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AcolhidA nA colôniA Um espaço de vida e encontros... Ac ol hi da n a C olônia 20 anos • Acolhida na Colônia 20 anos • Thaise Costa Guzzatti “(...) o texto alcança os objetivos postos por sua autora: contribuir para o aviva- mento do vigor da Acolhida na Colô- nia; disseminar a ideia do agroturismo; e motivar mais pessoas, municípios ou territórios a refletirem sobre a pertinên- cia em construir localmente esse tipo de experiência. Um ponto fundamental para tal consecução é que o livro foi ela- borado por uma Educadora do Campo e animadora de processos de desenvol- vimento rural altamente compromissa- da com o que faz e que não abre mão de refletir sobre o que faz. Outro, é a própria riqueza de significados – econô- mico, social, ambiental e cultural – que a proposta de agroturismo traz com ela e que a história da Acolhida na Colônia tão vivamente explicita”. Wilson Schmidt AcolhidA nA colôniA Um espaço de vida e encontros... 2019 © Copyright UNESC - Universidade do Extremo Sul Catarinense Av. Universitária, 1105 – Bairro Universitário – C.P. 3167 – 88806-000 – Criciúma – SC. Fone: +55 (48) 3431-2500 – Fax: +55 (48) 3431-2750 Reitora Luciane Bisognin Ceretta Vice-Reitor Daniel Ribeiro Preve Conselho Editorial Dimas de Oliveira Estevam (Presidente) Angela Cristina Di Palma Back Cinara Ludvig Gonçalves Fabiane Ferraz Marco Antônio da Silva Melissa Watanabe Merisandra Côrtes de Mattos Garcia Miguelangelo Gianezini Nilzo Ivo Ladwig Reginaldo de Souza Vieira Ricardo Luiz de Bittencourt Richarles Souza de Carvalho Vilson Menegon Bristot AcolhidA nA colôniA Um espaço de vida e encontros... Ac ol hi da n a C olônia 20 anos • Acolhida na Colônia 20 anos • Thaise Costa Guzzatti Criciúma UNESC 2019 Editora da UNESC Editor-Chefe: Dimas de Oliveira Estevam Revisão Ortográfica e Gramatical: Margareth Maria Kanarek (sob a coordenação da Editora da Unesc) Projeto gráfico, diagramação e capa: Ricardo Goulart Tredezini Straioto (sob a coordenação, responsabilidade e supervisão da autora) As ideias, imagens e demais informações apresentadas nesta obra são de inteira responsabilidade de seus(uas) autores(as) e de seus(uas) organizadores(as). Dados Internacionais de Catalogação na Publicação G993a Guzzatti, Thaise Costa. Acolhida na Colônia : um espaço de vida e encontros... / Thaise Costa Guzzatti. – Criciúma, SC : UNESC, 2019. 231 p. : il. ; 25 cm. ISBN: 978-85-8410-107-8 1. Turismo rural. 2. Agricultura familiar. 3. Desenvolvimento sustentável. 4. Associação de Agroturismo Acolhida na Colônia – História. I. Título. CDD – 22.ed. 338.4791 Bibliotecária Eliziane de Lucca Alosilla - CRB 14/1101 Biblioteca Central Prof. Eurico Back – UNESC Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida, arquivada ou transmitida, por qualquer meio ou forma, sem prévia permissão por escrito da Editora da Unesc. edico este modesto trabalho àqueles que me são mais queridos... Meus pais, Hélio e Dalila, que sempre foram fonte inesgotável de ternura, paciência e sacrifícios. Sou muito grata a eles por tudo o que sem- pre fizeram por mim, por todas as oportunidades que me proporcionaram e, principalmente, por todo o amor! Com meu pai, tive a chance de me aproximar e de me apaixonar pelo sítio. Já minha mãe me mostrou a natu- reza e me contagiou com a sua bravura em defendê-la. Meus irmãos, Thales, Thiago e Thaiane, que com suas famílias com- pletam nossa grande família, espaço de aconchego e carinho. Meu companheiro, Valério, por compartilhar sonhos, pelos estímu- los, pela parceria, pela paciência. Conhecido pelos amigos próximos como “santo do Valério”, compreende minhas ausências, vibra com minhas vitó- rias e, o mais importante, acolhe-me nos momentos de incertezas. Os amores da minha vida, Beatriz e Thiago – meus filhos –, que são a minha fonte de estímulo. Sem vocês, nenhuma conquista valeria a pena. Breno, que completa nossa família! E Deus, que me fortalece! D A Wilson Schmidt (in memoriam), fundador da Agreco (Associação dos Agricultores Ecológicos das Encostas da Serra Geral). Visionário que conseguiu fazer com que várias pessoas sonhassem com ele o mesmo sonho – o da construção de um território justo e sustentável. o professor Wilson (Feijão) Schmidt pelo apoio em todas as horas, pelas sugestões precisas e pela revisão deste texto. Agradecimento especial pela colaboração na realização das entrevistas e pela redação do capítulo qua- tro. Principalmente agradeço, Feijão, pelos ensinamentos ao longo de toda a longa jornada formativa (graduação-mestrado-doutorado) e pela parceria que tanto enriqueceu e estimulou meu trabalho. Ao Valério pelo encorajamento na produção deste livro e pela impor- tante revisão. Aos amigos Lícia e Joca. Foram os primeiros a me incentivar e possi- bilitar conhecer o campo e sua gente! À família Lorenzetti, que generosamente me recebeu e compartilhou seu cotidiano de agricultores familiares em Seara/SC. Ensinaram-me o ver- dadeiro sentido da palavra acolhida. A todos/as os/as agricultores/as franceses que tive a satisfação de co- nhecer. Foram, ao longo dos últimos 20 anos, muitas oportunidades de tro- cas e aprendizados. Destaco o querido amigo Gerard Guidault e sua família. Éliane Genève, minha doce mãe francesa, agricultora e fundadora da Accueil Paysan. Sua coragem e seu engajamento na defesa dos pequenos agri- cultores são fonte de estímulo e grande inspiração. Aos agricultores e às agricultoras da Acolhida na Colônia expresso meus sinceros agradecimentos. Aos primeiros, os pioneiros, os quais confia- ram numa “jovenzinha idealista”, que desbravaram o desconhecido, que ti- raram ideias do papel e as realizaram sempre melhor! Agradeço pela história que construímos juntos! Agradeço também àqueles/as que se juntaram ao movimento e o fortaleceram! AgrAdecimentos A Aos/Às "acolhetes": Daniele Gelbcke, Daiana Bastezini, Lucilene Assing, Marinês Walkowski, Lúcia Mayer, Cláudia Schmitz, Elisabete Silva e Daniel Franco. Embarcaram de “corpo e alma” neste projeto e o fizeram acontecer. Parceiros/as de trabalho que se tornaram amigos para toda uma vida! À querida Mercês! Mãe de coração, que esteve ao meu lado ao longo destes 20 anos. Você foi (e é) fundamental em cada realização e conquista. À Vanice, querida amiga, gratidão por sua participação na pesquisa do capítulo quatro e pela colaboração na Associação de Amigos da Acolhida na Colônia. Às agricultoras Cátia, Daphné, Dida, Leda, Luzia, Irma, Marilda, Neusa, Nilva, Rosângela e Roseli, assim como às suas famílias, que aceitaram compartilhar suas histórias neste livro. Ao amigo Sebastião Vanderlinde pelo incentivo à escrita do livro e pelo esforço em viabilizá-lo. Agradecimento especial a todos e a todas que colaboraram com ima- gens para a ilustração deste livro. Foram: Alessandro Grutzmacher, Asso- ciação de Agroturismo Acolhida na Colônia, Caminhos do Sertão Ciclotu- rismo, Fábio Thiesen, Flávio Bertoldi, Jackson Baumann, Leandro Assing, Lucilene Assing e Wilson Schmidt. Um agradecimento especial à Ivonete Moreira, que há 12 anos cuida da nossa casa e dos nossos filhos. Certamente, sem teu apoio, não poderia fazer este trabalho. À Universidade Federal de Santa Catarina pela oportunidade da me- lhor formação que poderia ter e por me acolher como docente, permitindo- -me atuar na formação de educadores/as do campo e continuar o trabalho de pesquisa-ação na Acolhida na Colônia. À Prefeitura Municipal de Santa Rosa de Lima e à Bovespa Socioam- biental pelo apoio na realização deste livro. Apresentação Francesa. Éliane Genève Apresentação. Wilson (Feijão) Schmidt cApítulo 1. Transformando o Ideal de Estudante em Projeto de Vida Dando sentido à formação acadêmica Uma vivência que foi sopro renovador O Cepagro como um ambiente provocante O turismo rural bate à minha porta Descobrindo o turismo rural na França Turismo noespaço rural: entendendo a complexidade da atividade O encontro com a Accueil Paysan Um salto ao ponto inicial: o desafio de construir uma proposta para Santa Catarina cApítulo 2. A Tecnologia Social Desenvolvida Do turismo ao Agroturismo A metodologia Acolhida na Colônia para o desenvolvimento do agroturismo em municípios rurais A replicação da metodologia cApítulo 3. Um Balanço – Sempre Provisório – do Impacto do Agroturismo na Construção de um Projeto de Desenvolvimento Sustentável em um Município a) A gênese da Acolhida na Colônia e do agroturismo em Santa Rosa de Lima b) Agroturismo e os benefícios concretos para agricultores/as e para o território c) Agroturismo e mudanças na vida dos/das agricultores/as 11 15 19 19 21 25 27 29 32 38 41 47 49 54 68 71 72 76 79 sumário d) O agroturismo e a construção de uma identidade e) Território: que bicho é esse? f ) A Acolhida, sua constituição e sua aceitação em Santa Rosa de Lima g) Ação coletiva e cooperação h) Manter uma prática interna firme para favorecer a resistência i) O discurso do sujeito coletivo Acolhida na Colônia cApítulo 4. Histórias de Transformação 1 - Leonilda Baumann 2 - Rosângela Bonetti Vanderlinde 3 - Leda Assing 4 - Marilda Rieg 5 - Cátia Rommel e Daphné Arenou 6 - Nilva Dircksen Israel 7 - Irma Beckhauser 8 - Neusa Heiber 9 - Luzia Cuzik 10 - Roseli May Kniess cApítulo 5. Vinte Anos de História: Conquistas e Desafios em uma Caminhada Coletiva O ponteiro moveu duas vezes: conseguimos chegar aos vinte anos! Carência de políticas públicas perenes de apoio e incentivo ao agroturismo Legislação de suporte ao agroturismo Desafios para a próxima década: por um projeto que vale a pena sonhar e lutar! a) Manutenção do espírito associativo e da solidariedade entre os participantes b) Novos atores: os neo-rurais c) Distanciamento dos princípios do projeto Referências Apêndice 1 - Acolhida em Imagens Apêndice 2 - Mapa de Arbrangência Apêndice 3 - Causos 82 87 91 95 100 101 103 105 111 116 122 128 135 142 148 157 166 177 