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Políticos, educadores e representantes da sociedade civil debatem, em audiência na Câmara dos Deputados, em Brasília, a destinação de 10% do PIB (Produto Interno Bruto) à educação, em 2011. Assim como o voto nas eleições, o acompanhamento das atividades políticas e a participação em órgãos de debate e deliberação também são formas de exercício da democracia. capítulo 34 A questão democrática Que elementos compõem uma sociedade democrática? Vimos nos capítulos anteriores como se constituíram instituições e conceitos como soberania, Estado e direito. Vimos também que, diante de desafios como a desigualdade entre classes sociais, as limitações impostas pelo liberalismo e a máscara da ideologia, surgiram lutas sociais pela criação e ampliação de direitos. No entanto, persistem obstáculos à participação política, à igualdade e à liberdade, elementos essenciais para o exercício da cidadania e realização plena da democracia. Pensando na realidade brasileira, paira uma questão: é possível ter democracia em um país historicamente marcado pela desigualdade socioeconômica e pelo autoritarismo nas esferas social e política? Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil 348 INI.FILOSOFIA_FILOS_VU_PNLD15_348a359_U1_c342.indd 348 5/9/13 3:49 PM A questão democrática ca pí t u lo 3 4 349 A sociedade democrática Vimos no capítulo 18 que uma ideologia não nasce do nada nem repousa no vazio, mas exprime, de ma- neira invertida, dissimulada e imaginária, a práxis social e histórica concreta. Isso se aplica à ideologia liberal quando define a democracia. De fato, a ideologia libe- ral define a democracia como o regime político da lei e da ordem a fim de garantir interesses e liberdades in- dividuais. Essa definição corresponde à maneira como o liberalismo concebe a sociedade — isto é, como um campo de interesses particulares conflitantes — e como concebe a liberdade — isto é, como a livre competição entre indivíduos no mercado. Ora, há na prática e nas ideias democráticas uma pro- fundidade e uma verdade muito maiores e superiores ao que a ideologia liberal percebe e deixa perceber, pois uma política democrática pressupõe a existência de uma sociedade democrática. Antes de abordarmos a noção de sociedade democrática, fiquemos, por um momento, nas duas práticas políticas que o liberalismo julga defini- doras da democracia, quais sejam, as eleições e a existên- cia de situação e oposição, maioria e minoria. O que significam as eleições? Para a ideologia libe- ral, se reduzem à mera rotatividade de governos ou à alternância no poder. Ora, elas são muito mais do que isso, pois simbolizam o essencial da democracia: que o poder não pertence aos ocupantes do governo, mas é sempre um lugar vazio que os cidadãos, periodica- mente, preenchem com um representante, cujo man- dato podem revogar se não cumprir o que lhe foi de- legado para representar. O que significam as ideias de situação e oposição, maioria e minoria? Para a ideologia liberal, se referem às vontades que devem ser respeitadas e garantidas pela lei. Ora, elas vão muito além dessa aparência. Significam que a sociedade não é uma comunidade una e indivisa volta- da para o bem comum obtido por consenso, mas, ao contrário, que está internamente dividida e que as divi- sões são legítimas e devem expressar-se publicamente. A democracia é a única forma política que conside- ra o conflito legítimo e legal, permitindo que ele seja trabalhado politicamente pela própria sociedade. Da mesma maneira, as ideias de igualdade e liberda- de como direitos civis dos cidadãos vão muito além de sua regulamentação jurídica formal pelo Estado. Signi- ficam que os cidadãos são sujeitos de direitos e que, onde tais direitos não existam nem estejam garantidos, deve-se lutar por eles e exigi-los. É esse o cerne da de- mocracia, pois a criação e a garantia de direitos defi- nem a sociedade democrática. Um direito se opõe a um privilégio. Um direito é universal, válido para todos os membros de uma socie- dade, opondo-se, portanto, ao privilégio, possuído ape- nas por alguns com exclusão de todos os outros. Um direito difere de uma necessidade ou carência e de um interesse. Uma necessidade ou carência é algo particular e específico. Alguém pode ter necessidade de água, outro, de comida. Um grupo social pode ter carência de transportes, outro, de hospitais. Há tantas necessidades quanto indivíduos, tantas carências quanto grupos sociais. Um interesse também é algo particular e específico. Os interesses dos estudantes brasileiros podem ser di- ferentes dos interesses dos estudantes argentinos. Os interesses dos bancários, diferentes dos interesses dos banqueiros. Os dos índios, diferentes dos interesses dos garimpeiros. Eleitora vota na cidade de Curitiba, Paraná, em uma urna de identificação biométrica. Ela foi um dos 7,7 milhões de eleitores que tiveram sua identidade verificada por meio da leitura da impressão digital nas eleições de 2012. R o b e rt o D zi u ra J r. /B ra zi l P h o to P re s s /A g ê n c ia E s ta d o INI.FILOSOFIA_FILOS_VU_PNLD15_348a359_U1_c342.indd 349 5/9/13 3:49 PM A política u n id a d e X I I 350 Necessidades ou carências podem ser conflitantes. Suponhamos que, numa região de uma grande cida- de, as mulheres trabalhadoras tenham necessidade ou carência de creches para seus filhos e que, na mes- ma região, outro grupo