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GAME DESIGN Rafael Arrivabene Construções de desafios Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Definir desafio em diferentes tipos de jogos. Analisar desafios em jogos segundo o modelo CCST. Expandir, evoluir e reconfigurar desafios em um projeto. Introdução Para que um jogo mantenha vivo o interesse do público, ele precisa apresentar novidades de tempo em tempo a seus jogadores. Hoje em dia, é comum conseguir isso por meio de expansões ou módulos que são produzidos posteriormente ao lançamento do conteúdo-base. Mas isso não diminui a importância de criar um jogo de conteúdo a priori cativante, que evolua junto com o jogador e mantenha-o instigado. Neste capítulo, você verá como isso pode ser conquistado pela cons- trução de desafios motivantes. Boa parte da experiência de um jogo se dá pelo envolvimento do jogador com os desafios propostos. Por isso, veremos maneiras de pensar sobre eles e ideias de como planejá-los. O que são desafios? Uma das características defi nidoras dos jogos enquanto fenômeno é a pre- sença de um tipo de confl ito, uma situação que deve ser superada; em outras palavras, um desafi o. Se não houver um desafi o explícito, o fenômeno passa a ser considerado mais como uma brincadeira do que um jogo (KISHIMOTO, 2014). Por outro lado, nem todas as situações desafi adoras serão jogos. Para serem caracterizadas como jogos, é preciso que seu desafi o seja opcional, aceito ou autoimposto pelo jogador (SUITS, 2014). Cabe então tentar definir melhor essa característica tão importante. Desa- fios parecem ser uma combinação de fatores e contextos que levam uma pessoa a se sentir motivada a alterar o estado atual de algum determinado sistema de coisas. Os game designers Fullerton, Swain e Hoffman (2008) consideram que os conflitos, pelo menos nos jogos, provêm de três fontes gerais: 1. Obstáculos — elementos passivos que geram conflito por se entrepor entre o jogador e seu objetivo. 2. Adversários — elementos que geram conflito ao ativamente atrapalhar o jogador a alcançar seu objetivo, talvez disputando-o também. 3. Dilemas — situações que geram conflito, não durante a execução, mas pelas consequências dela. Alcançar o objetivo não é o problema. O problema é saber qual é o melhor objetivo. Os game designers ainda listam alguns tipos de desafios comuns que revelam diferentes mecanismos internos de motivação das pessoas ao disputarem jogos. Alcançar e superar objetivos Este parece ser um motivador inato aos humanos, e talvez a outros animais. Queremos atingir objetivos, tanto os que foram defi nidos por nós mesmos quanto aqueles defi nidos por outros. Quando atingimos um determinado objetivo, sentimos alívio e satisfação; porém, se ele for moderadamente fácil, muitas vezes sentiremos vontade de ir ainda mais longe, substituindo-o por um novo objetivo. Objetivos podem ser subdivididos em metas menores ou parciais, que aumentam o ânimo e a motivação conforme vão sendo com- pletadas. Contudo, quando um objetivo parece muito distante, demorado ou inalcançável por qualquer outra razão, a motivação pode não aparecer. Competir contra oponentes Novamente, assim como outros animais, parecemos ser naturalmente com- petitivos. Alguns de nós o são mais do que outros, mas, em geral, temos curiosidade em nos comparar com os demais, e essa comparação é mais satisfatória quando nos percebemos superiores em alguns quesitos. Superar as qualidades do outro se torna um objetivo. A competição pode ser direta, com adversários conscientes uns dos outros, mas também pode ser indireta, quando, por exemplo, competimos por posições em um ranking ou contra muitas pessoas ao mesmo tempo. Podemos também citar as competições unilaterais, contra adversários que não competem de forma recíproca, como sistemas não humanos na forma de máquinas e software. Exemplo disso são enxadristas humanos que jogam contra inteligências artifi ciais. Construções de desafios2 Expandir os limites