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Profª. Cristiane Literatura Página 1 de 18 Realismo O Realismo é uma reação contra o Romantismo: o Romantismo era a apoteose do sentimento; o Realismo é a anatomia do caráter. É a crítica do homem. É a arte que nos pinta os olhos – para condenar o que houver de mal na nossa sociedade. Antônio J. Saraiva e Oscar Lopes, História da Literatura Portuguesa R e a li s m o início fim B ra s il 1881 publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis 1893 publicação de dois livros de Cruz e Sousa: Missal e Broquéis P o rt u g a l 1865 Questão coimbrã 1890 publicação de Oaristos, livro de poemas de Eugênio de Castro O fim do século XIX é um período marcado pela crítica aos ideais românticos e pela supremacia do cientificismo. As inovações científico-tecnológicas muito contribuíram para a formação de uma nova mentalidade; a invenção da máquina a vapor, por exemplo, encurta as distâncias, assim como se torna mais fácil a comunicação entre os homens por meio do telégrafo. O desenvolvimento da industrialização e o crescimento do progresso em toda a Europa somam-se ao enriquecimento da burguesia – e à consequente crítica, principalmente dos artistas, ao seu poder hegemônico – e ao aumento da desigualdade social pela péssima distribuição de renda. A expansão industrial causa êxodo rural e inchaço das grandes cidades. Enquanto Paris se destaca como centro de difusão cultural e da moda, Portugal permanece à margem da Europa moderna. Observe as pinturas de Jean-François Millet1 (1814- 1875) e Honoré Daumier2 (1808-1879) e repare no nível de objetividade que os pintores realistas almejam alcançar, abominada pelos românticos. Inspiradas pela vida cotidiana e pela paisagem natural, as obras plásticas deste período não raro criticam a sociedade e exibem um erotismo que chocou os setores mais conservadores da sociedade europeia. 1 A vida campestre era um dos principais temas das pinturas do artista francês, que criou uma obra realista na qual o principal elemento é a ligação atávica do homem com a terra. Suas paisagens influenciariam, posteriormente, Pissarro e Van Gogh. 2 Caricaturista, chargista, pintor e ilustrador, Honoré Daumier conserva em suas obras a temática dos costumes e o conteúdo social. Utilizando-se de um tratamento difuso da cor, o artista francês prefere Vagão de terceira classe, Honoré Daumier. Metropolitan, Nova York Entre 1850 e 1853, Gustave Courbet (1819-1877), pintor francês que negava a pintura imaginativa romântica e buscava traduzir os costumes e as ideias de sua época, expõe duas de suas obras: Enterro em Ornans e As Banhistas. Em 1855, realiza uma exposição de 41 telas, para a qual dá o nome de O Realismo; justifica-o ao afirmar que o nome lhe foi imposto, assim como impuseram aos homens de 1830 o título de românticos. Courbet chegou a afirmar que “o núcleo do Realismo é a negação do ideal”, e que “O Enterro em Ornans foi o enterro do Romantismo”.3 tonalidades entre ocre e terra para valorizar, a partir da distorção das imagens, uma percepção da realidade que iria além das aparências. 3 Citado por Massaud Moisés, A literatura portuguesa. 33 ed. São Paulo: Cultrix, p. 164. Profª. Cristiane Literatura Página 2 de 18 Enterro em Ornans, Courbet, 1849. Museu D’Orsay, Paris Os quebradores de pedras, Courbet, 1850. Tela destruída por bombardeio em 1945 Em 1857, o francês Gustave Flaubert publica Madame Bovary, romance de análise impiedosa da hipocrisia romântico- burguesa. Tamanho foi o escândalo na França que seu autor foi levado a julgamento. Posteriormente, Eça de Queirós se inspiraria nele para escrever O primo Basílio. A arte dessa época é carregada de convicções científico- metodológicas e busca a objetividade, o predomínio da razão e a crítica social e política. Flaubert chegou a afirmar: “esforço-me por entrar no espartilho e seguir uma linha reta geométrica: nenhum lirismo, nada de reflexões, ausente a personalidade do autor”. Para entender o porquê desse espírito combativo, que fez fervilhar em meados do século XIX uma crítica tão ácida à sociedade, vamos primeiro pensar sobre o contexto histórico e as teorias científico-filosóficas que serviram de embasamento para os artistas realistas. Teorias científico-filosóficas do século XIX O professor Massaud Moisés nos apresenta uma ótima descrição das principais ideias que marcaram o período: A revolução de 1848, seguida do estabelecimento da 2ª República em França e do sufrágio universal, corresponde à ampla transformação cultural. Nesse mesmo ano, Ernst Renan (1832-1892) escreve O Futuro da Ciência, grosso manuscrito contendo um ato de fé no valor da ciência, que o escritor só publica em 1890; em 1863, lança a Vida de Jesus, com a mesma pulsão humanitária e a mesma fidelidade científico-histórica. Auguste Comte (1798-1857) cria o Positivismo com o Curso de Filosofia Positiva, publicado em seis volumes entre 1830 e 1842; apresentando uma sistematização do conhecimento humano em forma de pirâmide cujo vértice seria ocupado pela Sociologia, Comte defende a importância fundamental da Ciência para a vida do homem em sociedade; para tanto, propunha pelo abandono da Teologia e da metafísica em favor duma atitude de espírito voltada para o conhecimento “positivo” da realidade, isto é, concreto, objetivo, passível de análise e experimentação, de forma que, com base no bom senso, se procure saber o “como” das coisas em vez do “porquê”. Refletindo a doutrina positiva, Proudhon (1809- 1865) constrói as bases do pensamento socialista, através de jornais e de obras como Filosofia do Progresso (1835), Princípios de Organização Política (1843), Sistemas das Contradições Econômicas (1846) e Teoria da Propriedade (1866). Ainda com fundamento nas ideias de Comte, Hipólito Taine (1828-1893) tornou-se o verdadeiro teórico do Realismo e do Naturalismo: especialmente em sua História da Literatura Inglesa (1846) e a Filosofia da Arte (1865-1869), expôs a sua teoria determinista da obra de arte, cuja existência obedeceria a leis inflexíveis: a da herança, do meio e do momento, e ao fator dominante, embora variável, que denomina faculte maîtresse. Contemporaneamente, Darwin (1809-1882) publica A Origem das Espécies (1859), uma verdadeira revolução no campo das ciências, sobretudo as biológicas; e Claude Bernard (1813-1878) publica uma Introdução ao Estudo da Medicina Experimental (1865), que tanta influência exerceu sobre o espírito de Zola. Resta ainda considerar as ideias filosóficas de Schopenhauer (1788-1860), de tão relevante presença no pensamento europeu do século XIX: sem negar a Ciência, o pensador alemão pessimistamente considera que o homem, submetido a determinismos morais, é por natureza fadado à dor e ao sofrimento, o mundo um imenso palco de falaciosas ilusões, e a pouca alegria conseguida resulta dum esforço doloroso que logo a destrói. Massaud Moisés. A Literatura Portuguesa. 33 ed. São Paulo: Cultrix, pp. 164-165. Todas essas ideias aqui esboçadas formaram as bases científicas e filosóficas tanto utilizadas pelos autores realistas e, principalmente, pelos naturalistas, os quais buscavam experimentá-las como teses para as suas obras de arte. Realismo versus realismo Assim como ocorre com o termo Romantismo, atitudes “realistas” não podem ser confundidas com o conjunto de padrões estéticos que ficou conhecido como Realismo. É possível utilizar o vocábulo na acepção de imagem crua da realidade; nesse sentido, François Rabelais, escritor sobre o qual já conversamos ao falarmos sobre Idade Média, teria características realistas. Aqui, porém, o termo designa uma escola artística e literáriado século XIX, baseada em um programa estético que pressupõe um vínculo estreito entre a arte, a ciência e a filosofia. Realismo em Portugal A questão coimbrã e as conferências do cassino lisbonense Em 1861, Antero de Quental, poeta português que você vai conhecer na leitura complementar destas aulas, funda a Sociedade do Raio, associação secreta que contava com cerca de duzentos estudantes das faculdades de Coimbra, os quais buscavam a anarquia e a insubordinação em relação ao convencionalismo acadêmico. Dentre os seus feitos revolucionários, destaca-se o rapto do reitor Basílio Alberto em 1863, quando os jovens obrigaram-no a demitir-se do cargo. Em 1864, Teófilo Braga publica Visão dos tempos e Tempestades sonoras, livros de poemas divulgadores das novas ideias; e Antero, em 1865, edita as suas Odes modernas. Nesse meio tempo, Pinheiro Chagas, discípulo do poeta romântico e acadêmico Antônio Feliciano de Castilho, escreve o Poema da mocidade, e é agraciado com um elogioso posfácio do mestre sob a forma de uma Carta ao editor António Maria Pereira. Castilho, ao redor de quem se formou um grupo em que Profª. Cristiane Literatura Página 3 de 18 o formalismo e o academicismo das produções literárias não abriam espaço para as novas ideias4, aproveita a ocasião para criticar o grupo de estudantes de Coimbra, especialmente Antero de Quental e Teófilo Braga, a