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Conservação da biodiversidade e presença humana: é possível conciliar? Nurit Bensusan Instituto Socioambiental - ISA m dos instrumentos mais utilizados na proteção da biodiversidade é o estabelecimento de áreas protegidas. Tanto no Brasil, como em inúmeras outras partes do mundo, essa ferramenta é usada, inclusive, para expressar o grau de conservação da natureza, ou seja, países que possuem muitas áreas protegidas são considerados eficientes na conservação de sua diversidade biológica. Esse instrumento, no entanto, possui também aspectos negativos, e o maior deles, talvez, seja a idéia que está subliminarmente associada às áreas protegidas, de que esses são os espaços de proteção e o que está fora desses espaços é passível de ser destruído. Essa idéia, se colocada em prática, minaria completamente a eficiência das áreas protegidas como instrumentos de conservação da biodiversidade, pois a escala dos processos biológicos transcende as fronteiras das áreas protegidas e, sem que haja manutenção da biodiversidade e desses processos fora das áreas, a diversidade biológica não se manteria dentro das áreas protegidas. Apesar das diversas modalidades de áreas protegidas que existem hoje no Brasil (Sistema Nacional de Unidades de Conservação - Lei 9.985/2000), não será possível conservar todos os processos geradores e mantenedores de biodiversidade utilizando apenas esse instrumento. É necessário conciliar o uso e a presença humana com a proteção da biodiversidade. Algumas das modalidades de unidades de conservação já avançam nesse sentido. Há, por exemplo, reservas extrativistas que almejam harmonizar a conservação da biodiversidade com as atividades extrativistas tradicionais das comunidades locais, e áreas de proteção ambiental, cujo objetivo é ordenar o uso e a ocupação da terra numa determinada área. Essas experiências, sempre realizadas em escalas limitadas a escala das áreas protegidas , podem fornecer elementos importantes para o ordenamento territorial fora das unidades de conservação, e só assim será possível manter efetivamente a diversidade biológica. As terras indígenas, por sua vez, estão alijadas das ações de conservação da biodiversidade. Não há programas específicos de proteção da diversidade biológica nessas terras U 2 e, nos casos onde há sobreposição entre as terras indígenas e as unidades de conservação, há freqüentemente uma tendência a acreditar que a sobreposição entre esses espaços não é passível de conciliação. Apesar de algumas iniciativas para solucionar a questão de maneira harmônica, poucos foram os avanços até o momento. Um panorama dessa situação pode ser encontrado em Bensusan e Gonçalves, 2000. A crença de que não é possível conciliar a presença humana com a conservação da biodiversidade, além de extremamente prejudicial para o mais popular instrumento de conservação, as áreas protegidas, é nociva à sustentabilidade futura das terras indígenas e não considera a relevância desses espaços para a conservação da biodiversidade. As terras indígenas, seja por sua dimensão 12% da extensão total do território nacional e 21% da extensão total da Amazônia Legal brasileira , pela variedade ou singularidade dos ecossistemas que abrigam, ou pela situação de relativa preservação dos seus recursos naturais, devem ser consideradas como componente fundamental para uma estratégia nacional de conservação e uso sustentável da biodiversidade. Os resultados do Seminário de Consulta sobre prioridades de conservação na Amazônia, realizado no âmbito do Programa Nacional de Biodiversidade, corroboram essa idéia, demonstrando, claramente que as terras indígenas são espaços fundamentais na proteção da biodiversidade no Brasil. Um resumo desses resultados está abaixo, na tabela 1. Considerações sobre tais resultados podem ser encontrados em Capobianco et al, 2001 (pp. 25-27). Tabela 1. Porcentagem de áreas prioritárias para a conservação da biodiversidade na Amazônia incluídas nas unidades de conservação e nas terras indígenas Grau de prioridade Unidades de Conservação (%) Terras Indígenas (%) Extremamente alta 34,0 40,1 Muito alta 29,9 36,4 Alta 0 25,0 A conservação da biodiversidade e o uso sustentável dos recursos naturais são, além disso, fundamentais para os projetos de futuro dos povos indígenas no Brasil. O que se pode observar, portanto, é uma sobreposição de interesses: tantos os povos indígenas, como aqueles preocupados com a proteção da biodiversidade possuem os mesmos interesses garantir a manutenção e a sustentabilidade da diversidade biológica. Os números das sobreposições na Amazônia Legal, encontrados abaixo na tabela 2, mostram que haverá perda para os povos indígenas e para a conservação da biodiversidade se não 3 for possível encontrar maneiras conciliatórias de resolver a questão. Por um lado, não é possível dedicar esses espaços apenas à proteção da natureza, excluindo os povos que ali habitam tradicionalmente; por outro, perder a oportunidade de fomentar ações de conservação e uso sustentável da biodiversidade nessas terras, tão relevantes em termos de diversidade biológica, certamente não seria a melhor solução. O mapa das sobreposições na Amazônia Legal permite um panorama da situação. Tabela 2 – Sobreposições entre unidades de conservação federais de proteção integral e terras indígenas na Amazônia Legal (todas as medidas em hectares.) – Fonte Instituto Socioambiental - ISA área de sobreposição Terra Indígena extensão no sistema cartográfico ISA % de