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Conceitos Fundamentais em Psicanálise Aula 1

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CONCEITOS FUNDAMENTAIS 
EM PSICANÁLISE 
AULA 1 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Prof.ª Juliana Santos 
 
 
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CONVERSA INICIAL 
 Durante essa caminhada, iremos apresentar a base dos conceitos 
psicanalíticos que norteará todo o estudo de psicanálise, pois trata-se dos 
conceitos que Freud nomeou de sua metapsicologia, isto é, os conceitos e 
teorias que caracterizam a psicanálise como um saber. 
 Aqui já é importante fazer um esclarecimento: o que é fundamental para 
Freud e para Lacan! 
 Para Freud, os conceitos fundamentais são aqueles que embasaram o 
que ele chamou de metapsicologia. E metapsicologia é o nome que Freud deu 
para se referir ao conjunto de suas teorias sobre a organização e o 
funcionamento psíquico. 
 
Créditos: HypeStudio/Shutterstock. 
 Freud desenvolveu a teoria psicanalítica, à qual deu o nome de 
metapsicologia, entre os anos de 1900 e 1939. É sobre esse período histórico 
que esta nossa caminhada vai tratar em um primeiro momento. 
 Agora vamos ao segundo momento: anos depois, Jacques Lacan também 
deixou sua marca na psicanálise ao destacar o que ele chamou de Os quatro 
conceitos fundamentais da psicanálise. São eles: 
Pulsão de morte 
Compulsão à 
repetição 
Eu, Isso, Supereu 
Masoquismo 
 
Inconsciente 
Consciente 
Pré-
consciente 
Pulsão 
Repressão 
Narcisismo 
 
METAPSICOLOGIA 
 
 
3 
• Inconsciente; 
• Repetição; 
• Transferência; e 
• Pulsão. 
Estes são os conceitos da psicanálise que são fundamentais para Lacan. 
Um dos livros da coleção Os Seminários tem o nome: Os quatro conceitos 
fundamentais da psicanálise. É o volume 11, publicado originalmente em 1964. 
Então, resumindo: quando falamos em conceitos fundamentais EM 
psicanálise, estamos nos referindo à metapsicologia freudiana. Quando falamos 
de conceitos fundamentais DA psicanálise, é uma referência ao Seminário 11, 
de Lacan. 
TEMA 1 – O que é a metapsicologia freudiana? 
 Nas obras de Freud, podemos considerar alguns textos como sendo parte 
essencial do movimento metapsicológico. Destacamos aqui os mais clássicos: 
• O Projeto para uma psicologia científica (1895), mais conhecido como “O 
Projeto”, é um texto pré-psicanalítico no qual Freud, ainda impregnado de 
um discurso médico e organicista, busca descrever o funcionamento do 
aparelho psíquico por meio de transmissão neuronal. Esse texto mostra 
onde tudo começou, quais eram as primeiras hipóteses de Freud sobre o 
psiquismo. 
• A Interpretação de Sonho (1900), no qual Freud se distancia da visão 
organicista anterior e passa a apresentar o funcionamento do aparelho 
psíquico por meio de três instâncias: inconsciente, consciente e pré-
consciente, nomeado de a primeira tópica do aparelho psíquico. 
• Introdução ao narcisismo: texto que compreende a constituição do eu e 
que produz a unidade corporal do sujeito, que antes se encontrava 
despedaçada no autoerotismo. 
• Artigos sobre a metapsicologia (1915-1916). Nesta publicação, 
encontramos alguns textos que são fundamentais para a construção 
teórica da psicanálise: 
o A pulsão e suas vicissitudes (1915): uma das principais construções 
teóricas, considerada a mitologia freudiana – a teoria das pulsões. 
 