quem acusava de exibicionistas, obscuros e de tratarem temas que fugiam daquilo que considerava poesia. Acusava-os também de falta de bom senso e bom gosto. Antero prontamente revida as alusões num opúsculo denominado Bom senso e bom gosto, no qual defende a independência dos jovens escritores, aponta a seriedade da missão transformadora que eles, os estudantes, desempenhavam perante a sociedade e a necessidade de serem eles os arautos dos problemas ideológicos da época, além de ridicularizar a futilidade e a insignificância da poesia e da pessoa de Castilho: [...] Levanto-me quando os cabelos brancos de V. Ex.a passam diante de mim. Mas o travesso cérebro que está debaixo e as garridas e pequeninas cousas que saem dele confesso não merecerem, nem admiração, nem respeito, nem ainda estima. A futilidade num velho desgosta-me tanto como a gravidade numa criança. V. Ex.a precisa menos cinquenta anos de idade, ou então mais cinquenta anos de reflexão.5 Estava iniciada a polêmica, posteriormente conhecida como “Questão Coimbrã”. Ela prosseguiria com o folheto Teocracias literárias, de Teófilo Braga, no qual o autor realista afirmava que Castilho apenas era célebre porque cego. Dois partidos se formaram a partir de então: um a favor de Castilho e outro, de Antero. Algumas dezenas de opúsculos foram publicadas pelas duas facções. Assim, a crise da cultura chega a Portugal e introduz no país o Realismo. Depois de formados, os participantes pró-Antero da Questão Coimbrã apenas se reuniriam novamente em 1868, em Lisboa, no grupo Cenáculo – do qual Eça de Queirós fazia parte. Em 1871, os integrantes do grupo decidem organizar um ciclo de conferências públicas com o intuito de discutir abertamente problemas de ordem ideológica. Para tanto, alugam o Cassino Lisbonense, café-concerto onde se reunia a boêmia da época. O cassino lisbonense, onde se reuniam os membros do grupo Cenáculo. Fonte: http://www.esalvide.edu.pt/Recursos/Eca/e_as_confer%C3%AAncias_do_casino_ (cen%C3%A1culo).htm A primeira das conferências, proferida por Antero de Quental, tratava d’O Espírito das Conferências. A seguinte, ainda de Antero, discutia As causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos. Nesta, o autor acusava o catolicismo do Concílio de Trento, o Absolutismo e as Conquistas, e chega a afirmar que “o Cristianismo foi a revolução do mundo antigo; a revolução não é mais do que o Cristianismo do mundo moderno”.6 A terceira conferência, 4 Antero de Quental, em tom irônico, chamaria o grupo de “escola do elogio mútuo”. efetuada por Augusto Seromenho, falava acerca da decadência e da falta de originalidade da Literatura Portuguesa. Eça de Queirós é o responsável pela quarta conferência: A Literatura nova: o realismo como nova expressão da arte, em que critica o Romantismo e defende o Realismo de Courbet e Flaubert, apoiando-se nas ideias socialistas utópicas de Proudhon. A quinta conferência, de Adolfo Coelho, discorria acerca d’A questão do ensino e a sua decadência como resultante da aliança entre a Igreja e o Estado. A sexta conferência não chegou a ser realizada: suspendeu-se o encontro por ofender as leis do reino e o código da monarquia. A geração coimbrã (ou geração de 70) dispersou-se depois da suspensão das conferências, mas conseguiu implantar em Portugal o Realismo a partir dos seus ideais antimonárquicos, anticlericais e antiburgueses. Eça de Queirós (1845-1900) “Sórdido como uma página de Eça de Queirós”: assim se referiu o diretor do periódico O Cruzeiro, certa vez, a um texto que julgava marcado pelo Realismo. Sem dúvida, os textos de Eça chocam pela verdade nua e crua, pela força das descrições e das imagens e por não mascararem a realidade como faziam os escritores românticos. Um dos maiores romancistas da história da literatura portuguesa, cultivou ele a literatura como arma de combate e transformação social. Assim como na obra de outros homens revolucionários de seu tempo, há em grande parte de seus romances uma crítica pesada ao clero, à monarquia e à burguesia. O intuito era analisar meticulosamente o organismo social. O casamento, por exemplo, núcleo da instituição burguesa, é dissecado como algo que se funda em hipócritas convenções sociais e/ou na acomodação trazida pelo dinheiro. Por isso, é tema comum entre os romances realistas o adultério: a moralização da sociedade deveria vir, num primeiro momento, da conscientização do erro. Para os realistas, a criação estética não deveria depender da inspiração, como ocorria com os românticos. O trabalho artístico poderia, nesse sentido, ser comparado a um engenhoso processo laboratorial, em que as análises vão sendo construídas lentamente. É notória a preocupação dos grandes escritores da época com o estilo: deveria haver um total controle sobre todos os elementos da narrativa. Leia este excerto de O primo Basílio e note o cuidado do autor com a descrição minuciosa. O narrador compõe o tipo caricato da solteirona de classe média, representada aqui por D. Felicidade: Aos domingos à noite havia em casa de Jorge uma pequena reunião, uma cavaqueira, na sala, em redor do velho candeeiro de porcelana cor-de-rosa. Vinham apenas os íntimos. O "Engenheiro", como se dizia na rua, vivia muito ao seu canto, sem visitas. Tomava-se chá, palrava-se. Era um pouco à estudante. Luísa fazia croché, Jorge cachimbava. [...] Às nove horas, ordinariamente, entrava D. Felicidade de Noronha. Vinha logo da porta com os braços estendidos, o seu bom sorriso dilatado. Tinha cinquenta anos, era muito nutrida, e, como sofria de dispepsia e de gases, àquela hora não se podia espartilhar e as suas formas transbordavam. Já se viam alguns fios brancos nos seus cabelos levemente anelados, mas a cara era lisa e redonda, cheia, de uma alvura baça e mole de freira; nos olhos papudos, com a pele já engelhada em redor, luzia uma pupila negra e úmida, muito móbil; e aos cantos da boca uns pelos de buço pareciam traços leves e circunflexos de uma pena muito fina. Fora a íntima amiga da mãe de Luísa, e tomara aquele hábito de vir ver a pequena aos domingos. Era fidalga, dos Noronhas de Redondela, bastante aparentada em Lisboa, um pouco devota, muito da Encarnação. Mal entrava, ao pôr um beijo muito cantado na face de Luísa, perguntava-lhe baixo, com inquietação: 5 Citado por MassaudMoisés, op. cit., p. 159. 6 Citado por Massaud Moisés, op. cit, p. 161. Profª. Cristiane Literatura Página 4 de 18 — Vem? — O Conselheiro? Vem. Luísa sabia-o. Porque o Conselheiro, o Conselheiro Acácio, nunca vinha aos "chás de D. Luísa", como ele dizia, sem ter ido na véspera ao Ministério das Obras Públicas procurar Jorge, declarar-lhe com gravidade, curvando um pouco a sua alta estatura: — Jorge, meu amigo, amanhã lá irei pedir à sua boa esposa a minha chávena de chá. Ordinariamente acrescentava: — E os seus valiosos trabalhos progridem? Ainda bem! Se vir o ministro, os meus respeitos a Sua Excelência. Os meus respeitos a esse formoso talento! E saía pisando com solenidade os corredores enxovalhados. Havia cinco anos que D. Felicidade o amava. Em casa de Jorge riam-se um pouco com aquela chama. Luísa dizia: "Ora! E uma caturrice dela!" Viam-na corada e nutrida, e não suspeitavam que aquele sentimento concentrado, irritado semanalmente, queimando em silêncio, a ia devastando como uma doença e desmoralizando como um vício. Todos os seus ardores até aí tinham sido inutilizados. Amara um oficial de lanceiros que morrera, e apenas conservava o seu daguerreótipo. Depois apaixonara-se muito ocultamente por um rapaz padeiro, da vizinhança, e vira-o casar. Dera-se então toda a um cão, o Bilro; uma criada despedida deu-lhe por vingança rolha cozida; o Bilro rebentou, e tinha-o agora empalhado na sala de jantar. A pessoa do Conselheiro viera de repente, um dia, pegar fogo àqueles desejos, sobrepostos como combustíveis antigos. Acácio tornara-se a sua mania: admirava a sua figura e a sua gravidade, arregalava grandes olhos para a sua eloquência, achava-o numa "linda posição". O Conselheiro era a sua ambição e o seu vício! Havia sobretudo nele uma beleza, cuja contemplação demorada a estonteava como um vinho forte: era a calva. Sempre tivera o gosto perverso de certas mulheres pela calva dos homens, e aquele apetite insatisfeito inflamara-se com a idade. Quando se punha a olhar para a calva do Conselheiro, larga, redonda, polida, brilhante às luzes, uma transpiração ansiosa umedecia-lhe as costas, os olhos dardejavam-lhe, tinha uma vontade absurda, ávida de lhe deitar as mãos, palpá-la, sentir-lhe as formas, amassá-la, penetrar-se nela! Mas disfarçava, punha-se a falar alto com um sorriso parvo, abanava-se convulsivamente, e o suor gotejava-lhe nas roscas anafadas do pescoço. Ia para casa rezar estações, impunha-se penitências de muitas coroas à Virgem; mas apenas as orações findavam, começava o temperamento a latejar. E a boa, a pobre D. Felicidade tinha agora pesadelos lascivos e as melancolias do histerismo velho. A indiferença do Conselheiro irritava-a mais: nenhum olhar, nenhum suspiro, nenhuma revelação amorosa e comovida! Era para com ela glacial e polido. Tinham-se às vezes encontrado a sós, à parte, no vão favorável de uma janela, no isolamento mal-alumiado de um canto do sofá – mas apenas ela fazia uma demonstração sentimental, ele erguia-se bruscamente, afastava-se, severo e pudico. Um dia ela julgara perceber que, por trás das suas lunetas escuras, o Conselheiro lhe deitava de revés um olhar apreciador para a abundância do seio; fora mais clara, mais urgente, falara em paixão, disse-lhe baixo: "Acácio! Mas ele com um gesto gelou-a – e de pé, grave: — Minha senhora, As neves que na fronte se acumulam Terminam por cair no coração... — É inútil, minha senhora! 