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05 23 - (Realismo) - 2x2

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Profª. Cristiane 
 Literatura 
 
Página 1 de 18 
 
Realismo 
 
O Realismo é uma reação contra o Romantismo: o 
Romantismo era a apoteose do sentimento; o Realismo é a 
anatomia do caráter. É a crítica do homem. É a arte que nos 
pinta os olhos – para condenar o que houver de mal na nossa 
sociedade. 
 
Antônio J. Saraiva e Oscar Lopes, História da Literatura Portuguesa 
 
R
e
a
li
s
m
o
 
início fim 
B
ra
s
il
 
1881 
publicação de Memórias 
Póstumas de Brás 
Cubas, de Machado de 
Assis 
1893 
publicação de dois livros 
de Cruz e Sousa: Missal 
e Broquéis 
P
o
rt
u
g
a
l 
1865 
Questão coimbrã 
1890 
publicação de Oaristos, 
livro de poemas de 
Eugênio de Castro 
 
O fim do século XIX é um período marcado pela crítica 
aos ideais românticos e pela supremacia do cientificismo. As 
inovações científico-tecnológicas muito contribuíram para a 
formação de uma nova mentalidade; a invenção da máquina a 
vapor, por exemplo, encurta as distâncias, assim como se torna 
mais fácil a comunicação entre os homens por meio do telégrafo. 
O desenvolvimento da industrialização e o crescimento do 
progresso em toda a Europa somam-se ao enriquecimento da 
burguesia – e à consequente crítica, principalmente dos artistas, 
ao seu poder hegemônico – e ao aumento da desigualdade 
social pela péssima distribuição de renda. A expansão industrial 
causa êxodo rural e inchaço das grandes cidades. Enquanto 
Paris se destaca como centro de difusão cultural e da moda, 
Portugal permanece à margem da Europa moderna. 
 
Observe as pinturas de Jean-François Millet1 (1814-
1875) e Honoré Daumier2 (1808-1879) e repare no nível de 
objetividade que os pintores realistas almejam alcançar, 
abominada pelos românticos. Inspiradas pela vida cotidiana e 
pela paisagem natural, as obras plásticas deste período não raro 
criticam a sociedade e exibem um erotismo que chocou os 
setores mais conservadores da sociedade europeia. 
 
1 A vida campestre era um dos principais temas das pinturas do artista 
francês, que criou uma obra realista na qual o principal elemento é a 
ligação atávica do homem com a terra. Suas paisagens influenciariam, 
posteriormente, Pissarro e Van Gogh. 
2 Caricaturista, chargista, pintor e ilustrador, Honoré Daumier 
conserva em suas obras a temática dos costumes e o conteúdo social. 
Utilizando-se de um tratamento difuso da cor, o artista francês prefere 
 
 
Vagão de terceira classe, Honoré Daumier. Metropolitan, Nova York 
 
 Entre 1850 e 1853, Gustave Courbet (1819-1877), 
pintor francês que negava a pintura imaginativa romântica e 
buscava traduzir os costumes e as ideias de sua época, expõe 
duas de suas obras: Enterro em Ornans e As Banhistas. Em 
1855, realiza uma exposição de 41 telas, para a qual dá o nome 
de O Realismo; justifica-o ao afirmar que o nome lhe foi imposto, 
assim como impuseram aos homens de 1830 o título de 
românticos. Courbet chegou a afirmar que “o núcleo do 
Realismo é a negação do ideal”, e que “O Enterro em Ornans foi 
o enterro do Romantismo”.3 
tonalidades entre ocre e terra para valorizar, a partir da distorção das 
imagens, uma percepção da realidade que iria além das aparências. 
3 Citado por Massaud Moisés, A literatura portuguesa. 33 ed. 
São Paulo: Cultrix, p. 164. 
 
 Profª. Cristiane 
 Literatura 
 
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Enterro em Ornans, Courbet, 1849. Museu D’Orsay, Paris 
 
Os quebradores de pedras, Courbet, 1850. Tela destruída por 
bombardeio em 1945 
 
 Em 1857, o francês Gustave Flaubert publica Madame 
Bovary, romance de análise impiedosa da hipocrisia romântico-
burguesa. Tamanho foi o escândalo na França que seu autor foi 
levado a julgamento. Posteriormente, Eça de Queirós se 
inspiraria nele para escrever O primo Basílio. 
A arte dessa época é carregada de convicções científico-
metodológicas e busca a objetividade, o predomínio da razão e 
a crítica social e política. Flaubert chegou a afirmar: “esforço-me 
por entrar no espartilho e seguir uma linha reta geométrica: 
nenhum lirismo, nada de reflexões, ausente a personalidade do 
autor”. Para entender o porquê desse espírito combativo, que 
fez fervilhar em meados do século XIX uma crítica tão ácida à 
sociedade, vamos primeiro pensar sobre o contexto histórico e 
as teorias científico-filosóficas que serviram de embasamento 
para os artistas realistas. 
 
Teorias científico-filosóficas do século XIX 
 
O professor Massaud Moisés nos apresenta uma ótima 
descrição das principais ideias que marcaram o período: 
 
A revolução de 1848, seguida do estabelecimento da 2ª 
República em França e do sufrágio universal, corresponde 
à ampla transformação cultural. Nesse mesmo ano, Ernst 
Renan (1832-1892) escreve O Futuro da Ciência, grosso 
manuscrito contendo um ato de fé no valor da ciência, que 
o escritor só publica em 1890; em 1863, lança a Vida de 
Jesus, com a mesma pulsão humanitária e a mesma 
fidelidade científico-histórica. Auguste Comte (1798-1857) 
cria o Positivismo com o Curso de Filosofia Positiva, 
publicado em seis volumes entre 1830 e 1842; 
apresentando uma sistematização do conhecimento 
humano em forma de pirâmide cujo vértice seria ocupado 
pela Sociologia, Comte defende a importância fundamental 
da Ciência para a vida do homem em sociedade; para tanto, 
propunha pelo abandono da Teologia e da metafísica em 
favor duma atitude de espírito voltada para o conhecimento 
“positivo” da realidade, isto é, concreto, objetivo, passível 
de análise e experimentação, de forma que, com base no 
bom senso, se procure saber o “como” das coisas em vez 
do “porquê”. Refletindo a doutrina positiva, Proudhon (1809-
1865) constrói as bases do pensamento socialista, através 
de jornais e de obras como Filosofia do Progresso (1835), 
Princípios de Organização Política (1843), Sistemas das 
Contradições Econômicas (1846) e Teoria da Propriedade 
(1866). Ainda com fundamento nas ideias de Comte, 
Hipólito Taine (1828-1893) tornou-se o verdadeiro teórico 
do Realismo e do Naturalismo: especialmente em sua 
História da Literatura Inglesa (1846) e a Filosofia da Arte 
(1865-1869), expôs a sua teoria determinista da obra de 
arte, cuja existência obedeceria a leis inflexíveis: a da 
herança, do meio e do momento, e ao fator dominante, 
embora variável, que denomina faculte maîtresse. 
Contemporaneamente, Darwin (1809-1882) publica A 
Origem das Espécies (1859), uma verdadeira revolução no 
campo das ciências, sobretudo as biológicas; e Claude 
Bernard (1813-1878) publica uma Introdução ao Estudo da 
Medicina Experimental (1865), que tanta influência exerceu 
sobre o espírito de Zola. Resta ainda considerar as ideias 
filosóficas de Schopenhauer (1788-1860), de tão relevante 
presença no pensamento europeu do século XIX: sem 
negar a Ciência, o pensador alemão pessimistamente 
considera que o homem, submetido a determinismos 
morais, é por natureza fadado à dor e ao sofrimento, o 
mundo um imenso palco de falaciosas ilusões, e a pouca 
alegria conseguida resulta dum esforço doloroso que logo a 
destrói. 
 
Massaud Moisés. A Literatura Portuguesa. 33 ed. São Paulo: 
Cultrix, pp. 164-165. 
 
Todas essas ideias aqui esboçadas formaram as bases 
científicas e filosóficas tanto utilizadas pelos autores 
realistas e, principalmente, pelos naturalistas, os quais 
buscavam experimentá-las como teses para as suas obras 
de arte. 
 
Realismo versus realismo 
 
Assim como ocorre com o termo Romantismo, atitudes 
“realistas” não podem ser confundidas com o conjunto de 
padrões estéticos que ficou conhecido como Realismo. É 
possível utilizar o vocábulo na acepção de imagem crua da 
realidade; nesse sentido, François Rabelais, escritor sobre o 
qual já conversamos ao falarmos sobre Idade Média, teria 
características realistas. Aqui, porém, o termo designa uma 
escola artística e literáriado século XIX, baseada em um 
programa estético que pressupõe um vínculo estreito entre a 
arte, a ciência e a filosofia. 
 