social, os sem-teto, tenha ca- rência de moradia. O governo municipal dispõe de recursos para atender a uma das carências, mas não a ambas, de sorte que resolver uma carência significará abandonar a outra. Interesses também podem ser conflitantes. Supo- nhamos que interesse a grandes proprietários de terras deixá-las inativas para esperar pela valorização imobiliá- ria, mas que interesse a trabalhadores rurais sem-terra cultivar alimentos para a sobrevivência; temos aí um conflito de interesses. Suponhamos que interesse aos proprietários de em- presas comerciais estabelecer um horário de trabalho que aumente as vendas, mas que interesse aos comerciá- rios outro horário, no qual possam dispor de horas para estudar, cuidar da família e descansar. Temos aqui outro conflito de interesses. Um direito, ao contrário de necessidades, carên- cias e interesses, não é particular e específico, mas geral e universal, válido para todos os indivíduos, gru- pos e classes sociais. Assim, por exemplo, a carência de água e de comida manifesta algo mais profundo: o direito à vida. A carência de moradia ou de transporte também manifesta algo mais profundo: o direito a boas condi- ções de vida. O interesse dos estudantes, o direito à educação e à informação. O interesse dos sem-terra, o direito ao trabalho. O dos comerciários, o direito a boas condições de trabalho. Dizemos que uma sociedade — e não um simples regime de governo — é democrática quando, além de eleições, partidos políticos, divisão dos três pode- res da república, respeito à vontade da maioria e das minorias, institui algo mais profundo, que é condi- ção do próprio regime político: os direitos. A criação de direitos Quando a democracia foi inventada pelos ate- nienses, instituíram-se três direitos fundamentais que definiam o cidadão: igualdade, liberdade e par- ticipação no poder. Examinemos o significado desses três direitos na Grécia antiga: 1. Igualdade significava, perante as leis e os costumes da pólis, que todos os cidadãos possuíam os mesmos direitos e deviam ser tratados da mesma maneira. Por esse motivo, Aristóteles afirmava que a primeira tarefa da justiça era igualar os desiguais, seja pela re- distribuição da riqueza social, seja pela garantia de participação no governo. Policiais bloqueiam acesso ao bairro Pinheirinho, em São José dos Campos, estado de São Paulo, durante cumprimento do mandado de reintegração de posse do terreno, em janeiro de 2012. R oo s e v e lt C a s s io /R e u te r s /L a ti n s to c k INI.FILOSOFIA_FILOS_VU_PNLD15_348a359_U1_c342.indd 350 5/9/13 3:49 PM A questão democrática ca pí t u lo 3 4 351 Pelo mesmo motivo, Marx afirmava que a igualdade só se tornaria um direito concreto quando não hou- vesse escravos, servos e assalariados explorados, mas fosse dado a cada um, segundo suas necessidades, seus méritos e seu trabalho. As observações de Aristóteles e de Marx indicam algo preciso: a mera declaração do direito à igualda- de não faz existir os iguais, mas abre o campo para a criação da igualdade por meio das exigências e de- mandas dos sujeitos sociais. Em outras palavras, de- clarado o direito à igualdade, a sociedade pode ins- tituir formas de reivindicação para criá-lo como direito real. 2. Liberdade significava que todo cidadão tinha o di- reito de expor em público seus interesses e suas opiniões , vê-los debatidos pelos demais e aprovados ou rejeitados pela maioria, devendo acatar a decisão tomada publicamente. Na modernidade, com a Re- volução Inglesa de 1642-1651 e a Revolução Francesa de 1789, o direito à liberdade ampliou-se. Além da liberdade de pensamento e de expressão, passou a significar o direito à independência para escolher o ofício, o local de moradia, o tipo de educação, o côn- juge, etc. — em suma, significou a recusa das hierar- quias fixas, supostamente divinas ou naturais. Acrescentaram-se, em 1789, direitos de enorme importância: o de que todo indivíduo é inocente até que se prove o contrário perante um tribunal e o de que a liberação ou punição devem ser dadas segundo a lei. com os movimentos socialistas, a luta social por liberdade ampliou ainda mais esses direi- tos, acrescentando-lhes o direito de lutar contra to- das as formas de tirania, censura e tortura e contra todas as formas de exploração e dominação social, econômica, cultural e política. Observamos aqui o mesmo que na igualdade: a sim- ples declaração do direito à liberdade não a institui concretamente, mas abre o campo histórico para a criação desse direito pela práxis humana. 3. Participação no poder significava que todos os ci- dadãos tinham o direito de participar das discus- sões e deliberações públicas da pólis, votando ou revogando decisões. Esse direito tinha um sentido muito preciso. Nele afirmava-se que, do ponto de vista político, todos os cidadãos têm competên- cia para opinar e decidir, pois a política não é uma questão técnica (eficácia administrativa e militar) nem científica (conhecimentos especializados sobre administração e guerra), mas uma decisão coletiva sobre os interesses e direitos da própria pólis. Ampliando a participação A democracia ateniense era direta. A moderna, po- rém, é representativa. O direito à participação tornou- -se, portanto, indireto, por meio da escolha de repre- sentantes. Ao contrário dos outros dois direitos, este último parece ter sofrido diminuição em lugar de am- pliação. Essa aparência é falsa e