que deveria conter, sistematicamente expostas, as regras de direito que constituíam os princípios fundamentais do ordenamento jurídico inglês. Em sua terceira fase (de 1811 em diante), Bentham propõe um reformismo radical do direito, uma codificação completa que deveria sistematizar toda matéria jurídica em três ramos: civil, penal e constitucional. A partir desta fase, Bentham começa, sem sucesso, a entrar em contato com governantes e políticos europeus e americanos buscando aplicar os seus projetos de reforma. Assim, a codificação resolve os problemas enfrentados pelo common law, possuindo 4 requisitos fundamentais para um bom código: 1. UTILIDADE 2. COMPLETITUDE 3. COGNOSCIBILIDADE 4. JUSTIFICABILIDADE N. BOBBIO: A TEORIA DO ORDENAMENTO JURÍDICO Norberto Bobbio (1909-2004) 1. A TEORIA DO ORDENAMENTO JURÍDICO COMO CONTRIBUIÇÃO ORIGINAL DO POSITIVISMO JURÍDICO À TEORIA GERAL DO DIREITO Segundo Bobbio, a Teoria do Ordenamento Jurídico é o coração do positivismo jurídico, que basicamente lhe inventou. Isto porque o estudo do direito não deve se restringir à norma singular ou ao acervo de normas singulares e, sim, englobar a entidade unitária constituída pelo conjunto sistemático de todas as normas. Bobbio afirma que não se pode precisar quando a expressão “ordenamento jurídico” passou a ser utilizada, mas acredita que venha da tradução italiana para o termo alemão rechtsordnung. A teoria do ordenamento jurídico surgirá entre o fim do século XVIII e início do século XIX, e encontrará a sua mais coerente expressão no pensamento de Kelsen, garantindo unidade ao conjunto de normas fragmentárias que constituíam um risco permanente de incerteza e de arbítrio. A teoria do ordenamento jurídico se baseia em três caracteres fundamentais: UNIDADE; COERÊNCIA e COMPLETITUDE. O ordenamento jurídico, assim, é uma entidade nova, distinta das normas singulares que o constituem. 2. UNIDADE DO ORDENAMENTO JURÍDICO A primeira característica do ordenamento jurídico é a sua unidade, que não é uma característica do juspositivismo. Isto porque o jusnaturalismo também possui unidade; contudo, a unidade jusnaturalista é uma unidade substancial/material, relativa ao conteúdo das normas; a unidade juspositivista, por sua vez, é uma unidade formal, relativa ao modo pelo qual as normas são postas. Assim, para os jusnaturalistas, o sistema é unitário porque todas as normas podem ser deduzidas por um procedimento lógico, até que se chegue a uma norma geral que dá a base do sistema e constitui um postulado moral auto evidente. Para os juspositivistas, contudo, o direito constitui uma unidade em outro sentido: não porque as suas normas possam ser deduzidas logicamente uma da outra, mas porque todas elas são postas pela mesma autoridade, podendo assim todas serem reconduzidas não ao mesmo conteúdo, mas à mesma fonte originaria: o poder legitimado para criar o direito. Kelsen afirma, assim, que o jusnaturalismo exprime um ordenamento estático, enquanto o juspositivismo exprime um ordenamento dinâmico. Contudo, o princípio da unidade formal do ordenamento jurídico cria um problema: quem ou o que vincula a produção das normas a tal ato ou a tal fato? quem ou o que legitima o poder de normatizar? Assim, torna-se inevitável recorrer a teoria de uma norma fundamental que possa fechar o sistema, assegurando a unidade formal do ordenamento. Esta norma-base não é positivamente verificável, sendo suposta pelo jurista, evitando, assim, um regressum ad infinitum do jurista. 3. COERÊNCIA DO ORDENAMENTO JURÍDICO A coerência está intimamente ligada com a completitude, na medida em que a coerência serve para remover contradições e a completitude para colmatar lacunas. Isto porque o ordenamento jurídico pode apresentar dois vícios: VÍCIO POR EXCESSO - quando há normas contraditórias, de modo que deve ser removida a contradição (coerência) VÍCIO POR FALTA - quando há lacuna jurídica, é necessário preenchê-la (completitude). Assim, o princípio sustentado pelo positivismo jurídico da coerência do ordenamento consiste em negar que possa haver antinomias, isto é, normas incompatíveis entre si. Segundo o princípio da coerência, há uma norma implícita em todo ordenamento jurídico, segundo o qual duas normas incompatíveis não podem ser ambas válidas no mesmo tempo e espaço. A compatibilidade de uma norma com todas as outras é uma condição necessária para a sua própria validade. Assim, três são os critérios para solução das antinomias: CRONOLÓGICO; HIERÁRQUICO; ESPECIALIDADE. Estes critérios, contudo, não conseguem resolver todos os problemas quando: 1) há conflito entre os próprios critérios; 2) nenhum dos critérios pode ser aplicado. CONFLITO ENTRE DOIS CRITÉRIOS O critério cronológico, por ser o critério fraco, cede ante ao critério da especialidade ou da hierarquia. Contudo, quando há um conflito entre o critério especial e o critério hierárquico, fica muito dificil definir qual a regra aplicável. Segundo Bobbio, pode-se recorrer ao critério fraco (cronológico) como critério subsidiário, quando possível. INAPLICABILIDADE DOS TRÊS CRITÉRIOS Pode-se estar diante de duas normas antinômicas contemporâneas, paritárias e gerais. Segundo Bobbio, nesta situação, deve se recorrer a lex favorabilis sobre a lex odiosa, isto é, dar prevalência à lei que estabelece uma permissão. Tal solução, porém, não serve quando se trata de duas normas permissivas de direito privado, ou quando as duas normas são imperativas. Ainda conforme Bobbio, caso as duas normas imperativas sejam contrárias entre si (ex: uma proíbe um comportamento e a outra obriga), a norma válida será a resultante do tertium, vale dizer, o comportamento não será obrigado e nem proibido mas, sim, permitido. 4. COMPLETITUDE DO ORDENAMENTO JURÍDICO A última característica do ordenamento jurídico é a completitude, que, segundo Bobbio, é a mais importante. A característica da completitude está estreitamente relacionada ao princípio da certeza do direito, ideologia fundamental do positivismo jurídico. É o princípio da completitude que permite a conciliação entre a proibição de criação do direito pelo juiz e a impossibilidade de recusa de resolução da controvérsia posta a julgamento. Consiste o seu conteúdo em afirmar que o ordenamento jurídico é completo, isto é, não existem lacunas na lei. Duas teorias buscam explicar a completitude do ordenamento jurídico, a saber: TEORIA DO ESPAÇO JURÍDICO VAZIO - Segundo esta teoria, um espaço não regulado é um espaço juridicamente irrelevante. Um fato não previsto por nenhuma norma é um fato situado fora doslimites do direito, situando-se em uma esfera extrajurídica (nem lícito e nem ilícito) TEORIA DA NORMA GERAL EXCLUSIVA - Esta teoria goza de maior prestígio, e afirma que não existem fatos juridicamente irrelevantes. Há no ordenamento jurídico uma regulamentação jurídica antitética, de modo que a regulação de certos atos sempre possui uma norma implícita que exclui da regulamentação da norma particular os atos não previstos. Se é proibido importar cigarros, significa que é permitido importar tudo que não for cigarro. Consubstancia-se no brocardo “é permitido tudo que não é proibido ou obrigatório”, o que se chama de NORMA DE CLAUSURA, que assegura a completitude do ordenamento, atribuindo qualificação jurídica a todos os fatos, ainda que não previstos expressamente. Há, aqui, uma esfera de liberdade deixada a cada cidadão. Assim,o ordenamento jurídico é completo. Quando o jurista afirma que há lacuna na lei, o termo na verdade não é utilizado em sentido técnico-jurídico, mas ideológico: significa a ausência de uma certa norma que o jurista consideraria ideal, sob um aspecto de ideal de justiça. É, em realidade, uma crítica ao direito vigente. HANS KELSEN (1881-1973) O pensamento de Hans Kelsen representa o máximo engenho e o auge da construção do modelo juspositivista estrito que, lastreado na operacionalização das normas estatais, fez da prática jurídica uma técnica que se reputou universal. De fato, no pensamento de Kelsen está a possibilidade de compreensão mais singela e, por isso mesmo, espraiada do fenômeno jurídico: a sua identidade científica é total e inexorável com a norma estatal. 