7 Personagem bíblica que teria preferido morrer a ingerir alimentos impuros. A crítica foi publicada no jornal O Cruzeiro, no qual, periodicamente, Machado publicava capítulos de Iaiá Garcia, obra ainda marcada pelo Romantismo. O martírio de D. Felicidade era muito oculto, muito disfarçado: ninguém o sabia; conheciam-lhe as infelicidades do sentimento, ignoravam-lhe as torturas do desejo. E um dia Luísa ficou atônita, sentindo D. Felicidade agarrar-lhe o pulso com a mão úmida, e dizer-lhe baixo, os olhos cravados no Conselheiro: — Que regalo de homem! Eça de Queirós, O Primo Basílio. São Paulo: Moderna, 1995, p. 32 a 35. A produção literária de Eça de Queirós pode ser dividida em três fases: – Artigos e crônicas jornalísticas (1866-1875): fase de preparação de um escritor jovem e ainda romântico. Seus textos dessa época foram postumamente coligidos no volume Prosas bárbaras. Estilisticamente é a fase menos importante de Eça. – Realismo iconoclasta (1875-1888): fase mais sórdida e “imoral” de Eça, que se inicia com a publicação de O crime do padre Amaro e se estende, aproximadamente, até a publicação de Os Maias. Influenciado por Flaubert e Balzac, é o período mais combativo e revolucionário do autor, comprometido com o ideário da “geração de 70”: o combate às instituições (monarquia, clero e burguesia). Aqui, já enxergamos o veio perfeccionista do estilo de Eça: fluência, precisão, naturalidade; além de aspectos que o marcariam tão fortemente como a ironia, a sátira e um certo lirismo melancólico. – Obra de sentido construtivo (1888-1900): fase mais madura do autor, em que ele supera a ironia zombeteira e o esteticismo cientificista da fase anterior e substitui o pessimismo e o derrotismo pelo otimismo e pela esperança. A linguagem objetiva anteriormente utilizada é, também, gradativamente substituída por um lirismo poético. A cidade e as serras (1901 – obra póstuma) se enquadra nessa fase. Eça é considerado por muitos melhor escritor do que romancista. O próprio Machado de Assis, na fase romântica de sua carreira, sob o pseudônimo Eleazar7, teceu uma crítica feroz a Eça, especialmente ao romance O primo Basílio. Desdenhou do caráter naturalista da obra8, criticou a erotização exagerada do enredo e do vocabulário e o comportamento vazio e gratuito de determinadas personagens: [...] a Luísa – força é dizê-lo – a Luísa é um caráter negativo, e no meio da ação ideada pelo autor, é antes um títere9 do que uma pessoa moral. Repito, é um títere; não quero dizer que não tenha nervos e músculos; não tem mesmo outra coisa; não lhe peçam paixões nem remorsos; menos ainda consciência. [...] Um leitor perspicaz terá já visto a incongruência da concepção do Sr. Eça de Queirós, e a inanidade do caráter da 8 Apesar de ser um escritor notoriamente realista, Eça possui obras e personagens claramente marcadas pelo Naturalismo, escola que estudaremos nas aulas 26 e 27 deste caderno. 9 marionete Profª. Cristiane Literatura Página 5 de 18 heroína. Suponhamos que tais cartas não eram descobertas, ou que Juliana não tinha a malícia de as procurar, ou enfim que não havia semelhante fâmula em casa, nem outra da mesma índole. Estava acabado o romance, porque o primo enfastiado seguiria para França, e Jorge regressaria do Alentejo; os dois esposos voltavam à vida exterior. Para obviar a esse inconveniente, o autor inventou a criada e o episódio das cartas, as ameaças, as humilhações, as angústias e logo a doença, e a morte da heroína. Como é que um espírito tão esclarecido, como o do autor, não viu que semelhante concepção era a coisa menos congruente e interessante do mundo? Que temos nós com essa luta intestina entre a ama e a criada, e em que nos pode interessar a doença de uma e a morte de ambas? Cá fora, uma senhora que sucumbisse às hostilidades de pessoa de seu serviço, em consequência de cartas extraviadas, despertaria certamente grande interesse, e imensa curiosidade; e, ou a condenássemos, ou lhe perdoássemos, era sempre um caso digno de lástima. No livro é outra coisa. Para que Luísa me atraia e me prenda, é preciso que as tribulações que a afligem venham dela mesma; seja uma rebelde ou uma arrependida;tenha remorsos ou imprecações; mas, por Deus! dê-me a sua pessoa moral. Gastar o aço da paciência a fazer tapar a boca de uma cobiça subalterna, a substituí-la nos misteres ínfimos, a defendê-la dos ralhos do marido, é cortar todo o vínculo moral entre ela e nós. Já nenhum há, quando Luísa adoece e morre. Por quê? Porque sabemos que a catástrofe é o resultado de uma circunstância fortuita, e nada mais; e consequentemente por esta razão capital: Luísa não tem remorsos tem medo. [...] E passemos agora ao mais grave, ao gravíssimo. Parece que o Sr. Eça de Queirós quis dar-nos na heroína um produto da educação frívola e da vida ociosa; não obstante, há aí traços que fazem supor, à primeira vista, uma vocação sensual. A razão disso é a fatalidade das obras do Sr. Eça de Queirós – ou, noutros termos, do seu realismo sem condescendência: é a sensação física. Os exemplos acumulam- se de página a página; apontá-los, seria reuni-los e agravar o que há neles desvendado e cru. Os que de boa fé supõem defender o livro, dizendo que podia ser expurgado de algumas cenas, para só ficar o pensamento moral ou social que o engendrou, esquecem ou não reparam que isso é justamente a medula da composição. Há episódios mais crus do que outros. Que importa eliminá-los? Não poderíamos eliminar o tom do livro. Ora, o tom é o espetáculo dos ardores, exigências e perversões físicas. Quando o fato lhe não parece bastante caracterizado com o termo próprio, o autor acrescenta-lhe outro impróprio. De uma carvoeira, à porta da loja, diz ele que apresentava a "gravidez bestial". Bestial por quê? Naturalmente, porque o adjetivo avoluma o substantivo e o autor não vê ali o sinal da maternidade humana; vê um fenômeno animal, nada mais. Machado de Assis in “O Cruzeiro”, 16 abr. 1878. Sem dúvida Machado se preocuparia com outros ângulos de observação. Diferentemente de Eça, viria a desenvolver um realismo psicológico e, talvez por isso, acusa o autor português de expor a realidade antes de filtrá-la. Para o prof. Roberto Juliano: N’O primo Basílio, porém, a crítica de Machado de Assis parece ricochetear, não se encaixa e desconhece um fato simples: aquilo que valoriza, isto é, a dramaticidade, a tensão entre as personagens, as relações de causa e feito, as ações que desencadeiam, todos esses valores acabariam sendo deixados de lado voluntariamente (e provisoriamente!) no estilo novo em que Eça trabalhava. Roberto Gonçalves Juliano. Honra e paixão: a verdadeira história de um primo chamado Basílio. Santo André: Alpharrabio, 2002, p. 27. Ler Eça impressiona, tanto pelo estilo impecável do escritor como pelo antirromantismo que impregna seus romances. Assim, é natural que mesmo para os brasileiros do fim do século XIX e início do século XX venha ele a calhar com o ideal de modernidade e de construção de uma nova cultura, fundada no discernimento do cidadão de classe média. Leitura complementar Leia o texto abaixo, extraído de A literatura portuguesa de Massaud Moisés, sobre a poesia da época realista em Portugal, e também alguns poemas dos maiores nomes da poesia portuguesa do período. [...] A poesia da época do Realismo retoma a altura e o prestígio lírico de Bocage e Camões. Talvez porque o poema se tornasse o molde ideal para fundir as ideias candentes no espírito da geração realista e mais facilmente comunicasse o seu conteúdo explosivo, o certo é que os realistas portugueses não descuraram da poesia e conseguiram atingir níveis de primeira grandeza, acabando por fazer do Realismo uma época de intensa atividade poética. Ao contrário do Romantismo, é uma quadra de muitos e grandes poetas. Em consonância com a ideologia que norteou a geração realista, a poesia da época segue várias direções: a poesia “realista”, a poesia do cotidiano, a poesia metafísica e a poesia de veleidades parnasianas. A poesia realista A poesia realista deve ser entendida como aquela que serviu, de modo direto, aos desígnios reformistas da geração realista: sem se confundir com o Parnasianismo (como querem alguns), essa poesia é a que teve caráter revolucionário, serviu como arma de combate, de ação, em suma, poesia a serviço da causa realista, o que equivale a dizer poesia compromissada ou engageé. Estão nesse caso, ao menos em parte de sua trajetória, Guerra Junqueiro, Gomes Leal, Antero de Quental, Teófilo Braga e outros. Gomes Leal (1848-1921) O visionário ou Som e cor A Eça de Queirós Eu tenho ouvido as sinfonias das plantas. Eu sou um visionário, um sábio apedrejado, passo a vida a fazer e a desfazer quimeras, enquanto o mar produz o monstro azulejado e Deus, em cima, faz as verdes primaveras. Sobre o mundo onde estou encontro-me isolado, e erro como estrangeiro ou homem doutras eras, talvez por um contrato irônico lavrado que fiz e já não sei noutras subtis esferas. A espada da Teoria, o austero Pensamento, não mataram em mim o antigo sentimento, embriagam-me o Sol e os cânticos do dia... E obedecendo ainda a meus velhos amores, procuro em toda a parte a música das cores, – e nas tintas da flor achei a Melodia. In Massaud Moisés. A literatura portuguesa através dos tempos. 