 
4 
o O recalque (1915): texto que demarca a divisão do psiquismo através do 
mecanismo do recalque, como sendo esse um dos destinos da pulsão. 
o O inconsciente (1915): Freud constata que o inconsciente é uma 
instância que está para além do conteúdo recalcado. 
• Mais além do princípio de prazer (1920). Este é o texto que inaugura uma 
nova fase na metapsicologia freudiana, pois fica claro o avanço na 
compreensão de Freud sobre o psiquismo humano. Podemos dizer que é 
este texto que divide epistemologicamente a teoria psicanalítica, como um 
“antes” e um “depois” dele. Essa nova fase se inicia com a publicação do 
texto, no qual é introduzido o conceito de pulsão de morte, sendo este, 
mais um modo de regulação dos processos psíquicos e dá uma nova 
dimensão clínica, através da compulsão à repetição. Então, no texto Mais 
além do princípio do prazer (1920), vamos destacar: 
o Pulsão de morte 
o Compulsão à repetição 
 A partir dessa nova elaboração, Freud constrói a segunda tópica do 
aparelho psíquico, no texto metapsicológico O eu e o isso (1923). 
• O eu e o isso (1923): demonstra o ponto de vista estrutural: Eu, Isso e 
Supereu, como sendo instâncias estruturais que interagem 
permanentemente e se influenciam. 
• O problema econômico do masoquismo (1924): apresenta o modo como 
a pulsão de morte opera e modifica a relação com o princípio de prazer. 
 Portanto, os conceitos inconsciente, pulsão, repetição e pulsão de morte 
são fundamentais e que estão na base de todos os desdobramentos teóricos da 
psicanálise, pelo qual foi nomeado por Freud de sua metapsicologia. Contudo, 
mesmo se tratando de uma teoria, não se trata de uma descrição clínica, mas de 
uma recusa a transformar a psicanálise em uma prática gentil do afeto. Nesse 
sentido, Garcia-Roza (2008, p.13) declara que: “Opor teoria e clínica, de modo 
que uma exclua a outra, corresponde a negar o próprio projeto freudiano. Para 
aqueles que insistem em não acreditar em bruxas, Freud adverte que elas 
existem. Pelo menos a bruxa metapsicologia.”. 
De fato, todos os textos de Freud são importantes, mas estes listados 
acima são os estruturais, ou seja, aqueles que sustentam toda a construção 
teórica, e por isso são considerados fundamentais. 
 
 
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 Em seguida, abordaremos cada um deles, e depois também serão 
abordados os quatro conceitos que Lacan destacou como fundamentais no 
seminário 11, pois, por meio de suas incisões na teoria freudiana, a clínica 
alcançou o que sempre esteve na mira de Freud, mas ele não chegou a alcançar. 
TEMA 2 – OS PRINCÍPIOS REGULATÓRIOS DO PSIQUISMO 
2.1 Prazer x Desprazer 
 Antes de nos aprofundarmos nos principais textos da metapsicologia 
freudiana, vamos ampliar nossa compreensão sobre alguns princípios que 
regulam o funcionamento psíquico. 
 O principal regulador psíquico foi nomeado por Freud de princípio de 
prazer, ele corresponde a uma tendência psíquica que visa evitar o desprazer, 
pois, a sensação de prazer e desprazer marcam a vida psíquica desde 
momento muito primitivo da vida. 
 Assim, o princípio do prazer exerce uma força sobre o funcionamento do 
psiquismo e estará no processo de desenvolvimento e organização, através dos 
traços mnêmicos, ou seja, as vivências do sujeito deixam registro que estará em 
compromisso com o princípio de prazer. 
 Portanto, o princípio de prazer refere-se a um funcionamento que visa 
uma economia de tensão, ou seja, ele trabalha em prol do controle da quantidade 
de excitação, pelo qual a sensação prazer-desprazer está relacionada a essa 
quantidade, haja vista que o objetivo é a homeostase psíquica: 
Prazer = descarga de excitação 
Desprazer = aumento de excitação 
Dessa forma, o funcionamento do aparelho psíquico está a serviço do 
princípio de prazer, que busca evitar o desprazer. Contudo, ao longo da vida, o 
sujeito se dá conta de que o prazer nem sempre pode ser obtido, haja vista que 
a busca imediata pelo prazer pode gerar um desprazer, ou seja, ter como 
consequência uma punição. Portanto, o sujeito passa a usar a sua razão para 
avaliar a situação sendo, por vezes, levado a renunciar um prazer para se manter 
afastado de um desprazer. A esse funcionamento, Freud nomeou de princípio 
de realidade. 
 