verdadeira. Falsa porque a democracia moderna foi instituída na luta republicana contra as monarquias absolutistas e, portanto, em relação a elas , instituiu a participação dos cidadãos no poder, ainda que sob a forma da re- presentação. Verdadeira porque, como vimos, a república liberal ini- cialmente limitou os direitos políticos aos proprietários Manifestante protesta pedindo a implementação de política de cotas no setor privado para castas historicamente discriminadas na Índia, na capital Nova Délhi, em 2012. A liberdade é a recusa das hierarquias fixas. M a n is h S w a ru p /A s s o c ia te d P re s s /G lo w I m a g e s INI.FILOSOFIA_FILOS_VU_PNLD15_348a359_U1_c342.indd 351 5/9/13 3:49 PM A política u n id a d e X I I 352 privados dos meios de produção e aos profissionais libe- rais da classe média, aos homens adultos “independentes” (isto é, excluindo os “dependentes”: todas as mulheres e os trabalhadores homens brancos, negros e indígenas). Todavia, as lutas socialistas e populares forçaram a ampliação dos direitos políticos, levando à criação do sufrágio universal (todos são cidadãos eleitores: homens, mulheres, jovens, negros, analfabetos, tra- balhadores, indígenas) e à garantia da elegibilidade de qualquer um que, não estando sob a suspeita de crime, se apresente para um cargo eletivo. Vemos aqui, portanto, o mesmo que nos direitos an- teriores: lutas sociais que transformam a simples decla- ração de um direito em direito real, ou seja, vemos aqui a criação de um direito. As lutas por igualdade e liberdade ampliaram os di- reitos políticos (civis) e, com base nestes, criaram os direitos sociais — trabalho, moradia, saúde, transporte, educação, lazer, cultura —, os direitos das chamadas “minorias” — mulheres, idosos, negros, homossexuais, crianças, indígenas — e o direito à segurança planetária — as lutas ecológicas e contra as armas nucleares. As lutas populares por participação política amplia- ram os direitos civis: direito de opor-se à tirania, à cen- sura, à tortura, direito de fiscalizar o Estado por meio de organizações da sociedade (associações, sindicatos, partidos políticos); direito à informação pela publici- dade das decisões estatais. Traços da democracia A sociedade democrática institui direitos pela abertura do campo social à criação de direitos reais, à ampliação de direitos existentes e à criação de novos direitos. com isso, dois traços distinguem a democracia de todas as outras formas sociais e políticas: 1. A democracia é a única sociedade e o único regime político que considera o conflito legítimo. Não só trabalha politicamente os conflitos de necessidades e de interesses, mas também procura instituí-los como direitos e, como tais, exige que sejam reconhe- cidos e respeitados. Mais do que isso, na sociedade democrática, indivíduos e grupos organizam-se em associações e movimentos sociais e populares, clas- ses se organizam em sindicatos e partidos, criando um contrapoder social, que, direta ou indiretamente, limita o poder do Estado; 2. A democracia é a sociedade verdadeiramente histó- rica, isto é, aberta ao tempo, ao possível, às transfor- mações e ao novo. com efeito, pela criação de novos direitos e pela existência dos contrapoderes sociais, a sociedade democrática não está fixada numa forma para sempre determinada, ou seja, não cessa de tra- balhar suas divisões e diferenças internas, de orien- tar-se pela possibilidade objetiva (a liberdade) e de alterar-se pela própria práxis. BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 32-33. (Pensamento Crítico, 63). diálogos filosóficos Uma definição mínima de democracia [...] No entanto, mesmo para uma definição mínima de democracia, como é a que aceito, não bastam nem a atribuição a um elevado número de cidadãos no direito de participar direta ou indiretamente da tomada de decisões coletivas, nem a existência de regras de pro- cedimento como a da maioria (ou, no limite, da unanimidade). É indispensável uma tercei- ra condição: é preciso que aqueles que são chamados a decidir ou a eleger os que deverão decidir sejam colocados diante de alternativas reais e postos em condição de poder esco- lher entre uma e outra. Para que se realize esta condição é necessário que aos chamados a decidir sejam garantidos os assim denominados direitos de liberdade, de opinião, de ex- pressão das próprias opiniões, de reunião, de associação, etc. — os direitos à base dos quais nasceu o Estado liberal e foi construída a doutrina do Estado de direito em sentido forte, isto é, do Estado que não apenas exerce o poder sub lege [sob a égide da lei], mas o exerce dentro de limites derivados do reconhecimento constitucional dos direitos “invioláveis” do indivíduo. Seja qual for o fundamento filosófico destes direitos,eles são o pressuposto ne- cessário para o correto funcionamento dos próprios mecanismos predominantemente procedimentais que caracterizam um regime democrático. [...] Disto segue que o Estado liberal é o pressuposto não só histórico mas jurídico do Estado democrático. INI.FILOSOFIA_FILOS_VU_PNLD15_348a359_U1_c342.indd 352 5/9/13 3:49 PM A questão democrática ca pí t u lo 3 4 353 Voluntária põe flores sobre tijolos em protesto realizado na Praça dos Três Poderes, em Brasília, pela ONG Rio de Paz, em novembro de 2012. Os 960 tijolos são uma referência ao número de assassinatos cometidos no país semanalmente naquele ano. Estado de Bem-Estar