1. A PUREZA DO DIREITO Em seu livro A Teoria Pura do Direito (1934), Kelsen expõe suas principais ideias sobre a ciência do direito e a sua distinção em relação ao fenômeno jurídico. Para Kelsen, o direito se mistura com os demais fenômenos sociais, encontrando-se no mundo do ser (sein), isto é, dos fatos. A ciência jurídica, por sua vez, é normativa: trabalha no mundo do dever-ser (sollen), abstraindo dos fatos concretos. A teoria, assim, é pura, muito embora o próprio direito não o seja. Isto porque Kelsen não defende que o direito seja puramente a norma. O autor esclarece que o direito é contraditório socialmente, permeado de conflitos e práticas sociais enraizadas por seus operadores. Contudo, a norma jurídica posta pelo Estado pode ser analisada enquanto fenômeno, de uma maneira analítica, sem valorações morais ou apreciações políticas ou filosóficas acerca do justo, do útil ou do bom. A ciência jurídica é normativa, e opera como a lógica. Assim, a pretensão científica de Kelsen se traduz em uma técnica universal. A teoria pura do direito é capaz de explicar os estados liberais, socialistas e até totalitários, na medida em que, embora o conteúdo da norma varie substancialmente, a lógica formal das normas é idêntica. Inconsistências doutrinárias apontadas por MASCARO: 1. o positivismo kelseniano está comprometido pelo idealismo, que define a norma jurídica em termos de realidade mental; 2. sua doutrina não encontra meios de compatibilizar=se com a realidade da vida social; 3. se não há confronto entre o ideal e o real, ser e dever ser, não poderia haver experiência jurídica, havendo contradição em relação ao empirismo exposto em sua carta de princípios; 4. se se admite a entrada do fato no mundo jurídico, Há renúncia da pureza metódica que descaracteriza definitivamente o projeto original; 5. ao aceitar que a norma tem conteúdo, kelsen renega o formalismo; 6. caracterizando a ciência jurídica como unilateralmente descritiva, Kelsen recua no tempo e inviabiliza o seu projeto teórico, tanto que a ciência do direito atual apresenta-se e distingue-se como atividade criadora, sobrelevando seus atributos valorativos e teleológicos; 7. Kelsen transforma seu ideário anti-ideológico em ideologia positivista. 2. A TEORIA GERAL DO DIREITO Kelsen desenvolve a sua teoria sob a compreensão de duas abordagens acerca das normas jurídicas: ESTÁTICA: entendimento objetivo das normas jurídicas em si mesmas. O vínculo entre uma hipótese e sua consequência, na ciência normativa do direito, é de imputação, e não de causalidade. O direito, enquanto ciência, limita-se a um entendimento das conexões do dever-ser (sollen) DINÂMICA: tomada das normas em conjunto, dentro de um ordenamento jurídico, ao mesmo tempo em que trata da forma de criação e extinção de normas. Kelsen reconhece a abertura à concreção social do direito, em especial, quando trata da produção normativa. Isto porque as normas existem em razão de atos de vontade do legislador. Contudo, para que uma norma possa existir e ser válida, é necessário um respaldo nas normas superiores que facultam o legislador a produzir as normas inferiores. NORMA (N) - ATO DE VONTADE (AV) - NORMA (N) Assim, a ciência do direito só pode ser pensada a partir de uma construção escalonada do ordenamento jurídico, pois as normas não se encontram esparsas e sem logicidade: elas são estruturadas a partir de uma hierarquia, baseada no conceito de validade, que revela a adequação das normas ao ordenamento jurídico. Contudo, se a validade das normas é dada pela norma superior, a grande indagação teórica é: quem dá validade às normas constitucionais? Kelsen resolve o problema postulando a utilização de uma ferramenta teórica que chama de norma hipotética fundamental (grundnorm). Esta norma hipotética fundamental não é posta, mas pressuposta, sendo um imperativo da ciência do direito: é preciso pensar que as normas constitucionais devem ser válidas. Trata-se de uma ordem, despida de valor intrínseco. A crítica é que se faz, contudo, é que mesmo a NHF exige um mínimo de referências sociais concretas. Por que se aplica a Constituição da República Federativa do Brasil? E porque aplicamos a Constituição de 1988 e não a de 1967? A norma fundamental se refere imediatamente a uma constituição determinada, efetivamente estabelecida, produzida através do costume ou da elaboração de um estatuto. Em sua última fase, Kelsen alterou a sua reflexão acerca da NHF, tratando-a não mais como pressuposto, mas como uma ficção. Assim, ela não seria uma condição teorética para pensar o ordenamento jurídico, mas, sim, uma ideia que não está conectada em termos lógicos à própria estrutura do ordenamento jurídico. Kelsen, neste ponto, distancia-se do neokantismo. A crítica que se faz a teoria kelseniana é a de que ela não reflete todo o direito, como ela mesma admite. Assim, é uma técnica formalista e científica, mas incapaz de explicar o todo, a que atribui a outras áreas do conhecimento humano. 3. A HERMENÊUTICA JURÍDICA Na hermenêutica, Kelsen reconhece a abertura do direito para a realidade. O autor aponta que há uma relativa indeterminabilidade da interpretação do direito. A interpretação, para Kelsen, é o preenchimento de uma possibilidade dentro de uma moldura oferecida pelas normas. As possibilidades podem ser múltiplas. Assim, a interpretação das normas, na visão do pensador, não é um simples processo de extração de seu significado. Contudo, no sistema jurídico, impera a interpretação autêntica, que é a realizada pela própria autoridade competente, o legislador. MIGUEL REALE (1910-2005) 1. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA Filósofo brasileiro do século XX, classificado na filosofia do Direito como juspositivista eclético, corrente de pensamento que, embora lastreado especificamente na técnica normativa estatal, visa garantir um fundamento exterior, seja ou não jusnaturalista. O maior exemplo de positivismo eclético está na chamada Escola Histórica do direito, cujo maior expoente foi Savigny, que defendia que o direito era expressão do “espírito do povo” (volksgeist). A lei não cria os conceitos jurídicos. Assim, embora o direito seja absorvido e imposto pelo Estado, o Estado não é a sua fonte inicial. A fonte inicial é o espírito do povo. Miguel Reale foi um dos líderes do movimento de matriz fascista conhecida como integralismo brasileiro, sendo autor da obra ABC doIntegralismo (1935) e redator do AI-5, principal ato normativo repressivo da época da Ditadura Militar. Reale nega que o movimento integralista fosse fascista. No mesmo sentido, Eugênio Bucci: (…)há quem diga, bem sei, que o integralismo era fascista. Hoje, eu sei que o integralismo não era um movimento unificado. Havia uma ala fascista dentro dele. Mas nós, estudantes universitários, nunca tomamos conhecimento desta ala discordante. Nós defendíamos o integralismo para combater o fascismo(…) (Bucci, Eugênio. «Entrevista a Goffredo Telles Junior». goffredotellesjr.adv.br - Website. Consultado em 24 de abril de 2019 ) obs: os integralistas imitavam inclusive as braçadeiras nazistas. Para a ideologia integralista, o materialismo histórico, ou seja, considerar o ser humano exclusivamente sob seus aspectos econômicos e materiais, é a base do que se chama "civilização burguesa" e é a grande influência para a formação tanto do liberalismo econômico como do comunismo. Para Plínio Salgado a chamada burguesia não é uma classe social ou econômica e sim um estado de espírito (Já temos dito muitas vezes e não cansaremos de repetir: a burguesia não é uma classe, é um estado de espírito). Dessa unidade de fontes teóricas resulta uma unidade de valores. Miguel Reale escreveu: Desde que o marxismo passou a ser a critica da sociedade capitalista e (…) um método cômodo de estudar a sociedade burguesa, muitas ideias acessórias vieram se unir à tese fundamental da limitação da propriedade individual ou da sua supressão. Hoje em dia não é mais possível separá-las. O ateísmo, a abolição da família, o internacionalismo dos povos, o materialismo em todos os sentidos da vida, tudo está tão entrelaçado ao ideal socialista, que nos deparamos com um grande paradoxo: É preciso ter espírito estritamente burguês para abraçar o comunismo. (Reale, Miguel. O Estado Moderno. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1934 ) Assim, em sua filosofia do direito, Miguel Reale tem nas normas postas pelo Estado um dos eixos de sua análise, mas transcende os limites positivos do direito, defendendo a estrutura fenomenal integrada de norma, fato e valor. 2. TEORIA TRIDIMENSIONAL DO DIREITO Miguel Reale, de maneira original, propõe uma ontologia específica do fenômeno jurídico que se diferencia do juspositivismo estrito, assentando que há uma interação real de fato, norma e valor, numa dinâmica processual (processo de interação dinâmico). Importante salientar que Miguel Reale não foi o primeiro defensor do tridimensionalismo. Ocorre que os outros pensadores detinham uma visão estanque, ao nível do dever-ser, não compreendendo a manifestação no nível fenomenal. Assim, a teoria de Miguel Reale é uma teoria de tridimensionalidade específica, que se diferencia da genérica VALORES: os valores não são compreendidos como preceitos eternos e universais mas, sim, historicamente determinados, desenvolvendo-se em sociedade. FATOS: os fatos não são tomados como dados brutos, sendo compreendidos como históricos e culturais, dependendo da sociedade no qual estão inseridos. É a realidade copreendida. O ato de valorar é componente intrínseco do ato de conhecer. O mesmo fato “morte”, por exemplo, pode ser estudado por um médico, um biólogo ou um jurista. Cada campo exige seu processo próprio de indagação e de síntese, de modo que a própria apreensão de mundo não é apenar um conhecer, mas também valorar os fatos. Há, aqui, uma nítida influência da crítica da razão pura de Kant. Deste modo vinculação entre fato e valor é intrínseca ao direito, e da relação entre os dos elementos surgem as NORMAS, em um processo que Miguel Reale chama de nomogênese jurídica. A nomogênese é o processo de formação da norma. Na medida em que o complexo axiológico incide sobre o complexo fático, surgem várias possíveis proposições normativas. A norma jurídica, portanto é a OPÇÃO por uma das possíveis orientações jurídicas advindas da interação fato-valor. O direito não advém de uma relação direta entre fatos e normas, ao nível mecânico, há uma tensão entre a razão e a realidade, processual e dinâmica, expressão do complexo de fins, conflitos de interesses, valores e posições. Assim, o Direito apresenta-se como um fenômeno necessariamente cultural, produto da técnica normativa que se traduz em soluções que resolvem, ainda que temporariamente, a tensão entre os valores e os fatos. A crítica que MASCARO faz à teoria tridimensional do direito é de que ela não trata com profundidade da estrutura do fenômeno jurídico, não havendo uma denúncia do caráter específico do processo de concreção da norma. A norma é formada por um processo de interação entre fato e valor. Quais fatos? Quais valores? Que tipos de relações sociais ensejam o direito? Como as interações de poder modal o fenômeno jurídico? Estas perguntas ficam sem resposta pela teoria tridimensional de Miguel Reale. 3. ONTOGNOSEOLOGIA Ontognoseologia é uma peculiar teoria do conhecimento desenvolvida por Miguel Reale que busca unir o “ser” e o “conhecer” em um mesmo movimento dialético, porém em uma dialética de complementaridade, e não de antítese ou contradição. Esta dialética de implicação e polaridade busca, no âmbito do fenômeno jurídico, não isolar o saber sobre o direito do próprio direito, integrando uma pesquisa sobre as condições de conhecimento do sujeito e das condições de conhecimento do objeto. Reale visa uma teoria integradora dos três campos que formam o direito: fato, valor e norma, evitando apreciar o direito como um “dado natural”. A crítica que se faz é a de que a fórmula de reale não afasta a cisão filosófica entre sujeito e objeto, não se tratando efetivamente de uma superação dea divisão, mas de uma diluição na medida de seu encontro. Temas principais da ontognoseologia, segundo REALE: AXIOLOGIA/DEONTOLOGIA JURÍDICA Análise do VALOR Epistemologia Jurídica momento NORMATIVO. Fatores que condicionam a origem do Direito Culturologia jurídica conhecimento do direito enquanto FATO e sua eficácia social H.L.A. HART: O CONCEITO DE DIREITO EM Herbert Lionel Adolphus Hart (1907-1992) 1. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA “O Conceito de Direito” surge logo que H.L.A. Hart assume a cadeira como professor de direito na Universidade de Oxford. Ela surge de sua inspiração em Ludwig Wittgenstein e suas críticas aos Realistas Jurídicos norteamericanos e escandinavos. Ele acreditava que o caminho para a superação do positivismo clássico era a adoção de um POSITIVISMO MODERADO.. 1.1. GUINADA LINGUÍSTICA de WITTGENSTEIN Ludwig Wittgenstein (1889-1951) A guinada linguística leva a pensar os problemas da filosofia sobre como nós pensamos sobre elas e o que a nossa linguagem revela. A partir da guinada linguística não se pergunta mais “o que é a verdade?” mas, sim, “quando nós falamos sobre ‘verdade’, quais são as condições que consideramos suficientes para considerar a proposição verdadeira?” Há uma discussão no nível argumentativo. Quais as condições nas quais reconhecemos, na linguagem, a realidade de objetos externos? A linguagem é o universo mediador pela qual tratamos do objeto. Há categorias epistemológicas de conhecimento que organizam o mundo de determinado modo. Os óculos com que vemos o mundo são as categorias compartilhadas. Só conseguimos pensar individualmente através da assimilação das categorias linguísticas, que são compartilhadas. Não existe linguagem privada. A filosofia serve para esclarecer a linguagem e resolver alguns dos problemas que surgem a partir de nosso “enfeitiçamento da linguagem”. Para Wittgenstein, grande parte das grandes perguntas da humanidade existe porque não fazem sentido. A questão em si surge de um mal entendido linguístico e não é “respondível”. A função da filosofia não é propor formas novas de compreensão, mas revelar as formas já existentes de compreensão. Há duas principais correntes: Círculo de Viena Filosofia da Linguagem Comum (Wittgenstein + Hart) A linguagem perfeitamente exata resolveria nossos problemas - lógica simbólicacom clareza do uso dos termos. Há eliminação da ambiguidade. A linguagem mais rica é justamente a linguagem comum, porque é o meio pelo qual nos comunicamos sobre todas as questões do mundo. A ambiguidade é uma riqueza; cabe ao filosofo apenas esclarecer a linguagem. Em cada prática humana há uma própria lógica de interna de funcionamento da linguagem. Ex: falar com crianças, contar uma piada, discutir Direito. Cada uma das atividades possui sua própria lógica. Há uma necessidade da filosofia de trazer à tona as concepções implícitas em cada jogo específico. Para Hart, a discussão sobre o Direito estava deslocada porque os pensadores não estavam entendendo o papel da Filosofia do Direito. Devemos fazer uma reconstrução do implícito. Um esclarecimento sobre as formas pelas quais já nos entendemos a respeito do Direito. A filosofia do Direito deve partir de nossa linguagem comum sobre o Direito. 