pessoais Segundo Fullerton, Swain e Hoff man (2008), os objetivos defi nidos por nós mesmos são mais fortes que aqueles defi nidos por outros. Como conhecemos nossos próprios limites, o desafi o de superá-los acaba sendo mais intenso e recompensador. Quando temos êxito, nossas capacidades parecem ter se expandido e nos sentimos melhores do que antes. Esses limites não precisam necessariamente envolver habilidades físicas. Experimentar coisas novas, arriscar abordagens diferentes, aceitando sair de sua zona de conforto, pode também servir como situações que expandem os limites pessoais. Quando enfrentados de forma voluntária e com a perspectiva de superação, estes desafi os serão prazerosos. Exercitar habilidades árduas Dominar alguma habilidade é um objetivo pessoal muito intenso, especial- mente se pudermos exibi-la. É algo de que as pessoas se orgulham. Requer muita dedicação e prática, e, acima de tudo, uma autocrítica elevada, que impulsiona o treinamento, ocasionando a melhoria na habilidade. É um tipo de desafi o que motiva a superação dos limites pessoais, com o objetivo de um aprimoramento permanente e aplicável. Maestria não é se sair bem uma única vez; é ter a confi ança de sempre se sobressair nas situações em que tal habilidade é exigida. Completar ou manter coleções Colecionar pode ser um desafi o externo ou autoimposto. Existem várias espé- cies de coleções, mas, de certa maneira, todas têm em comum a característica de um bom feedback, pois a obtenção de um novo item para sua coleção é um indicador cabal de que seu objetivo está sendo alcançado. Por isso, elas costumam ser bastante motivadoras para vários tipos de jogadores. As co- leções podem envolver grupos de itens fi xos e raros, como obras únicas de um artista, ou um número indeterminado e abundante de itens, como selos e tampas de garrafa. Neste último caso, a variedade e o tamanho da coleção são o que importa. No primeiro caso, o valor está mais na qualidade dos itens e na completude da coleção. Em jogos, podemos encontrar coleções feitas e mantidas apenas durante cada partida ou outros tipos, como o caso de jogos de miniaturas e de cartas colecionáveis como Magic: The Gathering, em que as coleções atravessam várias partidas, ao longo de anos, inclusive. 3Construções de desafios Construir, descontruir ou destruir coisas A percepção de que temos a capacidade ou o poder de alterar a constituição das coisas ao nosso redor parece ser um estímulo natural à nossa criatividade. Crianças pequenas, conforme passam a controlar melhor seus movimentos, interessam-se por peças de encaixar, como blocos e quebra-cabeças. Construir ou criar algo seguindo parâmetros mais específi cos é certamente uma tarefa mais complexa que aquela realizada pelas crianças, mas parte do mesmo im- pulso. Destruir algo é ainda mais primário, pois a criança, antes de construir, quebra, desmonta. Desmontar algo sem simplesmente quebrá-lo também é complexo, e igualmente satisfatório. Fazer escolhas interessantes É atribuída ao game designer Sid Meier, criador de jogos como a série Ci- vilization, a defi nição de que um jogo é uma série de escolhas interessantes. Trata-se, sem dúvida, de uma defi nição rasa, mas não deixa de apontar uma característica importante do fenômeno. Jogar não é uma experiência passiva, como assistir a um fi lme, mas tampouco é uma atividade objetiva, como montar um móvel seguindo um manual. Jogar pressupõe liberdade de experimentação e a expectativa pelos resultados, tanto os positivos quanto os negativos. Quando as escolhas não são triviais, nos sentimos desafi ados a escolher ou agir do modo que traga o maior benefício para nossos objetivos. Desafios na prática Como se pode perceber, há uma grande variedade de tipos de desafi os interes- santes que podemos oferecer aos jogadores nas experiências que criamos. Eles são criados via combinações criativas de objetivos, obstáculos, adversários e dilemas. O gamedesigner Scott Rogers (2014) apresenta mais dois