Social O Estado do Bem-Estar Social i mplantou-se nos Estados Unidos após a Grande Depressão, nos anos 1930, e na Europa ocidental, ap ós a Segunda Guerra Mundial. Suas principais carac terísticas eram: 1) destinação, pelo Estado, de g rande parte da riqueza pública para os direitos sociais (saúde, educação, moradia, alimentação , seguro-desemprego, etc.), criando o chamado salário indireto como complemento público do salári o direto; 2) regulação da economia pelo Estado tanto por meio de empresas públicas como por m eio de leis sobre o funcionamento do mercado; 3) d o ponto de vista do capital produtivo, a adoção da pr odução fordista, isto é, a produção em série e em larga es cala, englobando todas as etapas da atividade econômic a, desde a produção da matéria-prima até a distribuiç ão do produto no mercado, e controlando, por me io do planejamento e da chamada “gerência científica ”, a organização do trabalho, os estoques e os preço s; 4) inclusão dos indivíduos no me rcado de trabalho (ideia de pleno emprego) e, conseque ntemente, no consumo de massa; 5) formação de monop ólios e oligopólios que, embora transnacionais ou m ultinacionais, tinham como referência reguladora e, e m alguns casos, como parceiro ou sócio, o Estado nacio nal. U e s le i M a r c e li n o /R e u te r s /L a ti n s to c k Os obstáculos à democracia Liberdade, igualdade e participação conduziram à célebre formulação da política democrática como “go- verno do povo, pelo povo e para o povo”. Entretanto, o povo da sociedade democrática está dividido em clas- ses sociais — sejam os ricos e os pobres (Aristóteles), sejam os grandes e o povo (Maquiavel), sejam as classes sociais antagônicas (Marx). É verdade que a sociedade democrática é aquela que não esconde suas divisões, mas procura trabalhá-las pelas instituições e pelas leis. Todavia, no capitalismo, são imensos os obstáculos à democracia, pois o con- flito dos interesses é criado pela exploração de uma classe social por outra, mesmo que a ideologia afir- me que todos são livres e iguais. É verdade que as lutas populares nos países do capi- talismo central ampliaram os direitos dos cidadãos e que a exploração dos trabalhadores diminuiu muito, sobretudo com o Estado do Bem-Estar Social. No entanto, houve um preço a pagar: a exploração mais violenta do trabalho pelo capital recaiu nas costas dos trabalhadores dos países da periferia do sistema. INI.FILOSOFIA_FILOS_VU_PNLD15_348a359_U1_c342.indd 353 5/9/13 3:49 PM A política u n id a d e X I I 354 Houve uma divisão internacional do trabalho e da exploração que, ao melhorar a igualdade e a liberdade dos trabalhadores de uma parte do mundo, agravou as condições de vida e de trabalho da outra parte. E não foi por acaso que, enquanto nos países capitalistas cen- trais cresciam o Estado do Bem-Estar Social e a demo- cracia social, no então chamado Terceiro Mundo eram implantadas ditaduras e regimes autoritários aos quais se aliavam os capitalistas desses países e os capitalistas das grandes potências econômicas. A situação do direito de igualdade e de liberdade é também muito frágil nos dias atuais, porque o modo de produção capitalista sofreu uma mudança profunda com a crise do Estado de Bem-Estar Social. Para contor- ná-la, os capitalistas recorreram ao neoliberalismo e à ideia liberal de autocontrole da economia pelo mercado. Isso afastou a presença do Estado do planeja- mento econômico e da aplicação dos fundos públicos para a garantia de direitos sociais. O abandono das políticas sociais chama-se privati- zação, e o do planejamento econômico, desregulação. Ambos os termos asseveram que o capital é racional e pode, por si mesmo, resolver os problemas econômi- cos e sociais. Viu-se também o desenvolvimento es- pantoso das novas tecnologias eletrônicas, que trouxe a velocidade da comunicação e da informação e a au- tomação da produção e distribuição dos produtos. Essa mudança na organização das forças produtivas (pois a tecnologia alterou o processo social do traba- lho) vem causando o desemprego em massa, o surgi- mento de movimentos racistas, a exclusão social, políti- ca e cultural de grandes massas da população. Em outras palavras, os direitos econômicos e sociais conquistados pelas lutas populares correm perigo por causa da privatização, do encolhimento da esfera públi- ca e do alargamento da esfera dos interesses privados. Hoje o capital pode acumular-se e reproduzir-se excluin- do cada vez mais as pessoas do mercado de trabalho e de consumo. Não precisa mais de grandes massas trabalha- doras e consumidoras, pode ampliar-se graças ao desem- prego em massa e não precisa se preocupar em garantir direitos econômicos e sociais aos trabalhadores porque não necessita de seus trabalhos e serviços. Dirigentes e executantes O direito à participação política também encontra obstáculos. De fato, no capitalismo da segunda metade do século XX, a organização industrial do trabalho foi feita com base em uma divisão social nova: a separação entre dirigentes e executantes. Os primeiros são os que recebem a educação cientí- fica e tecnológica, são considerados portadores de sa- beres que os tornam competentes e, por isso, têm o poder de mando. Os executantes são aqueles que não possuem conhecimentos tecnológicos e cientí ficos e são relegados a apenas executar tarefas, sem conhecer as razões e as finalidades de sua ação. São por isso con- siderados