1.2. O REALISMO JURÍDICO A escola realista se caracteriza por ser uma escola jurídica formal-sociológica que busca dizer o que é o Direito a partir da realidade prática. REALISMO NORTEAMERICANO - Os Juízes decidem sobre convicções extrajurídicas (individuais, políticas, religiosas, morais). Há uma ideia antiformalista que diz que as regras sozinhas não determinam o conteúdo das decisões. As regras são os fundamentos a que os juízes recorrem após já terem tomado uma decisão. Deve-se analisar não a forma como a regra é posta e, sim, a forma pela qual os juízes decidem. O Direito é o que os juízes decidem. As regras não têm o papel principal, são apenas um instrumento. O Direito é infinitamente indeterminado e justifica qualquer decisão, de modo que as decisões são tomadas em preferências subjetivas (móveis da decisão), enquanto as regras fornecem sua aparência de legalidade. O Direito é preditivo. Assim, os realistas realizam um estudo sociológico, buscando estudar casos já julgados para estabelecer padrões e definir como se pode influir nos julgamentos. Embora o realismo surja como uma proposta descritiva, a maioria dos realistas passa a acreditar que os juristas devem ser vistos como engenheiros sociais e se utilizam das regras jurídicas e da indeterminabilidade do direito para levar as sociedades às melhorias necessárias. Há um aspecto político do exercício da jurisdição. Até mesmo a decisão mais conformista, é política, de modo que todas as decisões são “ativistas”. A crítica do realismo jurídico é, além do deficit democrático, a questão de ignorar completamente a norma. É a norma, por exemplo, que atribui a competência ao juiz. REALISMO ESCANDINAVO - Está em um nível psicológico, estudando o porquê das pessoas cumprirem as normas. No realismo escandinavo, há uma idealização de que o Direito é um “dever-ser” e está em um campo normativo. Não é isso que o DIreito faz. O Direito apenas cria uma predição, mas não da decisão do juiz, mas do comportamento, através das sanções. O Direito não cria obrigações, pois funciona em um campo empírico. Há apenas regulação de incentivos, a ideia de que o Direito é normativo é apenas uma ilusão metafísica. O Direito é empírico, correspondente às práticas reais vigentes na sociedade. O Direito deve ser visto da forma que ele é: simplesmente uma forma de controle da violência por aqueles que detém o poder. Para Hart, essas visões atacam o Estado de Direito e a segurança jurídica, e não podem ser abraçadas. Os norteamericanos dizem que as regras não determinam o Direito. Os Escandinavos dizem que o Direito não é normativo, e sim empírico. 1.3. O IMPERATIVISMO DE JOHN AUSTIN E EMBATE COM HART Segundo John Austin (1790-1859), em seu positivismo clássico e imperativista, o Direito seria comando sob ameaça emanada do Soberano Para Hart, essa visão de Austin era perigosa, e tornava o positivismo muito sujeito a críticas, em especial, dos Realistas Jurídicos, que tinham uma visão muito temerária do Direito. Isto porque, quando se analisa a realidade, é muito fácil perceber que o Direito não é uma pura aplicação de regras sem espaço para a criatividade e refutar isso dizendo que o Direito é o que o juiz quer que seja. Também é muito fácil perceber que o Direito não é só um comando com base em ameaças quando se percebe que nem toda regra possui ameaça e defender que o Direito não é obrigacional Hart deseja desconstruir a Teoria de John Austin para reafirmar o positivismo jurídico. Desta forma, Hart desconstrói a teoria de Austin sob duas premissas: A) AUSTIN: Todas as normas jurídicas são comandos (Hart usa “ordem”, pois comando pressupõe hierarquia) sob base de ameaças Os componentes de todas as normas jurídicas são a ordem e a ameaça. Segundo Austin, a única diferença entre o Estado e um assaltante armado é quantitativa, pois como “legitimidade” é um conceito normativo, Austin o exclui de sua teoria. A única diferença é que o Estado é muito maior e sua ameaça também. Hart chama essa teoria de “imperativismo”, pois a norma está vinculada ao querer do soberano. HART: Bom, ainda que a gente “corrija” e melhore essa a teoria, dizendo que as pessoas tem uma tendência natural de obediência, que as ordens do soberano são ordens generalizadas, impessoais e que a ameaça do Estado é constante, diferente da ameaça do assaltante, que é específica, pessoal e presente, a teoria não se sustenta. 1ª Refutação: nem todas as regras são ordens sob ameaças. Existem regras que permitem ou autorizam, por exemplo, normas que autorizam a contratar. Não há sanção alguma. Alguns positivistas consideram que esta norma sem sanção é, na verdade, preparatória para as outras, como se precisássemos unir várias dessas regras em uma só, que terá sanção (ex: sanção para descumprimento contratual). Contudo, dizer que estas regras não são regras completas não batem com o consenso sobre o que é uma regra. É contraintuitivo e não bate com nossas práticas sociais do que é o Direito. Há um erro do ponto de vista linguístico e analítico, pois há distorção do conceito de regra. Além disso, a nulidade não pode ser considerada uma sanção. Isto porque a nulidade apenas impede o indivíduo de conseguir uma vantagem, e não o faz perder bens ou interesses que já possuía por ser uma conduta socialmente indesejável, que é o conceito adequado de sanção. 2ª Refutação: Uma ordem só faz sentido quando é dada de uma pessoa a outra. Ninguém pode ordenar a si mesmo. Porém, o Direito é aplicável ao próprio criador. Ainda que se tente diferenciar a “pessoa pública” da “pessoa privada”, isso ainda não resolve. O legislador pode criar regras sobre o processo legislativo, por exemplo. Além disso, não se poderá diferenciar a “pessoa pública” da “pessoa privada” senão reconhecendo que existem regras e critérios impessoais que não são ordens. Há uma autocontradição implícita 3ª Refutação: Costumes não são compatíveis com ordens. A obrigatoriedade do costume vem de sua repetição, e não de uma pessoa determinada dotada de autoridade. O conceito de Austin de “ordem indireta” de que o soberano dá a obrigatoriedade ao costume não faz sentido. Isto porque ele não pressupõe consciência ou deliberalidade. Dizer que há autorização implícita e não pressupõe conhecimento prévio, deliberação real e vontade, o conceito de ordem é perdido. Há apenas uma ficção criada para tentar explicar algo inexplicável para esta teoria. B) AUSTIN: Todas as normas têm um autor Soberano habitualmente obedecido e um destinatário Súdito Austin não define o soberano como aquele que “deve” ser obedecido, pois deseja uma teoria empirista, compatível com o utilitarismo. Assim, ele exclui os elementos não empíricos, pois não científicos. Austin acredita que o estudo científico deve se descarregar de sua carga normativa. Austin substitui o conceito de dever e de hábito e afirma que soberano é aquele habitualmente obedecido por todo mundo e que habitualmente não obedece ninguém. Súdito é aquele que habitualmente obedece pelo menos um. O Soberano pode dar ordens diretamente ou decidir que costumes jurídicos devem ser obedecidos, o que seria uma ordemindireta. Até quando o juiz decide de forma não prevista em lei, é porque de antemão o soberano lhe deu um “selo” de aprovação. 1ª Refutação: o conceito de “habitualidade” não identifica transições de poder. Se alguém ainda não foi habitualmente obedecido, não há nenhum parâmetro intrínseco estabelecido. São necessárias regras de sucessão, não se pode afirmar que há um “hábito” de sucessão. O hábito é facultativo e a regra é obrigatória. Hábitos e regras são diferentes em relação ao sentido interno de obrigatoriedade 2ª Refutação: O conceito não explica a permanência das leis. Se ordens são expressões de vontade, elas dependem de quem emana, e não há necessidade de obedecer quando a vontade da pessoa desaparece, pois o hábito de obediência também desaparece. Se as regras anteriores ainda são válidas, é porque existe uma regra que estabelece a sua validade. O conceito de “ordem implícita”, por sua vez, também cai por terra (vide a 3ª refutação do conceito de norma jurídica como ordem). 