elementos que são úteis para essa questão: os mecanismos e os power-ups. Mecanismos seriam todos os recursos, a princípio neutros, com os quais um jogador deve ou pode interagir para atingir seus objetivos. Já os power-ups são generalizados como recursos que o jogador pode ter ou obter, e que o ajudam a atingir o objetivo. Assim, a imagem da composição de um desafi o fi ca mais completa. Pense, por exemplo, no desafio de chegar à outra margem de um riacho sem se molhar. O próprio riacho é um obstáculo, que gera o conflito central do desafio. Se tivéssemos pessoas ativamente tentando derrubar o jogador Construções de desafios4 na água, estes seriam adversários. Se houvesse algum tipo de recompensa variável que dependesse da maneira como se chega ao outro lado, isso geraria um dilema. Se houvesse uma corda que pudesse ou tivesse que ser utilizada para pular o riacho, esse seria um mecanismo. E se o jogador pudesse encher um bote inflável ou ele mesmo amarrar uma corda para a travessia, esse seria um power-up, um recurso do próprio jogador. Este exemplo nos ajuda a entender melhor o que é um desafio. Adversários e obstáculos podem ser analisados como desafios independentes, mas quando estão próximos e relacionados com um mesmo objetivo, podemos compreendê- -los como parte de um mesmo desafio. Um jogo pode ser composto por um desafio único e simples, ou por uma grande quantidade de desafios mais complexos. O game designer Patrick Holleman (2018), ao analisar o jogo Super Mario World, conseguiu obter perspectivas interessantes sobre como as fases do jogo foram montadas. Nesse sentido, ele define que um desafio é uma unidade de conteúdo essencial de um level. Holleman (2018) acrescenta que desafios são aglomerados de ações feitas em uma tentativa de atingir um objetivo, precedidos e seguidos de momentos de relativa segurança. Essa distinção dos desafios, delimitando-os pelos momentos de segurança que os envolvem, ajuda a perceber melhor como o jogo, do ponto de vista do jogador, é experimentado, e oferece uma ferramenta para que os game designers possam planejar melhor essa experiência. Vamos terminar essa seção observando maneiras de definir os desafios em diferentes tipos ou gêneros de jogos. Jogos de ação e aventura em mundo aberto, como os novos jogos da série Tomb Raider, Shadow of Mordor ou Watch Dogs, apresentam seus grandes desafios como missões. Elas são escolhidas pelos jogadores com relativa liberdade, a partir de momentos ou lugares no mapa onde eles não correm risco iminente. Cada uma dessas missões, entretanto, é uma combinação de diferentes desafios. Elas podem ser mais voltadas à superação de obstáculos, como alcançar um determinado ponto no cenário, ou mais voltadas ao con- fronto aberto com inimigos. Provavelmente, no decorrer de cada uma das missões, serão encontrados momentos mais focados em obstáculos e outros mais focados em combate. De forma geral, o desafio é atingir os objetivos exercitando habilidades difíceis e tentando se superar. Além disso, os desen- volvedores também acrescentam elementos de coleção, envolvendo itens, e um pouco de dilema, empregando um sistema de habilidades ramificado, no qual, ao investir em uma habilidade, fica mais difícil conseguir as outras que não fazem parte do mesmo ramo. 5Construções de desafios Em muitos jogos de plataforma 2D com ênfase em ação e enfrentamento de inimigos, como os da série Megaman, Sonic e similares mais atuais, isso também se manifesta. Porém, outros jogos que se enquadram no mesmo gênero, como Celeste e Super Meat Boy, deixam de lado inimigos, para concentrarem seus desafios em torno de obstáculos complexos e bastante punitivos. Esses desafios devem ser atravessados de uma só vez, pois possuem poucos ou nenhum momento de segurança, exceto o ponto inicial do level. Mesmo em jogos de ritmo, como Guitar Hero, podemos perceber que as músicas deixadas para o final são aquelas mais difíceis de executar, pois exigem mais destreza e apresentam menos