 
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 Assim, o princípio do prazer estaria intimamente ligado aos processos 
primários, cujos estímulos são internos e visam sempre o prazer, pela descarga 
de excitação. Por outro lado, o princípio da realidade está relacionado ao 
processo secundário, que permite a inibição dessa descarga, por conta de 
estímulos externos. 
 No entanto, vale lembrar que, na passagem do princípio de prazer para o 
princípio de realidade, com a instauração de um julgamento, esteúltimo não 
anularia o primeiro. Em última análise, ainda que o princípio de realidade garanta 
a obtenção de satisfação no real, no psiquismo o princípio de prazer continua 
reinando no campo da fantasia. 
2.2 Princípio de prazer – Princípio de constância 
 O ponto de vista econômico do psiquismo, ou seja, a busca por manter o 
nível de excitação baixa é regulada pelo princípio de constância. Esse princípio 
está intimamente ligado ao princípio de prazer, já que o prazer é compreendido 
como uma descarga de tensão, e o princípio de constância busca manter 
constante dentro de si a soma de excitação. Laplanche e Pontalis (2001, p. 355) 
descrevem o princípio de constância da seguinte forma: 
Princípio enunciado por Freud, segundo qual o aparelho psíquico tende 
a manter a nível tão baixo ou, pelo menos, tão constante quanto 
possível a quantidade de excitação que contém. A constância é obtida, 
por um lado, pela descarga da energia já presente e, por outro, pela 
evitação do que poderia aumentar a quantidade de excitação e pela 
defesa contra esse aumento. 
Portanto, o princípio de constância aciona o mecanismo de defesa e 
descarrega os aumentos de tensão de origem interna e evita excitações 
externas. 
2.3 O princípio de inércia 
 O princípio de inércia foi apresentado por Freud no Projeto (1895). Ele 
não reaparecerá nos textos posteriores, contudo o tomaremos para inserir a 
origem dos pensamentos metapsicológicos de Freud em suas primeiras 
elaborações. 
 Ele descreve o princípio de inércia por funcionamento de arco reflexo, no 
qual a quantidade de excitação recebida pelo neurônio sensitivo deve ser 
interiormente descarregada na extremidade motora. A tendência essencial deste 
 
 
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princípio é se livrar da quantidade de energia externa (Q). Contudo, Freud 
justifica que esse princípio não pode atuar sozinho, pois, se toda energia fosse 
descarregada, não sobraria nada para poder exercer ações específicas 
destinadas a satisfazer as exigências decorrentes dos estímulos endógenos 
(que se formam no interior, como a fome). Nesse sentido, o aparelho psíquico é 
obrigado a reservar uma quantidade de energia, se opondo ao princípio de 
inércia. Esse funcionamento corresponde a um processo secundário, que Freud 
nomeia de lei de constância. 
 Desse modo, podemos verificar uma semelhança entre o princípio de 
inércia e o princípio de prazer, como também uma equivalência da lei de 
constância com o princípio de constância, que, a partir do texto da Interpretação 
do sonho (1900), vão se tornando conceitos metapsicológicos, os quais fundam 
a base da teoria psicanalítica. 
TEMA 3 – A EXPERIÊNCIA DE DESAMPARO E SATISFAÇÃO 
 Outro ponto que não podemos deixar de abordar para compreender os 
processos de funcionamento psíquico é o sentimento de desamparo. Não é difícil 
chegarmos a um consenso de que o ser humano é o mais vulnerável dentre 
todas as espécies, pois, desde seu nascimento até o decorrer da manutenção 
de sua vida, ele é marcado por sua precariedade constitucional que estará 
sempre presente e o levará a retornar ao seu estado de desamparo. 
 No Projeto (1895), Freud nos confronta com essa experiência primária do 
desamparo e da satisfação, que, posteriormente, estará em vários conceitos 
teóricos da psicanálise. Trata-se da confabulação sobre a vivência humana em 
seu início de vida, em que a criança recém-nascida, ao ter uma grande soma de 
excitação endógena (fome) em seu organismo, terá necessidades de 
descarregar e ter suas necessidades satisfeitas. Contudo, devido à sua 
imaturidade, ela não tem possibilidade de realizar sozinha tal função, 
necessitando, assim, 100% do outro para se manter vivo. Freud (1895, p. 370) 
explica assim: 
Nesse caso, o estímulo só é passível de ser abolido por meio de uma 
intervenção que suspenda provisoriamente a descarga de Q no interior 
do corpo; e uma intervenção dessa ordem requer a alteração no mundo 
externo (fornecimento de víveres, aproximação do objeto sexual), que, 
como ação específica, só pode ser promovida de determinadas 
maneiras. O organismo humano é, a princípio, incapaz de promover 
essa ação específica. Ela se efetua por ajuda alheia, quando a atenção 
 