25 ed. São Paulo: Cultrix, 1997, p. 328-329. A poesia do cotidiano Profª. Cristiane Literatura Página 6 de 18 Pierre Auguste Renoir, Baile no Moulin de La Galette. Parcialmente ligada à poesia “realista” está a poesia do cotidiano. Por esse rótulo se entende a preocupação não- consciente nem programática de infringir as tradicionais regras do jogo estético (que implicavam um conceito de hierarquia e a aceitação duma tábua rígida de valores) e de considerar dignos de nota os aspectos da realidade considerados até então apoéticos ou, pelo menos, alíricos. Noutros termos, significava uma novidade meio à ovo de Colombo: a poetização do prosaico, do cotidiano, daquilo que parece significar pouco para o homem prático, acomodado e despreocupado de outros problemas que não os da subsistência fisiológica. Pela primeira vez, o lirismo tentava, com a força própria das novidades, lançar a atenção sobre o prosaico diário, inclusive nos seus aspectos julgados repelentes, grotescos ou ridículos, quando não apenas fora do interesse poético. Ao mesmo tempo, correspondia à tentativa de fazer poesia “objetiva”, centrada no objeto e não no sujeito, dessa forma deslocando o eixo de interesse poético para fora do “eu” do poeta. Por outro lado, esse novo gênero de “aproximação” lírica da realidade vinha isento de intuitos revolucionários ou sociais, salvo ocasionalmente; ao contrário, preocupava-se com fugir à equação “eu-te-gosto-você-me-gosta” que fizera o apanágio do Romantismo sentimental e piegas, e realizar uma poesia debruçada sobre os motivos sugeridos pela realidade histórica e concreta. Quase uma despoetização do ato poético, a poesia do cotidiano nasceria da impressão que o “fora” deixa no “dentro” do sujeito. Por isso, é fácil compreender suas coincidências com a pintura impressionista, que procede exatamente do mesmo modo em face da realidade plástica: o artista procura surpreender o “momento” em que os objetos, imersos numa dada relação de luz e sombra, ganham individualidade; ou melhor, o pintor fixa a “impressão” que as coisas lhe deixam na sensibilidade, numa infinitesimal fração de tempo. Quem realizou a poesia do cotidiano em Portugal foi Cesário Verde. Massaud Moisés, op. cit. Cesário Verde (1855-1886) O sentimento de um ocidental (excerto) A Guerra Junqueiro Aves - Marias Nas nossas ruas, ao anoitecer, Há tal soturnidade, há tal melancolia, Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia Despertam-me um desejo absurdo de sofrer. O céu parece baixo e de neblina, O gás extravasado enjoa-me, perturba-me; E os edifícios, com as chaminés, e a turbaToldam-se duma cor monótona e londrina. Batem os carros de aluguer, ao fundo, Levando à via-férrea os que se vão. Felizes! Ocorrem-me em revista, exposições, países: Madrid, Paris, Berlim, Sampetersburgo, o mundo! Semelham-se a gaiolas, com viveiros, As edificações somente emadeiradas: Como morcegos, ao cair das badaladas, Saltam de viga em viga, os mestres carpinteiros. Voltam os calafates, aos magotes, De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos, Embrenho-me a cismar, por boqueirões, por becos, Ou erro pelos cais a que se atracam botes. E evoco, então, as crónicas navais: Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado! Singram soberbas naus que eu não verei jamais! E o fim da tarde inspira-me; e incomoda! De um couraçado inglês vogam os escaleres; E em terra num tinido de louças e talheres Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda. Num trem de praça arengam dois dentistas; Um trôpego arlequim braceja numas andas; Os querubins do lar flutuam nas varandas; Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas! Vazam-se os arsenais e as oficinas; Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras; E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras, Correndo com firmeza, assomam as varinas. Vêm sacudindo as ancas opulentas! Seus troncos varonis recordam-me pilastras; E algumas, à cabeça, embalam nas canastras Os filhos que depois naufragam nas tormentas. Descalças! Nas descargas de carvão, Desde manhã à noite, a bordo das fragatas; E apinham-se num bairro aonde miam gatas, E o peixe podre gera os focos de infecção! In Massaud Moisés, op. cit., pp. 336-337. A poesia metafísica À poesia do cotidiano contrapõe-se uma tendência poética de sentido contrário, dirigida para a resposta às indagações que a consciência do homem formula, desde sempre, entre aterrada e esperançosa: “que sou?”, “por que sou?”, “de onde vim?”, “para onde vou?”, “que é que vale?”, “por que a morte?”, etc. Trata-se, como se nota, de poesia metafísica, ou transcendental. Correspondendo a uma linha de força que remonta à Idade Média, com a cantiga de amor, a poesia de elucubração existencial permaneceu em Camões e Bocage. No século XIX, afora incidentais ressurgências em Soares de Passos, João de Deus, Gomes Leal e Guerra Junqueiro, é em Antero de Quental que esse gênero de poesia encontra o seu mais alto representante. Neste século [XX], continua ainda presente na cosmovisão de Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, José Régio, Miguel Torga e outros. Basta o enunciado dos nomes que compõem o elenco principal de poetas com tendência metafísica, para se verificar que representam o melhor da poesia portuguesa em sua evolução histórica. Todavia, é paradoxal que o seja, pois o caráter marcadamente confessional e ególatra do lirismo português faria supor o contrário. O fenômeno tem explicação: a Profª. Cristiane Literatura Página 7 de 18 poesia metafísica nasceria sempre como uma via de escape à angústia geográfica, histórica e cultural em que vive o homem português, encurralado num território diminuto entre o continente europeu e o Oceano Atlântico. Pelas características próprias assumidas pelo movimento realista em Portugal, essa angústia chega ao paroxismo, superando a restante atividade poética e inclusive desrespeitando os postulados positivistas, que subestimavam as cogitações metafísicas e sugeriam uma poesia experimental, a serviço da revolução social em marcha. Massaud Moisés, op.cit. Antero de Quental (1842- 1891) O Palácio da Ventura Sonho que sou um cavaleiro andante. Por desertos, por sóis, por noite escura, Paladino do amor, busca anelante O palácio encantado da Ventura! Mas já desmaio, exausto e vacilante, Quebrada a espada já, rota a armadura... E eis que súbito o avisto, fulgurante Na sua pompa e aérea formosura! Com grandes golpes bato à porta e brado: Eu sou o Vagabundo, o Deserdado... Abri-vos, portas d'ouro, ante meus ais! Abrem-se as portas d'ouro, com fragor... Mas dentro encontro só, cheio de dor, Silêncio e escuridão – e nada mais! In Massaud Moisés, op. cit., pp. 347-348. Realismo no Brasil A genialidade de Machado de Assis Se voltarmos porém as vistas para Machado de Assis, veremos que esse mestre admirável se embebeu meticulosamente da obra de seus predecessores. A sua linha evolutiva mostra o escritor altamente consciente, que compreendeu o que havia de certo , de definitivo, na orientação de Macedo para a descrição de costumes, no realismo sadio e colorido de Manuel Antônio, na vocação analítica de José de Alencar. Ele pressupõe a existência dos predecessores, e esta é uma das razões da sua grandeza: numa literatura em que, a cada geração, os melhores recomeçam da capo e os medíocres continuam o passado, ele aplicou o seu gênio em assimilar, aprofundar, fecundar o legado positivo das experiências anteriores. Este é o segredo da sua independência em relação aos contemporâneos europeus, do seu alheamento às obras literárias de Portugal e França. Esta, a razão de não terem muitos críticos sabido onde classificá-lo. Antonio Candido, Formação da Literatura Brasileira. Contexto histórico brasileiro O momento histórico que cerca o Realismo no Brasil é marcado pela extinção do tráfico negreiro, pela decadência da economia açucareira e por divergências entre o Segundo Império, a Igreja e o Exército. É um período de proliferação das ideias liberais, abolicionistas e republicanas. Em 1888 assina-se a lei Áurea, a qual, apesar de apregoar a abolição da escravatura, condena os negros à marginalização social. Em 1889, proclama-se a República, e o marechal Deodoro da Fonseca torna-se nosso primeiro presidente. 