178 179 183 186 186 187 189 194 201 225 229 11 1. Paysanne (agricultora familiar, que tem o senso de pertencimento a uma localidade rural, Pommiers-la- Placette), e Cofundadora da Associação Accueil Paysan - France . m um dia de 1997, Thaise, você percorreu o caminho que leva a Pommiers-la-Placette – um pequeno vilarejo do Maciço de Chartreuse, em Isère, na França. Você chegou, sentou-se na frente de nossa lareira e começa- mos a falar, uma à outra, como uma filha à sua mãe, como uma mãe à sua filha. Foi como se nós nos conhecêssemos desde sempre. Do que falamos, que permitiu tal proximidade? Que palavra apareceu, reciprocamente, em nossa troca? Paysan ou agricultor familiar. E eu me perguntei o que poderia explicar o fato de nossa conversa evocar esse mesmo nome, Paysan. Foi quando você explicou, Thaise, que acompanhava, lá na distante Santa Catarina, grupos de agricultores e agricultoras familiares que deseja- vam permanecer vivendo onde viviam, mas que não sabiam bem o que fazer – cultivar, organizar... – para se manter no local para que suas famílias pudes- sem estar com boa saúde e felizes. Que você tinha vindo até nós para buscar ideias, porque soube que na França agricultores/as familiares haviam feito as mesmas perguntas e tinham acabado de criar o que eles próprios chamavam de Accueil Paysan. Então, suavemente, nós contamos a nossa história. Aquela de um peque- no agricultor familiar, Félix Genève (que nos deixou em 2017), que, ao inventar um sistema que aliava agricultura e acolhimento, tinha conseguido se viabilizar como agricultor em uma pequena propriedade rural. Mostramos que o sistema proposto por Félix era voltado à resistência diante do modelo dominante de agricultura. Aquele que exige cada vez mais terra para produzir, eliminando os vizinhos. Aquele que ordena cada vez mais insumos e equipamentos, gerando o endividamento. Demonstramos que ao agregarmos uma nova função à nossa profissão de agricultores familiares – acolher pessoas em busca de um lugar para “recarregar suas baterias” – conseguimos obter uma renda melhor e, ao mesmo tempo, valorizar o nosso lugar de vida, visando a nele permanecer. ApresentAção FrAncesA Éliane Genève1 E 12 Contamos também que um grupo de reflexão foi constituído para promover a implantação desse sistema. Ele reuniu, além de nós, outros/ as pequenos/as (apenas em área) agricultores/as familiares, pesquisadores do INRA (Instituto Nacional de Pesquisa Agrícola), do IREP (Instituto de Pesquisas e Estudos Políticos) e do CERAT (Centro de Pesquisa sobre a Política, a Gestão Pública e o Território), assim como educadores/as da Peuple et Culture (Associação de Educação Popular Povo e Cultura). Nes- se processo, os/as agricultores/as familiares traziam à matéria as realidades de suas vidas, os/as pesquisadores/as as analisavam e os/as educadores/as faziam avançar a reflexão. Esse trabalho permitiu o reconhecimento das riquezas do saber-fazer do agricultor/as familiar, que poderiam ser conhe- cidas por – e partilhadas com – pessoas que seriam acolhidas nas unidades familiares de produção. Tendo difundido na imprensa os resultados dessa nossa reflexão, recebemos respostas de agricultores/as familiares dos quatro cantos da França, o que nos levou a reuni-los/as em janeiro de 1987. E, já naquele momento, decidimos criar uma Associação Nacional. Uma carta de princípios, com dez artigos, foi escrita. Ela é a base que devemos respeitar para implantar qualquer unidade de acolhimento. Em seguida, Cadernos de Normas foram negociados com instituições públicas e foram realizadas reuniões com os Ministérios da Agricultura, do Turismo e do Desenvol- vimento Territorial, o que permitiu, logo em seguida, o reconhecimento oficial da Associação Accueil Paysan e de sua proposta e prática de turismo. Como você sabe, Thaise, atualmente, há mais para narrar. Após reunir agricultores/as familiares franceses/as, a Accueil Paysan foi, progressivamen- te, tecendo uma teia – como aquelas de aranha, com agricultores familiares dos quatro cantos do mundo. Hoje, trinta e dois países já fazem parte da Rede Internacional Accueil Paysan. Ao nos escolher, esses países permitiram o desenvolvimento de uma solidariedade camponesa que passa por numero- sas trocas e por múltiplas visitas. O Brasil é uma boa ilustração desse inter- câmbio. Há vinte anos, agricultores/as familiares desse país mostraram sua vontade de construir sua própria organização, a Acolhida na Colônia, que não apenas sobreviveu, como se desenvolveu, ampliou e fortaleceu. Passados vinte e dois anos, como se continuássemos aquela nossa con- versa diante da lareira, retorno a uma pergunta-chave: o que quer dizer pay- san em Accueil Paysan? Ser paysan, ou agricultor e agricultora familiar, é ter uma profissão nobre. Ele é o homem da terra. Ela é a mulher da terra. São aqueles e aquelas que alimentam, que respeitam o solo. Que organizam e cuidam de seu espaço. Por tudo isso, ele e ela são fatores de vida. São os/as 13 que garantem a existência de uma natureza bela. E, o que é mais importante, não a querem só para si. Querem partilhá-la, apresentá-la aos humanos desta Terra. Fazem isso abrindo a porta da sua (dele/a) casa, oferecendo produtos de qualidade no prato dos/as visitantes, permitindo uma relação humana às pessoas que vão desfrutar dos locais rurais para reencontrar um equilíbrio na vida. Todos esses elementos representam o que nós chamamos de valores que nós devemos preservar, desenvolver e partilhar com as crianças, os jovens, os adultos e os idosos para que cada um se sinta bem em sua pele. A Accueil Paysan, a partir de sua experiência de trinta anos de exis- tência, pode afirmar, hoje, que tem um papel primordial a desempenhar para que amanhã o nosso planeta ainda esteja vivo. Durante um tempo, o/a agricultor/a familiar foi pouco considerado. Atualmente, contudo, ele pode ousar dizerque é o portador da esperança de que nós vivamos dias mais felizes. A Accueil Paysan devolveu a palavra e a responsabilidade para os agricultores/as familiares. Ela permitiu, assim, que eles/elas reencontras- sem a dignidade humana. A intensidade das manifestações de numerosos/as agricultores/as fami- liares realizadas em um seminário realizado em 2006, em Ituporanga, mos- trou-nos em que grau tal “dignidade” era o ponto forte a ser defendido em nossos engajamentos em ações solidárias. Eu mesma e Yasmine Bardin, que participamos daquele evento, fomos realmente tocadas, no mais profundo de nossos corações, por aquelas falas emocionadas e fortes. Foi um momento que ficará para sempre gravado em nós. Por fim, Thaise, eu agradeço pela honra que você me deu ao solicitar que eu escrevesse essa apresentação que compõe este livro. Obra na qual, tenho certeza, você exprime a fé que tem no futuro dos/as agricultores/as familiares catarinenses, brasileiros/as e da totalidade dos países e continentes deste nosso mundo, que a todos pertence. 15 ApresentAção Wilson (Feijão) Schmidt2 texto anterior, de Éliane Genève, cofundadora da Accueil Paysan, serve de claro indicativo de como é difícil separar a história da Associação de Agroturismo Acolhida na Colônia – tema central deste livro – da história pessoal e profissional de Thaise Costa Guzzatti. Assim, não é de se estranhar que, ao completar vinte anos de “Acolhida”, seja ela quem tenha se proposto a recuperar e valorizar a trajetória notável dessa Associação. Todos constata- rão, todavia, o cuidado que a autora teve em não “pessoalizar” um processo que, ela sabe, envolveu e mobilizou muita gente, especialmente agricultores e agricultoras familiares, mas também diversos profissionais do desenvolvi- mento rural e do turismo. Ao longo desses dois decênios, muitos desses atores sociais se viram enredados ou seduzidos por propostas de ações mais amplas ou mesmo por pedidos de realização de tarefas simples, relacionadas à Acolhida na Colônia, sempre tendo Thaise como a formuladora. Nessas ocasiões, devem, também, ter ouvido o verdadeiro bordão adotado por essa animadora nesse tipo de ocasião: “Já te botei em alguma roubada?”. Pois bem, colaborar para este livro e apresentá-lo foi mais uma das muitas “roubadas” em que Thaise me colocou nesse longo período em que ela contribuiu para construir, animou, defendeu – sempre com a mesma energia daquela garota recém-saída da graduação em agronomia – ou pro- pagandeou a Acolhida na Colônia. E, mais uma vez, me vi enredado... Por- que Thaise me apresentou assim a proposta de publicação: “São vinte anos de muito trabalho, aprendizado, construção coletiva e transformação (de pessoas, de lugares, de práticas, de sonhos, de perspectivas...). Registrar essa história num livro e compartilhá-la é, de alguma forma, mantê-la viva, dis- seminá-la e, quem sabe, motivar mais pessoas, municípios, territórios para o desenvolvimento da experiência”. Difícil resistir, não? 2. Engenheiro Agrônomo (Universidade Federal de Santa Catarina, 1982), Mestre em Ciências Sociais – Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 1990) e Doutor em Estudos de Sociedades Latino-Americanas (Universidade Nova Sorbonne, Paris 3, 1996). Professor- pesquisador do Departamento de Educação do Campo e da Licenciatura em Educação do Campo da UFSC. O 16 E o leitor vai constatar que Thaise consegue, nesta obra, realizar o com- partilhamento e o avivamento da experiência pretendidos e, como consequên- cia, alcançará a pretendida motivação de “pessoas, municípios ou territórios”. O presente livro está dividido em cinco capítulos. O primeiro é com- posto por uma narrativa bastante pessoal – o que, destaco, a torna muito interessante – sobre os antecedentes do processo de construção da Acolhida na Colônia. Com um certo distanciamento, a autora relembra como a en- tão jovem estudante de agronomia vislumbrou o agroturismo como uma alternativa para a agricultura familiar. Faz isso partindo do marco