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@vestibularesumido 27 A descrição das personagens a seguir, ainda que não substitua a leitura da obra, proporcionará um olhar mais apurado da trama. João Romão: português de baixa estatura, com barba sempre por fazer, sovina e com ares de cobiça. É dono do cortiço e da pedreira e não mede esforços para acumular riquezas; dorme sobre o balcão do próprio armazém e faz do trabalho a sua vida, privando-se dos mais simples prazeres. Miranda: também português, vive em um sobrado ao lado do cortiço de João Romão, que o inveja por sua condição social. É casado por conveniência com Estela, mulher com alguns casos extraconjugais. Bertoleza: escravizada fugida que acredita ter sido alforriada e passa toda a trama prestando serviços humildemente a João Romão; vive como amante do “patrão”, é quitandeira e limpa os peixes que darão apelido aos moradores do cortiço – “carapicus”. Jerônimo: português íntegro e bom. Inicialmente, apresenta-se como marido e pai gentil. Apaixona-se por Rita Baiana e passa por um “abrasileiramento”, degradando-se. Piedade: esposa de Jerônimo que é traída e abandonada pelo marido; alcança, depois disso, sua completa degradação e é expulsa pelo cortiço. O ser humano determinado pelo meio O cortiço, uma habitação coletiva, é o espaço principal do romance; esse importante cenário do enredo acaba se tornando o grande protagonista da obra. De sua entrada até os fundos (a pedreira), o espaço é descrito em toda sua decrepitude: é sujo, malcheiroso, abarrotado de gente de péssimos hábitos de higiene, está em condições deploráveis e nele acontecem relações promíscuas. Uma das teorias da linha do Naturalismo tomada como referência para a produção dessa obra – o determinismo, de Hippolyte Taine – indica que o meio é capaz de determinar o comportamento dos seres e modificá- los. Logo, o cortiço e sua sordidez abrigaram também gente decrépita, suja e promíscua. Os adjetivos para as personagens locais parecem cruéis, mas é o que se pretendia com a linguagem realista-naturalista: a observação e descrição objetivas da realidade circundante. Em grupo, os indivíduos devem moldar- se, adaptar-se ao ambiente; portanto, não podemos dizer que em O cortiço alguém figura como personagem principal, visto que, como apontam muitos estudiosos, é o ambiente coletivo, ou seja, o pode ser considerada a personagem principal do livro. Observe os trechos a seguir, em que a habitação ganha ares humanos. Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas. AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. São Paulo: Nobel, 2009. p. 29. daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco. E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. São Paulo: Nobel, 2009. p. 18. Ao recurso apresentado nos trechos anteriores, dá-se o nome de personificação (ou prosopopeia), em que algo inanimado, no caso a habitação coletiva, adquire vida e sentidos. Assim, justifica-se a tese de que o cortiço pode ser considerado o protagonista do romance. Sobre o clima dos trópicos: o português em terras brasileiras Além do cenário do cortiço, Aluísio Azevedo abordou a questão do “abrasileiramento” em sua obra. Não só a moradia pobre altera o comportamento da personagem, mas também a natureza tropical do Brasil, a qual é capaz de modificar a estrutura emocional do estrangeiro. Jerônimo é um português caracterizado, inicialmente, como um trabalhador honesto, marido íntegro e bom pai. Segundo o narrador, a personagem, já em terras cariocas, acaba por se esvaziar da coragem de outrora e se torna preguiçoso, indisciplinado e transgressor da moral. Desse modo, a narrativa apregoa que o Brasil opera em Jerônimo uma “revolução tropical”, causada pelo sol e pela atração que o rapaz sente por Rita Baiana. A sensualidade da mulher brasileira é fator preponderante para que observemos uma transformação em Jerônimo, também abalado pela música e pela dança. O rapaz se torna pura luxúria, pois, segundo a concepção da época, o cheiro e a luz do Rio de Janeiro são afrodisíacos. Comprovando o determinismo do meio, Jerônimo torna-se indolente, preguiçoso e apreciador imoderado de fumo, de café, de cachaça e de sexo. Assim, ele deixa de trabalhar na terra e se deixa levar pelos prazeres, ao contrário de João Romão, também português e dono do cortiço, que triunfa sobre o meio e não é dominado por ele. João Romão: o êxito do ser humano sobre o meio João Romão é um português que se destaca pela força, pois, diferentemente de Jerônimo, não se submete ao meio. É um vendeiro que ascende na nova terra à custa da exploração dos outros, principalmente de Bertoleza, @vestibularesumido 28 uma escravizada fugida para quem ele acaba falsificando uma carta de alforria. Todos os esforços de João Romão se concentram em ocupar uma posição social superior, equiparando-se ao invejado Miranda, também português e vizinho do cortiço, morador de um sobrado “aristocrático”. Por esse motivo, João Romão utiliza, de forma doentia, recursos para guardar dinheiro. É ambicioso, rouba os clientes no armazém e abusa da companheira Bertoleza, tanto do trabalho braçal quanto do corpo dela, acumulando primitivamente capital a fim de alcançar certa fortuna. É ele quem cria o mundo do cortiço