sobreposição em relação à TI Unidade de Conservação extensão no sistema cartográfico ISA % de sobreposição em relação à UC 1.136.275,89 Yanomami 9.586.326,85 11,853 PARNA do Pico da Neblina 2.244.903,17 50,616 702.036,37 Uru-Eu-Wau-Wau 1.878.302,21 37,376 PARNA Pacaás Novos 702.036,37 100,000 409.358,50 Massaco 427.975,42 95,650 REBIO do Guaporé 595.911,86 68,694 364.354,69 Boto Velho 364.360,74 99,998 PARNA do Araguaia 549.970,46 66,250 220.054,92 Enawenê Nawê 758.871,79 28,998 ESEC Iquê 220.054,92 100,000 116.090,13 Raposa/Serra do Sol 1.742.191,62 6,663 PARNA do Monte Roraima 116.090,13 100,000 90.566,38 Andirá-Marau 791.159,99 11,447 PARNA da Amazônia 909.463,48 9,958 52.607,07 Balaio 52.607,07 100,000 PARNA do Pico da Neblina 2.244.903,17 2,343 47.958,36 Médio Rio Negro II 324.975,80 14,758 PARNA do Pico da Neblina 2.244.903,17 2,136 7.771,87 Igarapé Lourdes 194.802,11 3,990 REBIO do Jaru 284.897,80 2,728 4.045,69 Betânia (área 2) * 6.674,49 60,614 RESEC Jutaí/Solimões 299.936,83 1,349 2.409,08 Yanomami 9.586.326,85 0,025 ESEC de Caracaraí ** 92.970,43 2,591 391,23 Yanomami 9.586.326,85 0,004 PARNA Serra da Mocidade ** 376.314,08 0,104 * Trata-se de área descontínua, portanto o cálculo foi efetuado apenas para esta parcela. Como o decreto não apresenta a extensão separada das duas áreas, foi utilizada a extensão obtida do sistema. ** A sobreposição é muito pequena, mas confirmada. Vale notar que a área declarada no decreto é muito menor do que a obtida na plotagem. A questão das sobreposições entre unidades de conservação e terras indígenas e, mais genericamente, dos modelos de conservação de biodiversidade que excluem a possibilidade de presença humana, traz à tona vários aspectos interessantes e dignos de serem considerados, além dos já acima mencionados. O primeiro deles é o grau de construção humana que há na idéia de natureza. A frase famosa de Raymond Williams “A idéia de natureza contém uma extraordinária quantidade de história humana” espelha bem esse aspecto. Na maioria dos casos, a preservação de uma paisagem ‘virgem, natural, prístina ou selvagem’ não passa de um mito cultural1. Essas paisagens têm sido modificadas ao longo dos séculos pelas atividades 1 Cronon, W. 1995. In search of nature. In: Uncommon ground. Ed: W. Cronon. W.W. Norton & Company, Nova York. 4 humanas, desde caça e abertura de florestas, até a introdução de doenças e espécies novas.Evidentemente, isso não pode servir de justificativa para a destruição da biodiversidade ou para o abandono do projeto de conservação da natureza, mas é importante explicitar os componentes da questão, compreendê-los e traçar estratégias adequadas. Nesse caso, conciliar manutenção de biodiversidade e populações humanas é um elemento chave para a construção de uma nova estratégia de conservação mais próxima da realidade. Um segundo aspecto digno de atenção, é que essa noção de espaços que devem ser conservados, inclusive sem a presença humana, privilegia determinadas porções da natureza em detrimento de outras. Esse aspecto remete ao já mencionado acima no texto: a idéia de que uma vez que uma parcela da natureza é destinada à proteção, o resto não merece atenção. Critérios como maior ou menor importância em termos de biodiversidade são, em geral, os utilizados para designar áreas protegidas. Entretanto, o fundamental não são as áreas em si e sim os processos que geram e mantêm a diversidade ali presente, e esses processos acontecem em todos os lugares. Mais uma vez, aqui não se trata de abandonar a idéia de proteger porções do território com a finalidade de conservar a biodiversidade, trata-se de acoplar outros mecanismos que garantam a manutenção dos processos biológicos e a não discriminação de certas partes da natureza. Uma boa demonstração de que isso acontece com freqüência é comparar a quantidade de áreas protegidas que existem nos ecossistemas florestais brasileiros, Mata Atlântica e Amazônia, com os números do Cerrado e da Caatinga. Esse processo acontece em todas as escalas e revela a enorme arrogância humana: destinar algumas ‘naturezas’ à proteção e outras, à inexorável destruição. O terceiro e último aspecto a ser aqui considerado é o da justiça social relacionada à distribuição dos sacrifícios que impõe, ou seja, as restrições não são distribuídas igualmente, mesmo quando se trata de produzir benefícios coletivos2. Nos debates sobre a necessidade de remover populações humanas para o estabelecimento de unidades de conservação, esse aspecto fica claro. Muitos se beneficiarão com a proteção da biodiversidade, mas os diretamente sacrificados são poucos. Nesse caso específico, muitas vezes o sacrifício pode ser inútil, pois sem uma estratégia de conservação mais ampla, dificilmente se cumprem as finalidades das áreas protegidas. Vale, por fim, assinalar que a conservação da diversidade biológica, resultado de milhares de anos de evolução, é um objetivo a ser perseguido sem interrupção. Entretanto, é necessário pensar nas várias facetas dessa questão para conceber instrumentos de conservação que sejam 2, Deborah M. Lima, sem data. Ética e Política Ambiental na Amzônia Contemporânea. mimeo. 5 efetivos e que contemplem outros aspectos como a justiça social. A conciliação entre pessoas e proteção ambiental é parte dessa reflexão e a solução do impasse causado pela sobreposição entre terras indígenas e unidades de conservação é parte fundamental desse processo; além de ser, possivelmente, um grande aprendizado na direção dessa tão necessária conciliação. ♠ ♠ ♠