 
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de uma pessoa experiente é voltada para um estado infantil por 
descarga através da via de alteração interna. Essa via de descarga 
adquire, assim, a importantíssima função secundária da comunicação, 
e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos 
os motivos morais. 
 Portanto, a imaturidade humana é, em primeiro lugar, fonte de valores 
morais, pelo qual Freud distingue nesse texto uma forma do estado desamparo, 
no qual o bebê recém-nascido é incapaz de dominar as excitações internas e 
externas, de modo que este necessita da intervenção de um outro que possa o 
proteger contra as forças externas e internas, razão pela qual este último se 
tornará o seu primeiro objeto de amor. 
 Essa intervenção específica do outro é a função que Lacan nomeara em 
seu ensino de Outro primordial, lugar para quem executa a função materna, 
não necessariamente a mãe. Essa ajuda externa produz uma marca de 
satisfação psíquica, que inaugura o funcionamento do aparelho psíquico, pois, 
uma vez que o pequeno e imaturo indivíduo volta a ter uma alta carga de 
estímulos, produzindo desprazer, suas memórias serão ativadas, e novamente 
ele buscará reviver a experiência de satisfação, colocando em função os 
princípios que regem o psiquismo. 
Quando a pessoa que ajuda executa o trabalho da ação específica no 
mundo externo para o desamparado, este último fica em posição, por 
meio de dispositivos reflexos, de executar imediatamente no interior de 
seu corpo a atividade necessária para remover o estímulo endógeno. 
A totalidade do evento constitui então a experiência de satisfação, que 
tem as consequências mais radicais no desenvolvimento das funções 
do indivíduo. (Freud, 1895, p. 370) 
 Assim, na tentativa de reproduzir a primeira experiência de satisfação, ele 
alucinará o objeto da satisfação. Isso não resolverá o seu problema, então o 
recém-nascido buscará pela motricidade (exemplo: agitação das perninhas) o 
alivio da tensão, mas não ocorrerá, pois, para satisfazer os estímulos endógenos 
de urgências vitais, as descargas motoras não são eficientes. Mas, conforme é 
expresso por Garcia-Roza (2008), em se tratando de um bebê humano, logo 
esses movimentos serão lidos como uma demanda ao Outro. 
Se um recém-nascido premido pela fome chora e agita os braços e as 
pernas, essas respostas motoras não são eficazes para a eliminação 
do estado de estimulação na fonte corporal. Essa conduta, considerada 
em si mesma, é ineficaz para a obtenção do alimento; no entanto, em 
se tratando do recém-nascido humano, ela se insere num outro 
registro, o da comunicação por sinais, e aparece como demanda, 
demanda ao Outro, deixando de ser um mero behavior ineficaz para se 
constituir numa forma de introdução do sujeito na ordem simbólica. 
(Garcia-Roza 2008, p. 130) 
 