3ª Refutação: Ninguém é soberano em uma sociedade democrática, pois o poder é dividido e limitado. Não existe ninguém na condição de que não obedeça ninguém. A questão entre “pessoa pública” e “privada” já foi refutada, e dizer que o “povo é soberano”, também leva a mesma distinção. Por todas as vias, é necessário falar de regras para explicar o Direito. 2. A TEORIA POSITIVISTA DE HART Após refutar Austin, Hart começa a desenvolver sua própria teoria Três Pilares: REGRAS SÃO O QUE ESTÁ POSITIVADO HÁ REGRAS DE RECONHECIMENTO SE HÁ MAIS DE UMA POSSIBILIDADE DE INTERPRETAR A REGRA, HÁ DISCRICIONARIEDADE DO MAGISTRADO 2.1. A OBRIGATORIEDADE COMO CONCEITO NORMATIVO As obrigações e regras não podem ser afastadas do conceito de Direito. A redução empírica fracassa, consoante explicado. O realismo jurídico também não explica como a prática jurídica funciona, pois não há arbitrariedade plena para o juiz aplicar o Direito. Austin fracassa ao tentar explicar o conceito de obrigação de uma maneira exclusivamente empírica. Ocorre que há diferença entre ser obrigado a algo (empírico) e ter a obrigação de fazer algo (normativo). Não faz sentido dizer que alguém foi obrigado e não fez, mas faz sentido dizer que alguém tinha a obrigação e não fez. Isso explica a diferença de nível lógico “entre ser obrigado a” e “ter a obrigação de”.Além disso, há obrigação mesmo se a ameaça não for grave e provável. Ameaçar alguém de dar um beliscão não é uma ameaça grave. Ameaçar alguém de matá-la com telepatia não é provável. Austin falha em explicar a obrigação em relação a uma ameaça que não seja grave e provável. Austin não explica a ausência de sanção, a sanção que não seja grave ou a sanção que não seja provável. Em termos mais concretos, se a sanção não for motivadora o suficiente para impedir o meu comportamento, ou se não houver fiscalização, não haverá obrigatoriedade para Austin em seu conceito puramente empírico. Austin não consegue explicar a desobediência. Além disso, as regras vistas apenas como ameaças potenciais (ponto de vista externo) não explicam a disposição de obediência quando a ameaça não se faz presente. Então há, em verdade, um ponto de vista interno em relação à norma, no qual o indivíduo está disposto a cumprir a norma porque enxerga a sua obrigatoriedade, ainda que não concorde com a regra. Esse é o golpe final no positivismo de Austin: a obrigação não se explica em termos empíricos, apenas normativos. Quando alguém viola uma norma, não sofre uma sanção, mas fica sujeito a sofrê-la, o que está no campo do “dever-ser”. Logo, o que caracteriza a obrigatoriedade da regra não é a sanção, mas a validade. 2.2. CONCEITO DE REGRAS A REGRA em HART, assim, é uma prática social (sentido externo) que possui um sentido interno de obrigatoriedade Estas regras dividem-se em duas: · REGRAS PRIMÁRIAS: regras de conduta, que estabelecem padrões de conduta sob ameaça de sanção · REGRAS SECUNDÁRIAS: não acompanhadas de sanções, que se referem a outras regras.Regras sobre regras; metarregras. São as regras de RECONHECIMENTO, ALTERAÇÃO e JULGAMENTO. Sem regras secundárias, três problemas principais despontam: Problema da INCERTEZA: em uma sociedade que só houvesse regras primárias, não há como saber quais são as regras vigentes ou o que se deve obedecer enquanto Direito. As regras vigentes também não possuiriam uma unidade, um ponto em comum. O Direito não seria um sistema. Para resolver esse problema, surgem as REGRAS DE RECONHECIMENTO. Problema ESTÁTICO: sem regras de modificação, o Direito seria estático, pois não haveria um procedimento para criar regras novas e abandonar as antigas, pois não poderia ser alterado e também não haveria normas autorizadoras para que as pessoas pudessem, por exemplo, contratar. Para resolver esse problema, surgem as REGRAS DE ALTERAÇÃO. Problema da INEFICIÊNCIA: Se dois sujeitos discordarem sobre a regra, não haverá terceiro para resolver o problema, pois não há ninguém com poder judicante. Ainda que os sujeitos elejam alguém para decidir, não haverá obrigatoriedade de acatar a solução, pois não haverá ninguém para coagí-lo a cumprir.. Para resolver esse problema, surgem as REGRAS DE JULGAMENTO. A Regra de Reconhecimento estabelece o critério de validade das outras. É um teste sobre quais os componentes, os requisitos para ser uma regra. Cada sociedade pode estabelecer os requisitos mais diversos: fonte, conteúdo, tempo, entre outros. Isso agrega também uma sistematicidade, porque a regra de reconhecimento é um elemento em comum entre todas as regras primárias. As Regras de Alteração determinam quem pode modificar o Direito e qual o procedimento. Também atribuem poderes jurídicos no âmbito privado aos indivíduos. As Regras de Julgamento estabelecem quem pode julgar e coagir. Assim as decisões serão respeitadas. A passagem de uma sociedade de regras primárias para uma sociedade de regras secundárias é a passagem de uma sociedade pré-jurídica para uma sociedade jurídica. As regras secundárias dão autonomia para o Direito, pois o Direito para de depender de elementos externos. As regras secundárias, assim, são o que definem o Direito. A moral tem regras, jogos têm regras, etc. Mas essas práticas sociais não possuem regras secundárias. O que “juridifica” uma prática social, são as regras secundárias. Só o Direito possui autonomia, e essa autonomia deriva das regras secundárias. Se o que define o Direito são as regras secundárias, e as regras secundárias são o que dão autonomia ao Direito, uma boa Teoria do Direito deve partir da autonomia. Só uma teoria positivista, assim, explica o Direito. As descobertas descritivas de Hart levam a uma preferência metateórica às teorias positivistas 2.3. AS REGRAS DE RECONHECIMENTO E A CRÍTICA DE DWORKIN A regra de reconhecimento, além da parte jurídico-interna, possui uma parte sociológico-externa. Isto porque a regra de reconhecimento é não escrita, implícita nas práticas sociais dos officials (o que pode ser, mutatis mutandi, traduzido como “juristas”). Quais os critérios que os juristas uniformemente usam para identificar as regras válidas? Logo, para mudar a regra de reconhecimento, basta mudar o comportamento dos juristas, sem que necessariamente se mude a lei ou a Constituição. A regra de reconhecimento também é variável no tempo-espaço, sendo um fato social, que tem como conteúdo uma lista de critérios que podem ser diversos, o que a torna diferente da Norma Hipotética Fundamental do Kelsen, que é lógico-transcendental e reflete um comando avalorativo. Dworkin critica a regra de reconhecimento afirmando que, para funcionar, ela precisaria contar com um consenso absoluto e ser completamente convencional. Se a regra de reconhecimento for aplicada por “boas razões”, ela não é convencional, mas argumentativa. Ademais, se o modo como aplicamos a regra gera discordância, e não houver consenso absoluto do mesmo modo a regra de reconhecimento precisa ser argumentativamente negociada. Se a regra de reconhecimento está sujeitaa argumentos, ela não é puramente jurídica e pode ser vazada por argumentos morais. A discussão entre Hart e Dworkin está aberta. 