10 Alfredo Bosi, História Concisa da Literatura Brasileira. 3 ed, São Paulo: Cultrix, 1995. Realismo no Brasil: Machado de Assis (1839-1908) Antonio Candido, ao escrever sua tão importante Formação da Literatura Brasileira, não falou sobre o Realismo; partiu do pressuposto de que a Literatura Brasileira, a partir de então, já estaria formada. Sem dúvida, o grande nome do Realismo no Brasil, Machado de Assis – autor que cultivou a crônica, o conto, o romance, a poesia e o teatro – é a demonstração mais clara de que entraríamos no século XX com a nossa literatura mais amadurecida. Filho de mulato, autodidata, já aos quinze anos publicou seu primeiro poema. Fundador da Academia Brasileira de Letras em 1887, é um escritor reflexivo e consciente, dotado de uma sutileza para os detalhes e de um humor característico que, muitas vezes, dá um tom sério ao ridículo ou traz leveza ao sério. Sem cometer os excessos sentimentais do Romantismo ou a frieza cientificista do Naturalismo, escola que estudaremos nas próximas aulas, o autor de Dom Casmurro pode ser considerado o “ponto mais alto e mais equilibrado da prosa realista brasileira”10, e é nele e em algumas de suas obras mais importantes que concentraremos nossos estudos agora. As duas fases de Machado Dois momentos houve em sua carreira. O primeiro seria quase uma preparação para o segundo, e é marcado por obras consideradas românticas, presas às características mais gerais do romance do século XIX, em que personagens femininas defendem a ambição de mudar de classe social e buscam um novo status, mesmo que, para tanto, tenham de sacrificar o plano afetivo. Enquadram-se nessa fase romances como Ressurreição (1872), A mão e a luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878). No segundo grupo, os romances constroem-se em torno da análise dos caracteres, daí o chamado realismo psicológico. A partir de um humor desencantado – embora risonho – e de uma ironia peculiar, que se manifesta por meio de uma brutal diferença entre os discursos das personagens e o doautor, Machado surpreende “gestos e atos quotidianos, como reflexos da simulação e da vaidade”11. O meio, diferentemente do que ocorre em Eça de Queirós, é trabalhado apenas em seus detalhes mais especiais, sob a ótica das personagens. O ambiente e a sociedade carioca são dissecados de tal forma que superam na crítica as limitações locais. Para José Aderaldo Castello, a segunda fase de Machado, apesar do notório amadurecimento do escritor, está diretamente vinculada à primeira: Na verdade, o que se exprimiria no conto, a partir de “O Alienista” e no romance, a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas, resultaria da retomada sintética da visão da sociedade e 11 Antonio Candido e José Aderaldo Castello. Presença da Literatura Brasileira – das origens ao Realismo. 13 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008, p. 300. Profª. Cristiane Literatura Página 8 de 18 do homem, proveniente da chamada primeira fase, relacionada com a reflexão filosófica e a análise psicológica, que se enriquecem e caminham a passo largo para a maturidade. Neste caso, a transformação mais substancial é exatamente a que decorre do amadurecimento da ideia de que o homem e sua condição existencial importam muito mais do que a sua subordinação ao contexto social e condicionador em termos presentes. Quer dizer, o compromisso do homem com a sociedade deriva existencialmente de uma cadeia hereditária multissecular, de ideias e valores. Latentes em geral, essas ideias e valores podem fazer-se indiscriminadamente atuantes, em limites de tempo histórico e espaço social, por força das relações do indivíduo com a sociedade, com determinado sistema ético. [...] O homem deixava de ser visto através da sociedade – o que caracterizava de uma maneira geral a narrativa ficcional do século XIX –, enquanto a sociedade é que passava a ser vista através do homem. Sem prejuízo da primeira, o romancista enfatiza a condição existencial, e a narrativa ficcional ganhava artística e formalmente. José Aderaldo Castello, A Literatura Brasileira – origens e unidade. Vol. I. São Paulo: Edusp, 1999, p. 380. Nessa segunda fase, Machado relata-nos a precariedade existencial de um ser humano que nada mais é do que um joguete na mão de forças desconhecidas. Seus personagens são, a partir de então, complexos, contraditórios e internamente perplexos. A maturidade das Memórias póstumas de Brás Cubas Na obra que serviu como divisor de águas da carreira literária de Machado de Assis e também como marco inicial do Realismo no Brasil, as Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), um defunto-autor (o impossível mostra-se real diante de nossas vistas) conta-nos a história de sua vida e, por estar morto, acima (ou abaixo?) do bem e do mal, é provocador, volúvel e desrespeitador de normas: Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no introito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco12. Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta- feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia – peneirava – uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa ideia no discurso que proferiu à beira de minha cova: – “Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que têm honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado”. 12 Os cinco primeiros livros do Velho Testamento, atribuídos a Moisés. Note, nesta passagem, que o narrador não apenas se compara a Moisés e à Bíblia, o livro mais lido do mundo, como se diz melhor, mais original. Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei. Machado de Assis. Memórias póstumas de Brás Cubas. 28 ed. São Paulo: Ática, 2004, p. 17. O desrespeito com a verossimilhança realista não a desmancha de todo. Cabe a nós, leitores, não buscar a verdade ou a coerência de sua fala, mas “admirar o descaramento e o virtuosismo com que são manejadas”13. Sobre esses parágrafos iniciais da obra, comenta o professor Roberto Schwarz: O leitor terá sentido que a cada proposição de nosso parágrafo a fisionomia de Brás é outra. O tipo que na primeira linha hesita quanto à melhor maneira de compor memórias não é o mesmo que em seguida promete, como se nada fosse, esclarecimentos sobre a própria morte. Este por sua vez não é o mesmo que providencia para se distanciar do vulgo, que não é o mesmo que se compraz no paradoxo do defunto autor, que não é o mesmo da preocupação com o galante e o novo, e portanto com a moda, que não é o mesmo da piada sobre o Pentateuco. O revezamento das poses é sem transição, um exercício de volubilidade, e o resultado literário depende da viveza e frequência dos contrastes. Para completar, a prosa culta – que é pose ela também – empresta um verniz de respeitabilidade a pulos, manobras e transformações do narrador, o que lhe disfarça o lado gritante da desfaçatez, ao mesmo tempo que aprofunda o seu tipo social, além naturalmente de causar uma desproporção cômica. Seja como for, é um andamento que supõe efeitos calculados a cada passo, e uma prosa como que escrita diante do espelho. As personificações têm que se erguer e completar no espaço de uma frase, ficando um olho na que veio antes, outro na que vem depois, e um terceiro o leitor, sem o que não se assegura o imprevisto indispensável à vida deste ritmo. É fato que a sua dimensão exibicionista e manipulativa constrange, induzindo uma leitura animada de reservas e má vontade. Estas serão resgatadas e manipuladas por sua vez (“não esteja daí a torcer- me o nariz”), fazendo que o leitor experimente na própria pele o relacionamento que o livro estuda. Qual fisionomia de Brás é verdadeira? Está claro que nenhuma em particular. [...] Noutras palavras, faltando credibilidade ao narrador, as feições que constantemente ele veste e desveste têm verdade incerta, e tornam-se elemento de provocação, esta sim indiscutível. Roberto Schwarz, Um mestre na periferia do capitalismo. 4 ed. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000, p. 22-23. Algumas características das Memórias póstumas tornar-se-iam marca estilística do autor em romances posteriores: anticlímax marcado pela quebra de expectativa – ridicularização de clichês; digressões; capítulos curtos, não necessariamente dispostos em ordem cronológica; diálogos recorrentes com o leitor – característica que já havia aparecido nas Memórias de um sargento de milícias – e especulações filosóficas, muitas delas pessimistas, acerca da condição humana. Os livros de Machado de Assis servem de palco para os mais diversos acontecimentos históricos brasileiros e mostram as contradições de uma elite precária e antiquada que busca aparentar ser moderna, avançada e liberal. No segundo semestre, estudaremos com maispropriedade o romance Quincas Borba, segundo romance realista publicado por Machado de Assis. 