que repre- sentou, em sua vida pessoal e profissional, um Estágio de Vivência em uma Unidade Familiar de Produção (UFP), que foi seguido de atividades por meio das quais procura dar sentido à sua formação e à sua vida. Em seguida, recupera um estágio que realizou na França, em 1997, sobre o tema “Turis- mo Rural”, a diversidade de propostas e experiências que encontrou naquele país e como chegou à opção pela concepção da Accueil Paysan, recordando, também, como celebrou, imediatamente, um convênio com aquela organi- zação. Finalmente, recupera o processo de aproximação com as Encostas da Serra Geral, território rural onde se daria a realização do primeiro esforço conjunto de implantação da proposta de atividade rural não agrícola base- ado na concepção da Accueil Paysan. Nesse caso, trazer à memória os “cho- ques de realidade” – no sentido de que o projetado precisava ser adequado às condições efetivas locais – me pareceu pleno de significado. No segundo capítulo, a autora descreve a “tecnologia social desenvol- vida”. Primeiro ela trabalha a passagem da noção de “turismo rural” para aquela de agroturismo. A base dessa mudança foram os valores éticos e so- ciais julgados intrínsecos à atividade. Em seguida, apresenta a metodologia de trabalho desenvolvida e aprimorada ao longo dos anos, com suas seis etapas ou passos. Essa exposição é enriquecida por ilustrações a partir de memórias do processo de sua implantação ou “replicação”. O impacto do agroturismo na construção de um projeto de desenvol- vimento territorial é o foco do terceiro capítulo. A autora faz essa reflexão a partir de entrevistas realizadas, no ano de 2010, em Santa Rosa de Lima, com lideranças e agricultores/as envolvidos/as, em uma pesquisa que resul- tou em sua tese de doutorado. A análise foi atualizada e ampliada em sua perspectiva. Ao mesmo tempo, o texto foi adequado a uma publicação que não tem propósitos puramente acadêmicos. 17 Para o quarto capítulo, o que foi proposto foi ouvir as “histórias de transformação” de dez Unidades Familiares de Produção que ilustram a ri- queza e a diversidade do processo de implantação do agroturismo e da pró- pria Acolhida na Colônia. A autora pensou que se essas entrevistas fossem realizadas por ela mesma, poderia haver um viés (positivo) nos depoimentos. Por isso, perguntou-me, mais uma vez, se já tinha me “botado em alguma roubada” para, em seguida, me propor fazê-lo, como alguém menos conhe- cido dos – e menos reconhecido pelos – membros da Associação. Procurei, assim, me restringir a “dar voz” a dez associadas, consideradas representati- vas pela autora e pelos/as dirigentes da organização. Creio que a diversidade de perfis e de perspectivas contribuam para a reflexão. Tanto que é com base nelas que a autora construiu o quinto e último capítulo, focado nos “desafios e nas conquistas ao longo da caminhada”. Acredito que, mais uma vez, Thaise faz isso do seu jeito. Ela recupera pon- tos, analisa, provoca, discute, força a reflexão, mas não faz finca-pé sobre nenhuma posição. Talvez porque saiba que o que disser ganhará muita força (ou, mesmo, peso demais). E ela prefere que as forças possam se manifestar livremente na Associação, especialmente aquelas jovens e renovadoras. Por fim, repito para reforçar, creio que este texto alcança os objetivos postos por sua autora: contribuir para o avivamento do vigor da Acolhida na Colônia; disseminar a ideia do agroturismo; e motivar mais pessoas, muni- cípios ou territórios a refletirem sobre a pertinência em construir localmente esse tipo de experiência. Um ponto fundamental para tal consecução é que o livro foi elaborado por uma Educadora do Campo e animadora de pro- cessos de desenvolvimento rural altamente compromissada com o que faz e que não abre mão de refletir sobre o que faz. Outro, é a própria riqueza de significados – econômico, social,ambiental e cultural – que a proposta de agroturismo traz com ela e que a história da Acolhida na Colônia tão viva- mente explicita. Aos leitores, boa leitura e boas reflexões. Que desperte ações! 19 cApítulo 1 Transformando o Ideal de Estudante em Projeto de Vida Inicio a escrita deste livro fazendo um resgate de parte importante de minha formação acadêmica (graduação). Acredito que ficará claro ao/à leitor/a que minhas trajetórias pessoal, aca- dêmica e profissional se fundem com aquela da Acolhida na Colônia. O capítulo está organizado em sete subitens. Nos dois primeiros, falo sobre minha formação acadêmica, especificamente sobre minha ex- periência decorrente da realização do estágio de vivência e de todas as descobertas feitas naquele período. O terceiro item, por sua vez, apresenta o Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de Grupo (Cepagro), entidade de vanguarda histórica em assuntos relativos ao desenvolvimento da agricultura familiar catarinense. No quarto item, reflito sobre o encon- tro com a atividade de turismo rural, aprofundando para o caso francês no tópico seguinte. No sexto subitem, busco iniciar uma discussão sobre a complexidade dessa nova atividade, então recém-descoberta por mim, finalizando com o que se configura- rá como a fundação da Associação Acolhida na Colônia. dAndo sentido à FormAção AcAdêmicA Em 1994, ao iniciar a quarta fase do curso de agronomia, deparei-me com uma disciplina curricular obrigatória chamada Estágio de Vivência. Ela tinha como objetivo permitir aos/às estudantes uma aproximação com o campo catarinense e com a realidade da agricultura familiar. Sua inclusão no currículo se deu após o diagnóstico de alguns/algumas professores/as do Centro de Ciências Agrárias (CCA) de que o perfil dos/das ingressantes no curso era cada vez mais urbano. Recorde-se que em seus primórdios – até de- zembro de 1985 – havia a chamada “lei do boi” (Brasil, 1968), que reservava 50% das vagas ofertadas anualmente na agronomia/UFSC para agricultores AcolhidA nA colôniA Um espaço de vida e encontros... Ac ol hi da n a C olônia 20 anos • Acolhida na Colônia 20 anos • Thaise Costa Guzzatti 20 ou para seus filhos, proprietários ou não de terras, que residiam com suas famílias na zona rural; e 30% a agricultores ou a seus filhos, proprietários ou não de terras, que residiam com suas famílias em cidades ou vilas nas quais não havia estabelecimentos de ensino de nível médio. Esse privilégio, desta- que-se, em boa parte utilizado por filhos de médios e de grandes proprietá- rios rurais absenteístas, era estendido também a portadores de certificados de conclusão do Ensino Médio agrícola (técnico agrícola), o que promovia uma relativa democratização do acesso às escolas superiores de agricultura (agro- nomia). Com a revogação da “lei do boi” – especialmente no início da década de 1990 –, a maioria dos alunos e das alunas de Agronomia da UFSC tinha pouco vínculo com o espaço rural, como era o meu caso. Além disso, o curso em questão era ofertado no campus de Florianópolis (o único), ou seja, na ex- pressão do colega Antônio Munarim, “numa ‘ilha’ dentro da ilha” onde está localizada a capital do Estado, o que dificultava a aproximação entre a cidade e o campo, salvo por curtas e esporádicas visitas técnicas que eram realizadas. Para alguns/algumas professores/as do curso, isso não constituía pro- blema. Com uma visão produtivista, julgavam que as técnicas agronômicas poderiam ser ensinadas em salas de aula, laboratórios e áreas demonstrativas. E bradavam que havia, inclusive, uma fazenda experimental! Assim, questio- navam qual seria a necessidade de aproximação com agricultores, agriculto- ras e suas comunidades, em geral praticantes de uma agricultura tradicional, que precisava ser superada. Para outra parcela de professores/as do CCA, contudo, a mudança do perfil dos/das ingressantes no curso, aliada à expansão da agricultura con- vencional – ou seja, aquela pautada em técnicas de produção baseadas no uso de adubos e fertilizantes sintéticos, agrotóxicos de síntese química, se- mentes melhoradas e/ou transgênicas, máquinas e equipamentos, entre ou- tros –, ameaçava a continuidade da agricultura familiar em Santa Catarina (que, aliás, representava, em 2006, segundo dados do Censo Agropecuário do IBGE, 87% dos 193.668 estabelecimentos agrícolas do Estado). Esses/as professores/as entendiam que era necessário oportunizar aos/às estudantes, ainda no início de sua formação, a chance de aproximação com essa realidade tão complexa da agricultura familiar, mas não uma aproximação pontual, em uma visita de um dia, como era o habitual na agronomia. Era preciso mais! Era necessário permitir às e aos estudantes compreenderem as relações (sociais, de poder, de mercado, de comunicação...) que a agricultura familiar mantém com seu entorno, assim como suas potencialidades e, prin- cipalmente, os desafios que enfrenta. Muitas das dificuldades vivenciadas na 21 agricultura familiar eram, inclusive, consequência do modelo produtivista que se impunha e que tinha agrônomas e agrônomos como porta-vozes. O Estágio de Vivência era visto, assim, como uma chance de que alguns/algumas jovens estudantes criassem vínculos com a agricultura familiar e se tornassem seus/ suas aliados/aliadas nos esforços para sua promoção e defesa. umA vivênciA que Foi sopro renovAdor No meu Estágio de Vivência, em abril de 2004, fui para o município de Seara, no Oeste de Santa Catarina. Confesso que o fiz de forma bastante con- trariada, já que, à época, não via muito sentido naquela atividade. Como minha meta era ter uma floricultura, não percebia como a vivência com uma família de agricultores/as do outro lado do Estado e, por 30 dias, poderia me ajudar. Mas não havia escolha. A disciplina era obrigatória! Saímos de Florianópolis, em um ônibus do CCA, às 22 horas. Meus pais vieram de Criciúma (SC), onde residiam (a 200 km da capital), para se despedir e, de certa forma, empurrar-me para dentro do ônibus. Viajamos