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Resenha crítica_Peça Medéia

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UNIVERSIDADADE ESTADUAL DO CEARÁ
CENTRO DE HUMANIDADES
CURSO DE LETRAS/PORTUGUÊS/LICENCIATURA
Disciplina: Teoria da Literatura
Professora: Sarah Holanda
Aluna: Mayara Stephany Sousa Alcindo
EURÍPIDES. Medeia. 34. ed. São Paulo: Ed. 34, 2010. 192 p. Edição bilíngue; tradução, posfácio e notas de Trajano Vieira; comentário de Otto Maaria Carpeaux.
Medéia trata-se de uma tragédia escrita, no século V a.C., por Eurípides e a exemplo de outras tragédias produzidas na Antiguidade Clássica, não deve ser compreendida fora de seu tempo, uma vez que a tradição mitológica esteve evidente nesse gênero literário. O divino, representado na figura de deuses e heróis, influenciavam a vida na terra daqueles que estavam à mercê de uma existência que ultrapassava as leis da natureza, e no entanto, essa mesma presença mitológica não deixou de ser vinculada aos conflitos humanos, pois os problemas de natureza social e política não deixaram de estar presentes nas tragédias. 
O mito de Medéia, tal qual abordado na tragédia de Eurípides, começa com outra lenda da mitologia grega: a saga dos Argonautas, mito que conta as aventuras de Jasão na conquista do velocino de ouro. Jasão era filho de um rei destronado e na tentativa de reivindicar o trono que era seu por direito, seu tio, atual regente, manda-o para uma missão impossível: a conquista o velo de ouro. Para atingir tal feito, Jasão reúne uma tripulação e à bordo do navio Argó, ele e os tripulantes (chamados argonautas) partem para Cólquida. Participam dessa expedição heróis lendários como Hércules e Orfeu. Mas chegando ao local de destino, o rei Eetes impõe condições ao herói que agora se vê com a tarefa de cumprir quatro provas: derrotar dois touros, com corpo de bronze, que lançavam fogo pelas narinas; semear o campo com dentes de dragão e vencer os guerreiros que nasciam desses dentes; e por último, derrotar o dragão que guardava o velocino de ouro. Seriam tarefas impossíveis de serem realizadas por qualquer mortal comum, mas Jasão contou com a ajuda, mais que indispensável, da figura feminina central de mesmo nome da tragédia de Eurípides, Medéia.
Medéia traiu seu próprio pai e fugiu com Jasão, de posse do velo de ouro. No percurso, ela cometeu o crime de matar e esquartejar o irmão para atrasar a perseguição. Chegando ao reino do tio de Jasão, Medéia comete mais um assassinato pelo não cumprimento do acordo, Pélias aceita o velo, mas se nega a ceder o trono. O rei é morto pelas próprias filhas, seduzidas pela promessa de rejuvenescimento de Medéia. Fugitivos de Iolcos e Cólquida, o casal se refugia em Corinto, local onde se desenvolve a problemática da tragédia de Eurípides. A peça Medéia foge dos moldes da época quanto a forma como essa problemática é concebida, diferente de outras tragédias, sua origem não advém da relação do homem com o divino, mas dos impasses próprios da sociedade e do coração humano. 
A tragédia que recebeu terceiro lugar num concurso dramático tem como palco para seus acontecimentos a cidade de Corinto. Medéia e Jasão eram estrangeiros na terra do rei Creonte, e a primeira cena já se inicia com a colocação de que Medéia foi abandonada e trocada pela filha do rei Creonte. 
Analisando a obra em questão, percebemos que as inovações que Eurípides trouxe para o teatro da Grécia antiga não se encerram por ai. Talvez o principal divisor de águas e também responsável, provavelmente, pelo choque com que fora recebida a peça fora o tratamento destinado à personagem Medéia, porque ela comete muitos crimes hediondos e, no entanto, sai impune. 
A tragédia da Grécia antiga é caracteriza por uma série de ciclos que conduzem os desdobramentos da vida do herói. Mas em Medéia, não temos o protótipo de herói tal como era reconhecido pelos seus sacrifícios. Muito pelo contrário, Jasão se enquadra mais como o verdadeiro antagonista da tragédia ou uma espécie de herói desonrado. 