13 Roberto Schwarz, Um mestre na periferia do capitalismo. 4 ed. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000. Profª. Cristiane Literatura Página 9 de 18 Leitura complementar Leia agora um conto machadiano publicado no livro Papéis avulsos e mergulhe na viagem do duplo, refletindo sobre o quanto a questão da aparência X essência é presente na obra machadiana. O espelho Esboço de uma nova teoria da alma humana Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo. Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que falavam; mas, além deles, havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um ou outro resmungo de aprovação. Esse homem tinha a mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cinquenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico. Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo que a discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial; e acrescentava que os serafins e os querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual e eterna. Como desse esta mesma resposta naquela noite, contestou-lha um dos presentes, e desafiou-o a demonstrar o que dizia, se era capaz. Jacobina (assim se chamava ele) refletiu um instante, e respondeu: – Pensando bem, talvez o senhor tenha razão. Vai senão quando, no meio da noite, sucedeu que este casmurro usou da palavra, e não dois ou três minutos, mas trinta ou quarenta. A conversa, em seus meandros, veio a cair na natureza da alma, ponto que dividiu radicalmente os quatro amigos. Cada cabeça, cada sentença; não só o acordo, mas a mesma discussão tornou-se difícil, senão impossível, pela multiplicidade das questões que se deduziram do tronco principal e um pouco, talvez, pela inconsistência dos pareceres. Um dos argumentadores pediu ao Jacobina alguma opinião, – uma conjetura, ao menos. – Nem conjetura, nem opinião, redarguiu ele; uma ou outra pode dar lugar a dissentimento, e, como sabem, eu não discuto. Mas, se querem ouvir-me calados, posso contar-lhes um caso de minha vida, em que ressalta a mais clara demonstração acerca da matéria de que se trata. Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas... – Duas? – Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para entro... Espantem-se à vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; – e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira. Shylock, por exemplo. A alma exterior daquele judeu eram os seus ducados; perdê-los equivalia a morrer. "Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me enterras no coração." Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma exterior, era a morte para ele. Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma... – Não? – Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas e exclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de natureza mudável. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos. Pela minha parte, conheço uma senhora, – na verdade, gentilíssima, – que muda de alma exterior cinco, seis vezes por ano. Durante a estação lírica é a ópera; cessando a estação, a alma exterior substitui-se por outra: um concerto, um baile do Cassino, a rua do Ouvidor, Petrópolis... – Perdão; essa senhora quem é? – Essa senhora é parenta do diabo, e tem o mesmo nome; chama-se Legião... E assim outros mais casos. Eu mesmo tenho experimentado dessas trocas. Não as relato, porque iria longe; restrinjo-me ao episódio de que lhes falei. Um episódio dos meus vinte e cinco anos... Os quatro companheiros, ansiosos de ouvir o caso prometido, esqueceram a controvérsia. Santa curiosidade! tu não és só a alma da civilização, és também o pomo da concórdia, fruta divina, de outro sabor que não aquele pomo da mitologia. A sala, até há pouco ruidosa de física e metafísica, é agora um mar morto; todos os olhos estão no Jacobina, que conserta a ponta do charuto, recolhendo as memórias. Eis aqui como ele começou a narração: – Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da Guarda Nacional. Não imaginam o acontecimento que isto foi em nossa casa. Minha mãe ficou tão orgulhosa! tão contente! Chamava-me o seu alferes. Primos e tios, foi tudo uma alegria sincera e pura. Na vila, note-se bem, houve alguns despeitados; choro e ranger de dentes, como na Escritura; e o motivo não foi outro senão que o posto tinha muitos candidatos e que esses perderam. Suponho também que uma parte do desgosto foi inteiramente gratuita: nasceu da simples distinção. Lembra-me de alguns rapazes, que se davam comigo, e passaram a olhar-me de revés, durante algum tempo. Em compensação, tive muitas pessoas que ficaram satisfeitas com a nomeação; e a prova é que todo o fardamento me foi dado por amigos... Vai então uma das minhas tias, D. Marcolina, viúva do Capitão Peçanha, que morava a muitas léguas da vila, num sítio escuso e solitário, desejou ver-me, e pediu que fosse ter com ela e levasse a farda. Fui, acompanhado de um pajem, que daí a dias tornou à vila, porque a tia Marcolina, apenas me pilhou no sítio, escreveu a minha mãe dizendo que não me soltava antes de um mês, pelo menos. E abraçava-me! Chamava-me também o seu alferes. Achava-me um rapagão bonito. Como era um tanto patusca, chegou a confessar que tinha inveja da moça que houvesse de ser minha mulher. Jurava que em toda a província não havia outro que me pusesse o pé adiante. E sempre alferes; era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda a hora. Eu pedia-lhe que me chamasse Joãozinho, como dantes; e ela abanava a cabeça, bradando que não, que era o "senhor alferes". Um cunhado dela, irmão do finado Peçanha, que ali morava, não me chamava de outra maneira. Era o "senhor alferes", não por gracejo, mas a sério, e à vista dos escravos, que naturalmente foram pelo mesmo caminho. Na mesa tinha eu o melhor lugar, e era o primeiro servido. Não imaginam. Se lhes disser que o entusiasmo da tia Marcolina chegou ao ponto de mandar pôr no meu quarto um grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples... Era um espelho que lhedera a madrinha, e que esta herdara da mãe, que o comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de D. João VI. Não sei o que havia nisso de verdade; era a tradição. O espelho estava naturalmente muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em parte pelo tempo, uns delfins esculpidos nos ângulos superiores da Profª. Cristiane Literatura Página 10 de 18 moldura, uns enfeites de madrepérola e outros caprichos do artista. Tudo velho, mas bom... – Espelho grande? – Grande. E foi, como digo, uma enorme fineza, porque o espelho estava na sala; era a melhor peça da casa. Mas não houve forças que a demovessem do propósito; respondia que não fazia falta, que era só por algumas semanas, e finalmente que o "senhor alferes" merecia muito mais. O certo é que todas essas coisas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram em mim uma transformação, que o natural sentimento da mocidade ajudou e completou. Imaginam, creio eu? – Não. – O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado. Custa-lhes acreditar, não? – Custa-me até entender, respondeu um dos ouvintes. – Vai entender. Os fatos explicarão melhor os sentimentos: os fatos são tudo. A melhor definição do amor não vale um beijo de moça namorada; e, se bem me lembro, um filósofo antigo demonstrou o movimento andando. Vamos aos fatos. Vamos ver como, ao tempo em que a consciência do homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva e intensa. As dores humanas, as alegrias humanas, se eram só isso, mal obtinham de mim uma compaixão apática ou um sorriso de favor. No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes. Ora, um dia recebeu a tia Marcolina uma notícia grave; uma de suas filhas, casada com um lavrador residente dali a cinco léguas, estava mal e à morte. Adeus, sobrinho! adeus, alferes! Era mãe extremosa, armou logo uma viagem, pediu ao cunhado que fosse com ela, e a mim que tomasse conta do sítio. Creio que, se não fosse a aflição, disporia o contrário; deixaria o cunhado e iria comigo. Mas o certo é que fiquei só, com os poucos escravos da casa. Confesso-lhes que desde logo senti uma grande opressão, alguma coisa semelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere, subitamente levantadas em torno de mim. Era a alma exterior que se reduzia; estava agora limitada a alguns espíritos boçais. O alferes continuava a dominar em mim, embora a vida fosse menos intensa, e a consciência mais débil. Os escravos punham uma nota de humildade nas suas cortesias, que de certa maneira compensava a afeição dos parentes e a intimidade doméstica interrompida. Notei mesmo, naquela noite, que eles redobravam de respeito, de alegria, de protestos. Nhô alferes, de minuto a minuto; nhô alferes é muito bonito; nhô alferes há de ser coronel; nhô alferes há de casar com moça bonita, filha de general; um concerto de louvores e profecias, que me deixou extático. Ah! pérfidos! mal podia eu suspeitar a intenção secreta dos malvados. – Matá-lo? – Antes assim fosse. – Coisa