descansos. Perceba que a identifi- cação das unidades de desafios, como proposta por Holleman (2018), é mais fácil em gêneros de jogos em que a ação é predominante, por haver claros momentos de risco. No entanto, em jogos de aventura e narrativa a segurança não servirá como bom parâmetro para a identificação das unidades de desafio. Em jogos como Obra Dinn e Broken Age, podemos separar os desafios pelos momentos de conforto que surgem após a resolução de um dos problemas, até que o próximo seja apresentado. Na semiologia greimasiana, área da ciência que estuda os significados dos textos, esses desafios seriam classificados como programas e subprogramas. A protagonista tem um objetivo, mas, para alcançá-lo, deve concluir algumas grandes tarefas, isto é, um programa, o que, por sua vez, demanda outros subprogramas, e assim por diante. Então, nestes estilos de jogos, as unidades de desafios equivalem a cada conjunto de tarefas que deve ser executado para concluir um dos subprogramas que ajudam a concluir o programa principal e assim atingir o objetivo da protagonista. Similarmente, em jogos de tabuleiro ao estilo europeu, os desafios podem ser entendidos como subprogramas do programa principal, que ge- ralmente envolve obter mais pontos que os adversários. Contudo, esses subprogramas não acontecem de forma linear. Como tais jogos se baseiam em um core gameplay loop em que os jogadores tentam, a cada turno ou rodada, maximizar o efeito de suas ações, o conflito caracteriza-se por dilemas. O desafio não é fazer, mas sim decidir o que é melhor fazer a cada rodada. Nessa perspectiva, as unidades de desafios podem ser encontradas examinando-se as dinâmicas que as mecânicas produzem. Ou seja, os desa- fios em um jogo de tabuleiro moderno são os momentos em que as decisões cruciais devem ser tomadas, momentos que são antecedidos e precedidos pela simples execução dos procedimentos. Construções de desafios6 Análise de desafios e sua progressão Segundo a teoria do fl uxo, proposta pelo psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi (2002), as atividades que fazem as pessoas entrarem no estado de ação com alta concentração, que resulta em grande prazer e felicidade, são aquelas em que existe um equilíbrio dinâmico entre o nível de habilidade da pessoa e a difi culdade do desafi o enfrentado. O psicólogo percebeu que este fenômeno era comum entre esportistas, e reparou que, conforme a prática e o treinamento no esporte aumentavam a habilidade dessas pessoas, elas passavam a buscar desafi os maiores, para reestabelecer tal equilíbrio. Em esportes competitivos, quando os adversários possuem grande diferença de habilidades, esse equilíbrio pode estar comprometido desde o começo. Contudo, ele também pode ir se ajustando no decorrer da partida mediante eventos imprevistos, como cansaço, penalidades, sorte e outros. No caso dos jogos para um único jogador, típicos dos videogames, cabe aos game desig- ners planejarem maneiras de manter os desafios interessantes, à medida que os jogadores aprimoram suas habilidades no jogo. Isso é conhecido como a curva de dificuldade do jogo (SCHELL, 2011). Curvas de dificuldade são partes importantíssimas do design de um jogo e também as mais difíceis de acertar. Jogos de arcade dos anos 1970, como Tetris e Space Invaders, criavam curvas de dificuldade definindo uma regra para a modificação de variáveis do jogo ao longo do tempo, como, por exemplo, ao aumentar a velocidade dos inimigos e sua quantidade. Jogos mais complexos, porém, não funcionam tão bem simplesmente com esse tipo de progressão ascendente. A diferença é que os jogos de arcade queriam eliminar os jogadores logo, para que eles gastassem mais fichas na máquina, o que não ocorre com outros tipos de jogos, que procuram entreter os jogadores por mais tempo. Sendo assim, há uma fusão entre as curvas de dificuldade e as chamadas curvas de interesse, que são diagramasutilizados para planejar os momentos de maior tensão e relaxamento do público durante um espetáculo (SCHELL, 2011). Portanto, bons jogos se preocupam em criar desafios que cresçam ao longo do tempo, mas principalmente conforme as habilidades dos jogadores aumentam. Uma das maneiras mais simples de avaliar a habilidade do jogador é testá-lo. Assim, se o jogador chegou até um determinado ponto na progressão do jogo, é por que, idealmente, foi hábil o suficiente para superar os desafios anteriores. Por isso, estipular bem quais habilidades serão exigidas ou testadas a cada desafio é importante para planejar uma boa curva de dificuldade entre os desafios. 