 
Realismo em Portugal 
 
A questão coimbrã e as conferências do cassino 
lisbonense 
 
Em 1861, Antero de Quental, poeta português que você vai 
conhecer na leitura complementar destas aulas, funda a 
Sociedade do Raio, associação secreta que contava com cerca 
de duzentos estudantes das faculdades de Coimbra, os quais 
buscavam a anarquia e a insubordinação em relação ao 
convencionalismo acadêmico. Dentre os seus feitos 
revolucionários, destaca-se o rapto do reitor Basílio Alberto em 
1863, quando os jovens obrigaram-no a demitir-se do cargo. Em 
1864, Teófilo Braga publica Visão dos tempos e Tempestades 
sonoras, livros de poemas divulgadores das novas ideias; e 
Antero, em 1865, edita as suas Odes modernas. 
Nesse meio tempo, Pinheiro Chagas, discípulo do poeta 
romântico e acadêmico Antônio Feliciano de Castilho, escreve o 
Poema da mocidade, e é agraciado com um elogioso posfácio 
do mestre sob a forma de uma Carta ao editor António Maria 
Pereira. Castilho, ao redor de quem se formou um grupo em que 
 
 Profª. Cristiane 
 Literatura 
 
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o formalismo e o academicismo das produções literárias não 
abriam espaço para as novas ideias4, aproveita a ocasião para 
criticar o grupo de estudantes de Coimbra, especialmente 
Antero de Quental e Teófilo Braga, a quem acusava de 
exibicionistas, obscuros e de tratarem temas que fugiam daquilo 
que considerava poesia. Acusava-os também de falta de bom 
senso e bom gosto. Antero prontamente revida as alusões num 
opúsculo denominado Bom senso e bom gosto, no qual defende 
a independência dos jovens escritores, aponta a seriedade da 
missão transformadora que eles, os estudantes, 
desempenhavam perante a sociedade e a necessidade de 
serem eles os arautos dos problemas ideológicos da época, 
além de ridicularizar a futilidade e a insignificância da poesia e 
da pessoa de Castilho: 
 
[...] Levanto-me quando os cabelos brancos de V. Ex.a 
passam diante de mim. Mas o travesso cérebro que está debaixo 
e as garridas e pequeninas cousas que saem dele confesso não 
merecerem, nem admiração, nem respeito, nem ainda estima. A 
futilidade num velho desgosta-me tanto como a gravidade numa 
criança. V. Ex.a precisa menos cinquenta anos de idade, ou 
então mais cinquenta anos de reflexão.5 
 
Estava iniciada a polêmica, posteriormente conhecida como 
“Questão Coimbrã”. Ela prosseguiria com o folheto Teocracias 
literárias, de Teófilo Braga, no qual o autor realista afirmava que 
Castilho apenas era célebre porque cego. Dois partidos se 
formaram a partir de então: um a favor de Castilho e outro, de 
Antero. Algumas dezenas de opúsculos foram publicadas pelas 
duas facções. Assim, a crise da cultura chega a Portugal e 
introduz no país o Realismo. 
 
Depois de formados, os participantes pró-Antero da 
Questão Coimbrã apenas se reuniriam novamente em 1868, em 
Lisboa, no grupo Cenáculo – do qual Eça de Queirós fazia parte. 
Em 1871, os integrantes do grupo decidem organizar um ciclo 
de conferências públicas com o intuito de discutir abertamente 
problemas de ordem ideológica. Para tanto, alugam o Cassino 
Lisbonense, café-concerto onde se reunia a boêmia da época. 
 
O cassino lisbonense, onde se reuniam os membros do grupo Cenáculo. 
Fonte: 
http://www.esalvide.edu.pt/Recursos/Eca/e_as_confer%C3%AAncias_do_casino_
(cen%C3%A1culo).htm 
 
A primeira das conferências, proferida por Antero de 
Quental, tratava d’O Espírito das Conferências. A seguinte, 
ainda de Antero, discutia As causas da decadência dos povos 
peninsulares nos últimos três séculos. Nesta, o autor acusava o 
catolicismo do Concílio de Trento, o Absolutismo e as 
Conquistas, e chega a afirmar que “o Cristianismo foi a 
revolução do mundo antigo; a revolução não é mais do que o 
Cristianismo do mundo moderno”.6 A terceira conferência, 
 
4 Antero de Quental, em tom irônico, chamaria o grupo de 
“escola do elogio mútuo”. 
efetuada por Augusto Seromenho, falava acerca da decadência 
e da falta de originalidade da Literatura Portuguesa. Eça de 
Queirós é o responsável pela quarta conferência: A Literatura 
nova: o realismo como nova expressão da arte, em que critica o 
Romantismo e defende o Realismo de Courbet e Flaubert, 
apoiando-se nas ideias socialistas utópicas de Proudhon. A 
quinta conferência, de Adolfo Coelho, discorria acerca d’A 
questão do ensino e a sua decadência como resultante da 
aliança entre a Igreja e o Estado. A sexta conferência não 
chegou a ser realizada: suspendeu-se o encontro por ofender as 
leis do reino e o código da monarquia. 
A geração coimbrã (ou geração de 70) dispersou-se depois 
da suspensão das conferências, mas conseguiu implantar em 
Portugal o Realismo a partir dos seus ideais antimonárquicos, 
anticlericais e antiburgueses. 
 
Eça de Queirós (1845-1900) 
 
 “Sórdido como uma página de Eça de Queirós”: assim 
se referiu o diretor do periódico O Cruzeiro, certa vez, a um texto 
que julgava marcado pelo Realismo. Sem dúvida, os textos de 
Eça chocam pela verdade nua e crua, pela força das descrições 
e das imagens e por não mascararem a realidade como faziam 
os escritores românticos. Um dos maiores romancistas da 
história da literatura portuguesa, cultivou ele a literatura como 
arma de combate e transformação social. Assim como na obra 
de outros homens revolucionários de seu tempo, há em grande 
parte de seus romances uma crítica pesada ao clero, à 
monarquia e à burguesia. O intuito era analisar meticulosamente 
o organismo social. O casamento, por exemplo, núcleo da 
instituição burguesa, é dissecado como algo que se funda em 
hipócritas convenções sociais e/ou na acomodação trazida pelo 
dinheiro. Por isso, é tema comum entre os romances realistas o 
adultério: a moralização da sociedade deveria vir, num primeiro 
momento, da conscientização do erro. 
Para os realistas, a criação estética não deveria depender 
da inspiração, como ocorria com os românticos. O trabalho 
artístico poderia, nesse sentido, ser comparado a um engenhoso 
processo laboratorial, em que as análises vão sendo construídas 
lentamente. É notória a preocupação dos grandes escritores da 
época com o estilo: deveria haver um total controle sobre todos 
os elementos da narrativa. Leia este excerto de O primo Basílio 
e note o cuidado do autor com a descrição minuciosa. O 
narrador compõe o tipo caricato da solteirona de classe média, 
representada aqui por D. Felicidade: 
 
Aos domingos à noite havia em casa de Jorge uma pequena 
reunião, uma cavaqueira, na sala, em redor do velho candeeiro 
de porcelana cor-de-rosa. Vinham apenas os íntimos. O 
"Engenheiro", como se dizia na rua, vivia muito ao seu canto, 
sem visitas. Tomava-se chá, palrava-se. Era um pouco à 
estudante. Luísa fazia croché, Jorge cachimbava. 
[...] Às nove horas, ordinariamente, entrava D. Felicidade de 
Noronha. Vinha logo da porta com os braços estendidos, o seu 
bom sorriso dilatado. Tinha cinquenta anos, era muito nutrida, e, 
como sofria de dispepsia e de gases, àquela hora não se podia 
espartilhar e as suas formas transbordavam. Já se viam alguns 
fios brancos nos seus cabelos levemente anelados, mas a cara 
era lisa e redonda, cheia, de uma alvura baça e mole de freira; 
nos olhos papudos, com a pele já engelhada em redor, luzia uma 
pupila negra e úmida, muito móbil; e aos cantos da boca uns 
pelos de buço pareciam traços leves e circunflexos de uma pena 
muito fina. Fora a íntima amiga da mãe de Luísa, e tomara 
aquele hábito de vir ver a pequena aos domingos. Era fidalga, 
dos Noronhas de Redondela, bastante aparentada em Lisboa, 
um pouco devota, muito da Encarnação. 
Mal entrava, ao pôr um beijo muito cantado na face de 
Luísa, perguntava-lhe baixo, com inquietação: 
5 Citado por MassaudMoisés, op. cit., p. 159. 
6 Citado por Massaud Moisés, op. cit, p. 161. 
 
 Profª. Cristiane 
 Literatura 
 
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— Vem? 
— O Conselheiro? Vem. 
Luísa sabia-o. Porque o Conselheiro, o Conselheiro 
Acácio, nunca vinha aos "chás de D. Luísa", como ele dizia, sem 
ter ido na véspera ao Ministério das Obras Públicas procurar 
Jorge, declarar-lhe com gravidade, curvando um pouco a sua 
alta estatura: 
— Jorge, meu amigo, amanhã lá irei pedir à sua boa 
esposa a minha chávena de chá. 
Ordinariamente acrescentava: 
— E os seus valiosos trabalhos progridem? Ainda bem! 
Se vir o ministro, os meus respeitos a Sua Excelência. Os meus 
respeitos a esse formoso talento! 
E saía pisando com solenidade os corredores 
enxovalhados. 
Havia cinco anos que D. Felicidade o amava. Em casa 
de Jorge riam-se um pouco com aquela chama. Luísa dizia: 
"Ora! E uma caturrice dela!" Viam-na corada e nutrida, e não 
suspeitavam que aquele sentimento concentrado, irritado 
semanalmente, queimando em silêncio, a ia devastando como 
uma doença e desmoralizando como um vício. Todos os seus 
ardores até aí tinham sido inutilizados. Amara um oficial de 
lanceiros que morrera, e apenas conservava o seu 
daguerreótipo. Depois apaixonara-se muito ocultamente por um 
rapaz padeiro, da vizinhança, e vira-o casar. Dera-se então toda 
a um cão, o Bilro; uma criada despedida deu-lhe por vingança 
rolha cozida; o Bilro rebentou, e tinha-o agora empalhado na 
sala de jantar. A pessoa do Conselheiro viera de repente, um 
dia, pegar fogo àqueles desejos, sobrepostos como 
combustíveis antigos. Acácio tornara-se a sua mania: admirava 
a sua figura e a sua gravidade, arregalava grandes olhos para a 
sua eloquência, achava-o numa "linda posição". O Conselheiro 
era a sua ambição e o seu vício! Havia sobretudo nele uma 
beleza, cuja contemplação demorada a estonteava como um 
vinho forte: era a calva. Sempre tivera o gosto perverso de certas 
mulheres pela calva dos homens, e aquele apetite insatisfeito 
inflamara-se com a idade. Quando se punha a olhar para a calva 
do Conselheiro, larga, redonda, polida, brilhante às luzes, uma 
transpiração ansiosa umedecia-lhe as costas, os olhos 
dardejavam-lhe, tinha uma vontade absurda, ávida de lhe deitar 
as mãos, palpá-la, sentir-lhe as formas, amassá-la, penetrar-se 
nela! Mas disfarçava, punha-se a falar alto com um sorriso 
parvo, abanava-se convulsivamente, e o suor gotejava-lhe nas 
roscas anafadas do pescoço. Ia para casa rezar estações, 
impunha-se penitências de muitas coroas à Virgem; mas apenas 
as orações findavam, começava o temperamento a latejar. E a 
boa, a pobre D. Felicidade tinha agora pesadelos lascivos e as 
melancolias do histerismo velho. A indiferença do Conselheiro 
irritava-a mais: nenhum olhar, nenhum suspiro, nenhuma 
revelação amorosa e comovida! Era para com ela glacial e 
polido. Tinham-se às vezes encontrado a sós, à parte, no vão 
favorável de uma janela, no isolamento mal-alumiado de um 
canto do sofá – mas apenas ela fazia uma demonstração 
sentimental, ele erguia-se bruscamente, afastava-se, severo e 
pudico. Um dia ela julgara perceber que, por trás das suas 
lunetas escuras, o Conselheiro lhe deitava de revés um olhar 
apreciador para a abundância do seio; fora mais clara, mais 
urgente, falara em paixão, disse-lhe baixo: 
"Acácio! Mas ele com um gesto gelou-a – e de pé, 
grave: 
— Minha senhora, 
As neves que na fronte se acumulam 
Terminam por cair no coração... 
— É inútil, minha senhora! 
 
