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Tipicidade Como último elemento do fato típico tem-se a tipicidade, que é a correspondência exata, a adequação perfeita entre o fato natural, concreto, e a descrição contida na lei. Como o tipo penal é composto não só de elementos objetivos, mas também de elementos normativos e subjetivos, é indispensável para a existência da tipicidade que não só o fato, objetivamente considerado, mas também sua antijuridicidade e os elementos subjetivos se subsumam a ele. Há tipicidade no homicídio se o agente pratica a conduta de “matar alguém” (elementos objetivos), mas só há violação de segredo profissional se a revelação ocorrer “sem justa causa” (elemento normativo), e somente haverá assédio sexual se o constrangimento for praticado “com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual” (elemento subjetivo). Só existe fato típico quando o fato natural estiver também preenchido pelo tipo subjetivo. Reconhece-se na doutrina moderna que o tipo penal tem duas funções. A primeira é a de garantia, já que aperfeiçoa e sustenta o princípio da legalidade do crime (item 2.1.1). A segunda é a de indicar a antijuridicidade do fato a sua contrariedade ao ordenamento jurídico. A tipicidade é o indício da antijuridicidade do fato. Praticado um fato típico, presume-se também sua antijuridicidade, presunção que somente cessa diante da existência de uma causa que a exclua. Assim, se A mata B voluntariamente, há um fato típico e, em princípio, antijurídico, mas, se o fez, por exemplo, em legítima defesa, não existirá a antijuridicidade. Não sendo o fato antijurídico, não há crime. Há fatos, porém, antijurídicos que não são típicos, como, por exemplo, a fuga de preso sem ameaça ou violência e sem a colaboração de outrem, o dano culposo etc. São eles fatos contrários ao ordenamento jurídico, mas não fatos típicos. Como não se pode admitir que em um sistema normativo uma norma mande ou permita o que outra proíbe, há os que afirmam que a tipicidade é a averiguação não só da proibição referida no tipo penal como a indagação a respeito de todo o sistema normativo. Existiria assim o que se denomina tipicidade conglobante, corretivo da tipicidade legal, não sendo típica, dessa forma, a conduta de quem atua em estrito cumprimento do dever legal, em legítima defesa etc. Nem sempre a adequação do fato ao tipo penal se opera de forma direta, sendo necessário à tipicidade que se complete o tipo penal com outras normas, contidas na parte geral dos códigos. É o que se chama de tipicidade indireta, como ocorre na tentativa (art. 14, inc. II) e no concurso de agentes (art. 29). 57 Fala-se também em tipos fechados, em que a tipicidade indica a antijuridicidade sem qualquer ressalva, condição ou restrição, e em tipos abertos, como acontece com os crimes culposos, em geral, em que “a conduta não expressa completamente a transgressão de uma norma, pois nesta categoria o resultado é que confere vida à ilicitude, uma vez que a conduta era, em si mesma, legítima”. 58 Transfere-se assim ao intérprete a tarefa de tipificar cada conduta com fundamento em doutrina e jurisprudência, valendo-se, para tanto, de elementos não integrantes expressamente do tipo. Entretanto, nem todos os tipos culposos são abertos (ex.: art. 180, § 3º, do CP) e nem todos os tipos dolosos são fechados (ex.: art. 157, do CP, ao se referir a “qualquer meio” para reduzir a capacidade de resistência). Num sentido amplo, tipo é a descrição abstrata da ação proibida ou da ação permitida. Existem, pois, tipos incriminadores, descritivos das condutas proibidas, e tipos permissivos ou justificadores, descritivos das condutas permitidas. Os primeiros, na expressão de Francisco de Assis Toledo, são os tipos legais de crime, que só podem ser criados pelo legislador (nullum crimen sine lege); os segundos são as denominadas causas de justificação ou de exclusão da ilicitude. 59 A atipicidade é a ausência de tipicidade. Diz-se que pode ser total (absoluta), como, por exemplo, no exercer o meretrício, ou específica, quando inexistente um elemento objetivo que caracteriza determinado crime, como, por exemplo, não ser recém-nascida a vítima morta pela mãe (em se tratando de infanticídio) ou quando falta um elemento normativo do tipo (existência de justa causa para a prática das condutas descritas nos arts. 151, 153, 154 etc.). A distinção parece desnecessária. Ou o fato preenche todas as características de um tipo, ocorrendo tipicidade, ou não o faz, sendo atípico. O tipo, como já foi visto, é o conjunto dos elementos descritivos do crime contidos na lei penal. Embora a lei, em princípio, deva restringir-se à definição objetiva, precisa e pormenorizada, para evitar-se a necessidade de um juízo de valor na apreciação da tipicidade, muitas vezes a figura penal contém elementos outros que não puramente descritivos. Quando tal ocorre, está-se diante da tipicidade anormal. Tipo normal é aquele que contém apenas uma descrição objetiva, puramente descritiva, como ocorre nos crimes de homicídio (art. 121), lesões corporais (art. 129) etc. O conhecimento do tipo opera-se “através de simples verificação sensorial, o que ocorre quando a lei se refere a membro, explosivo, parto, homem, mulher etc. A identificação de tais elementos dispensa qualquer valoração.” 