2.4. A INTERPRETAÇÃO DAS REGRAS EM HART Segundo Hart, as regras referem-se a condutas e sujeitos a partir de termos gerais. Contudo, os termos gerais sempre carregam um grau de indeterminabilidade. Haverá casos fáceis, em que a regra é clara, e casos difíceis, fronteiriços, que despertam controvérsias, nos quais terá que ser tomada uma escolhas que nem todos irão concordar. O quanto de cabelo alguém precisa para ser considerado careca? O conjunto dos “casos fáceis” e determináveis é a zona de foco, e o conjunto dos “casos difíceis” e indetermináveis é a zona de penumbra. Esses casos de fronteira surgem na aplicação de qualquer termo geral. Assim, todas as normas possuem uma indeterminação potencial. Esse potencial das regras para serem indetermináveis em casos de fronteira, o que se chama de TEXTURA ABERTA DAS REGRAS. A textura aberta é a possibilidade de indeterminação que todo enunciado dotado de termos gerais possui. O enunciado é determinado se possui um sentido e indeterminado se possui mais de um sentido, havendo pluralidade de sentidos que implicam em uma escolha. O que cria essa indeterminação é a divergência de razões na aplicação da regra, que cria a uma multiplicidade de alternativa. Segundo Hart, qualquer critério que o juiz utilizar para decidir, assim, será um critério extrajurídico, porque não está na própria regra. Esses critérios extrajurídicos, contudo, não são obrigatórios, como já vistos. Consequentemente, há uma discricionariedade do juiz na autorização para escolher a partir de critérios extrajurídicos que sejam válidos à luz do Direito. 2.5. DIREITO E MORAL “Em qualquer comunidade há uma sobreposição parcial de conteúdo entre a obrigação jurídica e a moral; embora as exigências das regras jurídicas sejam mais específicas e estejam rodeadas por exceções mais detalhadas do que as correspondentes regras morais (H.L.A. Hart CD, p. 185)”. Embora haja separação entre Direito e Moral, a regra de reconhecimento pode conter critérios morais, como já dito. Assim, Hart pode ser classificado como um POSITIVISTA INCLUSIVO. Mas como definir qual é o critério para separação entre Direito e Moral? A diferença entre Direito e Moral não é de conteúdo ou de propósito, porque há coincidências; Também não há diferença no critério de aplicação, porque frequentemente os juízes aplicam critérios morais. Assim, a diferença entre Direito e Moral está no campo da validade. Uma coisa é a norma válida (jurídico) e outra coisa é a norma correta (moral). Não há uma necessária identidade. É possível à norma ser válida sem ser correta, e ser correta sem ser válida, o que implica na separação entre Direito e Moral. R. DWORKIN: O LIBERALISMO IGUALITÁRIO Ronald Myles Dworkin (1931-2013) 1. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA Ronald Dworkin possuía notas altas que o colocavam em uma posição de poder selecionar qualquer universidade de alto nível norteamericana, de modo que ele escolhe a tradicional Escola de Harvard. Dworkin foi aluno de Rawls, que muito lhe influenciou. Contudo, Dworkin decepciona-se com Harvard e o foco da discussão jurídica da época. Dworkin inicia sua docência em Yale, e já havia escrito Modelos de Regras I e II, contrárias à Hart. Contudo, Hart lhe convida a lecionar em Oxford. É uma cadeira com um viés crítico, que antes de Hart era ocupada por Austin, e Hart quer preservar esta tradição colocando o seu crítico para lecionar lá. Dworkin foge das regras tradicionais do liberalismo e da Teoria do Direito, de modo que há dificuldades de classificar este autor. Justiça para Ouriços é a obra do final de sua vida e, diferentemente do que pensam, a sua verdadeira obra prima. 2. LIBERALISMO E IGUALDADE Dworkin enxerga a igualdade sob duas óticas: igual respeito e igual consideração. Para ele, este é o cerne da própria dignidade da pessoa humana, e fundamentará toda a sua teoria. Em Justiça para Ouriços, Dworkin busca desenvolver sua teoria da unidade do valor, no qual busca demonstrar que há vários pontos de interligação entre os ramos do comportamento humano (ética, moral, política, direito). Tudo é um problema de como nós vamos interpretar da melhor forma esses domínios do saber e da ação humana. Para Dworkin, há diferença entre Ética e Moral. A ética é o campo da ação humana voltado para a realização de nossos projetos de felicidade. Há um conteúdo normativo. O que preciso fazer para ser feliz/bem sucedido na proposta de vida que me disponho viver? Cada um de nós possui direito ao seu projeto de felicidade, se ele se harmonizar com os demais. A moral, para Dworkin, define a forma com a qual nós agimos com relação a outras pessoas. ela é intersubjetiva. Só serei moral se respeitar a dignidade da pessoa humana, e só se faz isso a partir do igual respeito e igual consideração pelos projetos de felicidade do próximo. Assim, segundo a visão de Dworkin, dignidade humana é um princípio moral, e é fundamento de legitimidade das deliberações políticas. Democracia implica em respeito à dignidade humana. Toda decisão institucional deve agir com igual respeito e igual consideração pelo próximo, sem agir de forma paternalista. Cada Estado só decide de maneira democrática quando ele respeita a dignidade da pessoa humana. Há um conceito de DEMOCRACIA QUALITATIVA. Isto porque nós fazemos parte de uma COMUNIDADE DE PRINCÍPIOS. A comunidade de princípios compartilha não por elementos simbólicos, tradicionais, conjunturais, culturais ou qualquer outro; o respeito à política, à dignidade, ao Direito não depende de uma relação de amizade, philia, ou simpatia, mas sim de uma convicção moral. Há uma leitura contrária ao comunitarismo. 3. DIREITO COMO INTEGRIDADE E JUIZ HÉRCULES Dworkin é um crítico do positivismo e do realismo jurídico. Contudo, ele não se enquadra exatamente como jusnaturalista. Isto porque Dworkin possui uma influência de Wittgenstein. Os princípios são “jogos de linguagem”, uma prática social interpretada por uma sociedade que compartilha os elementos normativos. Isso escapa de uma visão propriamente metafísica. O positivismo não é uma teoria democrática. Todo positivista precisa de “testes de pedigree" para definir qual é a norma jurídica válida. Contudo, nós não somos capazes de criar regras para tudo. Haverá espaço para anomias ou, como Hart chama, zonas de penumbra, pois há espaços entre regras e a própria linguagem, na qual terei que estabelecer o sentido da norma. Hart, por sua vez, não passou por uma fase de maturidade hermenêutica. Há, assim, uma insuficiência em virtude das indefinições na aplicação das normas, que Hart explica como um espaço para discricionariedade. Dworkin não aceita a discricionariedade. A discricionariedade revela a insuficiência do positivismo e seu caráter antidemocrático. Como alguém dentro de uma instituição não irá dialogar com os partícipes da tomada de decisão? Não há ilhas incomunicáveis. Ninguém tem liberdade para decidir como quiser quando há um dever institucional para tomada de decisão. O juiz não pode escolher decisões como se escolhe banana na feira. Há uma decisão correta a se adotar. O Direito não possui lacunas. Dworkin introduz uma racionalidade na tomada de decisão judicial, capaz de, inclusive, impor ao juiz uma solução contrária àquela que seria adotada caso sua preferência prevalecesse. Dworkin defende a tese do direito como integridade como um modelo ideal de direito, na medida em que supera os problemas encontrados no convencionalismo e no pragmatismo. “O direito como integridade nega que as manifestações do direito sejam relatos factuais do convencionalismo, voltados para o passado, ou programas instrumentais do pragmatismo jurídico, voltados para o futuro”. Dworkin (2007, p. 271) Segundo o modelo convencionalista os direitos e deveres dos cidadãos são apenas aqueles que foram declarados explicitamente em alguma decisão política do passado, denominada como convenção. As convençõestrazem segurança aos operadores do direito, permitindo que saibam qual o direito aplicável ao caso, pois já previsto em decisões políticas