7Construções de desafios Nesse sentido, o modelo CCST, de Holleman (2018), vem bem a calhar. A sigla é uma abreviação de Challenge, Cadence, Skill-Theme (Desafio, Cadên- cia, Habilidade-Tema). Esse modelo foi desenvolvido a partir da análise dos levels de Super Mario World, pela qual o game designer pode perceber padrões na configuração de cada um deles. Holleman (2018) identificou detalhes na construção e encadeamento dos desafios dentro de um mesmo level e também sobre como a dificuldade varia entre levels iniciais e finais. Analisemos melhor cada item deste modelo. Como já mencionado, podemos tanto unificar vários desafios com um mesmo objetivo em um desafio maior quanto subdividir um desafio, criando objetivos parciais. Neste caso, pensemos no level como o grande desafio e nos diferentes obstáculos, inimigos e quebra-cabeças que nele se encontram como as unidades de desafio. Nesse contexto, cadência é a progressão das unidades de desafios dentro do level. Normalmente, essas unidades de desafios não são aglomerados de inimigos e obstáculos quaisquer; elas são variações de um desafio-padrão, que gira em torno de um Tema ou Habilidade central que o jogador precisará demonstrar. A cadência também pode ser entendida como pacing, ou ritmo, do jogo. Este é um termo utilizado na indústria de jogos para se referir ao ritmo com que novidades são apresentadas ao jogador. Porém, enquanto o pacing pode ser utilizado para falar de qualquer conteúdo novo ao longo do jogo todo, a ideia de cadência sugerida por Holleman (2018) é mais voltada para a pro- gressão dos desafios que visam um mesmo objetivo maior e bem definido. No caso de Super Mario World, o game designer identifica que praticamente todos os levels começam com uma versão básica de um tipo de desafio, e vão apresentando gradativamente versões mais complexas dele, em basicamente três maneiras, que serão explicadas na próxima seção. Perceba que, novamente, a cadência é um tipo de curva de dificuldade, e existem várias possibilidades para ela. Em jogos arcade, podemos pensar em algumas curvas de dificuldade baseadas principalmente no ajuste de variáveis do jogo, imaginando desde curvas completamente lineares (em que a dificuldade do próximo momento é sempre maior que a anterior) até outras, que contemplam momentos de alívio sorteando valores mais baixos para as variáveis (LARSEN, 2010). Mas podemos ir mais longe, sendo mais específicos e também mais criativos. Koichi Hayashida, diretor de jogos como Super Mario Galaxy 2 e Super Mario 3D Land, afirma que também planeja os desafios em um level em torno de um conceito central, tal como Holleman (2018) havia percebido em Super Construções de desafios8 Mario World, dirigido por Takashi Tezuka, mas revela que sua cadência tem inspiração em uma estrutura típica das narrativas orientais e mangás, dividida em quatro atos, chamada Kishōtenketsu (NUTT, 2012). Segundo Hayashida, em entrevista a Christian Nutt (2002, documento on-line, tradução nossa): Primeiro, você [jogador] tem que aprender a usar tal mecânica do jogo e, em seguida, o estágio oferecerá um contexto um pouco mais complicado no qual você terá que usá-la. Em seguida, o próximo passo é algo louco que acontece e faz você pensar sobre [a mecânica] de uma maneira que você não estava esperando. Assim, você consegue demonstrar, finalmente, que tipo de maestria conquistou. Ele afirma que