 
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 Assim, o choro será ouvido como uma demanda ao Outro e, na medida 
que ela é atendida, passará a se circunscrever no registro da linguagem. Nesse 
sentido, ao demandar o Outro, o organismo vivo, já não visa apenas às 
emergências vitais, mas à experiência de satisfação, ou seja, uma marca 
pulsional que diferencia a espécie humana de todas as outras. 
TEMA 4 – A REALIDADE PSÍQUICA 
 A noção de realidade foi abordada por Freud desde o Projeto, contudo, 
nesse momento o autor se interessou em demonstrar a realidade como uma 
conduta do pensamento: “Quando uma vez concluído o ato de pensamento, a 
indicação da realidade chega à percepção, obtém-se então um juízo de 
realidade, uma crença, atingindo-se com isso o objetivo de toda essa atividade”. 
(Freud, 1996, p. 253). 
 Contudo, essa realidade abordada no Projeto não é a realidade psíquica 
relacionada ao inconsciente, mas trata-se daquilo que seapresenta como objeto 
da percepção, que é correlata à consciência pela experiência imediata, cujos 
signos vão colocar em função o princípio de realidade. 
 Cinco anos depois do Projeto, a noção de realidade ganha um novo 
capítulo na teoria freudiana. Ela é retomada no capítulo VII da Interpretação do 
sonho (1900) e, agora sim, trata-se da realidade que realmente importa para a 
psicanálise: “O inconsciente é a verdadeira realidade psíquica” (p. 181) 
 A realidade psíquica é a realidade que verdadeiramente importa à 
psicanálise, ela se distingue da realidade material, na medida em que é 
dominada pelo império da fantasia e do desejo. 
Se olharmos para os desejos inconscientes, reduzidos à sua 
expressão mais fundamental e verdadeira, teremos de lembrar-nos, 
sem dúvida, que também a realidade psíquica é uma forma especial 
de existência que não deve ser confundida com a realidade material. 
(Freud, 1900, p. 644) 
 A concepção da realidade psíquica é resultado de uma escuta clínica, 
pois, antes dela, Freud foi levado a elaborar uma teoria da sedução, uma vez 
que no relato de suas pacientes, havia sempre uma cena de sedução infantil 
responsável pelo surgimento da doença, mas, para que tal teoria pudesse se 
sustentar, todos os pais de meninas histéricas deveriam ser perversos e 
seduziam as suas filhas. Assim, diante desse impasse, Freud abandona a teoria 
 
 
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da sedução e passa a apoiar a sua ideia de realidade psíquica pela constituição 
de uma fantasia alicerçada no desejo inconsciente. 
 Portanto, ao afirmar uma realidade psíquica, Freud demonstra que o 
sujeito se relaciona com a realidade da mesma forma como ele se posiciona no 
laço social, isto é, a realidade refere-se à forma de existência do sujeito. 
Por exemplo: no início da minha prática clínica, atendi uma moça que 
tinha uma enorme repulsa pelo pai. Ela contava que o olhar do seu pai 
era maldoso e que não tem certeza se quando criança ele tentou 
abusar dela, mas a sensação era que sim, mesmo que não tivesse 
clareza sobre o ocorrido. Tentei questioná-la perguntando se aquilo 
não podia ser coisas da sua cabeça, pois queria saber se de fato ela 
acreditava que o pai dela poderia ser esse tipo de pessoa. Esse tipo 
de comprovação de realidade não tem a menor importância para a 
psicanálise, pois o que de fato importa é o que o paciente diz, e se ela 
dizia que acreditava que poderia ter sido abusada pelo pai, é isso que 
deve ser acolhido com verdade, pois o sofrimento vivido por essa 
paciente é real, independe de o pai ter ou não cometido o ato. (Santos, 
[S.d.]) 
 Portanto, o que Freud nos ensina é que toda apreensão de realidade está 
submetida ao desejo e, dessa forma, a realidade é alucinada (o que não a torna 
menos real). Nesse sentido, os psicanalistas não têm compromisso nenhum em 
comprovar se o que lhe é relatado é verdadeiro, pois a realidade psíquica, a que 
nos importa, é onde encontramos o sujeito sobre o qual a psicanálise opera, o 
sujeito efeito da linguagem. 
TEMA 5 – O PROJETO PARA UMA PSICOLOGIA CIENTÍFICA 
 Agora sim, vamos voltar a falar sobre o Projeto, o começo de tudo. É 
curioso pensar que por 42 anos, durante os quais Freud se dedicou à 
psicanálise, o Projeto ficou esquecido por ele, e só voltou a ser lembrado quando 
foi resgatado do poder nazista pela sua ex-paciente Marie Bonaparte (quem tiver 
interesse nessa história, no livro Freud e o inconsciente, Garcia-Roza traz 
comentários). Mas, em 1895, como Freud compreendia a organização do 
psiquismo humano? 
 A ideia de um tratamento que fosse para além do corpo fisiológico passou 
a fazer parte dos pensamentos de Freud desde seu encontro com as histéricas. 
E foi com base na sua experiência clínica que ele passou a formular o modo 
como o psiquismo se estrutura e reage aos acontecimentos. Assim, através do 
estudo do Projeto, podemos observar como Freud formula um tratamento que 
operaria desde a alma. 
 