pretéritas (convenções anteriores). Identifica-se a concepção convencionalista com autores que defendem as diversas formas de positivismo jurídico, tais como Hans Kelsen e Herbert Hart. Segundo Dworkin, o pragmatismo, ao dispor que os juízes deveriam sempre fazer “o melhor possível para o futuro, nas circunstâncias dadas, desobrigados de qualquer necessidade de respeitar ou assegurar a coerência de princípio com aquilo que outras autoridades públicas fizeram ou farão. “nega que as decisões políticas do passado, por si sós, oferecem qualquer justificativa para o uso ou não do poder coercitivo do Estado” (DWORKIN, 2014, p. 185). O governo deve ter uma voz única, agindo de forma coerente, fundamentada e baseada em princípios com todos os cidadãos, buscando que os padrões de justiça e equidade utilizados para algumas pessoas sejam estendidos a todas as outras que estiverem em situação análoga (DWORKIN, 2014, p. 201). O autor subdivide a exigência de integridade em dois princípios: integridade na legislação e integridade no julgamento. O primeiro constitui a tarefa imposta ao legislativo de, com a produção de normas jurídicas, tornar o conjunto de leis do Estado coerentes quanto aos princípios. Quanto ao segundo, “impõe aos magistrados que vejam o corpo do direito como um todo, de maneira uniforme, não como uma série de decisões distintas e esparsas em relação as quais são livres para considerar ou emendar, considerando-as apenas com interesse estratégico para o caso concreto” (DWORKIN, 2014, p. 203). O direito como integridade é justamente a aplicação do princípio da integridade na prestação jurisdicional. A integridade assume a ambição de se tornar uma “comunidade de princípios”, os quais devem amparar as decisões judiciais. Os juízes, ao contrário dos legisladores, somente podem agir com base em princípios, não em políticas, de modo a “apresentar argumentos que digam por que as partes realmente teriam direitos e deveres legais ‘novos’ que eles aplicaram na época em que essas partes agiram” (DWORKIN, 2014, p. 292-3). Para encontrar a “resposta correta”, Dworkin recorre ao mito de Hércules. Hércules executa os seus trabalhos não para provar que é Deus, mas para pagar sua dívida com a humanidade. Da mesma forma, os juízes possuem uma dívida para com a comunidade na qual estão inseridos. Não se trata de um elogio, mas de uma lembrança crítica. O juiz Hércules não tem a função de criar o Direito. Dworkin é contra o ativismo. A intenção de Dworkin acerca do Juiz Hércules é a de um indivíduo voltado para as questões globais que envolvem o ser humano. Ou seja, deve o magistrado investido do poder hercúleo, analisar não só pelo regramento estabelecido, mas também sob (e através) do manto constitucional, a fim de formar sua convicção. Assim, se por exemplo duas ou mais teorias se ajustarem, mas apresentarem resultados contrastantes para o caso -, Hércules deve se voltar para o conjunto remanescente de regras, práticas e princípios constitucionais para criar uma teoria política para a Constituição como um todo (MORRISON, 2006, p. 508). Em seu papel, Hércules deverá não só desenvolver as possíveis teorias capazes de justificar os diferentes aspectos do sistema, mas também testá-las, contrastando-as com a estrutura institucional mais ampla, sendo que, “quando o poder de discriminação desse teste estiver exaurido, ele deverá elaborar os conceitos contestados que a teoria exitosa utiliza” (DWORKIN, 2007, p.168) Logo, através de uma postura hermenêutica, Hércules deve dialogar com a história e com os presentes. A “melhor decisão” não parte de critérios lógicos, mas argumentativos. O juiz Hércules deve enfrentar todos os argumentos, desenvolvendo teorias, testando-as e, assim, encontrar a melhor decisão possível ao caso concreto dentro do contexto-social no qual inserido. O direito como integridade constitui modelo que pretende superar falhas encontradas em outras concepções de direito. A integridade consiste numa constante aplicação coerente do direito, tendo como base princípios orientadores de uma comunidade, presentes nas decisões pretéritas, bem como as demais fontes jurídicas, os quais devem ser identificados e reinterpretados, sempre com vistas a uma contínua melhoria no sistema, para resolução de casos futuros. Percebe-se que a identificação, aplicação e interpretação de tais princípios constituem um dos temas centrais da teoria, pois são eles que devem reger as decisão judiciais futuras. Afasta-se a discricionariedade judicial encontrada no convencionalismo, pois são os princípios orientadores da comunidade que fundamentarão a decisão quando ausente uma convenção específica. Por outro lado, ao contrário do pragmatismo, tais princípios não podem ser afastados pelo aplicador do direito, pois não cabe a este escolher outros princípios para solução do caso, mesmo que os entenda melhores, mas sim observar aqueles que são os princípios orientadores de sua comunidade. 4. CRÍTICA DE DWORKIN À DISCRICIONARIEDADE Dworkin parte do pressuposto que a discricionariedade pode ser dividida em duas dimensões. A discricionariedade forte seria selecionar “quem quiser”. Contudo, isso não se mostra razoável juiridamente, pois há um elemento interpretativo moral, segundo o qual p juiz tentará decidir da melhor forma, segundo algum critério extrajurídico. A discricionariedade jurídica, assim, é uma discricionariedade fraca, pois possui balizas. O juiz desenvolve argumentos, dá e recebe razões para construir a resposta correta. Ele não simplesmente decide como quer. O juiz que, na prática, decide como quer, age imoralmente e com irresponsabilidade institucional, pois este não é o jeito certo de decidir. O juiz não pode tomar uma decisão qualquer. Ele deve buscar a melhor decisão. A melhor decisão é construída de maneira argumentativa, não lógica. É a melhor resposta que um compromisso moral assumido por todos nessa prática social chamada Direito conseguiu alcançar. Se o juiz possuir a mesma quantidade de justificativas para decidir em ambos os lados, é porque ele ainda não entendeu o caso a que está submetido. Não há colisão de direitos. Cada decisão envolve apenas um princípio 5. ROMANCE EM CADEIA A prática decisória deve levar em conta o contexto histórico-social no qual o julgador está inserido. O juiz não pode simplesmente criar um capítulo novo, dissociado do resto da história. O juiz evolui esta história com base no que já foi escrito até então. Todo juiz deve ter a sensibilidade para ouvir e compreender os fios condutores da história que está sendo contada. Há, aqui, uma ideia de respeito aos precedentes e aos paradigmas conceituais que já foram produzidos. Aqui, novamente, surge a ideia de integridade e segurança jurídica. O positivismo falha em compreender os efeitos da história, que é compartilhada por nós. Se nós estamos no mesmo paradigma, devemos semantizar as coisas da mesma forma. Importante salientar que Dworkin não nega a possibilidade de que os precedentes estejam errados. Ele leva em consideração a possibilidade de erros ocorrerem de o juiz necessitar reinserir aquele capítulo no eixo correto da história (Teoria dos Erros). Contudo, há um ônus argumentativo maior para comprovar a existência do erro. 6. CASO RIGGS X PALMER E A INTERPRETAÇÃO CONSTRUTIVA “Em linhas gerais, a interpretação construtiva é uma questão de impor um propósito a um objeto e prática, a fim de torna-lo o melhor exemplo possível da forma ou do gênero aos quais se imagina que pertençam” (DWORKIN, p. 64,1999) Neste caso, Dworkin tenta comprovar a sua teoria. Neste caso, o neto, sabendo que seu avó iria alterar o testamento para lhe remover, mata o seu avô. Contudo, ainda que ele vá preso, a legislação local não previa nenhuma regra exclusão do testamento, de modo que ele receberia a herança, embora