7 Personagem bíblica que teria preferido morrer a ingerir 
alimentos impuros. A crítica foi publicada no jornal O Cruzeiro, 
no qual, periodicamente, Machado publicava capítulos de Iaiá 
Garcia, obra ainda marcada pelo Romantismo. 
O martírio de D. Felicidade era muito oculto, muito 
disfarçado: ninguém o sabia; conheciam-lhe as infelicidades do 
sentimento, ignoravam-lhe as torturas do desejo. E um dia Luísa 
ficou atônita, sentindo D. Felicidade agarrar-lhe o pulso com a 
mão úmida, e dizer-lhe baixo, os olhos cravados no Conselheiro: 
— Que regalo de homem! 
Eça de Queirós, O Primo Basílio. São Paulo: Moderna, 1995, p. 32 a 35. 
 
 
 
 A produção literária de Eça de Queirós pode ser dividida 
em três fases: 
 
– Artigos e crônicas jornalísticas (1866-1875): fase de 
preparação de um escritor jovem e ainda romântico. 
Seus textos dessa época foram postumamente 
coligidos no volume Prosas bárbaras. Estilisticamente 
é a fase menos importante de Eça. 
– Realismo iconoclasta (1875-1888): fase mais sórdida 
e “imoral” de Eça, que se inicia com a publicação de O 
crime do padre Amaro e se estende, aproximadamente, 
até a publicação de Os Maias. Influenciado por Flaubert 
e Balzac, é o período mais combativo e revolucionário 
do autor, comprometido com o ideário da “geração de 
70”: o combate às instituições (monarquia, clero e 
burguesia). Aqui, já enxergamos o veio perfeccionista 
do estilo de Eça: fluência, precisão, naturalidade; além 
de aspectos que o marcariam tão fortemente como a 
ironia, a sátira e um certo lirismo melancólico. 
– Obra de sentido construtivo (1888-1900): fase mais 
madura do autor, em que ele supera a ironia 
zombeteira e o esteticismo cientificista da fase anterior 
e substitui o pessimismo e o derrotismo pelo otimismo 
e pela esperança. A linguagem objetiva anteriormente 
utilizada é, também, gradativamente substituída por um 
lirismo poético. A cidade e as serras (1901 – obra 
póstuma) se enquadra nessa fase. 
 
Eça é considerado por muitos melhor escritor do que 
romancista. O próprio Machado de Assis, na fase romântica de 
sua carreira, sob o pseudônimo Eleazar7, teceu uma crítica feroz 
a Eça, especialmente ao romance O primo Basílio. Desdenhou 
do caráter naturalista da obra8, criticou a erotização exagerada 
do enredo e do vocabulário e o comportamento vazio e gratuito 
de determinadas personagens: 
 
[...] a Luísa – força é dizê-lo – a Luísa é um caráter 
negativo, e no meio da ação ideada pelo autor, é antes um títere9 
do que uma pessoa moral. 
Repito, é um títere; não quero dizer que não tenha nervos 
e músculos; não tem mesmo outra coisa; não lhe peçam paixões 
nem remorsos; menos ainda consciência. [...] 
 
Um leitor perspicaz terá já visto a incongruência da 
concepção do Sr. Eça de Queirós, e a inanidade do caráter da 
8 Apesar de ser um escritor notoriamente realista, Eça possui 
obras e personagens claramente marcadas pelo Naturalismo, 
escola que estudaremos nas aulas 26 e 27 deste caderno. 
9 marionete 
 
 Profª. Cristiane 
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heroína. Suponhamos que tais cartas não eram descobertas, ou 
que Juliana não tinha a malícia de as procurar, ou enfim que não 
havia semelhante fâmula em casa, nem outra da mesma índole. 
Estava acabado o romance, porque o primo enfastiado seguiria 
para França, e Jorge regressaria do Alentejo; os dois esposos 
voltavam à vida exterior. Para obviar a esse inconveniente, o 
autor inventou a criada e o episódio das cartas, as ameaças, as 
humilhações, as angústias e logo a doença, e a morte da 
heroína. Como é que um espírito tão esclarecido, como o do 
autor, não viu que semelhante concepção era a coisa menos 
congruente e interessante do mundo? Que temos nós com essa 
luta intestina entre a ama e a criada, e em que nos pode 
interessar a doença de uma e a morte de ambas? Cá fora, uma 
senhora que sucumbisse às hostilidades de pessoa de seu 
serviço, em consequência de cartas extraviadas, despertaria 
certamente grande interesse, e imensa curiosidade; e, ou a 
condenássemos, ou lhe perdoássemos, era sempre um caso 
digno de lástima. No livro é outra coisa. Para que Luísa me atraia 
e me prenda, é preciso que as tribulações que a afligem venham 
dela mesma; seja uma rebelde ou uma arrependida;tenha 
remorsos ou imprecações; mas, por Deus! dê-me a sua pessoa 
moral. Gastar o aço da paciência a fazer tapar a boca de uma 
cobiça subalterna, a substituí-la nos misteres ínfimos, a 
defendê-la dos ralhos do marido, é cortar todo o vínculo moral 
entre ela e nós. Já nenhum há, quando Luísa adoece e morre. 
Por quê? Porque sabemos que a catástrofe é o resultado de uma 
circunstância fortuita, e nada mais; e consequentemente por 
esta razão capital: Luísa não tem remorsos tem medo. 
 
[...] E passemos agora ao mais grave, ao gravíssimo. 
 
Parece que o Sr. Eça de Queirós quis dar-nos na heroína 
um produto da educação frívola e da vida ociosa; não obstante, 
há aí traços que fazem supor, à primeira vista, uma vocação 
sensual. A razão disso é a fatalidade das obras do Sr. Eça de 
Queirós – ou, noutros termos, do seu realismo sem 
condescendência: é a sensação física. Os exemplos acumulam-
se de página a página; apontá-los, seria reuni-los e agravar o 
que há neles desvendado e cru. Os que de boa fé supõem 
defender o livro, dizendo que podia ser expurgado de algumas 
cenas, para só ficar o pensamento moral ou social que o 
engendrou, esquecem ou não reparam que isso é justamente a 
medula da composição. Há episódios mais crus do que outros. 
Que importa eliminá-los? Não poderíamos eliminar o tom do 
livro. Ora, o tom é o espetáculo dos ardores, exigências e 
perversões físicas. Quando o fato lhe não parece bastante 
caracterizado com o termo próprio, o autor acrescenta-lhe outro 
impróprio. De uma carvoeira, à porta da loja, diz ele que 
apresentava a "gravidez bestial". Bestial por quê? Naturalmente, 
porque o adjetivo avoluma o substantivo e o autor não vê ali o 
sinal da maternidade humana; vê um fenômeno animal, nada 
mais. 
Machado de Assis in “O Cruzeiro”, 16 abr. 1878. 
 
Sem dúvida Machado se preocuparia com outros ângulos 
de observação. Diferentemente de Eça, viria a desenvolver um 
realismo psicológico e, talvez por isso, acusa o autor português 
de expor a realidade antes de filtrá-la. Para o prof. Roberto 
Juliano: 
 
N’O primo Basílio, porém, a crítica de Machado de 
Assis parece ricochetear, não se encaixa e desconhece um 
fato simples: aquilo que valoriza, isto é, a dramaticidade, a 
tensão entre as personagens, as relações de causa e feito, 
as ações que desencadeiam, todos esses valores 
acabariam sendo deixados de lado voluntariamente (e 
provisoriamente!) no estilo novo em que Eça trabalhava. 
 
Roberto Gonçalves Juliano. Honra e paixão: a verdadeira história de 
um primo chamado Basílio. Santo André: Alpharrabio, 2002, p. 27. 
 
Ler Eça impressiona, tanto pelo estilo impecável do 
escritor como pelo antirromantismo que impregna seus 
romances. Assim, é natural que mesmo para os brasileiros 
do fim do século XIX e início do século XX venha ele a 
calhar com o ideal de modernidade e de construção de uma 
nova cultura, fundada no discernimento do cidadão de 
classe média. 
 
Leitura complementar 
 
Leia o texto abaixo, extraído de A literatura portuguesa de 
Massaud Moisés, sobre a poesia da época realista em Portugal, 
e também alguns poemas dos maiores nomes da poesia 
portuguesa do período. 
 
 [...] A poesia da época do Realismo retoma a altura e 
o prestígio lírico de Bocage e Camões. Talvez porque o poema 
se tornasse o molde ideal para fundir as ideias candentes no 
espírito da geração realista e mais facilmente comunicasse o 
seu conteúdo explosivo, o certo é que os realistas portugueses 
não descuraram da poesia e conseguiram atingir níveis de 
primeira grandeza, acabando por fazer do Realismo uma época 
de intensa atividade poética. Ao contrário do Romantismo, é 
uma quadra de muitos e grandes poetas. Em consonância com 
a ideologia que norteou a geração realista, a poesia da época 
segue várias direções: a poesia “realista”, a poesia do cotidiano, 
a poesia metafísica e a poesia de veleidades parnasianas. 
 