60 Tipos anormais são as descrições legais de fatos que contêm não só elementos objetivos referentes ao aspecto material do fato, mas também alguns outros que exigem apreciação mais acurada da conduta, quer por conduzirem a um julgamento de valor, quer por levarem à interpretação de termos jurídicos ou extrajurídicos, quer, ainda, por exigirem aferição do ânimo ou do intuito do agente quando pratica a ação. Em primeiro lugar, têm-se os elementos normativos do tipo, que exigem, nas circunstâncias do fato natural, um juízo de valor para que se possa dizer haver tipicidade. Podem referir-se ao injusto, à antijuridicidade, como nas expressões indevidamente, sem justa causa (arts. 151, 153 etc.). Só haverá tipicidade, por exemplo, quanto ao crime de violação de correspondência, quando o agente devassou o conteúdo de correspondência fechada, dirigida a outrem, sem que estivesse de qualquer forma autorizado a fazê- lo, já que há casos em que essa conduta é permitida pelo ordenamento jurídico (pais lerem a correspondência de filho menor, as secretárias a do empregador etc.). A inclusão de um elemento normativo, nessas hipóteses, ocorre porque a conduta “normalmente” é lícita. Pode também o elemento constituir-se em um termo jurídico, como o de “cheque” (art. 171, § 2º, VI), “documento” (arts. 297, 298 etc.), “funcionário público” (arts. 312, 320 etc.), e só haverá tipicidade se, no fato natural, estiverem preenchidos os requisitos legais ou simplesmente jurídicos de suas definições. Por fim, pode referir-se a lei a um elemento extrajurídico, em que se exige um juízo de valoração ao apreciar-se o fato concreto. É o que se verificava, por exemplo, nos crimes de posse sexual mediante fraude (art. 215) e rapto (art. 219), que continham a expressão mulher honesta, e no de sedução (art. 217), em que se aludia à inexperiência da vítima, antes da Lei nº 11.106, de 28-3- 2005, 61 e o que ocorre nos crimes descritos nos arts. 233 e 234, que se referem a ato e a objeto obsceno, no crime de injúria (art. 140), em que se menciona a dignidade e o decoro do ofendido etc. Nesses casos, para a averiguação da tipicidade é necessário que se busque nos costumes vigentes o exato conceito de “honestidade” ou “inexperiência” da mulher, do que é “obsceno” ou “ofensivo ao pudor” ou que se apure se, nas condições pessoais do ofendido, as palavras a ele dirigidas podem ser consideradas como ofensivas a sua honra etc. Existem também os tipos anormais que contêm elementos subjetivos do tipo, 62 que se referem ao intuito do agente quando pratica o fato (um especial fim de agir), ou aludem a certa tendência subjetiva da ação ou a características particulares do ânimo com que oagente atua. Só existirá o fato típico referente ao art. 134 quando o agente expuser ou abandonar o recém-nascido com a finalidade de ocultar desonra própria; só ocorrerá o delito de contágio de moléstia grave contemplado no art. 131 quando o agente praticar ato capaz de produzir o contágio com o fim de transmitir a doença a outrem etc. Francisco de Assis Toledo, com fundamento em Maurach, os denomina tipos incongruentes, em que a lei estende o tipo subjetivo além do objetivo, não sendo necessária a concretização do fim mencionado no tipo para a consumação do delito. 63 Em outra categoria de elementos subjetivos do tipo estão certas tendências subjetivas da ação, como, por exemplo, a intenção de satisfazer desejos libidinosos que estão descritos nos crimes de estupro (art. 213) e violação sexual mediante fraude (art. 215), indicados pela expressão outro ato libidinoso. Também constitui elemento subjetivo do ilícito o estado de consciência do agente a respeito de determinado fato inscrito em certas descrições legais. Só existe o crime de receptação dolosa se o agente sabe que a coisa adquirida é produto de crime (art. 180, caput); de propalação ou divulgação da calúnia quando o agente, sabendo falsa a imputação, a propala ou divulga (art. 138, § 1º); de denunciação caluniosa quando o autor imputa à vítima crime, infração ético-disciplinar ou ato ímprobo de que o sabe inocente (art. 339). Por último, registram certos tipos penais as características particulares do ânimo com que o agente atua, como nas hipóteses de homicídios praticados por motivo torpe ou fútil (art. 121, § 2º, incs. I e II); de induzimento a suicídio ou a automutilação por motivo egoístico, torpe ou fútil (art. 122, § 3º, inc. I), e também pela forma com que pratica o ilícito, como no homicídio por meio cruel, que se refere à perversidade (art. 121, § 2º, inc. III). Há casos em que coexistem elementos normativos e subjetivos, além dos objetivos. É o que se constata, por exemplo, quando se analisa o crime de prevaricação (art. 319): retardar ou deixar de praticar, indevidamente (elemento normativo), ato de ofício, ou praticá-lo contra expressa disposição de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal (elemento subjetivo). Em determinadas hipóteses, mudando- se o elemento subjetivo do tipo poderão existir crimes diversos. Se o arrebatamento de um adolescente se der com o fim de obter, para si ou para outrem, qualquer vantagem, como condição ou preço de regaste, o crime será o de extorsão mediante sequestro qualificado (art. 159, § 1º); se for praticado com fins libidinosos, haverá sequestro duplamente qualificado (art. 148, § 1º, IV e V); se o intuito for o de colocação em lar substituto o delito será previsto no art. 237 do ECA.