incompetentes e destinados a obedecer. Essa forma de organização da divisão social do tra- balho propagou-se para a sociedade inteira. Todos es- tão divididos entre “competentes” que sabem e “in- competentes” que executam. Em outras palavras, a posse de certos conhecimentos tornou-se um poder para mandar e decidir. Essa divisão social converteu-se numa ideologia: a ideologia da competência técnico-científica, isto é, a ideia de que quem possui conhecimentos está natural- mente dotado de poder de mando e direção. Essa ideo- logia, fortalecida pelo estímulo diário via meios de co- municação de massa, invadiu a política, que passou a ser considerada uma atividade reservada para técnicos ou administradores políticos competentes, e não uma ação coletiva de todos os cidadãos. Não só o direito à representação política diminui porque se restringe aos “competentes”, como também a ideologia da competência oculta e dissimula o fato de que, para ser “competente”, é preciso ter recursos eco- nômicos para estudar e adquirir conhecimentos. Ou seja, os “competentes” pertencem à classe economica- mente dominante, que, assim, dirige a política segundo seus interesses, e não de acordo com a universalidade dos direitos. neoliberalismo O neoliberalismo é uma teoria que se opôs ao Estado do Bem-Estar Social, at acando seus encargos sociais e sua função de regula dor do mercado. Os teóricos neoliberais afirmavam que tais medidas destruíam a liberdade dos cid adãos e a competição, sem as quais não há prosperid ade. Propuseram: 1) o fim dos benefícios sociais ou dos direitos sociais garantidos pelo Estado e o fim das empresas públicas; 2) o fim do planejam ento econômico pelo Estado; 3) o predomíniodo cap ital financeiro sobre o capital produtivo; 4) a fragme ntação e dispersão global da produção, de maneir a a enfraquecer a classe trabalhadora e suas org anizações; 5) a destinação da riqueza púb lica às empresas para investimento em tecnologias d e ponta. INI.FILOSOFIA_FILOS_VU_PNLD15_348a359_U1_c342.indd 354 5/9/13 3:49 PM A questão democrática ca pí t u lo 3 4 355 Outro obstáculo ao direito à participação política é posto pelos meios de comunicação de massa. Só pode- mos participar de discussões e decisões políticas se possuirmos informações corretas sobre aquilo que va- mos discutir e decidir. Ora, os meios de comunicação de massa transmi- tem as informações de acordo com os interesses de seus proprietários e das alianças econômicas e políticas destes com os grupos detentores do poder econômico e político. Assim, por não haver respeito ao direito de informação, não há como respeitar o direito à verdadei- ra participação política. Os obstáculos à democracia não inviabilizam a socie- dade democrática. Pelo contrário. Somente nela somos capazes de perceber tais obstáculos e lutar contra eles. Dificuldades para a democracia no Brasil Periodicamente os brasileiros afirmam que vivemos numa democracia depois de concluída uma fase de au- toritarismo. Por democracia entendem a existência de eleições, partidos políticos e a divisão republicana dos três poderes, além da liberdade de pensamento e de expressão. Por autoritarismo entendem um regime de governo em que o Estado é ocupado por meio de um golpe (em geral militar) e no qual não há eleições livres nem partidos políticos verdadeiros, o poder executivo domina o legislativo e o judiciário, há censura do pensa- mento e da expressão, além de prisão (por vezes com tortura e morte) dos inimigos políticos. Em suma, democracia e autoritarismo são vistos como algo que se realiza na esfera do Estado, e este é identificado com o modo de governo. Essa visão é cega para algo profundo na sociedade brasileira: o autoritarismo social. Nossa sociedade é autoritária porque é hierárquica, pois divide as pessoas em infe- riores, que devem obedecer, e superiores, que devem mandar. Não há percepção nem prática da igualdade como um direito. Nossa sociedade também é autoritária porque é violenta: nela vigoram racismo, machismo, discrimi- nação religiosa, de origem, de orientação sexual e de classe social, desigualdades econômicas que estão entre as maiores do mundo, exclusões culturais e políticas. Não há percepção nem prática do direito à liberdade. O autoritarismo social e as desigualdades eco- nômicas levam a sociedade brasileira a polarizar- -se entre as carências das camadas populares e os interesses das classes abastadas e dominantes, sem conseguir ultrapassá-los e alcançar a esfera dos di- reitos. Os interesses, porque não se transformam em direitos, tornam-se privilégios de alguns, de sorte que a polarização social se efetua entre os despossuídos e os privilegiados. Estes, porque são portadores dos co- nhecimentos técnicos e científicos, são os “competen- tes”, cabendo-lhes a direção da sociedade. como vimos, uma carência é sempre específica, sem conseguir generalizar-se num interesse comum nem universalizar-se num direito. Um privilégio, por defini- ção, é sempre particular e não pode generalizar-se num interesse comum nem universalizar-se num direito, pois, se tal ocorresse, deixaria de ser privilégio. Se a de- mocracia é a criação e garantia de direitos, nossa socie- dade, polarizada entre a carência e o privilégio, não consegue ser democrática. Estudantes de Ensino Médio participam de atividade de robótica em escola particular de São Paulo, em 2011. A ideologia da “competência” privilegia os que possuem