A poesia realista 
 
A poesia realista deve ser entendida como aquela que 
serviu, de modo direto, aos desígnios reformistas da geração 
realista: sem se confundir com o Parnasianismo (como querem 
alguns), essa poesia é a que teve caráter revolucionário, serviu 
como arma de combate, de ação, em suma, poesia a serviço da 
causa realista, o que equivale a dizer poesia compromissada ou 
engageé. Estão nesse caso, ao menos em parte de sua 
trajetória, Guerra Junqueiro, Gomes Leal, Antero de Quental, 
Teófilo Braga e outros. 
 
Gomes Leal (1848-1921) 
O visionário ou Som e cor 
A Eça de Queirós 
 
Eu tenho ouvido as sinfonias das plantas. 
 
Eu sou um visionário, um sábio apedrejado, 
passo a vida a fazer e a desfazer quimeras, 
enquanto o mar produz o monstro azulejado 
e Deus, em cima, faz as verdes primaveras. 
 
Sobre o mundo onde estou encontro-me isolado, 
e erro como estrangeiro ou homem doutras eras, 
talvez por um contrato irônico lavrado 
que fiz e já não sei noutras subtis esferas. 
 
A espada da Teoria, o austero Pensamento, 
não mataram em mim o antigo sentimento, 
embriagam-me o Sol e os cânticos do dia... 
 
E obedecendo ainda a meus velhos amores, 
procuro em toda a parte a música das cores, 
– e nas tintas da flor achei a Melodia. 
 
In Massaud Moisés. A literatura portuguesa através dos tempos. 25 ed. São 
Paulo: Cultrix, 1997, p. 328-329. 
 
A poesia do cotidiano 
 
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 Literatura 
 
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Pierre Auguste Renoir, Baile no Moulin de La Galette. 
 
Parcialmente ligada à poesia “realista” está a poesia do 
cotidiano. Por esse rótulo se entende a preocupação não-
consciente nem programática de infringir as tradicionais regras 
do jogo estético (que implicavam um conceito de hierarquia e a 
aceitação duma tábua rígida de valores) e de considerar dignos 
de nota os aspectos da realidade considerados até então 
apoéticos ou, pelo menos, alíricos. Noutros termos, significava 
uma novidade meio à ovo de Colombo: a poetização do 
prosaico, do cotidiano, daquilo que parece significar pouco para 
o homem prático, acomodado e despreocupado de outros 
problemas que não os da subsistência fisiológica. Pela primeira 
vez, o lirismo tentava, com a força própria das novidades, lançar 
a atenção sobre o prosaico diário, inclusive nos seus aspectos 
julgados repelentes, grotescos ou ridículos, quando não apenas 
fora do interesse poético. Ao mesmo tempo, correspondia à 
tentativa de fazer poesia “objetiva”, centrada no objeto e não no 
sujeito, dessa forma deslocando o eixo de interesse poético para 
fora do “eu” do poeta. 
Por outro lado, esse novo gênero de “aproximação” 
lírica da realidade vinha isento de intuitos revolucionários ou 
sociais, salvo ocasionalmente; ao contrário, preocupava-se com 
fugir à equação “eu-te-gosto-você-me-gosta” que fizera o 
apanágio do Romantismo sentimental e piegas, e realizar uma 
poesia debruçada sobre os motivos sugeridos pela realidade 
histórica e concreta. Quase uma despoetização do ato poético, 
a poesia do cotidiano nasceria da impressão que o “fora” deixa 
no “dentro” do sujeito. Por isso, é fácil compreender suas 
coincidências com a pintura impressionista, que procede 
exatamente do mesmo modo em face da realidade plástica: o 
artista procura surpreender o “momento” em que os objetos, 
imersos numa dada relação de luz e sombra, ganham 
individualidade; ou melhor, o pintor fixa a “impressão” que as 
coisas lhe deixam na sensibilidade, numa infinitesimal fração de 
tempo. Quem realizou a poesia do cotidiano em Portugal foi 
Cesário Verde. 
Massaud Moisés, op. cit. 
 
Cesário Verde (1855-1886) 
O sentimento de um ocidental (excerto) 
A Guerra Junqueiro 
 
Aves - Marias 
 
Nas nossas ruas, ao anoitecer, 
Há tal soturnidade, há tal melancolia, 
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia 
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer. 
 
O céu parece baixo e de neblina, 
O gás extravasado enjoa-me, perturba-me; 
E os edifícios, com as chaminés, e a turbaToldam-se duma cor monótona e londrina. 
 
Batem os carros de aluguer, ao fundo, 
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes! 
Ocorrem-me em revista, exposições, países: 
Madrid, Paris, Berlim, Sampetersburgo, o mundo! 
 
Semelham-se a gaiolas, com viveiros, 
As edificações somente emadeiradas: 
Como morcegos, ao cair das badaladas, 
Saltam de viga em viga, os mestres carpinteiros. 
 
Voltam os calafates, aos magotes, 
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos, 
Embrenho-me a cismar, por boqueirões, por becos, 
Ou erro pelos cais a que se atracam botes. 
 
E evoco, então, as crónicas navais: 
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado 
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado! 
Singram soberbas naus que eu não verei jamais! 
 
E o fim da tarde inspira-me; e incomoda! 
De um couraçado inglês vogam os escaleres; 
E em terra num tinido de louças e talheres 
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda. 
 
Num trem de praça arengam dois dentistas; 
Um trôpego arlequim braceja numas andas; 
Os querubins do lar flutuam nas varandas; 
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas! 
 
Vazam-se os arsenais e as oficinas; 
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras; 
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras, 
Correndo com firmeza, assomam as varinas. 
 
Vêm sacudindo as ancas opulentas! 
Seus troncos varonis recordam-me pilastras; 
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras 
Os filhos que depois naufragam nas tormentas. 
 
Descalças! Nas descargas de carvão, 
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas; 
E apinham-se num bairro aonde miam gatas, 
E o peixe podre gera os focos de infecção! 
In Massaud Moisés, op. cit., pp. 336-337. 
 
A poesia metafísica 
 
 À poesia do cotidiano contrapõe-se uma tendência 
poética de sentido contrário, dirigida para a resposta às 
indagações que a consciência do homem formula, desde 
sempre, entre aterrada e esperançosa: “que sou?”, “por que 
sou?”, “de onde vim?”, “para onde vou?”, “que é que vale?”, “por 
que a morte?”, etc. Trata-se, como se nota, de poesia metafísica, 
ou transcendental. 
Correspondendo a uma linha de força que remonta à 
Idade Média, com a cantiga de amor, a poesia de elucubração 
existencial permaneceu em Camões e Bocage. No século XIX, 
afora incidentais ressurgências em Soares de Passos, João de 
Deus, Gomes Leal e Guerra Junqueiro, é em Antero de Quental 
que esse gênero de poesia encontra o seu mais alto 
representante. Neste século [XX], continua ainda presente na 
cosmovisão de Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, José 
Régio, Miguel Torga e outros. 
Basta o enunciado dos nomes que compõem o elenco 
principal de poetas com tendência metafísica, para se verificar 
que representam o melhor da poesia portuguesa em sua 
evolução histórica. Todavia, é paradoxal que o seja, pois o 
caráter marcadamente confessional e ególatra do lirismo 
português faria supor o contrário. O fenômeno tem explicação: a 
 
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 Literatura 
 
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poesia metafísica nasceria sempre como uma via de escape à 
angústia geográfica, histórica e cultural em que vive o homem 
português, encurralado num território diminuto entre o 
continente europeu e o Oceano Atlântico. Pelas características 
próprias assumidas pelo movimento realista em Portugal, essa 
angústia chega ao paroxismo, superando a restante atividade 
poética e inclusive desrespeitando os postulados positivistas, 
que subestimavam as cogitações metafísicas e sugeriam uma 
poesia experimental, a serviço da revolução social em marcha. 
Massaud Moisés, op.cit. 
 
Antero de Quental (1842- 1891) 
 O Palácio da Ventura 
 
Sonho que sou um cavaleiro andante. 
Por desertos, por sóis, por noite escura, 
Paladino do amor, busca anelante 
O palácio encantado da Ventura! 
 
Mas já desmaio, exausto e vacilante, 
Quebrada a espada já, rota a armadura... 
E eis que súbito o avisto, fulgurante 
Na sua pompa e aérea formosura! 
 
Com grandes golpes bato à porta e brado: 
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado... 
Abri-vos, portas d'ouro, ante meus ais! 
 
Abrem-se as portas d'ouro, com fragor... 
Mas dentro encontro só, cheio de dor, 
Silêncio e escuridão – e nada mais! 
In Massaud Moisés, op. cit., pp. 347-348. 
 
Realismo no Brasil 
A genialidade de Machado de Assis 
 
Se voltarmos porém as vistas para Machado de Assis, 
veremos que esse mestre admirável se embebeu 
meticulosamente da obra de seus predecessores. A sua 
linha evolutiva mostra o escritor altamente consciente, 
que compreendeu o que havia de certo , de definitivo, 
na orientação de Macedo para a descrição de costumes, 
no realismo sadio e colorido de Manuel Antônio, na 
vocação analítica de José de Alencar. Ele pressupõe a 
existência dos predecessores, e esta é uma das razões 
da sua grandeza: numa literatura em que, a cada 
geração, os melhores recomeçam da capo e os 
medíocres continuam o passado, ele aplicou o seu 
gênio em assimilar, aprofundar, fecundar o legado 
positivo das experiências anteriores. Este é o segredo 
da sua independência em relação aos contemporâneos 
europeus, do seu alheamento às obras literárias de 
Portugal e França. Esta, a razão de não terem muitos 
críticos sabido onde classificá-lo. 
Antonio Candido, Formação da Literatura Brasileira. 
 