 
11 
 Nossa tentativa é extrair do Projeto, de forma muito simplificada, o 
primeiro modelo de funcionamento psíquico e, para isso, usaremos a referência 
apresentada por Garcia-Roza (2008, p. 118), na qual declara que Freud concebe 
o psiquismo como um “aparelho” capaz de transmitir e de transformar uma 
energia determinada. Tal aparelho se constitui pelas funções neuronais: ,  e 
, e é estimulado por duas fontes: 1) o mundo externo (exógena); 2) o interior 
do próprio corpo (endógenas). Veja no gráfico a seguir: 
 
 A explicação é a seguinte – formam-se dois sistemas de neurônios: 
1. O primeiro sistema de neurônios – fi () – formado de neurônios permeáveis, 
que não oferecem resistência ao escoamento de Q e destinados à percepção; 
2. O segundo sistema de neurônios – psi () – formado de neurônios 
impermeáveis, dotados de resistência, retentivos de Q e portadores de memória. 
 Os neurônios  são alimentados diretamente de fonte externa, enquanto 
os neurônios  são estimulados por fonte endógena. Garcia-Roza (2008) 
complementa essa explicação afirmando que, por conta disso, a carga de Q nos 
 
 
12 
neurônios  será muito maior do que a carga nos neurônios , de modo que, em 
 não possibilitará a criação de barreiras de contato, pois estas seriam 
imediatamente destruídas pelo excesso de Q. Já nos neurônios , por serem 
menos carregados, podem formar barreiras mais ou menos fortes, constituindo, 
dessa forma, uma memória. 
 O princípio que gerencia esse sistema é o princípio de Inércia, que, como 
apresentamos anteriormente, tende à descarga total de Q, mas é impedido por 
uma barreira de contato, pois o próprio sistema precisa manter uma quantidade 
de energia para executar atividades específicas. Assim, de forma secundária 
atua o princípio de constância, cuja função é manter o nível de energia, 
constantemente, o mais baixo possível. 
A função primordial dos dois sistemas neurônicos –  e  – é manter 
afastadas as grandes Qs externas através da descarga. Essa função 
de descarga está ligada à tendência básica do sistema nervoso, que é 
a de evitar a dor ou desprazer resultante de um acúmulo excessivo de 
Q no sistema formado pelos neurônios . Isso faz com que Freud 
praticamente identifique, no Projeto, o princípio de prazer com o 
princípio de inércia. 
 A função revelada por Freud, de um princípio que, ao invés de buscar 
prazer, funciona na condição especificada de evitar a dor é decorrente do fato 
de que no sistema psíquico não há barreira de contatos que seja capaz de deter 
um estímulo doloroso, de modo que a própria lembrança desse estímulo já é 
suficiente para provocar sofrimento. Assim, serão os resíduos das experiências 
de prazer e desprazer que vão constituir os afetos e causar o desejo. 
 O Projeto tem para nós, estudantes de psicanálise, um valor histórico e 
nostálgico, pois ele nos remete a um jovem Freud, que nos torna íntimos por um 
processo de identificação a essa imagem – não empoderada como a que 
veremos mais adiante – mas de um ser mortal como nós, buscando a 
compreensão de um saber ainda encoberto. 
 Em outro momento, veremos os desdobramentos no Projeto, no capítulo 
VII da interpretação do sonho, mas, desde já, podemos avaliar que a psicanálise 
preencheu uma lacuna, pois os elementos que estavam disponíveis nesta época, 
para explicar o funcionamento mental, eram os da neurologia ou os da religião. 
Uma frase de Freud representa esse momento: “É preciso proteger a psicanálise 
dos médicos e dos sacerdotes”. Isso porque a psicanálise se inseriu entre esses 
dois extremos, e Freud queria que fosse assim mesmo, pois, se naquela época 
a psicanálise fosse levada às universidades, seria dominada pelo discurso 
 