essa é uma filosofia de design incentivada por Shigeru Miamoto, criador da franquia, que sempre pensava na construção do level como a construção de uma narrativa. Isso nos mostra que é possível buscar inspiração para a cadência dos desafios em outras fontes, além dos próprios jogos. Podemos pensar em cadências que sigam a estrutura de três atos, das narrativas ocidentais, ou então que possuam tema e variação como músicas clássicas. O que importa é entender que os desafios devem progredir de ma- neira a acompanhar a habilidade que os jogadores desenvolvem ao superá-los. Ideias para criar desafios Ainda acompanhando a perspectiva de Holleman (2018), vamos procurar entender como os desafi os podem ser variados. Segundo o autor, existem três maneiras principais de subdividir desafi os: Expansão, Evolução e Reconfi gu- ração. Essas variações acontecem dentro de um level ou trecho da experiência, em que se exige do jogador uma determinada habilidade ou mecânica. Existem, claramente, diversos tipos de habilidades que um jogo pode exi- gir, desde destreza física a raciocínio lógico e conhecimentos gerais. Porém, raramente é recomendável que o jogo exija tantas habilidades ao mesmo tempo, pelo menos nas primeiras fases. Os jogos da série Super Mario, seguem esses princípios há muito tempo. Neles, a principal ação do personagem é pular, então a maioria dos desafios, em especial os iniciais, gira em torno da habilidade do jogador em conseguir executar os saltos corretamente. Logo no começo da fase, será apresentado um desafio simples e relativamente seguro, mas que exige a habilidade proposta. Este é o desafio-padrão do level. Em seguida, esta mesma habilidade será 9Construções de desafios testada em variações mais arriscadas, que expandem, evoluem ou reconfiguram o desafio inicial. Muitas vezes, haverá um determinado desafio impossível de ser ultrapassado, a não ser aprendendo os detalhes de sua mecânica e assim demonstrando a habilidade requerida. Expansão é uma variação quantitativa de algum desafio anterior. Muitas vezes, são reajustadas variáveis e métricas do desafio. Quando, por exemplo, começa-se exigido um pulo simples e seguro, uma expansão seria pedir um salto mais alto ou mais distante, talvez com um precipício logo abaixo. Um jogo de tiro em primeira pessoa ( first-person shooter — FPS) poderia, por sua vez, aumentar a quantidade de inimigos ou diminuir a quantidade de itens de recuperação disponíveis no cenário. Já em jogos em que os desafios não exigem habilidades físicas, mas mentais, uma expansão seria exigir o mesmo tipo de raciocínio lógico, porém mais vezes, e talvez com mais elementos a serem considerados. Evolução é uma variação qualitativa do desafio. Por qualitativa, entenda-se que o desafio parece o mesmo, pois exige as mesmas habilidades, porém os riscos são mais altos ou partes do desafio funcionam de modo ligeiramente diferente. Por exemplo, se antes os inimigos vinham andando pelo chão, agora eles podem vir pulando. Em um jogo FPS, isso poderia ser conseguido alterando os tipos de inimigos e suas armas, ou então as características do terreno. Em jogos sem ação, a evolução do desafio seria algo parecido com um desafio já apresentado, mas que exige agora um raciocínio diferente, ou que sejam consideradas outras características dos elementos. Reconfiguração, por fim, é uma modificação lógica no desafio. Quase se tratando de outro desafio por completo, aqui a ideia é utilizar contra o jogador o conhecimento que ele adquiriu. Assim, a reconfiguração reapresenta os elementos já conhecidos, mas de uma maneira que força o jogador a repensar sua abordagem. Por exemplo, se antes os desafios giravam em torno de Mario desviar e fugir de balas de canhão, uma reconfiguração possível seria um desafio em que o jogador deve mirar e pular bem em cima delas para conseguir o impulso necessário para atingir determinadaaltura. Já em um jogo FPS, uma reconfiguração para um confronto seria ter de passar pelos inimigos sem