Contexto histórico brasileiro 
 O momento histórico que cerca o Realismo no Brasil é 
marcado pela extinção do tráfico negreiro, pela decadência da 
economia açucareira e por divergências entre o Segundo 
Império, a Igreja e o Exército. É um período de proliferação das 
ideias liberais, abolicionistas e republicanas. Em 1888 assina-se 
a lei Áurea, a qual, apesar de apregoar a abolição da 
escravatura, condena os negros à marginalização social. Em 
1889, proclama-se a República, e o marechal Deodoro da 
Fonseca torna-se nosso primeiro presidente. 
 
 
10 Alfredo Bosi, História Concisa da Literatura Brasileira. 3 ed, 
São Paulo: Cultrix, 1995. 
Realismo no Brasil: Machado de Assis (1839-1908) 
 
Antonio Candido, ao escrever sua tão importante 
Formação da Literatura Brasileira, não falou sobre o Realismo; 
partiu do pressuposto de que a Literatura Brasileira, a partir de 
então, já estaria formada. Sem dúvida, o grande nome do 
Realismo no Brasil, Machado de Assis – autor que cultivou a 
crônica, o conto, o romance, a poesia e o teatro – é a 
demonstração mais clara de que entraríamos no século XX com 
a nossa literatura mais amadurecida. Filho de mulato, 
autodidata, já aos quinze anos publicou seu primeiro poema. 
Fundador da Academia Brasileira de Letras em 1887, é um 
escritor reflexivo e consciente, dotado de uma sutileza para os 
detalhes e de um humor característico que, muitas vezes, dá um 
tom sério ao ridículo ou traz leveza ao sério. Sem cometer os 
excessos sentimentais do Romantismo ou a frieza cientificista 
do Naturalismo, escola que estudaremos nas próximas aulas, o 
autor de Dom Casmurro pode ser considerado o “ponto mais alto 
e mais equilibrado da prosa realista brasileira”10, e é nele e em 
algumas de suas obras mais importantes que concentraremos 
nossos estudos agora. 
 
 
As duas fases de Machado 
 
 Dois momentos houve em sua carreira. O primeiro seria 
quase uma preparação para o segundo, e é marcado por obras 
consideradas românticas, presas às características mais gerais 
do romance do século XIX, em que personagens femininas 
defendem a ambição de mudar de classe social e buscam um 
novo status, mesmo que, para tanto, tenham de sacrificar o 
plano afetivo. Enquadram-se nessa fase romances como 
Ressurreição (1872), A mão e a luva (1874), Helena (1876) e 
Iaiá Garcia (1878). 
 No segundo grupo, os romances constroem-se em 
torno da análise dos caracteres, daí o chamado realismo 
psicológico. A partir de um humor desencantado – embora 
risonho – e de uma ironia peculiar, que se manifesta por meio 
de uma brutal diferença entre os discursos das personagens e o 
doautor, Machado surpreende “gestos e atos quotidianos, como 
reflexos da simulação e da vaidade”11. O meio, diferentemente 
do que ocorre em Eça de Queirós, é trabalhado apenas em seus 
detalhes mais especiais, sob a ótica das personagens. O 
ambiente e a sociedade carioca são dissecados de tal forma que 
superam na crítica as limitações locais. 
 Para José Aderaldo Castello, a segunda fase de 
Machado, apesar do notório amadurecimento do escritor, está 
diretamente vinculada à primeira: 
 
 Na verdade, o que se exprimiria no conto, a partir de “O 
Alienista” e no romance, a partir de Memórias Póstumas de Brás 
Cubas, resultaria da retomada sintética da visão da sociedade e 
11 Antonio Candido e José Aderaldo Castello. Presença da 
Literatura Brasileira – das origens ao Realismo. 13 ed. Rio de 
Janeiro: Bertrand Brasil, 2008, p. 300. 
 
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do homem, proveniente da chamada primeira fase, relacionada 
com a reflexão filosófica e a análise psicológica, que se 
enriquecem e caminham a passo largo para a maturidade. Neste 
caso, a transformação mais substancial é exatamente a que 
decorre do amadurecimento da ideia de que o homem e sua 
condição existencial importam muito mais do que a sua 
subordinação ao contexto social e condicionador em termos 
presentes. Quer dizer, o compromisso do homem com a 
sociedade deriva existencialmente de uma cadeia hereditária 
multissecular, de ideias e valores. Latentes em geral, essas 
ideias e valores podem fazer-se indiscriminadamente atuantes, 
em limites de tempo histórico e espaço social, por força das 
relações do indivíduo com a sociedade, com determinado 
sistema ético. [...] O homem deixava de ser visto através da 
sociedade – o que caracterizava de uma maneira geral a 
narrativa ficcional do século XIX –, enquanto a sociedade é que 
passava a ser vista através do homem. Sem prejuízo da 
primeira, o romancista enfatiza a condição existencial, e a 
narrativa ficcional ganhava artística e formalmente. 
 
José Aderaldo Castello, A Literatura Brasileira – origens e unidade. Vol. I. São 
Paulo: Edusp, 1999, p. 380. 
 
 Nessa segunda fase, Machado relata-nos a 
precariedade existencial de um ser humano que nada mais é do 
que um joguete na mão de forças desconhecidas. Seus 
personagens são, a partir de então, complexos, contraditórios e 
internamente perplexos. 
 
A maturidade das Memórias póstumas de Brás Cubas 
 
Na obra que serviu como divisor de águas da carreira 
literária de Machado de Assis e também como marco inicial do 
Realismo no Brasil, as Memórias póstumas de Brás Cubas 
(1881), um defunto-autor (o impossível mostra-se real diante de 
nossas vistas) conta-nos a história de sua vida e, por estar 
morto, acima (ou abaixo?) do bem e do mal, é provocador, 
volúvel e desrespeitador de normas: 
 
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo 
princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu 
nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja 
começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a 
adotar diferente método: a primeira é que eu não sou 
propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para 
quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria 
assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a 
sua morte, não a pôs no introito, mas no cabo: diferença radical 
entre este livro e o Pentateuco12. 
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-
feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de 
Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, 
era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui 
acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! 
Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que 
chovia – peneirava – uma chuvinha miúda, triste e constante, tão 
constante e tão triste, que levou um daqueles fiéis da última hora 
a intercalar esta engenhosa ideia no discurso que proferiu à 
beira de minha cova: – “Vós, que o conhecestes, meus 
senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar 
chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres 
que têm honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas 
do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um 
crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza 
as mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao 
nosso ilustre finado”. 
 
12 Os cinco primeiros livros do Velho Testamento, atribuídos a 
Moisés. Note, nesta passagem, que o narrador não apenas se 
compara a Moisés e à Bíblia, o livro mais lido do mundo, como 
se diz melhor, mais original. 
Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte 
apólices que lhe deixei. 
 
Machado de Assis. Memórias póstumas de Brás Cubas. 28 ed. São Paulo: Ática, 
2004, p. 17. 
 
 O desrespeito com a verossimilhança realista não a 
desmancha de todo. Cabe a nós, leitores, não buscar a verdade 
ou a coerência de sua fala, mas “admirar o descaramento e o 
virtuosismo com que são manejadas”13. Sobre esses parágrafos 
iniciais da obra, comenta o professor Roberto Schwarz: 
 
 O leitor terá sentido que a cada proposição de nosso 
parágrafo a fisionomia de Brás é outra. O tipo que na primeira 
linha hesita quanto à melhor maneira de compor memórias não 
é o mesmo que em seguida promete, como se nada fosse, 
esclarecimentos sobre a própria morte. Este por sua vez não é 
o mesmo que providencia para se distanciar do vulgo, que não 
é o mesmo que se compraz no paradoxo do defunto autor, que 
não é o mesmo da preocupação com o galante e o novo, e 
portanto com a moda, que não é o mesmo da piada sobre o 
Pentateuco. O revezamento das poses é sem transição, um 
exercício de volubilidade, e o resultado literário depende da 
viveza e frequência dos contrastes. Para completar, a prosa 
culta – que é pose ela também – empresta um verniz de 
respeitabilidade a pulos, manobras e transformações do 
narrador, o que lhe disfarça o lado gritante da desfaçatez, ao 
mesmo tempo que aprofunda o seu tipo social, além 
naturalmente de causar uma desproporção cômica. Seja como 
for, é um andamento que supõe efeitos calculados a cada passo, 
e uma prosa como que escrita diante do espelho. As 
personificações têm que se erguer e completar no espaço de 
uma frase, ficando um olho na que veio antes, outro na que vem 
depois, e um terceiro o leitor, sem o que não se assegura o 
imprevisto indispensável à vida deste ritmo. É fato que a sua 
dimensão exibicionista e manipulativa constrange, induzindo 
uma leitura animada de reservas e má vontade. Estas serão 
resgatadas e manipuladas por sua vez (“não esteja daí a torcer-
me o nariz”), fazendo que o leitor experimente na própria pele o 
relacionamento que o livro estuda. 
 Qual fisionomia de Brás é verdadeira? Está claro que 
nenhuma em particular. [...] Noutras palavras, faltando 
credibilidade ao narrador, as feições que constantemente ele 
veste e desveste têm verdade incerta, e tornam-se elemento de 
provocação, esta sim indiscutível. 
 
Roberto Schwarz, Um mestre na periferia do capitalismo. 4 ed. São Paulo: Duas 
Cidades; Editora 34, 2000, p. 22-23. 
 
Algumas características das Memórias póstumas 
tornar-se-iam marca estilística do autor em romances 
posteriores: anticlímax marcado pela quebra de expectativa – 
ridicularização de clichês; digressões; capítulos curtos, não 
necessariamente dispostos em ordem cronológica; diálogos 
recorrentes com o leitor – característica que já havia aparecido 
nas Memórias de um sargento de milícias – e especulações 
filosóficas, muitas delas pessimistas, acerca da condição 
humana. 
Os livros de Machado de Assis servem de palco para 
os mais diversos acontecimentos históricos brasileiros e 
mostram as contradições de uma elite precária e antiquada que 
busca aparentar ser moderna, avançada e liberal. 
No segundo semestre, estudaremos com maispropriedade o romance Quincas Borba, segundo romance 
realista publicado por Machado de Assis. 
 