a noite toda, até que, pela manhã, bem cedo, nosso ônibus estacionou na área central de Se- ara. Estavam lá todos os “pais” e as “mães” agricultores e agricultoras, esperando os “filhos” e as “filhas”. Depois de uma rápida apresentação, encontrei-me com o Sr. Luiz Lorenzetti, no seu Corcel I. O sorriso dele não cabia no rosto, o que, na oportunidade, pareceu-me estranho. Saímos para a Linha São Pedro, comunidade rural de Seara onde a família residia. Seu Luiz foi me explicando sobre a propriedade, a família e a comunida- de. Estava muito animado com minha presença. Chegando a casa, outra recep- ção calorosa, com direito a café da manhã preparado pela mãe Adiles. Os filhos estavam lá: o mais velho, Cláudio; o do meio, Roberto, com a minha idade; e o caçula (Nêne, como carinhosamente o chamavam), Renato. A família estendida contava ainda com a avó e com a tia Ema. Depois do café, apresentaram-me a casa. Era uma construção simples, de madeira. Ofereceram-me o melhor quarto. Deixaram claro que eu era muito bem-vinda e que poderia ficar à vontade. Se quisesse conhecer as atividades da propriedade, seria ótimo, mas se não tivesse vontade, poderia ficar em casa. Aquela família se dispôs a me receber por um mês, a me ensinar. Não iam ganhar nada com aquilo. Por que o faziam? Ali comecei a entender os propósitos daquele estágio... Durante os trinta dias que se sucederam, eu me integrei total- mente à família, aos trabalhos da propriedade e à vida comunitária (Imagens 1 a 3, no apêndice 1, retratam momentos vividos no Estágio de Vivência). Imagem 2, apêndIce 1 22 Não posso deixar de registrar neste livro uma grande descoberta feita naquele primeiro dia de estágio, já que ela ilustra bem os desafios de uma jovem urbana estudante de agronomia como eu era. Dona Adiles foi me mostrar suas vacas. Subimos uma colina (aliás, morros não faltam em Seara!) e avistamos o plantel de vacas daraça Jersey. Toda orgulhosa, dona Adiles apontou para elas e disse quantas eram e o quanto produziam. Fiquei pasma olhando para os animais e soltei a primeira pérola do estágio: “Mas são vacas? Como assim, dona Adiles? Desde quando vacas podem ter chifres?”. Ela, com seu sorriso meigo, respondeu-me: “Boa a piada!”. No dia seguinte, eu passei a participar da rotina de trabalho com a família (Afinal, tinha muito que aprender!). Acordávamos às 5:30 para o café, o trato das vacas, tirávamos leite e depois seguíamos para o trabalho no chiqueiro. A propriedade produzia suínos de forma integrada, além do leite e da agricultura para a subsistência. Dona Adiles retornava para casa logo após o trabalho com as vacas, já que era dela a responsabilidade pela casa, pelo almoço, pelos filhos e pela avó (que tinha deficiência física). Quando entrávamos em casa, vindos do chiqueiro, havia tempo para um chimarrão e depois o almoço já era servido. Os homens iam descansar brevemente e dona Adiles, tia Ema e eu também, nesse período, ficávamos com a tarefa da cozinha. À tarde íamos todos para a roça. No final do dia, novamente realizávamos o trato das vacas e alguns afazeres no chiqueiro. Dona Adiles também fazia o jantar, e todas as mulhe- res limpavam a cozinha. Aos sábados, havia culto. A igreja localizava-se bem ao lado da casa da família. Era bem tradicional, com duas portas, uma para os homens e a ou- tra para as mulheres. Depois da celebração religiosa, todos iam para o salão comunitário. Os homens se reuniam em um círculo, conversavam e jogavam baralho. As mulheres, em um outro. E os jovens, em um terceiro para confa- bular sobre o baile da vez. Naquele primeiro dia, deixaram-me acompanhá-los em um baile em outra comunidade rural. Fomos todos na caçamba de um caminhão que “puxava” (transportava) porcos durante a semana. Aos domingos, o habitual era os jovens se reunirem em campeonatos de futebol nas comunidades rurais. Acompanhei alguns, mas fiquei apenas na torcida, já que os times eram masculinos (as mulheres só podiam ficar entre os torcedores) e, de qualquer forma, eu era uma verdadeira “perna-de-pau”. A escola também estava situada bem próximo da casa da família Lo- renzetti. Dona Adiles, inclusive, havia atuado como professora durante mui- 23 tos anos. Era uma escola multisseriada, cuja professora era responsável pelo ensino das crianças, pela limpeza e pelo preparo do lanche. Presenciei também algumas atividades coletivas na comunidade, como vizinhos trocando dias de serviço para “fazer a roça” uns dos outros ou a mo- bilização para ajudar uma família que enfrentava problemas. De uma forma geral, eu via a Linha São Pedro como um lugar bom e com pessoas maravilhosas. Ao mesmo tempo, fui percebendo, contudo, as contradições e os dilemas existentes. O alerta veio, em especial, quando observei que a vontade de muitos dos pais da comunidade era que seus filhos, com a mesma idade que a minha, saíssem da propriedade e do meio rural. No caso dos Lorenzetti, que me receberam, grande era o esforço para que um dos filhos, que estava cursando direito, seguisse outros caminhos. A justificativa para isso era que o campo oferecia poucas oportunidades de geração de renda e que a vida por lá estava cada vez mais dura e incerta. Tal quadro na minha família “de adoção” chamou muito a minha atenção, já que era exatamente o contrário que havia vivenciado na minha família “de sangue”. Meus pais, comerciantes, sempre trabalharam muito. Não me lembrava, por exemplo, de ter visto eles tirarem um só dia de férias até aquele período. Por causa do trabalho árduo, entretanto, eles alcançaram o crescimento do seu negócio e a melhoria de suas vidas. Para os seus quatro filhos, foi quase automático, ao terminarem o Ensino Médio, ingressaram em um curso de nível superior (no caso da família de Seara, apenas um, e com muita dificuldade, conseguiu entrar na faculdade). Depois, quando meus irmãos se formaram, dois em áreas bem diversas dos negócios da famí- lia, foram motivados a retornar para a cidade natal e a se engajar no comér- cio, que já estava consolidado. Meus pais tinham certeza de que se sua prole trabalhasse duro, teria, ao mesmo tempo, um futuro garantido. Essa constatação me fez ficar mais atenta às dificuldades, aos gargalos e aos desafios dos/as agricultores/as familiares e habitantes do meio rural. O primeiro problema que saltou aos meus olhos foi o “sistema integrado de produção” no qual a família Lorenzetti – assim com a maioria das outras famílias da comunidade – estava inserida, ou melhor, ao qual estava sub- metida. Acompanhei durante trinta dias o trabalho duro que realizavam na produção de suínos. Cotidianamente, limpavam o chiqueiro, alimentavam os animais, vacinavam os porquinhos e cortavam os seus dentes, além de outros “tratos”. O cheiro, quase insuportável para mim, ficava impregnado nas roupas. Eles diziam já estar acostumados. O barulho no chiqueiro, prin- cipalmente quando se alimentavam as matrizes (porcas), era ensurdecedor. 24 O trabalho era muito pesado, sete dias por semana e, praticamente, vinte quatro horas por dia em função dos partos. Não havia folga! Sublinhe-se que um estudo realizado pela Delos Associados, em 2012, indicou que a produ- ção de suínos no esquema de integração gera impactos biopsicossociais aos produtores. Infelizmente, a forma atual de integração desresponsabiliza as empresas integradoras sobre qualquer problema de saúde adquirido pelos agricultores e pelas agricultoras no processo produtivo. O acompanhamento técnico “oferecido” pela empresa me incomoda- va. Certa vez, um técnico encostou o carro na porta do chiqueiro, deu duas buzinadas e perguntou ao filho mais velho, que foi atendê-lo, se havia algum problema. Cláudio falou de alguns porquinhos com gripe e o técnico “re- ceitou” e entregou medicamentos veterinários sem sequer descer do carro. Ao final de cada mês, quando recebiam um relatório repassado pela empresa com os “lotes” de animais entregues, havia um sem número de itens de desconto, e o valor a receber era sempre considerado injusto pela família. Os Lorenzetti se deram conta de que estavam apenas sobrevivendo e sabiam que se descontassem a mão de obra e a depreciação das instalações, estariam no prejuízo. Conversando com meus colegas de estágio de vivência, durante a socialização das experiências já na Universidade, vimos que isso aconte- cia na maioria das famílias. Pareceu-nos que os/as agricultores/as familiares “integrados/as” tinham receio de questionar, já que dependiam da empresa para continuar na produção. Além disso, a maioria deles/as tinha “pouco estudo”, havendo cursado apenas até o quarto ano (primário). Por isso, viam os técnicos, “estudados”, como “autoridades”. Outras questões foram me impactando: a tripla jornada e a pequena valorização do trabalho das mulheres; as péssimas condições de infraestrutu- ra e a ausência de serviços públicos de base nas comunidades rurais (estradas, telefonia, postos de saúde, escolas etc.); a falta de opções de educação formal e informal, de lazer e de cultura para os jovens, dentre tantas outras coisas. Ao retornar à UFSC, passei a me questionar sobre o futuro da mi- nha formação. Poderia fechar meus olhos para toda essa experiência e seguir meus planos iniciais (aqueles da floricultura) ou poderia me comprometer com o desenvolvimento da agricultura familiar? Por um tempo, fiz as duas coisas. Continuei como bolsista do laboratório de fitopatologia, mas tam- bém me engajei em um programa que estava sendo criado, chamado Agro- Cidade. A ideia dessa iniciativa era retribuir a gentileza dos agricultores e das agricultoras e trazê-los/las para conhecer a Capital. Eram três dias com programação na Universidade, mas também turismo por Florianópolis. Do 25 ponto de vista da aproximação com a UFSC, o propósito era dar visibilidade ao estágio de vivência, já que havia muita resistência à sua realização, espe- cialmenteno Centro de Ciências