recursos econômicos para estudar e adquirir conhecimentos, perpetuando desigualdades. Is a d o ra B ra n t/ F o lh a p re s s INI.FILOSOFIA_FILOS_VU_PNLD15_348a359_U1_c342.indd 355 5/9/13 3:49 PM A política u n id a d e X I I 356 Clientelistas, vanguardistas e populistas Esse conjunto de determinações sociais manifes- ta-se na esfera política. Em lugar de democracia, te- mos instituições que têm origem nela, mas que ope- ram de modo autoritário. Assim, por exemplo, os partidos políticos costumam ser de três tipos: os clientelistas, que mantêm relações de favor com seus eleitores; os vanguardistas, que substituem seus eleitores pela vontade dos dirigentes partidá- rios; e os populistas, que tratam seus eleitores como um pai de família trata seus filhos menores. Favor, substituição e paternalismo evidenciam que a prática da participação política, por meio de repre- sentantes, não consegue se realizar no Brasil. Os re- presentantes, em lugar de cumprir o mandato que lhes foi dado pelos representados, surgem como che- fes, mandantes, detentores de favores e poderes, sub- metendo os representados e transformando-os em clientes de seus favores. A “indústria política” — a criação da imagem dos políticos pelos meios de comunicação de massa para a venda do político aos eleitores-consumidores —, aliada à estrutura social do país, alimenta um imaginá- rio político autoritário. As lideranças políticas são sempre imaginadas como chefes salvadores da nação, verdadeiros messias escolhidos por Deus e referenda- dos pelo voto dos eleitores. A imagem populista e messiânica dos governantes indica que a concepção teocrática do poder não desa- pareceu: ainda se acredita no governante como um en- viado das divindades cuja vontade tem força de lei. Além disso, longe de tomar como referência a ideia maquiaveliana da virtù como qualidade das instituições públicas e não como virtudes morais dos governantes, tende-se a considerar a corrupção como ação de políti- cos (indivíduos) imorais, e não como efeito da má qua- lidade das instituições públicas, feitas para servir os po- derosos e não os cidadãos. como consequência, as leis não são vistas como ex- pressão de direitos nem de vontades e decisões públi- cas coletivas. O poder judiciário aparece como miste- rioso, envolto num saber incompreensível e numa autoridade quase mística. Por isso mesmo, aceita-se que a legalidade seja, ao mesmo tempo, incompreensí- vel e ineficiente, e que a única relação possível com ela seja a da transgressão (o famoso “jeitinho”). como se observa, a democracia, no Brasil, ainda está por ser inventada. Os meios de comunicação e a cultura de massa reproduzem a violência social. Na foto, modelos negros protestam no Rio de Janeiro, em 2012, reivindicando representação igualitária em desfiles de moda e na publicidade. A n to n io S c o rz a /A g ê n c ia F ra n c e -P re s s e INI.FILOSOFIA_FILOS_VU_PNLD15_348a359_U1_c342.indd 356 5/9/13 3:49 PM A questão democrática ca pí t u lo 3 4 357 Carro oficial estacionad o sobre uma calçada na região central do Rio de Janeiro, em 20 12. R o b e rt o M o re y ra /E x tr a /A g ê n c ia O G lo b o Esta atividade trabalha com conteúdos de Histó- ria e Filosofia e com o tema transversal Ética. Você já deve ter ouvido falar na expressão “jeiti- nho brasileiro”, ou seja, o meio pelo qual a transgres- são das leis e das normas de conduta é praticada na sociedade brasileira tanto na esfera pública quanto na esfera privada, com a finalidade de contornar proble- mas ou obter privilégios. O termo é corriqueiro e já faz parte do imaginário social. 1. Relate uma situação em que você tenha flagrado al- guém ou se flagrado fazendo uso do “jeitinho” e respon- da: Como você se sentiu e/ou agiu diante dessa situação? 2. Você concorda que o “jeitinho” seja um hábito danoso à vida em sociedade? Justifique sua resposta buscando exemplos tanto na história do Brasil como em situações cotidianas. a filosofia nas e ntrelinhas Cena do filme O som ao redor, com o ator Gustavo Jahn no papel de João.D iv u lg a ç ã o /C in e m a S c ó p io IndIcação de fIlme O som ao redor Direção de Kleber Mendonça Filho. Brasil, 2012. Preocupados com a seguran- ça, os moradores de uma rua em um bairro de classe média do Recife aceitam os serviços oferecidos por uma milícia de segurança. O dia a dia das fa- mílias faz um retrato do Brasil atual, marcado pela violência, pelo autoritarismo, pela dis- criminação social e racial, pelo consumismo, pela especulação imobiliária e pela corrupção. atividades 1. Como opera a ideologia democrática? 2. Que significa afirmar que as ideias de igualdade e liberda- de como direitos civis dos cidadãos vão muito além de sua regulamentação jurídica formal? 3. Explique em que medida um direito difere de uma ne- cessidade ou carência ou de um interesse. 4. Com base na resposta da questão anterior, em que mo- mento podemos dizer que uma sociedade — e não um simples regime de governo — é democrática? 5. A democracia grega era direta; a moderna é representa- tiva. O que isso significa? 6. O que se entende por direitos políticos e direitos sociais? Cite exemplos de ambos. 7. O que é privatização? E desregulação? Em que medida afetam o modo de produção capitalista? 8. Com o neoliberalismo, houve um encolhimento da es- fera pública e um alargamento da esfera privada. O que isso representa na prática? 