tenha matado o seu avô. Há, aqui, ainda que não haja uma regra, uma série de parâmetrosnormativos, porque podemos perceber que deixar o neto receber a herança nos incomoda, no sentido de que percebemos que há uma anomalia no sistema, porque não deveria haver assim. Segundo Dworkin, onde o positivismo enxerga anomia, ele enxerga outros padrões normativos para amparar a decisão. Há um padrão normativo que revela os princípios. Entre a textura aberta hartiana, há princípios que integram o sistema jurídico. Os princípios são normas subjacentes ao nosso jogo de linguagem do Direito. Cada um de nós introjetamos esses princípios jurídicos, sequer precisamos ter cursado Direito para termos introjetado-os. Assim, Dworkin afirma que o raciocínio inicia dos princípios para as regras e não das regras para os princípios. Há um catálogo de direitos fundamentais que nós nos vemos titulares. Esses princípios existem em uma dimensão pragmática. Quando vamos jogando xadrez ou futebol, aos poucos introjetamos as suas regras, mesmo que jamais tenhamos consultado o manual. É da mesma forma que os princípios jurídicos são introjetados em nós. As partes vão levando ao judiciário pretensões de justiças e, através da própria prática jurídica, os princípios vão nos sendo revelados. A comunidade de princípios compartilha esses princípios entre si. No caso Riggs x Palmer, o Tribunal percebeu que não dava para simplesmente aplicar a regra e deixar o neto herdar. Assim, ele aplicou o padrão normativo dos princípios. Não há necessidade sequer de uma regra para nos afirmar o básico: ninguém pode lucrar com sua própria torpeza. Dworkin, assim, oferece uma teoria de interpretação construtiva que usa o direito como integridade para uma melhor justificativa e legitimação da atividade judiciária, onde o papel do julgador vai além do de simples aplicador de regras. 7. ARGUMENTOS DE PRINCÍPIOS X ARGUMENTOS DE POLÍTICA O que se espera de uma decisão? O juiz, para tomar a melhor decisão, deve construí-la argumentativamente. Só que não pode usar qualquer argumento. O juiz deve decidir com base em argumentos de princípios. As diretrizes políticas são o terceiro padrão normativo Dworkiniano, ao lado de regras e princípios. Essas diretrizes representam razões utilitaristas e razões de bem-estar de um grupo, que pode ser majoritário ou minoritário. Contudo, ela não pode ser confundido com princípios. Os princípios não podem se deixar subjulgar por princípios ou regras. Há uma ideia de supremacia dos princípios e dos direitos fundamentais, e os juízes estão proibidos de decidir com base em diretrizes políticas, que competem, na verdade, ao legislador. O juiz “toca dentro de uma orquestra”, de modo que ele deve seguir as regras internas, não podendo tocar de maneira destoante ou no ritmo incorreto. Os princípios, por sua vez, são contramajoritários e estão na base fundadora da comunidade de princípios. Há marcos fundamentais inegociáveis. Logo, tanto o positivismo quanto o realismo são insuficientes. Dentro do positivismo, se formos o levar a sério, veremos que cada vez mais as zonas de penumbra aumentam, e isso cada vez mais aumenta o poder decisório dos juízes de atuar de maneira arbitrária. Isso, no fim, gera uma identidade ontológica entre o positivismo e o realismo Logo, haverá uma naturalização de uma carta aberta para que o judiciário decida o que quiser com nossas vidas, e isso é algo que nós não compactuamos quando a Constituição foi promulgada. O positivismo não se sustenta, porque acaba em discricionariedade. Para Dworkin, essa discricionariedade não existe justamente porque não há lacunas. O Direito pode ser moralizado, mas não eticizado, porque ele não pode se basear nos meus próprios projetos de felicidade. Assim, as críticas que fazem a Dworkin sobre a “moralização” do Direito ignoram a diferenciação que o autor faz entre Moral e Ética. Há três pilares principiológicos que limitam o juiz: Justiça (“correção normativa”); Equidade/Equanimidade (fora do sentido Aristotélico); Devido Processo Legal Diferentemente de Hart, para Dworkin todo caso levado a sério levanta pretensões que o tornam um caso difícil. Todo caso é um hard case. JÜRGEN HABERMAS (1929 - ) Habermas é muito influenciado pela virada linguística da filosofia, passanod a defender que o fundamento da sociabilidade é a comunicação, de modo que a filosofia deve se preocupar com o entendimento entre os indivíduos. Nesse contexto, o direito é a ferramenta que, por intermédio da pacificação social, permite a formação de consensos. 1. AGIR COMUNICATIVO A partir da década de 70, Habermas afasta-se do marxismo e adota a teoria do agir comunicativo. Segundo o autor, a interação comunicacional entre os indivíduos, a partir de relações culturais estruturadas dos homens entre si, com o grupo social, a relação de produção e a natureza, é que permite a construção do espaço de sociabilidade. A verdade, assim, é construída enquanto processo comunicacional, não devendo a filosofia se preocupar com o idealismo ou com o empirismo. A razão não é eterna e imutável. A estabilidade dos consensos é a razão, que se mostra, portanto, como um produto social, histórico, cultural e variável. Habermas vê a racionalidade como a abertura do consenso. Arrogar verdades eternas e universais pode levar a um governo ditatorial abominável. O individualismo exagerado, por sua vez, é fruto da renúncia a consensos mínimos, que leva à fragmentação social e ao relativismo. O agir comunicativo é um meio termo entre a inflexibilidade absoluta e o esgarçamento, gerando instituições flexíveis, porém respeitáveis. O instrumento político de Habermas para a realização deste projeto é o direito que, com a capacidade de apaziguar conflitos, permite a obtenção de consensos por um meio democrático. 2. DIREITO E DEMOCRACIA A produção de normas (morais, jurídicas), decorre da universalização do consenso. Normas justificáveis são as que incorporam interesses generalizáveis. A proposta de Habermas, assim, é a mais profunda expressão de um juspositivismo ético; contudo, não é a norma, para habermas, que se revela ética: é o procedimento geral de interação da sociedade com o direito que permite a eticização da vida social contemporânea. O direito está em relação direta com o plano ético moral, havendo complementaridade entre os dois campos. Porém o direito não é subordinado à moral, não há possibilidade de uma fundamentação do direito pela moral. O direito deve ser compreendido a partir dos níveis de interação comunicativa entre os sujeitos sociais. A excelência do direito reside num agir comunicativo superior entre dois níveis que o permeiam, e que devem se articular dialeticamente: PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO e PRINCÍPIO MORAL PRINCÍPIO MORAL: opera no nível da constituição interna de um determinado jogo de argumentação PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO: refere-se ao nível da institucionalização externa e eficaz da participação simétrica numa formação discursiva da opinião e da vontade. Assim, o que traz legitimidade ao resultado das deliberações é o procedimento. Embora Habermas não se limite ao nível do indivíduo em interação com as normas positivas estatais, demonstrando o papel fundamental de grupos de pressão, instituições e outros atores na mediação entre estado e direito, inclusive em nível internacional, a crítica que se faz a Habermas é a de que os grandes conflitos sociais, geradores dos maiores dissensos, não se apresentam estruturalmente processualizados sob a forme de direito. Embora Habermas aposte em mais direito para a solução dos conflitos, alguns conflitos, como demonstra a história, são transformados apenas a partir do conflito. Dúvidas, erros ou sugestões: eremitaconcurs@gmail.com @EremitaConcurs pg de