No mito dos Argonautas, Medéia chega a cometer muitos erros trágicos: trai o pai, mata o irmão e engana as filhas de Pélias, causando-lhe a morte. Esses erros, por sua vez, vão causar uma reviravolta nos acontecimentos, algo que era praticamente impossível de ser realizado acaba se concretizando por manobra do destino: Jasão consegue o velo de ouro. Medéia é capaz de cometer crimes hediondos, mas talvez a reviravolta mais importante vai ser a expulsão do casal do reino de Pélias, de tal forma que eles vão se refugiar no local onde acontece a tragédia principal da peça: a mão assassina os próprios filhos numa evidente tentativa de atingir o pai das crianças. A última etapa seria a purificação que corresponde ao desfecho trágico do herói como uma espécie de lição para o público, mostrando que erros causavam consequências desmedidas, assim o expectador poderia avaliar antes de cair na tentação de fazer uma loucura, uma vez que existiam limites impostos pelos deuses e pela lei humana, e as transgressões da moral da sociedade eram punidas na tragédia como uma forma de lembrar aos cidadãos que não cedesse aos seus instintos e nem impulsos. A grande questão é que Medéia cometeu várias desmedidas, mas não passou pelo momento de introspecção em que se coloca que é impossível viver com as consequências dos erros. Muito pelo contrário, ela saiu de cena vitoriosa por ter completado sua vingança e esvoaçante numa carruagem cedida pelo deus Sol, seu avô.
No entanto, não podemos negar que nossa heroína não foi a única a cometer erros. Seu parceiro, Jasão, decide trocar a mãe de seus filhos por um casamento mais vantajoso, com a filha do rei de Corinto. Nesse momento, Medéia encontra-se vítima de uma reviravolta do destino (destino esse que não é obra de um deus vingativo, mas como consequência dos erros anteriores). Ela nunca imaginou que Jasão fosse capaz de lhe trair desse jeito, logo depois de tudo que ela fez por ele. Desse modo, apesar de Medéia não ser uma tragédia em que o drama central seja a discussão da situação da mulher na sociedade da Grécia antiga, não podemos rejeitar a importância dessa informação para o entendimento dessa mulher tão impiedosa.
A situação da mulher era praticamente a mesma para todas as pólis gregas: ela não compartilhava o mesmo lugar dos homens livres, visto como um cidadão de pleno direito. A vida pública na pólis estava reservada apenas aqueles que eram considerados membros de direito da cidade, e estavam excluídos, as mulheres e escravos. A mulher estava à margem da sociedade e estaria sob tutela de um homem por toda sua vida (pai, irmão, marido). Medéia estava a frente do seu tempo, as mulheres de Atenas foram submetidas a uma educação rígida, que desde cedo lhe ensinava o seu lugar na sociedade. Mas nossa heroína era uma feiticeira bárbara que não se submetia a opressão daquela pólis, e que soube muito bem usar sua posição de mulher quando lhe era conveniente. 
Ela se encontrava sem lugar par ir depois da traição e abandono de Jasão, não podendo voltar para casa e como uma estrangeira expulsa de Corinto, ela foi tomada por ódio e teve o orgulho ferido. Em seguida, arquitetou sua vingança, tomou as devidas providências em certificar-se de ter lugar para fugir depois do intento e fez uso de seu lado frágil conforme lhe era conveniente. Dizendo-se arrependida de ter proferido todas as palavras de escárnio, manda presentes envenenados para a noiva de Jasão, infligindo mais dois assassinatos: da princesa e do rei. E diante de conseguir sua vingança, a heroína também enfrenta um pequeno conflito interno para aquilo que iria marcar o acontecimento mais aterrorizante da peça. Nesse momento, Medéia tornou-se um personagem universal e assumiu sentimentos humanos: sofrimento, dúvida, mágoa, paixão. 
Eurípides rompe com a tradição da época, em que era marcada pelo forte pensamento religioso e ao apego a crença que o destino, assim como os fenômenos do mundo, era controlado e influenciado pela mão invisível dos deuses. O teatro de Eurípides volta os olhos para as ruas de Atenas e foca seu enredo na condição do homem e problemas típicos do coração humano. Em Medéia,temos as ações violentas e sanguinárias de uma heroína que desperta repúdio e empatia dos espectadores e isso acontece porque ela não vive um drama só dela, mas compartilha uma identificação com os sentimentos humanos: as mulheres de Corinto se identificam com o sofrimento de Medéia, com sua condição de mulher que vai além do “eu”, mas que representa uma dor coletiva daquelas que são subjugadas desde o nascimento, julgam injustificável o tratamento recebido do homem que lhe deve tudo, mas ficam horrorizadas perante as barbaridades que aquela mulher estava disposta a fazer.
Medéia é uma peça que sai dos palcos para entrar nos noticiários, casos de infanticídio, casos de assassinato movido pela vingança e raiva, logo podemos dizer que a obra de Eurípides é atual quanto sua construção que se aproxima da realidade humana. Seus personagens não eram notórios pelas virtudes, mas eram heróis desmistificados, o próprio Jasão era um homem interesseiro e traidor. Em Medéia, não vemos a preocupação dos personagens principais com a reparação de sua honra. Ela se entrega a suas paixões, ao seu desejo de vingança.

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