9. O que é a ideologia da competência técnico-científica e como ela interfere na política? Que contradições traz consigo? 10. De acordo com o texto, a sociedade brasileira é social- mente autoritária e economicamente desigual. Você concorda com essa análise? Justifique sua resposta. 11. Por que, na prática, a sociedade brasileira não consegue ser democrática? INI.FILOSOFIA_FILOS_VU_PNLD15_348a359_U1_c342.indd 357 5/9/13 3:49 PM A política u n id a d e X I I 358 Democracia e revolução no Oriente Médio p Democracia liberal e democracia de fato Estamos acostumados a aceitar a definição liberal da democracia como regime da lei e da ordem para a garan- tia das liberdades individuais. Visto que o pensamento e a prática liberais identificam liberdade e competição, essa definição significa 1) que a liberdade se reduz à competição econômica (“livre-iniciativa”) e à competi- ção política entre partidos que disputam eleições; 2) que há uma redução da lei à potência judiciária para limitar o poder político, defendendo a sociedade contra a tira- nia e garantindo os governos escolhidos pela vontade da maioria; 3) que há uma identificação entre a ordem e a potência dos poderes executivo e judiciário para conter os conflitos sociais por meio da repressão; e 4) que, em- bora apareça justificada como “valor”, a democracia é encarada pelo critério da eficácia — medida pela ação legislativa dos representantes, entendidos como políti- cos profissionais, e pela atividade executiva de uma elite de técnicos aos quais cabe a direção do Estado. A democracia é, assim, reduzida a um regime polí- tico eficaz que se manifesta no processo eleitoral de escolha dos representantes, na rotatividade dos gover- nantes e nas soluções técnicas para os problemas eco- nômicos e sociais. Podemos, porém, caracterizar a democracia como ul- trapassando a simples ideia de um regime político identi- ficado à forma do governo, tomando-a como forma geral de uma sociedade. Assim, podemos considerá-la como: 1. forma sociopolítica definida pela isonomia (igual- dade dos cidadãos perante a lei) e a isegoria (direi- to de todos para expor suas opiniões), baseada na afirmação de que todos são iguais porque livres. Ninguém está sob o poder de outro porque todos obedecem às mesmas leis das quais todos são auto- res. Donde o maior problema da democracia numa sociedade de classes ser o da manutenção de seus princípios — igualdade e liberdade — sob os efei- tos da desigualdade real; 2. única forma política na qual o conflito é conside- rado legítimo e necessário, buscando mediações institucionais para que possa exprimir-se. A demo- cracia não é o regime do consenso, mas do trabalho dos e sobre os conflitos. Donde outra dificuldade nas sociedades de classes: como operar com os con- flitos quando estes apresentam a forma da contradi- ção e não a da mera oposição? 3. forma sociopolítica que busca enfrentar as dificul- dades e a necessidade de conciliações acima apon- tadas introduzindo a ideia dos direitos. Graças aos direitos, os desiguais conquistam a igualdade, en- trando no espaço político para reivindicar a partici- pação nos direitos existentes e, sobretudo, a criação de novos direitos, que fazem surgir, como cidadãos, novos sujeitos políticos. 4. único regime político — devido à criação dos di- reitos — aberto às mudanças temporais, pois con- sidera o novo como parte de sua existência e, con- sequentemente, a temporalidade como constitutiva de seu modo de ser; 5. única forma sociopolítica na qual o caráter popular do poder e das lutas tende a evidenciar-se nas so- ciedades de classes, na medida em que os direitos só surgem ou ampliam seu alcance pela ação das classes populares contra a cristalização jurídico- -política que favorece a classe dominante; 6. forma política na qual a distinção entre o poder e o governante é garantida não só pela presença de leis e pela divisão de várias esferas de autoridade, mas também pela existência das eleições, pois estas sig- nificam não mera “alternância no poder”, mas assi- nalam que o detentor do poder é a sociedade e que o governante apenas o ocupa por haver recebido um mandato temporário para isto. Em outras palavras, eleger significa não só exercer o poder, mas manifes- tar a origem do poder, repondo o princípio romano de que eleger é “dar a alguém aquilo que se possui, porque ninguém pode dar o que não tem”. p O caminho da participação popular Como poder popular (demos = ‘povo’; krathós = ‘po- der’), a democracia exige que a lei seja feita por aque- les que irão cumpri-la e que exprima seus direitos. Nas sociedades de classe, o povo como governante não é a totalidade das classes nem da população, mas a classe dominante, que se apresenta, por meio do voto, como representante de toda a sociedade para a feitura das leis, seu cumprimento e a garantia dos direitos. Assim, para- doxalmente, a representação política tende a legitimar formas de exclusão política sem que isso seja percebido pela população como ilegítimo, ainda que seja perce- bido por ela como insatisfatório. Consequentemente, desenvolvem-se, à margem da representação, ações e movimentos sociais que buscam interferir na política sob a forma de pressão e reivindicação. Essa forma de olho na atualiDaDe INI.FILOSOFIA_FILOS_VU_PNLD15_348a359_U1_c342.indd 358 5/9/13 3:49 PM A questão democrática ca pí t u lo 3 4 359 costuma receber o nome de participação popular, sem que o seja efetivamente, uma vez que só será