13 Roberto Schwarz, Um mestre na periferia do capitalismo. 4 
ed. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000. 
 
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 Literatura 
 
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Leitura complementar 
Leia agora um conto machadiano publicado no livro Papéis 
avulsos e mergulhe na viagem do duplo, refletindo sobre o 
quanto a questão da aparência X essência é presente na obra 
machadiana. 
 
O espelho 
Esboço de uma nova teoria da alma humana 
 
Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, 
várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade 
dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa 
ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada 
a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha 
de fora. Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o 
céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma 
atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou 
cinco investigadores de coisas metafísicas, resolvendo 
amigavelmente os mais árduos problemas do universo. Por que 
quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que falavam; 
mas, além deles, havia na sala um quinto personagem, calado, 
pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de 
um ou outro resmungo de aprovação. Esse homem tinha a 
mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cinquenta 
anos, era provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, 
e, ao que parece, astuto e cáustico. Não discutia nunca; e 
defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo que a 
discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz no 
homem, como uma herança bestial; e acrescentava que os 
serafins e os querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a 
perfeição espiritual e eterna. Como desse esta mesma resposta 
naquela noite, contestou-lha um dos presentes, e desafiou-o a 
demonstrar o que dizia, se era capaz. Jacobina (assim se 
chamava ele) refletiu um instante, e respondeu: 
– Pensando bem, talvez o senhor tenha razão. 
Vai senão quando, no meio da noite, sucedeu que este 
casmurro usou da palavra, e não dois ou três minutos, mas trinta 
ou quarenta. A conversa, em seus meandros, veio a cair na 
natureza da alma, ponto que dividiu radicalmente os quatro 
amigos. Cada cabeça, cada sentença; não só o acordo, mas a 
mesma discussão tornou-se difícil, senão impossível, pela 
multiplicidade das questões que se deduziram do tronco 
principal e um pouco, talvez, pela inconsistência dos pareceres. 
Um dos argumentadores pediu ao Jacobina alguma opinião, 
 – uma conjetura, ao menos. 
– Nem conjetura, nem opinião, redarguiu ele; uma ou 
outra pode dar lugar a dissentimento, e, como sabem, eu não 
discuto. Mas, se querem ouvir-me calados, posso contar-lhes 
um caso de minha vida, em que ressalta a mais clara 
demonstração acerca da matéria de que se trata. Em primeiro 
lugar, não há uma só alma, há duas... 
– Duas? 
– Nada menos de duas almas. Cada criatura humana 
traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra 
que olha de fora para entro... Espantem-se à vontade, podem 
ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. 
Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior 
pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um 
objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um 
simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; – e 
assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um 
par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o 
ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; 
as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, 
uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente 
metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da 
alma exterior implica a da existência inteira. Shylock, por 
exemplo. A alma exterior daquele judeu eram os seus ducados; 
perdê-los equivalia a morrer. "Nunca mais verei o meu ouro, diz 
ele a Tubal; é um punhal que me enterras no coração." Vejam 
bem esta frase; a perda dos ducados, alma exterior, era a morte 
para ele. Agora, é preciso saber que a alma exterior não é 
sempre a mesma... 
– Não? 
– Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não 
aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual 
disse o Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior 
de César e de Cromwell. São almas enérgicas e exclusivas; mas 
há outras, embora enérgicas, de natureza mudável. Há 
cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros 
anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma 
provedoria de irmandade, suponhamos. Pela minha parte, 
conheço uma senhora, – na verdade, gentilíssima, – que muda 
de alma exterior cinco, seis vezes por ano. Durante a estação 
lírica é a ópera; cessando a estação, a alma exterior substitui-se 
por outra: um concerto, um baile do Cassino, a rua do Ouvidor, 
Petrópolis... 
– Perdão; essa senhora quem é? 
– Essa senhora é parenta do diabo, e tem o mesmo 
nome; chama-se Legião... E assim outros mais casos. Eu 
mesmo tenho experimentado dessas trocas. Não as relato, 
porque iria longe; restrinjo-me ao episódio de que lhes falei. Um 
episódio dos meus vinte e cinco anos... 
Os quatro companheiros, ansiosos de ouvir o caso 
prometido, esqueceram a controvérsia. Santa curiosidade! tu 
não és só a alma da civilização, és também o pomo da 
concórdia, fruta divina, de outro sabor que não aquele pomo da 
mitologia. A sala, até há pouco ruidosa de física e metafísica, é 
agora um mar morto; todos os olhos estão no Jacobina, que 
conserta a ponta do charuto, recolhendo as memórias. Eis aqui 
como ele começou a narração: 
– Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser 
nomeado alferes da Guarda Nacional. Não imaginam o 
acontecimento que isto foi em nossa casa. Minha mãe ficou tão 
orgulhosa! tão contente! Chamava-me o seu alferes. Primos e 
tios, foi tudo uma alegria sincera e pura. Na vila, note-se bem, 
houve alguns despeitados; choro e ranger de dentes, como na 
Escritura; e o motivo não foi outro senão que o posto tinha 
muitos candidatos e que esses perderam. Suponho também que 
uma parte do desgosto foi inteiramente gratuita: nasceu da 
simples distinção. Lembra-me de alguns rapazes, que se davam 
comigo, e passaram a olhar-me de revés, durante algum tempo. 
Em compensação, tive muitas pessoas que ficaram satisfeitas 
com a nomeação; e a prova é que todo o fardamento me foi dado 
por amigos... Vai então uma das minhas tias, D. Marcolina, viúva 
do Capitão Peçanha, que morava a muitas léguas da vila, num 
sítio escuso e solitário, desejou ver-me, e pediu que fosse ter 
com ela e levasse a farda. Fui, acompanhado de um pajem, que 
daí a dias tornou à vila, porque a tia Marcolina, apenas me pilhou 
no sítio, escreveu a minha mãe dizendo que não me soltava 
antes de um mês, pelo menos. E abraçava-me! Chamava-me 
também o seu alferes. Achava-me um rapagão bonito. Como era 
um tanto patusca, chegou a confessar que tinha inveja da moça 
que houvesse de ser minha mulher. Jurava que em toda a 
província não havia outro que me pusesse o pé adiante. E 
sempre alferes; era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda 
a hora. Eu pedia-lhe que me chamasse Joãozinho, como dantes; 
e ela abanava a cabeça, bradando que não, que era o "senhor 
alferes". Um cunhado dela, irmão do finado Peçanha, que ali 
morava, não me chamava de outra maneira. Era o "senhor 
alferes", não por gracejo, mas a sério, e à vista dos escravos, 
que naturalmente foram pelo mesmo caminho. Na mesa tinha 
eu o melhor lugar, e era o primeiro servido. Não imaginam. Se 
lhes disser que o entusiasmo da tia Marcolina chegou ao ponto 
de mandar pôr no meu quarto um grande espelho, obra rica e 
magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era 
modesta e simples... Era um espelho que lhedera a madrinha, 
e que esta herdara da mãe, que o comprara a uma das fidalgas 
vindas em 1808 com a corte de D. João VI. Não sei o que havia 
nisso de verdade; era a tradição. O espelho estava naturalmente 
muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em parte pelo 
tempo, uns delfins esculpidos nos ângulos superiores da 
 