ser visto e, portanto, sem atirar, ou ter de se proteger em vez de eliminar os adversários. Nos jogos de raciocínio, uma reconfiguração seria apresentar um novo dilema em relação a algo que já era dado como superado, ou então reapresentar uma situação que exija um pensamento oposto ao que se utilizou para resolver problemas anteriores. Construções de desafios10 Desde os anos 1970, o psicólogo Edward de Bono estuda as características da cria- tividade humana frente à resolução de problemas. Em seu livro The Use Of Lateral Thinking (DE BONO, 1971), o autor utiliza diversos quebra-cabeças, charadas e desafios para mostrar como funciona nossa tendência de buscar padrões e mínimo esforço de pensamento. Seus exemplos demonstram como a apresentação de um problema condiciona nossa forma de pensar sobre ele, o que pode ser explorado por aqueles que fazem essa apresentação. Entender essa característica psicológica é interessante para os criadores de jogos, pois poderão entender como a apresentação e repetição de um desafio-padrão reforça o impacto de uma reconfiguração bem feita. Quantas dessas variações são necessárias, ou sua ordem, são coisas que cabe aos game designers e suas equipes decidir. Elas poderiam ser cadenciadas como no caso do jogo Super Mario World, por exemplo. Nele, a primeira coisa apresentada no level é o desafio-padrão, que é seguido por expansões, ou seja, variações quantitativas do desafio-padrão (número de inimigos, alturas e distâncias entre os elementos). Em seguida, é introduzida uma evolução da primeira expansão (uma variação dos elementos de uma versão mais difícil do desafio-padrão). Levels mais avançados giram em torno de temas com mais de uma mecânica ou habilidade central, e geralmente farão alguma combinação inusitada entre elas para conseguir reconfigurações do desafio. As habilidades exigidas dos jogadores variam de jogo para jogo, dependendo do estilo, mas saiba que elas podem estar atreladas aos verbos principais dos personagens ou elementos que os jogadores controlam, e combinações deles. Em um jogo plataforma, por exemplo, uma habilidade central em determinado level pode ser correr e pular. Então neste level todos os desafios exigirão ma- estria destas duas ações. Já em um FPS, talvez as ações de correr e se proteger possam inspirar uma missão mais defensiva do que ofensiva. Outra solução é atrelar as habilidades a elementos do jogo, como mecanis- mos, obstáculos e inimigos. Assim, em vez de testar a habilidade dos jogadores em uma determinada ação, você testará várias ações em um mesmo contexto. O jogo Celeste, por exemplo, apresenta algumas ações possíveis, como pulo duplo, pulo a partir de paredes e dash, que é um breve e veloz deslocamento. Os levels são montados em torno dessas ações, mas muitas vezes elas por si só não são suficientes para uma travessia. Nesse caso, jogadores precisarão 11Construções de desafios entender como aproveitar o mecanismo das plataformas móveis para conseguir avançar. Quando um level ou desafio maior gira em torno de elementos do jogo, podemos dizer que este é seu tema. Jogos como Hollow Knight, por exemplo, diferenciam as áreas de seu mapa com obstáculos, mecanismos e inimigos quase exclusivos de cada uma, servindo como seu tema. Esses obstáculos e mecanismos, logica- mente, são pensados para testar as ações disponíveis para os jogadores. E cada subárea testa uma ou mais habilidades. Os inimigos seguem alguns padrões de classe, mas em cada área eles apresentam uma característica ligeiramente diferente, não apenas de visual, mas também de comporta- mento. O inimigo básico da primeira área, mostrado na Figura 1, apenas rasteja para frente e para trás, ignorando o jogador. Em outras áreas, ele será mais rápido, ou ficará escondido, ou subirá paredes. Como essas variações são restritas a cada área, o jogador é surpreendido inicialmente, mas tem tempo de se acostumar com o tema e desenvolver as habilidades necessárias para superar cada variação. Figura 