Agrárias. Buscava-se, também, mostrar aos agricultores e às agricultoras que a UFSC era pública e que existia toda uma infraestrutura (moradia, hospital, restaurante) que poderia ser utilizada por seus filhos e filhas. Do ponto de vista do turismo, tratava-se de apresentar a Capital do Estado e o mar, que a grande maioria deles/as ainda desconhe- cia. A experiência com o programa AgroCidade aumentou ainda mais meu compromisso com a agricultura familiar (Imagens 4 a 5, no apêndice 1, jornal universitário sobre o AgroCidade). o cepAgro como um Ambiente provocAnte A partir de 1996, passei a ser voluntária no Cepagro – Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de Grupo. Iniciei acompanhando os programas que eram desenvolvidos, buscando identificar algum em que eu pudesse me encaixar e colaborar. Integrei-me mais diretamente ao “Programa de agroindústrias rurais de pequeno porte” que, à época, respondia pela elaboração de um diagnóstico (OLIVEIRA et al., 1999). Parecia uma opção interessante dentre os outros programas, já que um dos grandes problemas que eu havia visto na minha experiência em Seara/SC era justamente a relação entre agricultores/as fami- liares e grandes agroindústrias no sistema chamado “integração”. Pareceu-me, na ocasião, que as pequenas agroindústrias rurais seriam a solução para os agricultores e as agricultoras familiares, já que, a partir delas, poderiam agre- gar valor à produção primária e ao trabalho desenvolvido, conferindo mais autonomia, logo, independência, aos agricultores e às agricultoras. No âmbito desse projeto, tive a oportunidade, em 1997, de conhecer o projeto chamado PROVE (Programa de Verticalização da Pequena Produ- ção Rural), no Distrito Federal, bem como diferentes iniciativas de pequenas agroindústrias pelo estado de Santa Catarina. Pude constatar a diversidade e a riqueza de produtos beneficiados/transformados, de saberes e sabores da agricultura familiar implícitos nesse processo de “agroindustrialização”. Essa oportunidade me ajudou a perceber que grande parte da população urbana reconhece esses alimentos como diferenciados e atrela à agricultura familiar valores como saúde, sabor, tradição, retorno ao passado, dentre outros. Outras atividades desenvolvidas pelo Cepagro e que de alguma for- ma conheci e se tornaram fundamentais para minhas escolhas profissionais Imagem 5. apêndIce 1 26 O Cepagro A entidade foi fundada em 1990, por um grupo de agricultores/as familiares, téc- nicos/as interessados/as na promoção da agricultura de grupo como forma de viabilização das unidades produtivas de base familiar. Constituía-se, na época, como uma ONG (Organização Não Go- vernamental) formada por entidades de agricultores/as familiares de abrangência regional e estadual. Os programas desen- volvidos pelo CEPAGRO eram referência nacional para entidades que trabalhavam com agricultura familiar e desenvolvimen- to rural. A entidade liderava discussões sobre desenvolvimento local, agroindús- tria de pequeno porte, cooperativismo de crédito, certificação participativa, gestão da propriedade rural, dentre outras temáticas que se transformavam em seus programas de atuação. Esses programas tinham, na concepção da entidade, um caráter tempo- ral. Ou seja, o CEPAGRO desenvolvia a me- todologia para a implantação do programa e discutia todas as ferramentas necessárias para a construção de uma iniciativa piloto. Quando o piloto começava a dar resultados positivos, iniciava-se a disseminação da ex- periência para outras instituições que tinham potencial e interesse. A partir daí, o CEPA- GRO se retirava do processo. foram os programas de cooperativismo de crédito rural e, também, o estí- mulo ao debate e às ações sobre produção orgânica e certificação participa- tiva (o Cepagro teve participação ativa na constituição da Rede Ecovida de Agroecologia no final da década de 1990). Essa etapa no Cepagro (1996/1998) e a participação, seja de forma ativa ou apenas acompanhando reuniões e discussões sobre projetos que estavam sendo desenvolvidos, colaboraram de forma decisiva para minha formação profissional. Construí, nesse período, alguns princípios que levei para o meu trabalho como agrônoma: que o individualismo precisa ser superado e que o trabalho em grupo, associativo e solidário é fundamental para que possam ser construídas alternativas à lógica vigente na agricultura – somente os maiores e mais capitalizados sobrevivem; que a agroecologia é uma alternativa viável e coerente com os preceitos do desenvolvimento sustentável; que é preciso agre- gar valor (monetário, mas também evidenciar aquilo que é intangível) aos pro- dutos e serviços da agricultura familiar; que é preciso buscar autonomia para/ com agricultores e agricultoras, visando a que tenham menos dependência em relação aos diversos elos da cadeia agroalimentar (insumos, mercado, bancos, etc.); que é necessário melhorar as condições de trabalho e vida no meio rural; que consumidores devem ser aliados e corresponsáveis pela manutenção e pelo desenvolvimento da agricultura familiar, dentre outros princípios. 27 o turismo rurAl bAte à minhA portA Seguindo minha trajetória, no segundo semestre de 1996, uma con- versa com João Augusto Vieira de Oliveira, o idealizador e um dos fundado- res do Cepagro, ampliou meus horizontes. Joca, como é conhecido, era fun- cionário da Epagri (Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural do Estado de Santa Catarina) e era também um dos coordenadores do estudo das agroindústrias rurais supramencionado, com o qual eu estava envolvida. Havia feito uma pós-graduação na França, quando se aproximou muito das iniciativas de agricultura de grupo. É daí que vem, claro, a inspiração para a criação do Cepagro. Em nossa conversa, Joca questionou-me sobre minha inserção nos projetos do Cepagro e sobre como eu via tudo aquilo diante da realidade que havia conhecido em Seara. Respondi que achava tudo muito interessan- te e fundamental para novas perspectivas para o desenvolvimento da agri- cultura familiar, mas ainda não me via diretamente atuando em nenhuma daquelas frentes. “Falta algo”, respondi. Minhas maiores inquietações eram a necessidade de dar voz e vez para as mulheres, a indispensável ampliação das possibilidades e da promoção do interesse para jovens permanecerem no campo e de achar uma via para que eu pudesse contribuir efetivamente para a dinamização do meio rural. Joca, então, contou-me sobre uma atividade que ele havia visto na França e que achava que poderia ser desenvolvida em Santa Catarina: o turismo rural. Ele me disse que era muito comum, na França, famílias de agricultores/as terem “Gîtes” ou “Chambres d’hôtes” (pousadas ou quartos de hospedagem) em suas propriedades, como forma de complementação de renda. Contou-me também sobre outros impactos positivos desse tipo de atividade que ele havia percebido quando morou na França, tais como o embelezamento e a valorização dos imóveis rurais; a movimentação cultural no campo, inclusive com o resgate de festas tradicionais; a sensibilização mais direta dos/das visitantes no que diz respeito à valorização da qualidade dos produtos dos/das agricultores/as e à venda direta, dentre outros. Em 1993, conforme me explicou, então, João Augusto, o Cepagro iniciou as primeiras discussões sobre o turismo rural. Uma parceria com organizações francesas – em especial com a Associação Local para o De- senvolvimento Internacional Solidário (Aldis – Association Locale pour un Développement International Solidaire), com sede em Laval, capital do de- 28 partamento de Mayenne, na região do Pays de la Loire, no Noroeste da Fran- ça – possibilitou que um técnico tivesse a oportunidade de viajar para aquele país para a realização de intercâmbio. Como na França o turismo rural é uma atividade amplamente desenvolvida, eles imediatamente vislumbraram uma possibilidade para os/as agricultores/ascatarinenses. Em seu retorno, esse técnico tratou de compartilhar sua experiência e os conhecimentos ad- quiridos em inúmeros eventos estaduais, criando um interesse para o desen- volvimento da atividade. Esse processo de mobilização e de disseminação dessa nova ideia durava até aquele momento, ou seja, 1996. Havia espaço para o passo seguinte que era, na lógica do Cepagro, a construção de um programa piloto. Enquanto João Augusto falava sobre como tudo acontecia na Fran- ça, para mim, diante dele, era como se peças de um puzzle fossem se encai- xando. Apesar de até então nunca ter ouvido falar de turismo rural, tudo ia fazendo sentido. Pareceu-me mesmo ser uma grande possibilidade para o campo catarinense. Imediatamente, lembrei-me da acolhida que tive na família Lorenzetti e de como aquela experiência havia sido transformadora para minha vida. Se outras pessoas pudessem ter experiências semelhan- tes, teríamos uma enormidade de pessoas engajadas para o fortalecimento da agricultura familiar. Além disso, elas estariam pagando por isso (para conviver com agricultores/as) e isso geraria trabalho e renda para os/as envolvidos/as. Joca também me falou que havia uma família de agricultores franceses que estava em Santa Catarina, naquele momento, no quadro das coopera- ções Cepagro e Aldis, morando em Campos Novos (Meio-Oeste catarinen- se) para trocar experiências com os/as agricultores/as familiares catarinenses sobre a produção de leite à base de pasto e em sistema orgânico. Essa família praticava o turismo rural em sua propriedade francesa e poderia ser interes- sante, sempre segundo Joca, uma conversa com eles para entender melhor o assunto. Na sequência daquela conversa, liguei para prefeitura de Campos No- vos, descobri o telefone da família e agendei uma visita. Dois dias depois, fui recebida por Gerard e Annie Guidault. Ele me explicou melhor como o turismo rural era desenvolvido e as atividades que ele tinha na propriedade (no turismo, havia aluguel de quartos). Articulamos, então, um estágio para o ano seguinte, 1997. 