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moldura, uns enfeites de madrepérola e outros caprichos do 
artista. Tudo velho, mas bom... 
– Espelho grande? 
– Grande. E foi, como digo, uma enorme fineza, porque 
o espelho estava na sala; era a melhor peça da casa. Mas não 
houve forças que a demovessem do propósito; respondia que 
não fazia falta, que era só por algumas semanas, e finalmente 
que o "senhor alferes" merecia muito mais. O certo é que todas 
essas coisas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram em mim 
uma transformação, que o natural sentimento da mocidade 
ajudou e completou. Imaginam, creio eu? 
– Não. 
– O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as 
duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva 
cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade. 
Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, 
o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a 
ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do 
posto, nada do que me falava do homem. A única parte do 
cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o 
exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado. 
Custa-lhes acreditar, não? 
– Custa-me até entender, respondeu um dos ouvintes. 
– Vai entender. Os fatos explicarão melhor os 
sentimentos: os fatos são tudo. A melhor definição do amor não 
vale um beijo de moça namorada; e, se bem me lembro, um 
filósofo antigo demonstrou o movimento andando. Vamos aos 
fatos. Vamos ver como, ao tempo em que a consciência do 
homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva e intensa. As 
dores humanas, as alegrias humanas, se eram só isso, mal 
obtinham de mim uma compaixão apática ou um sorriso de 
favor. No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era 
exclusivamente alferes. Ora, um dia recebeu a tia Marcolina uma 
notícia grave; uma de suas filhas, casada com um lavrador 
residente dali a cinco léguas, estava mal e à morte. Adeus, 
sobrinho! adeus, alferes! Era mãe extremosa, armou logo uma 
viagem, pediu ao cunhado que fosse com ela, e a mim que 
tomasse conta do sítio. Creio que, se não fosse a aflição, 
disporia o contrário; deixaria o cunhado e iria comigo. Mas o 
certo é que fiquei só, com os poucos escravos da casa. 
Confesso-lhes que desde logo senti uma grande opressão, 
alguma coisa semelhante ao efeito de quatro paredes de um 
cárcere, subitamente levantadas em torno de mim. Era a alma 
exterior que se reduzia; estava agora limitada a alguns espíritos 
boçais. O alferes continuava a dominar em mim, embora a vida 
fosse menos intensa, e a consciência mais débil. Os escravos 
punham uma nota de humildade nas suas cortesias, que de 
certa maneira compensava a afeição dos parentes e a 
intimidade doméstica interrompida. Notei mesmo, naquela noite, 
que eles redobravam de respeito, de alegria, de protestos. Nhô 
alferes, de minuto a minuto; nhô alferes é muito bonito; nhô 
alferes há de ser coronel; nhô alferes há de casar com moça 
bonita, filha de general; um concerto de louvores e profecias, 
que me deixou extático. Ah! pérfidos! mal podia eu suspeitar a 
intenção secreta dos malvados. 
– Matá-lo? 
– Antes assim fosse. 
– Coisa pior? 
– Ouçam-me. Na manhã seguinte achei-me só. Os 
velhacos, seduzidos por outros, ou de movimento próprio, 
tinham resolvido fugir durante a noite; e assim fizeram. Achei-
me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do 
terreiro deserto e da roça abandonada. Nenhum fôlego humano. 
Corri a casa toda, a senzala, tudo; ninguém, um molequinho que 
fosse. Galos e galinhas tão-somente, um par de mulas, que 
filosofavam a vida, sacudindo as moscas, e três bois. Os 
mesmos cães foram levados pelos escravos. Nenhum ente 
humano. Parece-lhes que isto era melhor do que ter morrido? 
era pior. Não por medo; juro-lhes que não tinha medo; era um 
pouco atrevidinho, tanto que não senti nada, durante as 
primeiras horas. Fiquei triste por causa do dano causado à tia 
Marcolina; fiquei também um pouco perplexo, não sabendo se 
devia ir ter com ela, para lhe dar a triste notícia, ou ficar tomando 
conta da casa. Adotei o segundo alvitre, para não desamparar a 
casa, e porque, se a minha prima enferma estava mal, eu ia 
somente aumentar a dor da mãe, sem remédio nenhum; 
finalmente, esperei que o irmão do tio Peçanha voltasse naquele 
dia ou no outro, visto que tinha saído havia já trinta e seis horas. 
Mas a manhã passou sem vestígio dele; à tarde comecei a sentir 
a sensação como de pessoa que houvesse perdido toda a ação 
nervosa, e não tivesse consciência da ação muscular. O irmão 
do tio Peçanha não voltou nesse dia, nem no outro, nem em toda 
aquela semana. Minha solidão tomou proporções enormes. 
Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol 
abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa. As horas 
batiam de século a século no velho relógio da sala, cuja pêndula 
tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior, como um piparote 
contínuo da eternidade. Quando, muitos anos depois, li uma 
poesia americana, creio que de Longfellow, e topei este famoso 
estribilho: Never, for ever! – For ever, never! confesso-lhes que 
tive um calafrio: recordei-me daqueles dias medonhos. Era 
justamente assim que fazia o relógio da tia Marcolina: 
– Never, for ever! 
– For ever, never! Não eram golpes de pêndula, era um 
diálogo do abismo, um cochicho do nada. E então de noite! Não 
que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo que 
de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais 
estreita, ou mais larga. Tic-tac, tic-tac. Ninguém, nas salas, na 
varanda, nos corredores, no terreiro, ninguém em parte 
nenhuma... Riem-se? 
– Sim, parece que tinha um pouco de medo. 
– Oh! fora bom se eu pudesse ter medo! Viveria. Mas o 
característico daquela situação é que eu nem sequer podia ter 
medo, isto é, o medo vulgarmente entendido. Tinha uma 
sensação inexplicável. Era como um defunto andando, um 
sonâmbulo, um boneco mecânico. Dormindo, era outra coisa. O 
sono dava-me alívio, não pela razão comum de ser irmão da 
morte, mas por outra. Acho que posso explicar assim esse 
fenômeno: – o sono, eliminando a necessidade de uma alma 
exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me 
orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me 
elogiavam o garbo, que me chamavam alferes; vinha um amigo 
de nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de 
capitão ou major; e tudo isso fazia-me viver. Mas quando 
acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do meu 
ser novo e único – porque a alma interior perdia a ação 
exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não 
tornar... Não tornava. Eu saía fora, a um lado e outro, a ver se 
descobria algum sinal de regresso. Soeur Anne, soeur Anne, ne 
vois-tu rien venir? Nada, coisa nenhuma; tal qual como na lenda 
francesa. Nada mais do que a poeira da estrada e o capinzal dos 
morros. Voltava para casa, nervoso, desesperado, estirava-me 
no canapé da sala. Tic-tac, tic-tac. Levantava-me, passeava, 
tamborilava nos vidros das janelas, assobiava. Em certa ocasião 
lembrei-me de escrever alguma coisa, um artigo político, um 
romance, uma ode; não escolhi nada definitivamente; sentei-me 
e tracei no papel algumas palavras e frases soltas, para 
intercalar no estilo. Mas o estilo, como tia Marcolina, deixava-se 
estar. Soeur Anne, soeur Anne... 
Coisa nenhuma. Quando muito via negrejar a tinta e 
alvejar o papel. 
– Mas não comia? 
– Comia mal, frutas, farinha, conservas, algumas raízes 
tostadas ao fogo, mas suportaria tudo alegremente, senão fora 
a terrível situação moral em que me achava. Recitava versos, 
discursos, trechos latinos, liras de Gonzaga, oitavas de Camões, 
décimas, uma antologia em trinta volumes. Às vezes fazia 
ginástica; outras dava beliscões nas pernas; mas o efeito era só 
uma sensação física de dor ou de cansaço, e mais nada. Tudo 
silêncio, um silêncio vasto, enorme, infinito, apenas sublinhado 
pelo eterno tic-tac da pêndula. Tic-tac, tic-tac... 
– Na verdade, era de enlouquecer. 
 
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– Vão ouvir coisa pior. Convém dizer-lhes que, desde 
que ficara só, não olhara uma só vez para o espelho. Não era 
abstenção deliberada, não tinha motivo; era um impulso 
inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo 
tempo, naquela casa solitária; e se tal explicação é verdadeira, 
nada prova melhor a contradição humana, porque no fim de oito 
dias deu-me na veneta de olhar para o espelho com o fim 
justamente de achar-me dois. Olhei e recuei. O próprio vidro 
parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a 
figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de 
sombra. A realidade das leis físicas não permite negar que o 
espelho reproduziu-me textualmente, com os mesmos 
contornos e feições; assim devia ter sido. Mas tal não foi a minha 
sensação. Então tive medo; atribuí o fenômeno à excitação 
nervosa em que andava; receei ficar mais tempo, e enlouquecer. 
– Vou-me embora, disse comigo. E levantei o braço com gesto 
de mau humor, e ao mesmo tempo de decisão, olhando para o 
vidro; o gesto lá estava, mas disperso, esgaçado, mutilado... 
Entrei a vestir-me, murmurando comigo, tossindo sem tosse, 
sacudindo a roupa com estrépito, afligindo-me a frio com os 
botões, para dizer alguma coisa. De quando em quando, olhava 
furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma difusão de 
linhas, a mesma decomposição de contornos... Continuei a 
vestir-me. Subitamente por uma inspiração inexplicável, por um 
impulso sem cálculo, lembrou-me... Se forem capazes de 
adivinhar qual foi a minha ideia... 
– Diga. 
– Estava a olhar para o vidro, com uma persistência de 
desesperado, contemplando as próprias feições derramadas e 
inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes, quando tive 
o pensamento... Não, não são capazes de adivinhar. 
– Mas, diga, diga. 
– Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, 
aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, 
levantei os olhos, e... não lhes digo nada; o vidro reproduziu 
então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum 
contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a 
alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa 
e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai 
um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os 
olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos 
objetos, mas não conhece individualmente uns nem outros; 
enfim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma 
cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do sono. Assim 
foi comigo. Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, 
recuava, gesticulava, sorria e o vidro exprimia tudo. Não era 
mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui 
outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e 
sentava-me diante do espelho, lendo, olhando, meditando; no 
fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regime 
pude atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir... 
Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha 
descido as escadas. 
Machado de Assis. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, v. II. 
 
Naturalismo no Brasil 
 
 início fim 
B
ra
s
il
 
1881 
publicação de O Mulato, 
de Aluísio Azevedo 
1893 
publicação de dois livros 
de Cruz e Sousa: Missal 
e Broquéis 
 
Naturalismo: o Realismo levado às últimas consequências 
 
Naturalismo e Realismo são escolas literárias que ocorrem 
simultaneamente no Brasil. Por isso, muitos a confundem. 
Ambas se opõem ao Romantismo – assim como ocorre também 
com o Parnasianismo, escola que estudaremos no próximo 
caderno – no sentido de rejeitarem o idealismo das narrativas 
românticas e de proporem a conscientização do povo a partir da 
exposição e da denúncia dos mecanismos de controle social. 
Alguns teóricos, inclusive, consideram-nas duas faces da 
mesma moeda e chegam a utilizar a expressão Realismo-
Naturalismo para caracterizar a produção do período. Veja o que 
afirma o professor Massaud Moisés a respeito: 
 
A prosa de ficção, durante o período realista, seguiu três 
direções fundamentais, não raro interinfluentes: 1) realismo 
exterior, que defendia o aproveitamento das conquistas da 
Ciência, de molde a buscar o máximo de objetividade na 
fotografação da realidade concreta, e a transformar a obra de 
arte em arma de combate das instituições julgadas decadentes 
e incapazes de atender aos reclamos dos novos tempos (a 
Burguesia, o Clero e o Trono); daí seu antirromantismo, seu 
anticlericalismo e seu republicanismo; o exagero de tais 
características originou o Naturalismo; representam-na: Aluísio 
de Azevedo, Inglês de Souza, Adolfo Caminha, Domingos 
Olímpio; 2) realismo interior, que preconizava como realidade 
objetiva não a aparência, mas a essência, dos seres e das 
coisas; de onde procurasse vasculhar a psicologia íntima das 
personagens, e anunciasse alguns caminhos percorridos pela 
introspecção moderna; representam-na: Machado de Assis, 
Raul Pompeia; o prolongamento dessa linha converge para a 
prosa simbolista; 3) a prosa regionalista, em que se miscigenam 
por vezes as duas tendências, como na obra de Coelho Neto, 
Afonso Arinos. 
Massaud Moisés. A literatura brasileira através dos textos. 21 ed. São 
Paulo: Cultrix, 1998, p. 248. 
 