pior? – Ouçam-me. Na manhã seguinte achei-me só. Os velhacos, seduzidos por outros, ou de movimento próprio, tinham resolvido fugir durante a noite; e assim fizeram. Achei- me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do terreiro deserto e da roça abandonada. Nenhum fôlego humano. Corri a casa toda, a senzala, tudo; ninguém, um molequinho que fosse. Galos e galinhas tão-somente, um par de mulas, que filosofavam a vida, sacudindo as moscas, e três bois. Os mesmos cães foram levados pelos escravos. Nenhum ente humano. Parece-lhes que isto era melhor do que ter morrido? era pior. Não por medo; juro-lhes que não tinha medo; era um pouco atrevidinho, tanto que não senti nada, durante as primeiras horas. Fiquei triste por causa do dano causado à tia Marcolina; fiquei também um pouco perplexo, não sabendo se devia ir ter com ela, para lhe dar a triste notícia, ou ficar tomando conta da casa. Adotei o segundo alvitre, para não desamparar a casa, e porque, se a minha prima enferma estava mal, eu ia somente aumentar a dor da mãe, sem remédio nenhum; finalmente, esperei que o irmão do tio Peçanha voltasse naquele dia ou no outro, visto que tinha saído havia já trinta e seis horas. Mas a manhã passou sem vestígio dele; à tarde comecei a sentir a sensação como de pessoa que houvesse perdido toda a ação nervosa, e não tivesse consciência da ação muscular. O irmão do tio Peçanha não voltou nesse dia, nem no outro, nem em toda aquela semana. Minha solidão tomou proporções enormes. Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a século no velho relógio da sala, cuja pêndula tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade. Quando, muitos anos depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow, e topei este famoso estribilho: Never, for ever! – For ever, never! confesso-lhes que tive um calafrio: recordei-me daqueles dias medonhos. Era justamente assim que fazia o relógio da tia Marcolina: – Never, for ever! – For ever, never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada. E então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita, ou mais larga. Tic-tac, tic-tac. Ninguém, nas salas, na varanda, nos corredores, no terreiro, ninguém em parte nenhuma... Riem-se? – Sim, parece que tinha um pouco de medo. – Oh! fora bom se eu pudesse ter medo! Viveria. Mas o característico daquela situação é que eu nem sequer podia ter medo, isto é, o medo vulgarmente entendido. Tinha uma sensação inexplicável. Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico. Dormindo, era outra coisa. O sono dava-me alívio, não pela razão comum de ser irmão da morte, mas por outra. Acho que posso explicar assim esse fenômeno: – o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes; vinha um amigo de nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de capitão ou major; e tudo isso fazia-me viver. Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único – porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar... Não tornava. Eu saía fora, a um lado e outro, a ver se descobria algum sinal de regresso. Soeur Anne, soeur Anne, ne vois-tu rien venir? Nada, coisa nenhuma; tal qual como na lenda francesa. Nada mais do que a poeira da estrada e o capinzal dos morros. Voltava para casa, nervoso, desesperado, estirava-me no canapé da sala. Tic-tac, tic-tac. Levantava-me, passeava, tamborilava nos vidros das janelas, assobiava. Em certa ocasião lembrei-me de escrever alguma coisa, um artigo político, um romance, uma ode; não escolhi nada definitivamente; sentei-me e tracei no papel algumas palavras e frases soltas, para intercalar no estilo. Mas o estilo, como tia Marcolina, deixava-se estar. Soeur Anne, soeur Anne... Coisa nenhuma. Quando muito via negrejar a tinta e alvejar o papel. – Mas não comia? – Comia mal, frutas, farinha, conservas, algumas raízes tostadas ao fogo, mas suportaria tudo alegremente, senão fora a terrível situação moral em que me achava. Recitava versos, discursos, trechos latinos, liras de Gonzaga, oitavas de Camões, décimas, uma antologia em trinta volumes. Às vezes fazia ginástica; outras dava beliscões nas pernas; mas o efeito era só uma sensação física de dor ou de cansaço, e mais nada. Tudo silêncio, um silêncio vasto, enorme, infinito, apenas sublinhado pelo eterno tic-tac da pêndula. Tic-tac, tic-tac... – Na verdade, era de enlouquecer. Profª. Cristiane Literatura Página 11 de 18 – Vão ouvir coisa pior. Convém dizer-lhes que, desde que ficara só, não olhara uma só vez para o espelho. Não era abstenção deliberada, não tinha motivo; era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela casa solitária; e se tal explicação é verdadeira, nada prova melhor a contradição humana, porque no fim de oito dias deu-me na veneta de olhar para o espelho com o fim justamente de achar-me dois. Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra. A realidade das leis físicas não permite negar que o espelho reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim devia ter sido. Mas tal não foi a minha sensação. Então tive medo; atribuí o fenômeno à excitação nervosa em que andava; receei ficar mais tempo, e enlouquecer. – Vou-me embora, disse comigo. E levantei o braço com gesto de mau humor, e ao mesmo tempo de decisão, olhando para o vidro; o gesto lá estava, mas disperso, esgaçado, mutilado... Entrei a vestir-me, murmurando comigo, tossindo sem tosse, sacudindo a roupa com estrépito, afligindo-me a frio com os botões, para dizer alguma coisa. De quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma difusão de linhas, a mesma decomposição de contornos... Continuei a vestir-me. Subitamente por uma inspiração inexplicável, por um impulso sem cálculo, lembrou-me... Se forem capazes de adivinhar qual foi a minha ideia... – Diga. – Estava a olhar para o vidro, com uma persistência de desesperado, contemplando as próprias feições derramadas e inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes, quando tive o pensamento... Não, não são capazes de adivinhar. – Mas, diga, diga. – Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e... não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns nem outros; enfim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do sono. Assim foi comigo. Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo, olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir... Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as escadas. Machado de Assis. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, v. II. Naturalismo no Brasil início fim B ra s il 1881 publicação de O Mulato, de Aluísio Azevedo 1893 publicação de dois livros de Cruz e Sousa: Missal e Broquéis Naturalismo: o Realismo levado às últimas consequências Naturalismo e Realismo são escolas literárias que ocorrem simultaneamente no Brasil. Por isso, muitos a confundem. Ambas se opõem ao Romantismo – assim como ocorre também com o Parnasianismo, escola que estudaremos no próximo caderno – no sentido de rejeitarem o idealismo das narrativas românticas e de proporem a conscientização do povo a partir da exposição e da denúncia dos mecanismos de controle social. Alguns teóricos, inclusive, consideram-nas duas faces da mesma moeda e chegam a utilizar a expressão Realismo- Naturalismo para caracterizar a produção do período. Veja o que afirma o professor Massaud Moisés a respeito: A prosa de ficção, durante o período realista, seguiu três direções fundamentais, não raro interinfluentes: 1) realismo exterior, que defendia o aproveitamento das conquistas da Ciência, de molde a buscar o máximo de objetividade na fotografação da realidade concreta, e a transformar a obra de arte em arma de combate das instituições julgadas decadentes e incapazes de atender aos reclamos dos novos tempos (a Burguesia, o Clero e o Trono); daí seu antirromantismo, seu anticlericalismo e seu republicanismo; o exagero de tais características originou o Naturalismo; representam-na: Aluísio de Azevedo, Inglês de Souza, Adolfo Caminha, Domingos Olímpio; 2) realismo interior, que preconizava como realidade objetiva não a aparência, mas a essência, dos seres e das coisas; de onde procurasse vasculhar a psicologia íntima das personagens, e anunciasse alguns caminhos percorridos pela introspecção moderna; representam-na: Machado de Assis, Raul Pompeia; o prolongamento dessa linha converge para a prosa simbolista; 3) a prosa regionalista, em que se miscigenam por vezes as duas tendências, como na obra de Coelho Neto, Afonso Arinos. Massaud Moisés. A literatura brasileira através dos textos. 