29 descobrindo o turismo rurAl nA FrAnçA No dia 10 de março de 1997, cheguei a Mayenne, departamento loca- lizado na região Noroeste da França, para iniciar meu estágio na propriedade de Gerard Guidault, sob a supervisão de Jean Yves Griot (Imagem 6, no apêndice 1, Thaise Guzzatti, Elizabeth e Jean Yves Griot). A propriedade de Gerard Guidault está localizada na pequena comu- na francesa de Commer, departamento de Mayenne, situada na região No- roeste do país. A principal atividade desenvolvida era, à época, a produção de leite orgânico, tendo o turismo como atividade complementar (aluguel de quartos, com café da manhã) (Imagens 7 a 9 no apêndice 1, família Guidault e a propriedade La Chevrie). Os três primeiros dias do meu estágio foram lá, para que eu pudesse me ambientar e organizar melhor as atividades que desenvolveria pelo pe- ríodo de três meses. Como era habitual nos intercâmbios promovidos pela parceria Cepagro e Aldis, os “estagiários” circulavam por várias proprieda- des a fim de conhecerem diferentes iniciativas e ampliarem a experiência. Gerard me explicou que iniciou com o turismo por causa das limita- ções impostas pelo governo no âmbito da PAC (Política Agrícola Comum da União Europeia) aos produtores de leite, ou seja, o estabelecimento de quotas de produção combinadas com terras em alqueire. Como a remune- Jean Yves Griot Nascido em 1942, no município de Forez, no Departamento Loire, França, e falecido em 2013, em um acidente em sua pro- priedade rural, foi um agricultor, agrôno- mo, sindicalista, pioneiro e militante da agricultura sustentável na França. Foi fundador e participou de diferentes organizações dedicadas ao desenvolvi- mento da agricultura sustentável e da so- lidariedade entre agricultores da França e de diferentes partes do mundo. Dentre as organizações criadas com sua participação está a Aldis (Association Locale pour un Dé- veloppement International Solidaire), por meio da qual se estabeleceram diferentes ações de cooperação com o Cepagro/Brasil. Como reconhecimento pela sua contribui- ção para o desenvolvimento da agricultura catarinense, após sua morte, o Cento de Formação em Agroecologia de Santa Rosa de Lima (SC) recebeu seu nome. Para conhecer mais sobre sua história, visite o site http://www.jeanyvesgriot.fr Imagem 7. apêndIce 1 30 A França submeteu-se, após a segunda Guerra Mundial, a uma fase acelerada de modernização no campo. Havia a necessi- dade de aumentar a produção de alimen- tos para nutrir a Europa, pois apesar de a população francesa ser, na sua maioria, camponesa, não conseguia nem mesmo garantir a autossuficiência alimentar. No período de 1945-1975, que ficou co- nhecido como os “Trinta Gloriosos”, o camponês passou a dar lugar ao agricul- tor que trabalhava, produzia e definia a sua atividade em função das condições de mercado, cada vez mais internacionaliza- do (HERVIEU, 1996). Nesse período, o mundo agrícola renun- ciou a uma cultura centrada na economia camponesa e na terra como um bem para adotar uma cultura dentro da qual a terra era considerada uma ferramenta de tra- balho. Associava-se a modernização ao desenvolvimento do meio rural e acredi- tava-se que por meio dela poder-se-ia dar às pessoas que ali habitavam as mesmas condições das que habitavam as cidades (rendimentos, acesso aos serviços públi- cos básicos – saúde, educação, além de lazer, cultura e outros). A fortíssima modernização, por inter- médio de novas tecnologias (máquinas, melhoramento de sementes, controle de doenças, etc.), conseguia garantir altos ní- veis de produção por propriedade, permi- tindo aumentar em pelo menos vinte ve- zes a proporção de pessoas alimentadas/ ativo agrícola (pessoa que trabalha em atividades agropecuárias). Desse modo, a saída de produtores dos campos não com- prometia o abastecimento da França nem o da Europa. O modelo de produtivismo instalado du- rante os “Trinta Gloriosos”, que levou a agricultura francesa a figurar entre as principais produtoras mundiais de alimen- tos, ocasionou, também, um distancia- mento entre o desenvolvimento agrícola e o desenvolvimento rural. Um dos problemas gerados foi o forte êxo- do rural no período, já que os pequenos produtores rurais que não conseguiram aderir aos “pacotes tecnológicos” foram absorvidos pelo mercado de trabalho ur- bano, pois o grande crescimento econô- mico ocorrido no país durante aquele pe- ríodo e o melhor aporte educacional dos agricultores e de seus familiares facilitaram os seus ingressos no mercado de trabalho, tanto nas cidades como em atividades não agrícolas desenvolvidas no campo (HESPA- NHOL, 2007). As mudanças no espaço rural francês 31 ração era baixa e os custos de produção e de manutenção do rebanho e dos equipamentos eram altos, a crise nas finanças da proprieda- de o levou a buscar atividades que pudessem complementar a sua renda. Além disso, a casa secular e de pedras – construção típica no campo francês - tinha espaço ocioso, mesmo o casal tendo quatro filhos. Segundo Guidault, o turismo estava em expansão na França, havendo um crescimen- to expressivo do setor de viagens, tanto com a destinação interna como a outros lugares no mundo. Isso se justificava, à época, por inú- meras razões, dentre as quais a melhoria das condições de transporte (no caso da França, especificamente, uma extensa e segura rede de ferrovias conecta o país, além de fazer ponte com outros países da Europa, caracterizando- -se como uma das melhores malhas ferroviá- rias do mundo); o aumento da remuneração e a garantia de estabilidade e benefícios aos trabalhadores, como férias pagas e, portanto, o aumento de tempo livre; desenvolvimento de meios de comunicação de massa, dentre outros. Tudo isso criou um quadro favorável às viagens, em uma sociedade onde o contato comoutros povos e as outras culturas passou a ser valorizado, inclusive como forma de am- pliar o conhecimento. Além disso, Gerard destacou como fa- tor fundamental para a inserção de sua pro- priedade nas atividades turísticas o incentivo do governo francês para o desenvolvimento do setor (do ponto de vista financeiro, com subsídios, apoio técnico, entre outros). Atualmente, não se pode falar em êxodo, já que em muitos territórios franceses a população rural tem aumentado desde a década de 1970. No entanto, a dimi- nuição do número de agricultores é uma realidade preocupante. Dados do CIVAM (2018) apontam uma redução de 32% do número de propriedades agrícolas entre 2000 e 2013 (aproximadamente a metade no caso das propriedades que produzem leite), além do número de agricultores (dividido por quatro em re- lação aos últimos 50 anos), com um im- pacto direto sobre a vida e a dinâmica do mundo rural. Além disso, mais de 50% dos agricultores ganharam menos de 350 € / mês em 2016, indicando a pauperiza- ção do campesinato. Os questionamentos sobre o modelo produtivista se aprofundam, inclusive, quando se fala da qualidade da produção e dos impactos ambientais, fato ilustra- do, por exemplo, com o aparecimento do Mal da Vaca Louca (Encefalopatia Espon- giforme Bovina – EEB), em 1996, e a crise da dioxina, em 1999, os quais indicam a perda de confiança da sociedade em um sistema agrícola que desempenhou um papel importante nas décadas anteriores. 32 Nesse sentido, o desenvolvimento do turismo rural na França acon- tece com a confluência de diversas situações – crise na agricultura, amplia- ção do mercado de viagens/turismo, políticas públicas de incentivo para o desenvolvimento de novas atividades rurais não agrícolas –, estimulando a multifuncionalidade do espaço rural (garantindo, por exemplo, novos usos dos territórios que perderam população durante os chamados “Trinta Gloriosos” – 1945-1973 –, ou seja, do fim da Segunda Guerra à primeira crise do petróleo). Para se ter ideia da dimensão do turismo voltado ao espaço rural francês, à época do meu estágio, dados de 2005 indicavam que ele re- presentou aproximadamente 56 milhões de estadias na França (34% das estadias de franceses acima de 15 anos) e 250 milhões de pernoites (31%) (ARMAND, 2006). Gerard Guidault me alertou, todavia, que a atividade de turismo rural era fortemente desenvolvida e incentivada, mas que as propriedades agrícolas representavam apenas uma pequena fatia dessa oferta. Essa visão foi confirmada por uma pesquisa do Ministério da Agricultura, realiza- da mais de dez anos depois, em 2010, e citada por Lelievre (2018). Ela estimou que dentre as 514.742 unidades produtivas agrícolas francesas recenseadas à época, apenas 9.738 desenvolviam alguma atividade de hos- pedagem e 2.575 ofereciam serviços de alimentação. turismo no espAço rurAl: entendendo A complexidAde dA AtividAde Como já mencionado, meu estágio previa conhecer a realidade de di- ferentes propriedades rurais que desenvolviam o turismo rural na França. Eu tinha o objetivo claro de me instrumentalizar com conhecimento para que pudesse apoiar, no Cepagro, agricultores e agricultoras catarinenses que de- sejassem desenvolver iniciativas semelhantes. Em princípio, o estágio estava organizado para acontecer no departamento de Mayenne, onde a associação Aldis, parceira do Cepagro, tinha sua base. Após os três primeiros dias na propriedade de Gerard, fui direciona- da para duas outras propriedades associadas à rede Gîte de France (falarei dela nas próximas páginas), da qual ele também fazia parte. Nos dois casos, eram propriedades não agrícolas, sendo que apenas em uma delas a famí- lia, depois que iniciou a atividade turística, instalou uma pequena horta. O que me chamou a atenção, em ambas as estruturas, era a preocupação com 33 a infraestrutura e o conforto oferecidos. Claro que os proprietários foram muito acolhedores e os locais eram lindos, com paisagens fantásticas. No entanto, naquelas duas propriedades não se falava