1. Variações temáticas do inimigo básico em Hollow Knight. Fonte: Adaptada de Hollow... ([2019]). Como inspiração, Rogers (2014) sugere uma lista de temas, que são clichês muito utilizados, mas que podem ser bastante úteis, pois cada um serve como um grupo de mecânicas relacionadas, em torno das quais os desafios podem girar. Abaixo, segue uma adaptação da lista, com foco nos tipos de elementos e mecânicas que cada tema poderia apresentar (ROGERS, 2014): Fogo, veneno, lixo tóxico: pode incluir poços de lava ou veneno, me- canismos que causam erupções ou explosões periódicas, mas também pode incluir elementos ou inimigos resistentes a elementos, tornando a situação mais interessante. Gelo: pode incluir mecânicas que modificam o controle do movimento, com escorregamento ou congelamento, por exemplo. Também levam Construções de desafios12 a pensar em elementos frágeis, que podem se quebrar, facilitando ou dificultando a situação. Tumba, masmorra: pode incluir elementos dos anteriores, mas tam- bém fazem pensar em armadilhas protegendo tesouros e mecanismos interconectados. Inimigos como morcegos ou criaturas fantasiosas encaixam-se bem e podem ter regras de comportamento que comple- mentem as armadilhas. Fábrica, construção: explora ainda mais a ideia de mecanismos co- nectados, geralmente marcados por esteiras de produção, prensas e plataformas de movimento circular, como engrenagens, ou vertical, como guindastes, todos com movimentos bem ritmados e previsíveis. Floresta: combina bem com desafios e mecânicas que envolvem mo- vimentação, como subir em árvores, atravessar rios, poços de lama e balançar em cipós. Inspira inimigos como animais voadores ou raste- jantes, e muitos outros. Cemitério, casa assombrada: inspira mecânicas relacionadas a ilusões, confusão e sustos. Coisas podem desaparecer e aparecer em outros lugares, ou não serem o que parecem à primeira vista. Inimigos podem ser invulneráveis ou se reerguer mesmo após derrotados. Urbano: evoca ações cotidianas, como se caminhar e conversar, mas também pode ser utilizado para ações que saem do comum, como correr, pular e brigar. Os ambientes podem apresentar mais verticalidade e locais internos, acessíveis através de portas e chaves. Pode contemplar meios de transporte alternativos, modificando a movimentação. Espaço, submarino: pode incluir mecânicas de controle de naves e movimentação com pouca ou nenhuma gravidade. Elementos e inimigos flutuantes ou com movimentação lenta. Mecanismos de atração ou sucção. Dependendo da proposta do jogo, será possível utilizar vários desses temas, ou talvez apenas um. Um jogo de batalha espacial, por exemplo, talvez não tenha espaço para um tema urbano. Já o jogo Donkey Kong Tropical Freeze progride de tema em um mesmo level. Mas o que importa aqui é entender que você pode pensar nos desafios de seu jogo em grandes grupos temáticos, que possuem elementos coerentes com os quais montar seus desafios. Lembre-se dos fatores que serão a fonte principal dos conflitos e quais tipos de desafios deverão motivar seus jogadores. Defina as habilidades que serão testadas em cada desafio e faça variações delas. Organize-as em uma cadência coerente, temática, que acompanhe a evolução das habilidades dos jogadores, criando assim uma boa curva de dificuldade. 13Construções de desafios CSIKSZENTMIHALYI, M. Fluir: a psicologia da experiência óptima para a qualidade de vida. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2002. DE BONO, E. The use of lateral thinking. London: Pelican Books, 1971. FULLERTON, T.; SWAIN, C.; HOFFMAN, S. Game design workshop: a playcentric approach to creating innovative games. 2nd ed. Burlington: Morgan Kaufmann Publishers, 2008. HOLLEMAN, P. Reverse design: Super Mario World. 1st ed. Boca Raton: CRC Press, 2018. HOLLOW Knight Wiki. FANDOM, [2019]. Disponível em:https://hollowknight.fandom. com/wiki/Hollow_Knight_Wiki. Acesso em: 22 ago. 2019. KISHIMOTO, T. M. 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