Para ele, Aluísio Azevedo seria um exemplar de “realista 
exterior”, assim como Eça de Queirós; Machado de Assis e Raul 
Pompeia, por sua vez, seriam “realistas interiores”. Já o 
historiador da literatura José Aderaldo Castello se refere ao 
período como Realismo-Naturalismo. Juntamente com Antonio 
Candido, chega a afirmar que o termo Realismo é inadequado 
para denominar o período, uma vez que muitas obras ditas 
românticas seriam repletas de elementos realistas, no sentido 
de comunicar ao leitor o sentimento de realidade por meio da 
observação exata do mundo. Se pensarmos na literatura 
regionalista romântica, por exemplo, poderemos dar razão aos 
críticos. 
 
O traço diferente, que predominou em muitos escritores a 
partir dos anos de 1860 e 1870, foi que se chamou naturalismo, 
termo que é também aplicável a obras de várias épocas, mas 
que recebeu então um sentido próprio e de certo modo legítimo, 
sob a influência dos novos rumos das ciências naturais. Nesse 
sentido restrito, naturalismo significa o tipo de realismo que 
procura explicar cientificamente a conduta e o modo de ser dos 
personagens por meio dos fatores externos, de natureza 
biológica e sociológica, que condicionam a vida humana. Os 
seres aparecem, então, como produtos, como consequências de 
forças preexistentes que limitam a sua responsabilidade e os 
tornam, nos casos extremos, verdadeiros joguetes das 
condições. Como houve naquele tempo obsessão com os 
problemas da hereditariedade (ainda bem mal conhecidos), os 
escritores não hesitaram em sublinhar o efeito das taras, das 
doenças, dos vícios, na formação do caráter – juntando-lhes os 
efeitos complementares da formação familiar, da educação, do 
nível cultural. Com isso, adaptavam-se às teorias científicas em 
voga, amplamente divulgadas. E, a fim de se aproximarem mais 
dos cientistas, pregavam a atitude objetiva, desapaixonada, de 
quem verifica e registra sem tomar partido, como convém ao 
pesquisador da verdade. Atitude semelhante já havia, aliás, sido 
preconizada dentro da própria literatura, como supremo ideal 
artístico, por um escritor realistaque os naturalistas 
consideravam o seu precursor imediato: Gustave Flaubert. 
Estas teorias estéticas tiveram grande voga entre 1870 e 
1900, e repercutiram no Brasil, por influência direta dos 
 
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franceses (sobretudo Émile Zola14) ou por intermédio dos seus 
imitadores portugueses. 
[...] Herdando e desenvolvendo as sementes de realismo 
dos românticos, é compreensível que os realistas e naturalistas 
preferissem temas ligados aos costumes, regionais e urbanos, 
aos aspectos sexuais da conduta, à análise psicológica, que 
aprofundaram singularmente. 
Antonio Candido e José Aderaldo Castello, Presença da literatura brasileira 
– das origens ao Realismo. 13 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008, p. 286-
287. 
 
Talvez o que marque especificamente os naturalistas seja o 
seu gosto pelo “senso quase fatalista das forças naturais e 
sociais pesando sobre o homem: natureza, ambiente social, 
educação, taras, instintos, gerando conflitos dramáticos, 
situações anormais, desfechos catastróficos, num pessimismo 
que contrastava com os finais apaziguados do Romantismo”15. 
O Naturalismo é uma vertente realista, o exagero do 
Realismo, a vitória do cientificismo. Os naturalistas não se 
contentam com o romance documental: querem o experimental; 
não se limitam ao retrato da classe média: analisam as 
marginais e, para tanto, utilizam-se de metodologia científica na 
composição ficcional. Em suas narrativas, as forças naturais 
influenciam de tal maneira o comportamento do homem que uma 
das grandes marcas das personagens naturalistas é o 
zoomorfismo – seres humanos caracterizados como animais. A 
linguagem das obras possui nuances cientificistas e, devido à 
negação do sentimento e da metafísica, os autores buscam 
explicações materialistas para os fenômenos da vida e do 
espírito. Zola propõe para os escritores o uso de método 
analítico, que poderia ser dedutivo, no qual o escritor deveria 
aplicar as leis aos fatos – influência de Darwin, Taine e do 
evolucionismo de Spencer16 – ou indutivo, no qual o artista, a 
partir da intuição, segue para a observação e a descrição para 
criar uma hipótese e experimentá-la até percebê-la como lei. 
Devemos esclarecer que toda obra naturalista é, portanto, 
realista; mas nem toda obra realista é necessariamente 
naturalista. Machado de Assis não é naturalista em suas obras 
realistas. Eça, porém, utiliza-se de características naturalistas 
para a construção de alguns personagens da segunda fase de 
sua carreira. 
 
Heitor dos Prazeres, Roda de samba. 1965. Óleo sobre madeira17 
 
 
14 Émile Zola (1840-1902), escritor francês que inaugurou a escola 
naturalista, publicou em 1880 O romance experimental, manifesto 
literário do movimento. 
15 Antonio Candido e José Aderaldo Castello, op. cit., p. 288. 
16 Herbert Spencer (1820-1903), principal representante do 
evolucionismo nas ciências humanas, intuiu a existência de regras 
evolucionistas antes do compatriota Charles Darwin. 
17 Heitor dos Prazeres (1898-1966), músico, sambista por vocação, 
compositor de diversas marchinhas, parceiro de Noel Rosa e um dos 
Aluísio Azevedo (1857-1913) 
Maior nome do romance naturalista brasileiro, o 
maranhense Aluísio Azevedo publicou três grandes romances 
(O mulato, Casa de pensão e O cortiço) e diversos pastelões 
melodramáticos. Os personagens de suas obras sérias são 
retratos do homem comum desfigurado pela herança biológica e 
pelo meio. Vivem mediocremente a sua rotina e são flagrados 
nas suas taras e em seu comportamento instintivo. Aliás, é 
recorrente em obras naturalistas a redução do homem ao 
animal, como se ele não pudesse contrariar os instintos mais 
primários – daí o sexo, os vícios e os desvios de caráter serem 
tão comuns nessas personagens. 
Em O mulato (1881), Aluísio trata um assunto que já havia 
aparecido no Romantismo: a conquista de um status social para 
o mestiço no Brasil. Sugere uma sociedade ideal, em que se 
admitisse a integração do mulato. O protagonista, Raimundo, 
“ignora a própria cor e a condição de filho de escrava: não 
consegue entender as reservas que lhe faz a alta sociedade de 
São Luís, a ele que voltara doutor da Europa”18, e é 
extremamente sedutor – característica, aliás, bem comum do 
mestiço nos romances de Azevedo. Com uma visão acurada do 
meio maranhense da época, o autor descreve os tipos de modo 
satírico: o comerciante rico e grosseiro, a velha beata e raivosa, 
o cônego relaxado e convincente etc. 
Casa de pensão (1884), representação da vida pequeno-
burguesa baseada em fato verídico, narra a história de um 
estudante nortista que se muda para o Rio de Janeiro, se instala 
numa “pensãozinha pegajosa”19 e se envolve num crime 
passional. As fraquezas de caráter do protagonista são 
atribuídas, desde o princípio, à hereditariedade, e o que há de 
melhor no romance encontra-se no rumor dos jornais e da vida 
boêmia que gira em torno do escândalo. 
O cortiço, obra-prima do autor, é um romance em que ele 
desenvolveu aquilo que sempre fora o seu maior talento: em vez 
de moldar o enredo às pessoas (personagens construídas a 
partir do peso de teorias darwinistas), moldou-o ao espaço: tipos 
psicologicamente primários somados a cenas coletivas fazem 
do cortiço a melhor personagem da história de nossos romances 
naturalistas. Vamos, agora, ao estudo da obra. 
 
O cortiço (1890) 
 
 
Imagem do cortiço “Cabeça de Porco”, o maior do Rio de Janeiro no século XIX. 
Com quase 4 mil moradores, foi destruído em 1893 por ordem do então prefeito 
Barata Ribeiro. 
 
fundadores da Estação Primeira de Mangueira. Começou a pintar 
aquarelas depois da morte da esposa em 1937 e, aprimorando a 
técnica, passou para a pintura a óleo. Suas telas expressavam o 
cotidiano do morro. Participou das bienais de arte de 1951, 1953 e 
1961. 
18 Alfredo Bosi, História concisa da literatura brasileira. 3 ed. São 
Paulo: Cultrix, 1995, p. 211. 
19 Alfredo Bosi, op. cit, p. 212. 
 
 Profª. Cristiane 
 Literatura 
 
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O espaço 
 O cortiço narra, pela ótica de um narrador onisciente 
em terceira pessoa, “nascimento, vida, paixão e morte de um 
cortiço. A ele se opõe o sobrado, como símbolo de uma posição 
social a ser conquistada”20. O espaço em obras naturalistas 
possui grande importância, porque é ele, juntamente com a 
hereditariedade, que dita as personalidades e o destino das 
personagens. Nessa obra de Aluísio Azevedo, vê-se algo que 
antes, no Brasil, não havia sido feito: o espaço assume o papel 
de protagonista. Visto como um organismo, o cortiço é descrito 
em muitos trechos como se fosse ele o ser vivo, e não as 
personagens que nele vivem, meras células que o compõem: 
 
E naquela terra encharcada e fumegante, naquela 
umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a 
crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia 
brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se 
como larvas no esterco. 
Aluísio Azevedo. O cortiço. 25 ed. São Paulo: Ática, 1992, p. 26. 
 
Além disso, é também personificado: 
 
Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, 
abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas 
alinhadas. 
Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma 
assentada sete horas de chumbo. Como que se sentiam ainda 
na indolência de neblina as derradeiras notas da última guitarra 
da noite antecedente, dissolvendo-se à luz loura e tenra da 
aurora, que nem um suspiro de saudade perdido em terra alheia. 
Aluísio Azevedo, op. cit., p. 35. 
 
Há, na obra, três células espaciais: o cortiço São 
Romão (“Carapicus”), que assim como João Romão – nota-se 
uma relação metonímica entre a personagem e o cortiço – 
também ascende socialmente e se

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