em agricultura, somente em turismo. Eram pequenos hotéis instalados no meio rural! Nada contra, mas comecei a me questionar sobre a viabilidade daquele modelo para agri- cultores e agricultoras catarinenses. Lembrava-me das minhas inquietações de estudante depois do estágio de vivência: Como contribuir para a geração de trabalho e renda para as famílias agricultoras? Como valorizar o trabalho de jovens e, principalmente, de mulheres? Como viabilizar a agricultura familiar, fugindo da lógica que havia visto em Seara: integração que explorava e maltra- tava produtores e que contribuía para a perda de sua autonomia? Aquelas duas experiências me fizeram duvidar que o turismo pudesse ser realmente uma alternativa. Nossas propriedades rurais eram, em geral, simples. As famílias tinham o mínimo para viver. Como oferecer, para visi- tantes, algo que não tinham, que não conheciam e que nem imaginavam ter? A lógica seria, então, novamente fazer imposições aos agricultores e às agricultoras, estabelecendo obrigações e necessidade de melhoria contínua para atenderem ao mercado? Eu não queria propor a substituição da agricultura, mas sim valo- rizá-la. Como o turismo poderia ser desenvolvido em outras bases, respeitando e valorizando a cultura e a realidade da agricultura familiar e de suas comunida- des? Como poderia ser uma ferramenta para a melhoria da qualidade de vida dos produtores catarinenses, de suas propriedades e de suas localidades? Levei esses questionamentos a Jean Yves Griot, meu supervisor de es- tágio. Ele, que conhecia a realidade da agricultura catarinense, compreendeu rapidamente minhas inquietações. Em seguida, explicou-me que o turismo rural na França era organizado principalmente por associações. Havia mo- vimentos em que defendiam o turismo rural como fim em si mesmo. Ou seja, o foco era o próprio desenvolvimento turístico. Outros, ao contrário, diziam que o turismo só tinha sentido se contribuísse para o fortalecimento dos/das agricultores/ase de tudo o que essa categoria social representava. Nesse caso, ele sugeriu que eu conhecesse a Rede Accueil Paysan, especial- mente na região Sudeste da França. De fato, como constatei a seguir, o agrupamento dos agricultores era feito em diversas associações. Algumas dessas entidades agregavam também não agricultores/as, tendo em vista que outras pessoas que moram no meio rural, como já mencionado, compõem a maior parte da oferta de turis- mo no espaço rural francês. Coexistiam, nesse quadro, “Gîtes de France”, “Bienvenue à la Ferme”, “Accueil Paysan”, “Logis de France”, dentre outras. 34 Cada uma propondo assegurar e promover atividades específicas. A adesão a uma delas é voluntária, sendo que o/a futuro/aintegrante procura a asso- ciação que mais se aproxima de seus ideais e que proporciona as melhores condições para que possa se instalar e comercializar seus produtos e serviços. Existem alguns fatores que influenciam a adesão a essas marcas. Um exemplo são as associações reconhecidas pelo governo e pelos órgãos fi- nanciadores. Segundo o documento do Conselho da Concorrência fran- cês (RÉPUBLIQUE FRANÇAISE, 2008), para poder demandar e receber subvenção, as pousadas rurais (Gîtes ruraux) precisam passar por um sistema de classificação, conforme determinam as normativas governamentais fran- cesas. Há algumas federações que foram acreditadas para fazer tal avaliação, dentre as quais a Gîtes de France, por possuir um sistema de classificação para aqueles que aderem à sua marca – 1, 2, 3 ou 4 “épis” (espigas) (A Imagem 10, no apêndice 1, mostra a logomarca do sistema de classificação da asso- ciação Gîtes de France). A associação Accueil Paysan, por sua vez, só foi reconhecida como en- tidade certificadora em outubro de 2007 (o documento supramencionado do Conseil de la Concurrence, quando lançado, já se encontrava desatuali- zado, não considerando a acreditaçãoda Accueil Paysan). Suas solicitações anteriores foram recusadas com a justificativa de que não tinham, até então, instaurado um sistema de classificação próprio ao seu selo/marca. Como veremos mais à frente neste texto, o estabelecimento tardio desse sistema pela Accueil está ligado à resistência dessa organização à “turistificação” das propriedades rurais. Em troca dos serviços prestados (apoio na elaboração do projeto, acompanhamento, suporte para a comercialização por meio de site e ou- tros meios de promoção, acesso a subsídios etc.), o proprietário rural deverá aceitar e seguir as normas estabelecidas pela associação que escolher. Em geral, há a assinatura de um “termo de adesão”. Nele, constam os direitos e os deveres das duas partes, o que inclui o pagamento de uma cota por parte do/a associado/a para garantir o funcionamento da entidade (estabelecida de diferentes maneiras, seja por tipo de serviço, tamanho de estrutura, ren- dimento auferido). Em geral, o/a associado/a tem o compromisso de parti- cipar da vida da associação, frequentando as reuniões, assembleias e demais atividades a ela ligadas. Das diferentes associações existentes, apresentarei três que conheci du- rante meu estágio. Imagem 10. apêndIce 1 35 Gîtes de France (Pousadas da França) É a maior e a mais antiga associação em termos de turismo rural na França, como também uma das mais importantes do gênero no mundo. Foi criada por iniciativa do senador francês Émile Aubert (1906-1969), que se sensibilizou com a situação gerada pelo pós-guerra no país, sobre- tudo com o empobrecimento dos agricultores e o êxodo rural e, com isso, a degradação de pequenos vilarejos e de casas históricas que, abandonados pela população, começaram a cair em ruínas. Aubert vislumbrou no tu- rismo rural uma alternativa (Imagem 11, no apêndice 1, logomarca da associação Gîtes de France). Esse senador, “[...] inspirado pelo movimento de juventude e edu- cação popular e, além disso, fortemente impressionado pela solidariedade mostrada pelo campo durante a greve dos grandes ferroviários que bloqueou as férias de muitas famílias” (AUZET; AUZET, 2008, p. 2), lançou a ideia do acolhimento turístico na casa de agricultores. Conseguiu criar, utilizando sua posição política, um fundo regional para subsidiar as melhorias neces- sárias para a adequação das propriedades rurais para implementação de sua proposta (que, posteriormente, deu origem à política pública francesa de apoio e subsídio ao turismo rural). A primeira pousada rural foi inaugurada em 1951, em Basses Alpes, atualmente Alpes de Haute-Provence (GÎTES DE FRANCE ALPES, s.d.). Em 1955, deu-se a fundação da Federação Nacional Gîtes de Fran- ce, agrupando 146 meios de hospedagem (gîtes). Em 2006, significativos 43.860 associados e 56.000 acomodações integravam a rede. Dentre eles, os agricultores representavam 19,7% das pousadas (gîtes ruraux) e 23,2% dos quartos de hospedagem (chambres d’hôtes). Conforme destacado no website da Gîtes de France Alpes (s.d.), na ori- gem, o objetivo da associação era “[...] fornecer renda adicional aos agricul- tores, diversificando suas atividades, enquanto permitia que todos saíssem de férias a um preço acessível”. Qualquer pessoa que dispõe hoje de um espaço em zona rural pode criar um alojamento e receber a marca Gîtes de France, desde que se enqua- dre nos critérios de classificação estabelecidos. Essa abertura, atrelada aos subsídios e às políticas de apoio e incentivo ao desenvolvimento da atividade e ao crescimento contínuo do número de turistas, fez com que os agriculto- res se tornassem, conforme evidenciado anteriormente, uma pequena mino- ria no seio da associação. 36 Bienvenue à la Ferme (Bem-vindo à unidade de produção agrícola) A associação “Bienvenue à la Ferme” foi criada e é acompanhada pela APCA (Assembleia Permanente das Câmara de Agricultura), desde 1998, com o objetivo de facilitar o desenvolvimento das atividades de turismo realizadas por agricultores na França. Nesse caso, não se trata de uma as- sociação, mas de uma marca que pertence às Câmaras de Agricultura, sen- do que elas delegam sua gestão a terceiros (RÉPUBLIQUE FRANÇAISE, 2008) (Imagem 12, no apêndice 1, logomarca da associação Bienvenue à la Ferme). Uma das motivações para a criação da nova marca foi a constatação de agricultores de que, com o grande desenvolvimento do Gîtes de France e a perda gradativa de sua identidade original – ou seja, aquela em que a ativi- dade turística era prestada por agricultores –, havia espaço para a criação de um selo que garantiria ao visitante que o estabelecimento era agrícola, assim como um mercado específico para agricultores e agricultoras. A Bienvenue à la Ferme possui normas de qualidade e conforto espe- cíficas, com padrões semelhantes àqueles estabelecidos pela associação Gîtes de France. O estatuto da associação proíbe que associados da Bienvenue à la Ferme façam adesão a outra marca, com exceção da Gîtes de France e de mar- cas locais destinadas a fortalecer a identidade territorial. Em muitos casos, o que ocorre é que as propriedades rurais que oferecem serviços de hospeda- gem acabam aderindo às duas redes – Bienvenue à la Ferme e Gîtes de France. Accueil Paysan (Acolhida Camponesa/na Colônia) Durante o período de 1980-1986, um grupo de agricultores franceses, moradores de uma zona montanhosa no Departamento Isère, dedicou-se a refletir sobre alternativas que possibilitassem a eles a permanência no cam- po. A grave crise financeira que enfrentavam era consequência da política agrícola adotada até o final dos anos 70, com a qual eles não compactuavam, agravada pelas dificuldades e limitações da vida na montanha. Por isso, de- cididos a resistir em suas propriedades e território, sentiram a necessidade de se organizar. Passaram a se encontrar na associação de educação popular Peuple et Culture (Povo e Cultura), juntamente com técnicos e pesquisado- res. Desses encontros, três linhas de trabalho ganharam força: valorização