e o reduz ao feroz antro fétido descrito na obra. Entretanto, João Romão se nega a interagir com a desordem instaurada e com a sensualidade/ sexualidade sempre muito presentes na rotina do local. Com o único objetivo de ascender socialmente, torna-se um ser humano desprezível. Por fim, consegue uma considerável fortuna, conquistando certa admiração de Miranda, que acabara de receber o título de barão. João agora compreende que seu império fora construído sobre o vazio. Tenta, a todo custo, casar- se com a vizinha Zulmira, filha de Miranda, como modo de pôr fim à sua existência nula e solitária, mas vê Bertoleza como um grande problema. Como se casar com uma jovem aristocrata tendo a escravizada fugida sob seu teto como amásia? Ela já não lhe servia mais, era apenas um estorvo do qual ele precisava se livrar. Nessa passagem da história, Aluísio Azevedo nos brinda com uma forte cena, carregada de pessimismo e crueldade típicas do Realismo-Naturalismo: João Romão, que forjara a carta de alforria de Bertoleza e a enganara para explorar sua mão de obra, denuncia a mulher ao filho de seu antigo dono, a fim de que ela fosse capturada e levada de volta ao cativeiro. Em seguida, constrói-se a cena desoladora da exasperação de Bertoleza, a qual se desespera diante da farsa do amante e crava em seu ventre o mesmo facão com que rotineiramente limpava os peixes, rasgando-o. Atravessaram o armazém, depois de um pequeno corredor que dava para um pátio calçado, e chegaram finalmente à cozinha. Bertoleza, que havia já feito subir o jantar dos caixeiros, estava de cócoras no chão, escamando peixe, para a ceia do seu homem, quando viu parar defronte dela aquele grupo sinistro. Reconheceu logo o filho mais velho do seu primeiro senhor, e um calafrio percorreu- lhe o corpo. Num relance de grande perigo compreendeu a situação: adivinhou tudo com a lucidez de quem se vê perdido para sempre; adivinhou que tinha sido enganada; que a sua carta de alforria era uma mentira, e que o seu amante, não tendo coragem para matá-la, restituía-a ao cativeiro. Seu primeiro impulso foi de fugir. Mal, porém, circunvagou os olhos em torno de si, procurando escapulir, o senhor adiantou-se dela e segurou-lhe o ombro. — É esta! disse aos soldados, que, com um gesto, inti- maram a desgraçada a segui-los. — Prendam-na! É escrava minha! A negra, imóvel, cercada de escamas e tripas de peixe, com uma das mãos espalmadas no chão e com a outra segurando a faca de cozinha, olhouaterrada para eles, sem pestanejar. Os polícias, vendo que ela se não despachava, desembainharam os sabres. Bertoleza, então, erguendo-se com ímpeto de anta bravia, recuou de um salto e, antes que alguém conseguisse alcançá-la, já de um só golpe certeiro e fundo rasgara o ventre de lado a lado. E depois emborcou para frente, rugindo e esfocinhando moribunda numa lameira de sangue. AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. [s.l]: Nova Fronteira, 2014. Entre as personagens do romance O cortiço, destaca-se Pombinha – a “flor do cortiço” –, cuja transformação é marcante e delineia o forte apelo naturalista do autor. A princípio, Pombinha é apresentada como um escudo à forma de vida instintiva do local. A moça vive a adolescência sem sinais de menstruação, o que, simbolicamente, caracteriza-a ainda como uma menina, considerada pura e ingênua. Pombinha é prometida em casamento a um bom moço, e a primeira menstruação dela é ovacionada por sua mãe, que considera o sangue um milagre, um símbolo de fertilidade e bonança. Assim, Pombinha também começa a viver as primeiras experiências sexuais e aflora para a vida em um encontro com Léonie, uma prostituta. A mocinha casa- se em seguida, mas já não é a mesma menina que amara o noivo um dia, mas sim uma mulher transformada pelas circunstâncias da vida. Ela passa a trair o marido constantemente e só encontra felicidade plena quando passa a viver definitivamente um romance com Léonie e também se torna prostituta. Assim, surge o questionamento: tais eventos evidenciam seu instinto, sua essência ou a influência do meio sobre ela? Pombinha ergueu-se de um pulo e abriu de carreira para casa. No lugar em que estivera deitada o capim verde ficou matizado de pontos vermelhos. A mãe lavava à tina, ela chamou-a com instância, enfiando cheia de alvoroço pelo número 15. E aí, sem uma palavra, ergueu as saias do vestido e expôs a Dona Isabel as suas fraldas ensanguentadas. — Veio?! – perguntou a velha com um grito arrancado do fundo d’alma. A rapariga meneou a cabeça afirmativamente, sorrindo feliz e enrubescida. As lágrimas saltaram dos olhos da lavadeira. — Bendito e louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo! ex- clamou ela, caindo de joelhos defronte da menina e erguendo para Deus o rosto e as mãos trêmulas. Depois abraçou-se às pernas da filha e, no arrebatamento de sua comoção, beijou- lhe repetidas vezes a barriga e parecia querer beijar também aquele sangue abençoado, que lhes abria os horizontes da vida, que lhes garantia o futuro; aquele sangue bom, que descia do céu, como a chuva benfazeja sobre uma pobre terra esterilizada pela seca. AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. São Paulo: Nobel, 2009. p. 138.
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