 
13 
organicista dos neurologistas, e, se fosse dominada pelas religiões, a separação 
mente e corpo continuaria. Freud sabia que mente e corpo eram indissociáveis, 
por isso recomendava que a psicanálise não fosse “encaixada” nos saberes 
dominantes da época.Fez dela um novo saber. 
NA PRÁTICA 
 As sensações e emoções produzem memórias no corpo e são, portanto, 
experiências psicossomáticas. Quando estudamos que a psicanálise se produziu 
a partir de um discurso médico que não dava conta de explicar todos os 
sintomas, isso quer dizer que nem tudo o que nos adoece ou provoca sofrimento 
pode ser diagnosticado com imagens e exames clínicos. 
Vamos ver um exemplo em que vivências infantis muito arcaicas podem 
deixar marcas no psiquismo, de forma a definir uma posição do sujeito, ou seja, 
um modo de ser que pode ser caracterizado como um problema para a pessoa. 
 O exemplo: uma mãe teve duas gestações. Na primeira gestação, seu 
parto foi humanizado – seu filho, ao nascer, veio prontamente para o seu colo e 
permaneceu com ela todo o tempo. A criança cresceu de forma mais 
independente, gostava de dormir em seu quarto, sozinha, pois parecia se sentir 
segura com a presença (internalizada) da mãe, mesmo esta não estando 
fisicamente perto. Na segunda gestação, seu filho não teve o mesmo tratamento. 
Logo ao nascer, foi levado para o berçário, onde ficou chorando por uma hora, 
até ser levado para a mãe. A criança cresceu com uma dependência muito maior 
da presença da mãe, pois esse encontro com a mãe representou uma 
experiência que marcou uma falta anterior. Ou seja, a criança teve a experiência 
de desprazer e desamparo, mas quando foi para o colo da mãe, marcou um lugar 
que ela não queria perder, frente à sua primeira experiência de desamparo. 
Assim, podemos demarcar que o psiquismo registra experiências, desde o 
primeiro momento de vida, que deixarão marcas psíquicas para sempre na vida 
do sujeito. 
 Era algo assim que Freud visualizava quando se sentia insatisfeito com 
os elementos e recursos objetivos da ciência neurológica. Ele se dedicou a 
desvendar esse fenômeno, que está na fronteira do somático com o psíquico, 
que deixa marcas, que produz sintomas e que está na raiz do que somos hoje, 
mas que não pode ser diagnosticado por exames de laboratório nem de imagem, 
e sim pelo discurso, pela fala. 
 
 
14 
FINALIZANDO 
Nesta etapa, foram apresentados pequenos recortes do Projeto e alguns 
conceitos que nortearam a psicanálise. 
Quando falamos em teoria psicanalítica freudiana, nos referimos à 
metapsicologia, pois foi esse o nome que Freud deu para caracterizar o conjunto 
de sua obra. Destacamos os textos essenciais, que são os que dão eixo para o 
que hoje conhecemos como o método psicanalítico. 
Para a compreensão da psicanálise, é fundamental conhecermos a sua 
teoria e a delimitação conceitual do que é: inconsciente, recalque/repressão, 
pulsão (de vida e de morte), compulsão à repetição, e isso não significa que a 
teoria supere a prática clínica, mas elas devem estar alinhadas e sustentando o 
fazer psicanálise. 
Dentre os psicanalistas pós-freudianos, destaca-se Jacques Lacan. 
Depois de ler toda a metapsicologia freudiana, Lacan apresentou quais, para ele, 
são os quatro conceitos fundamentais da psicanálise: inconsciente, repetição, 
transferência e pulsão. 
 
 
 
 
15 
REFERÊNCIAS 
GARCIA-ROZA, L. A. Freud e o Inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar 
Ed., 2009. 
_____. Matapsicologia freudiana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. v. 1. 
FREUD, S. O Projeto para uma psicologia cientifica. In: Obras completas. Rio 
de Janeiro: Imago, 1996. v. 1.

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