política e democrática se puder produzir as próprias leis, normas, regras e regulamentos que dirijam a vida sociopolítica. Assim, a cada novo direito criado, a democracia exige a ampliação da representação pela participação e a des- coberta de outros procedimentos que garantam a parti- cipação como ato político efetivo. Analisemos, então, os acontecimentos de 2011 no Oriente Médio e no Norte da África. Considerando, de um lado, os dois traços que definem uma revolução (a luta política por fora dos aparelhos políticos institucio- nais e dos que detêm os postos governamentais; e o Baixo da sociedade recusando o Alto, isto é, o poder estabeleci- do) e, de outro lado, os traços que definem a democracia como criação de novos direitos, podemos dizer que esses acontecimentos foram revolucionários. No entanto, os acontecimentos posteriores à “Pri- mavera do Oriente Médio” suscitam uma reflexão. A forma assumida pelo capitalismo, ao transferir o po- der econômico do setor produtivo para o financeiro, destruiu as formas de organização das classes popu- lares, estruturadas no local de trabalhoe baseadas na expressão de demandas por meio de movimentos sin- dicais e sociais. A fragmentação da produção econô- mica, agora espalhada em microproduções por todo o planeta com a terceirização do trabalho e dos serviços, fragmentou as classes populares, isolou os trabalhado- res e dificultou a organização de movimentos sociais. p as tecnologias e a revolução Muitos teóricos e políticos julgam positivo o térmi- no das formas tradicionais de organização dos movi- mentos populares e sociais, que tendiam a se expressar em partidos políticos. Julgam que novas maneiras de realizar a prática política democrática estão em curso na Grécia, em Wall Street e no Oriente Médio, onde indivíduos dispersos se associam em prol de uma demanda comum ou um interesse comum, sem as amarras das antigas organizações sindicais, partidá- rias, associações de bairro, associações comunitárias, etc. Para muitos desses teóricos e políticos, a internet abriu um novo horizonte para os novos movimentos sociais, como se tem visto com o surgimento e a pro- pagação das redes sociais. Por isso mesmo, considerando que se trata da apro- priação social e política de uma tecnologia — a tec- nologia eletrônica —, proponho compará-la a outra. No século XVII, os radicais da Revolução Inglesa usa- ram uma nova técnica de comunicação: a imprensa. Era uma pequena prensa portátil, com tipos de madeira pos- tos numa caixa e recipientes de tinta; um revolucionário fabricava sua prensa e os tipos e arranjava papel, levava esse material a uma reunião ou discussão pública e im- primia os resultados dos debates, produzindo panfletos que, em algumas horas, eram distribuídos por todo o país, mobilizando novos revolucionários. Os radicais não só deram um sentido revolucionário à nova tecnologia, mas também a um dos resultados da Reforma Protestan- te, isto é, a alfabetização das populações a fim de garantir acesso às traduções da Bíblia para as línguas vernáculas. Assim, a alfabetização e a imprensa tornaram-se instru- mentos de ação política revolucionária. Se, hoje em dia, levarmos em conta o monopólio da informação pelas empresas de comunicação de massa, podemos considerar as redes sociais como ação democratizadora tanto por quebrar esse monopólio da produção e da circulação da informação quanto por promover acontecimentos políticos de afirmação do direito democrático à participação. No entanto, se mantivermos essa comparação, será preciso assinalar duas diferenças significativas. A ação dos revolucionários ingleses era fundada num saber e numa prática autônomos; o revolucionário tinha o saber da técnica por ele empregada — fabricava a prensa, a tinta e os tipos, produzia o panfleto e o distribuía. Em contrapartida, os usuários das redes sociais são heterô- nomos pois: 1) não possuem, em geral, o domínio tec- nológico da ferramenta que empregam e 2) não detêm qualquer poder sobre a ferramenta empregada, pois esta se viabiliza por meio de uma estrutura concentra- da, a Internet Protocol, com dez servidores nos Estados Unidos e dois no Japão. Todos os endereços eletrôni- cos existentes estão alojados nesses doze servidores, de maneira que, se eles se desligarem, desaparece toda a internet. Além disso, a gerência do cadastro mundial da internet é feita por uma empresa estadunidense em articulação com o Departamento de Comércio dos Es- tados Unidos. Assim, sob o aspecto criativo e anárquico das redes sociais em ação política ocultam-se o controle e a vigilância sobre seus usuários em escala planetária. Além disso, a ferramenta usada pelos revolucionários ingleses tinha como finalidade organizá-los para a ação revolucionária, isto é, visava que eles se encontrassem e formassem associações políticas comunitárias de longa duração. Não é o caso das redes sociais: por um lado, a fragmentação e o isolamento não desaparecem em novas formas de organização política e, por outro lado, as ações são efêmeras, voláteis e terminam quando os poderes es- tabelecidos se apropriam das palavras de ordem e das de- mandas feitas pelas redes. Estas, portanto, não participam do desenrolar dos acontecimentos políticos. As redes são um estopim político, um evento, mas não dão origem a um processo político sob controle de seus participantes. ¶ INI.FILOSOFIA_FILOS_VU_PNLD15_348a359_U1_c342.indd 359 5/9/13 3:49 PM