21 ed. São Paulo: Cultrix, 1998, p. 248. Para ele, Aluísio Azevedo seria um exemplar de “realista exterior”, assim como Eça de Queirós; Machado de Assis e Raul Pompeia, por sua vez, seriam “realistas interiores”. Já o historiador da literatura José Aderaldo Castello se refere ao período como Realismo-Naturalismo. Juntamente com Antonio Candido, chega a afirmar que o termo Realismo é inadequado para denominar o período, uma vez que muitas obras ditas românticas seriam repletas de elementos realistas, no sentido de comunicar ao leitor o sentimento de realidade por meio da observação exata do mundo. Se pensarmos na literatura regionalista romântica, por exemplo, poderemos dar razão aos críticos. O traço diferente, que predominou em muitos escritores a partir dos anos de 1860 e 1870, foi que se chamou naturalismo, termo que é também aplicável a obras de várias épocas, mas que recebeu então um sentido próprio e de certo modo legítimo, sob a influência dos novos rumos das ciências naturais. Nesse sentido restrito, naturalismo significa o tipo de realismo que procura explicar cientificamente a conduta e o modo de ser dos personagens por meio dos fatores externos, de natureza biológica e sociológica, que condicionam a vida humana. Os seres aparecem, então, como produtos, como consequências de forças preexistentes que limitam a sua responsabilidade e os tornam, nos casos extremos, verdadeiros joguetes das condições. Como houve naquele tempo obsessão com os problemas da hereditariedade (ainda bem mal conhecidos), os escritores não hesitaram em sublinhar o efeito das taras, das doenças, dos vícios, na formação do caráter – juntando-lhes os efeitos complementares da formação familiar, da educação, do nível cultural. Com isso, adaptavam-se às teorias científicas em voga, amplamente divulgadas. E, a fim de se aproximarem mais dos cientistas, pregavam a atitude objetiva, desapaixonada, de quem verifica e registra sem tomar partido, como convém ao pesquisador da verdade. Atitude semelhante já havia, aliás, sido preconizada dentro da própria literatura, como supremo ideal artístico, por um escritor realistaque os naturalistas consideravam o seu precursor imediato: Gustave Flaubert. Estas teorias estéticas tiveram grande voga entre 1870 e 1900, e repercutiram no Brasil, por influência direta dos Profª. Cristiane Literatura Página 12 de 18 franceses (sobretudo Émile Zola14) ou por intermédio dos seus imitadores portugueses. [...] Herdando e desenvolvendo as sementes de realismo dos românticos, é compreensível que os realistas e naturalistas preferissem temas ligados aos costumes, regionais e urbanos, aos aspectos sexuais da conduta, à análise psicológica, que aprofundaram singularmente. Antonio Candido e José Aderaldo Castello, Presença da literatura brasileira – das origens ao Realismo. 13 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008, p. 286- 287. Talvez o que marque especificamente os naturalistas seja o seu gosto pelo “senso quase fatalista das forças naturais e sociais pesando sobre o homem: natureza, ambiente social, educação, taras, instintos, gerando conflitos dramáticos, situações anormais, desfechos catastróficos, num pessimismo que contrastava com os finais apaziguados do Romantismo”15. O Naturalismo é uma vertente realista, o exagero do Realismo, a vitória do cientificismo. Os naturalistas não se contentam com o romance documental: querem o experimental; não se limitam ao retrato da classe média: analisam as marginais e, para tanto, utilizam-se de metodologia científica na composição ficcional. Em suas narrativas, as forças naturais influenciam de tal maneira o comportamento do homem que uma das grandes marcas das personagens naturalistas é o zoomorfismo – seres humanos caracterizados como animais. A linguagem das obras possui nuances cientificistas e, devido à negação do sentimento e da metafísica, os autores buscam explicações materialistas para os fenômenos da vida e do espírito. Zola propõe para os escritores o uso de método analítico, que poderia ser dedutivo, no qual o escritor deveria aplicar as leis aos fatos – influência de Darwin, Taine e do evolucionismo de Spencer16 – ou indutivo, no qual o artista, a partir da intuição, segue para a observação e a descrição para criar uma hipótese e experimentá-la até percebê-la como lei. Devemos esclarecer que toda obra naturalista é, portanto, realista; mas nem toda obra realista é necessariamente naturalista. Machado de Assis não é naturalista em suas obras realistas. Eça, porém, utiliza-se de características naturalistas para a construção de alguns personagens da segunda fase de sua carreira. Heitor dos Prazeres, Roda de samba. 1965. Óleo sobre madeira17 14 Émile Zola (1840-1902), escritor francês que inaugurou a escola naturalista, publicou em 1880 O romance experimental, manifesto literário do movimento. 15 Antonio Candido e José Aderaldo Castello, op. cit., p. 288. 16 Herbert Spencer (1820-1903), principal representante do evolucionismo nas ciências humanas, intuiu a existência de regras evolucionistas antes do compatriota Charles Darwin. 17 Heitor dos Prazeres (1898-1966), músico, sambista por vocação, compositor de diversas marchinhas, parceiro de Noel Rosa e um dos Aluísio Azevedo (1857-1913) Maior nome do romance naturalista brasileiro, o maranhense Aluísio Azevedo publicou três grandes romances (O mulato, Casa de pensão e O cortiço) e diversos pastelões melodramáticos. Os personagens de suas obras sérias são retratos do homem comum desfigurado pela herança biológica e pelo meio. Vivem mediocremente a sua rotina e são flagrados nas suas taras e em seu comportamento instintivo. Aliás, é recorrente em obras naturalistas a redução do homem ao animal, como se ele não pudesse contrariar os instintos mais primários – daí o sexo, os vícios e os desvios de caráter serem tão comuns nessas personagens. Em O mulato (1881), Aluísio trata um assunto que já havia aparecido no Romantismo: a conquista de um status social para o mestiço no Brasil. Sugere uma sociedade ideal, em que se admitisse a integração do mulato. O protagonista, Raimundo, “ignora a própria cor e a condição de filho de escrava: não consegue entender as reservas que lhe faz a alta sociedade de São Luís, a ele que voltara doutor da Europa”18, e é extremamente sedutor – característica, aliás, bem comum do mestiço nos romances de Azevedo. Com uma visão acurada do meio maranhense da época, o autor descreve os tipos de modo satírico: o comerciante rico e grosseiro, a velha beata e raivosa, o cônego relaxado e convincente etc. Casa de pensão (1884), representação da vida pequeno- burguesa baseada em fato verídico, narra a história de um estudante nortista que se muda para o Rio de Janeiro, se instala numa “pensãozinha pegajosa”19 e se envolve num crime passional. As fraquezas de caráter do protagonista são atribuídas, desde o princípio, à hereditariedade, e o que há de melhor no romance encontra-se no rumor dos jornais e da vida boêmia que gira em torno do escândalo. O cortiço, obra-prima do autor, é um romance em que ele desenvolveu aquilo que sempre fora o seu maior talento: em vez de moldar o enredo às pessoas (personagens construídas a partir do peso de teorias darwinistas), moldou-o ao espaço: tipos psicologicamente primários somados a cenas coletivas fazem do cortiço a melhor personagem da história de nossos romances naturalistas. Vamos, agora, ao estudo da obra. O cortiço (1890) Imagem do cortiço “Cabeça de Porco”, o maior do Rio de Janeiro no século XIX. Com quase 4 mil moradores, foi destruído em 1893 por ordem do então prefeito Barata Ribeiro. fundadores da Estação Primeira de Mangueira. Começou a pintar aquarelas depois da morte da esposa em 1937 e, aprimorando a técnica, passou para a pintura a óleo. Suas telas expressavam o cotidiano do morro. Participou das bienais de arte de 1951, 1953 e 1961. 18 Alfredo Bosi, História concisa da literatura brasileira. 3 ed. São Paulo: Cultrix, 1995, p. 211. 19 Alfredo Bosi, op. cit, p. 212. Profª. Cristiane Literatura Página 13 de 18 O espaço O cortiço narra, pela ótica de um narrador onisciente em terceira pessoa, “nascimento, vida, paixão e morte de um cortiço. A ele se opõe o sobrado, como símbolo de uma posição social a ser conquistada”20. O espaço em obras naturalistas possui grande importância, porque é ele, juntamente com a hereditariedade, que dita as personalidades e o destino das personagens. Nessa obra de Aluísio Azevedo, vê-se algo que antes, no Brasil, não havia sido feito: o espaço assume o papel de protagonista. Visto como um organismo, o cortiço é descrito em muitos trechos como se fosse ele o ser vivo, e não as personagens que nele vivem, meras células que o compõem: E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco. Aluísio Azevedo. O cortiço. 25 ed. São Paulo: Ática, 1992, p. 26. Além disso, é também personificado: Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas. Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada sete horas de chumbo. Como que se sentiam ainda na indolência de neblina as derradeiras notas da última guitarra da noite antecedente, dissolvendo-se à luz loura e tenra da aurora, que nem um suspiro de saudade perdido em terra alheia. Aluísio Azevedo, op. cit., p. 35. Há, na obra, três células espaciais: o cortiço São Romão (“Carapicus”), que assim como João Romão – nota-se uma relação metonímica entre a personagem e o cortiço – também ascende socialmente e se
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