e transformação dos produtos da propriedade rural, autoconstrução e acolhi- da (Imagem 13, no apêndice 1, logomarca da associação Accueil Paysan). Imagem 13. apêndIce 1 37 Ressalta-se que desde esses primeiros encontros o grupo refutava o uso da expressão turismo por todo o artificialismo que a atividade vinha promo- vendo no campo francês. Alguns agricultores e algumas agricultoras desse movimento, inclusive, já desenvolviam atividades de turismo rural associa- dos à Gîtes de France e diziam que, a exemplo da política para a agricultura, o modelo turístico imposto a eles levava à necessidade contínua de ampliações e de melhorias dos produtos e serviços turísticos por parte dos agricultores, não respeitando os ritmos, a cultura e os valores do campo. Dentro desse quadro, o grupo mais identificado com as questões da acolhida fundou, em 1987, a associação Accueil Paysan (Acolhida Campone- sa), que tem sua sede em Grenoble, no Sudeste da França. Ela surgiu, então, com o intuito de integrar as propriedades rurais de seus associados a um tipo especial de acolhimento baseado nos valores dos pequenos agricultores. Nes- se sentido, eram propostas específicas da Accueil dividir os conhecimentos da natureza, permitir o contato com os animais e o meio ambiente, mostrar as diferenças do meio rural em cada estação do ano, oferecer e dividir espaços, dividir valores fundamentais dentro de um respeito recíproco. O artigo quarto do estatuto da Accueil Paysan demonstra, em parte, seu espírito ao estabelecer que a associação se dedicará a “[...] promover atividades de acolhida no meio rural como forma de diversificação socio- econômica dos territórios agrícolas e rurais e como oportunidade de criar encontros e favorecer a solidariedade entre cidade e campo” (ACCUEIL PAYSAN, 1997, p. 2). O Conselho da Concorrência francês (RÉPUBLIQUE FRANÇAI- SE, 2008, p. 7-8), ao apresentar a Accueil Paysan, afirma que ela é “[...] baseada mais nasrelações humanas do que no conforto material”. Além disso, segundo o documento, os associados devem concordar em respeitar o Caderno de Normas da entidade (falaremos disso mais para frente no texto). No caso de quartos de hospedagem, por exemplo, o Caderno de Normas é claro quanto ao tipo de turismo que defende e aos valores que estabelece como prioritários. Assim, é necessário que o quarto esteja situado dentro da habitação principal do agricultor-acolhedor. Além disso, o quarto deve ser asseado (bem pintado, limpo e bem organizado), com conforto adaptado (boa cama, móveis práticos e sólidos, com acessórios que facilitem a vida dos visitantes) e favorecer a convivialidade (relação humana, calorosa e discreta). Finalmente, os associados devem respeitar a ética (valores) da Accueil Paysan e seu projeto global de sociedade. 38 Dada a importância dessa organização para o surgimento da Acolhida na Colônia, ressalta-se que, segundo o seu site (www.accueil-paysan.com), atualmente, são cerca de 900 associados na França. Além disso, como estra- tégia de valorizar os pequenos agricultores familiares no mundo, contribuin- do para que tenham uma melhor qualidade de vida, a Accueil Paysan abriu a possibilidade de outros países aderirem à sua marca. Nesse sentido, 32 países já integram o guia de divulgação da entidade, incluindo o Brasil. O encontro com a Accueil Paysan O estágio em propriedades ligadas à Rede Accueil Paysan (Tabela 01) aconteceu na região francesa Auvergne-Rhône-Alpes, departamentos de Isère e Savoie. Mais que visitas, realizei vivências em cada uma dessas propriedades, acompanhando e participando do trabalho cotidiano das famílias em suas atividades agrícolas e pecuárias, mas também no preparo e na realização das atividades de acolhimento de visitantes. Os principais “serviços turísticos” por mim vivenciados foram: • Pousada: alojamento independente da casa de moradia da família de agricultores, situado dentro da propriedade rural. Geralmente, possui, além de quarto(s) e banheiro(s), sala e cozinha. • Quartos de hospedagem: pernoite em quartos dentro da residência principal da família de agricultores. Os quartos podem ou não possuir banheiro, apesar de ser recomendado que sim. Diferente do serviço de pousada, obrigatoriamente, no serviço de quarto de hospedagem, o café da manhã faz parte da diária. • Pousada de etapa (alojamento para grupos): trata-se de oferta de alojamento para grupos de passagem (por exemplo, ciclistas, trilheiros). Geralmente, a estadia dura apenas uma noite e os quartos são coletivos. • Área de camping: consiste em local destinado à instalação de barracas. Deve, por isso, dispor de infraestrutura adequada, tal como energia elétrica subterrânea, área coletiva de banheiros, cozinha, dentre outros. • Serviço de refeições para hóspedes (mesa): consiste na oferta de refeições para hóspedes que estejam alojados na propriedade rural (em pousada, quartos, camping etc.). Ou seja, diferencia-se de restaurantes por estar vinculado ao serviço de hospedagem. Nesse 39 Tabela 01 - Relação de famílias visitadas por localidade, serviço prestado e atividades agrícolas desenvolvidas Família/propriedade Localidade Serviços turísticos desenvolvidos Atividades agrícolas / pecuárias RABILLER, Claude e Danielle Le Bersend - Pousada - Serviço de refeições para hóspedes Criação de ovelhas / fabricação de queijos JOÜET-GALLET, Marie Noelle e Robert Le Pradier - Aluguel de quartos - Serviço de refeições para hóspedes Produção de legumes, criação de galinhas SHRENK, Renate e Berthold Notre Dame du Pre - Pousada Criação de ovelhas, burros e horta RICCOBONI-LIMA, Jean-Claude e Jeanne Préfauccon - Aluguel de quartos - Serviço de refeições para hóspedes Criação de ovelhas POULAT, Mireille e Eric Prebois - Pousada - Passeios com burros Criação de burros Produção orgânica de trigo, cevada e forragens BICHEBOIS-CARLIN, Jacqueline e Jean Marie St. Martin-de-Clelles - Aluguel de quartos - Serviço de refeições para hóspedes - Pousada de etapa (alojamento para grupos) - Área de camping Criação de ovelhas GENÈVE, Eliane e Félix Pommiers-la-Placette - Pousada - Aluguel de quartos - Serviço de refeições para hóspedes Criação de cabras e galinhas e manejo florestal CLOTEAU-GIRARD, Marie e Thierry Gemme Nesle-Robert Pousada rural Produção de plantas medicinais MOLLIEX, Françoise e Bernard Conflans - Pousada rural - Sítio pedagógico Criação de vacas leiteiras e produção de queijo, pomar, produção de suco de frutas e produção de pão Fonte: Elaborado pela autora. 40 serviço, recomenda-se a valorização de receitas típicas regionais e a utilização de alimentos da propriedade e de vizinhos. • Sítio pedagógico: propriedade rural que recebe grupos de escolares, podendo ser de uma faixa etária específica ou aberta a todos os níveis de ensino/idade. As atividades propostas devem girar em torno das atividades agrícolas e pecuárias desenvolvidas na propriedade, da natureza e da cultura locais e do saber-fazer dos agricultores. As visitas podem durar de algumas horas até dias, dependendo da organização proposta. Esse planejamento geralmente acontece em diálogo com a escola ou a entidade demandante da visita. Há especificações, especialmente no caso de crianças, sobre a quantidade de adultos que devem estar disponíveis na propriedade para assumir o atendimento e a responsabilidade pelo grupo. Cabe ressaltar que existem outros serviços ofertados, mas que não fo- ram objeto do estágio. Além disso, todas as propriedades visitadas proporcio- navam aos seus hóspedes a possibilidade de acompanhamento e de vivência nas atividades agrícolas e pecuárias desenvolvidas, sendo isso, aliás, à época (1997), um dos princípios e diferenciais da Accueil Paysan. Atualmente, há outra categoria de associado chamada “atores rurais”, que é composta por pessoas que não são agricultoras, mas que são comprometidas com o meio rural e com a agricultura familiar. Esse é um grande ponto de divergência no desenvolvimento recente da entidade Também há de se destacar a existência de um “Caderno de Normas” (Cahier des charges) para cada tipo de serviço oferecido. O associado, ao ade- rir à marca, deve comprometer-se em realizar as adequações necessárias e a permanecer de acordo com o que consta nesse documento. Dessa experiência, alguns pontos me chamaram a atenção e me inspi- raram na proposta metodológica da Acolhida na Colônia, os quais destaco: • Turismo a serviço dos agricultores e das agricultoras e da valori- zação de sua profissão e de seu espaço de vida; • Estruturas adaptadas e aproveitamento de construções ou de es- paços ociosos da propriedade; • Simplicidade, conforto e segurança, sempre atento àquilo que seria mínimo para garantir uma boa estadia; • Estabelecimento de regras que garantam autenticidade e respei- to às condições mínimas para recebimento de visitantes e, por consequência, a salvaguarda da marca coletiva Accueil Paysan; 41 • Vida associativa e construção de um movimento de luta e resis- tência contra a eliminação de pequenos agricultores. É importante destacar que o encontro com Eliane e Félix Genève, fundadores da Accueil Paysan, marcou essa etapa do meu estágio. Félix, falecido em maio de 2017, aos 84 anos, foi grande militante na defesa dos pequenos agricultores e do agroturismo. Ele e Eliane, depois que se casaram, foram trabalhar com pequenos produtores na África. Quando retornaram à França, resolveram retomar a pequena propriedade rural dos pais de Félix (oito hectares), nas montanhas, em Pommiers-la-Placette. Restauraram a casa de pedras que estava em ruínas e, no bojo das reflexões que motivaram a criação da Accueil Paysan, instalaram cinco quartos para o acolhimento de visitantes. Eliane contou que a vivência na África foi decisiva para o casal e que aprenderam muito naquela jornada, enfatizando o aspecto da solidarieda- de, do compartilhamento
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