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REPASSE DO PENSAMENTO CRITICO-HISTORICO NO BRASIL (SeCULO XIX) DJACIR MENEZES As primeiras manifestações de um pensamento crítico no Brasil em formação, já refletindo consciência dos destinos comuns, e os primeiros clarões de uma consciência nacional são indecisos - e a exata indicação cronológica seria con testável. Essa consciência não tem uma data fixada: vai, como um dia que nasce, começando por dilúculos vagos da luz na escuridade do céu até ser madrugada e claridade. Porque essa consciência resultará da integração dos núcleos povoadores que se interligam, enquanto se corroem as relações com a metrópole, ciosa em manter sua autoridade direta com as províncias. Mas ao se agravar a ciumada entre elas e o Governo português, este sentiu a necessidade de evitar as vinculações interpro vinciais: o Grão-Pará, o Maranhão, Pernambuco, Bahia, Rio, São Paulo se de viam entender com o Reino. São fases iniciais da consciência nacional. Seus ho mens representativos falam como brasileiros - e o sentimento da dissociação dos laços de dependência política é a base obscura em que germina o pensamento que irá se traduzir nos episódios históricos. E nesse ambiente que, paralelamente, se vai definindo o pensamento critico - com aqueles escritores que selecionei na seção dos "inconformistas", em antologia organizada há alguns anos.' Poderia mesmo dizer que a crítica dos cos tumes e das instituições constitui o fator mais forte na aceleração do processo de tomada de consciência do país, porque lhe dá o choque de alertar ante as amea ças de debilitação da solidariedade in fieri. Despertando a reação dos centros or gânicos do que regulam o crescimento político, espevita o sentido cívico de vi gilância, com os ensaios de ajustar as instituições ao desenvolvimento das forças sociais. A crítica só amedronta os incapazes de enfrentar o futuro - e têm a ilusão de sobreviver parando os ponteiros da história. O alvo da crítica social não podia deixar de ser o fundamento das instituições políticas. Historiar esse pensamento crítico, como nos coube, implica, vez por outra, to mar pé na correnteza dos fatos de onde emanaram as provocações que suscitam idéias na cabeça das elites dirigentes. O mundo histórico é por excelência o mundo das idéias, que exprimem as finalidades porque lutam os grupos e classes sociais: e é através dos homens representativos que essas idéias são claramente formuladas em objetivos politicos. Na primeira linha dessa ação, que vai despertando a consciência dos destinos comuns, estão as elites que exercem a prática governativa. A organização de nossas instituições é uma obra de arte política, realizada pelos construtores da nacio nalidade, a que não faltou o influxo inspirado nas ideologias que vinham de fora , Menezes, Djacir. O Brasil no pensamento brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro, 1972. R. Cio pol., Rio de Janeiro, 26(2):40-50, maio/ ago. 1983 - Montesquieu, Rousseau, Diderot, a Revolução Francesa, a Constituição norte americana, o federalismo, a maçonaria, a metafísica religiosa, o positivismo, o evolucionismo. Constituíram as componentes ativas do pensamento crítico que animou a pena dos escritores e panfletários e a oratória parlamentar, e se con centraram por fim, em certa altura de nossa história cultural, nas duas acade mias de direito - Recife e São Paulo. Correntes que assustariam e perturba riam o refúgio do velho direito quiritário da herança romântica, vinda na filosofia escolástica das ordenações, já nas transições dos meados do século XIX. O pensamento escrito entre nós não é, como alguns asseveraram, um reflexo superficial de concepções européias, simples doutrinas transplantadas, repetindo literaturas estranhas. As tendências de nosso crescimento, ferindo a sensibilidade política de um José Bonifácio, de um Bernardo Pereira de Vasconcelos, ou de um Justiniano José da Rocha, imprimem-lhes o sinete das realidades ambientes. A própria resonância das idéias depende da sua conexão com as exigências do meio, e por isso mesmo são instrumentos políticos de interpretação. Assim, ao lado da componente bacharelícia, que trazia a inspiração universalista da cul tura ocidental, havia a componente nativista, que se voltava ardorosamente para a terra e para o homem, reformulando aspirações a caminho da independência espiritual. "A justificação ética da representação política, que dá à minoria o direito de falar em nome do 'povo' - escrevi há alguns anos - está na convicção com que promovem o desenvolvimento nacional - e não no interesse de grupos." Essa liderança se define, politicamente, no alvorecer do Primeiro Reinado. Nin guém melhor que Manuel Bonfim viu o delinear dessa autonomia através das lu tas empenhadas. A perspectiva bragantina viciou a ótica dos historiadores na cionais, que acenderam sempre, diante das revoluções de 17 e 24, uma vela a Deus e outra ao Diabo. A definição do pensamento crítico no Brasil deveria começar por José Boni fácio. Poder-se-á colher numerosas citações que denunciam sempre o brasilei ro rebelde a injunções de fora. Nas Cartas Andradinas, notava (p. 42) que até o ano de 1825 a diplomacia do Brasil estava nas mãos dos portugueses. Tem o mesmo travo o conselho que, no ano seguinte, o Andrada dá ao Imperador: "Re concilie-se V. M. com a Nação." Seria erro supor que só no liberalismo se encontram representantes da crítica social e política, como pensa Manuel Bonfim, enxergando em todo conservador um obstáculo ao desenvolvimento nacional. Ouça-se, por exemplo, a desabusada afirmação de Bernardo Pereira de Vasconcelos, ao mandar às favas o Partido Liberal: "Fui liberal; então a liberdade era nova no país, estava nas aspirações de todos, mas não nas leis; o poder era tudo; fui liberal. Hoje, porém, é diverso o aspecto da sociedade; os princípios democráticos ganharam e muito comprometeram a sociedade, que então corria risco pelo poder, corre agora risco pela desorgani zação e pela anarquia. Como então quis, quero hoje servi-la, quero salvá-la; e por isso sou regressista. ''2 Foi revoltado com o espetáculo da irresponsabilidade e desleixo parlamen tar e público que Vasconcelos infletiu na direção da autoridade. O povo invadia a sala de sessões da Câmara, aparteava deputados, vaiava ou aplaudia. Acana- l Vasconcelos, Bernardo Pereira de. Carta aos eleitores da Província de Minas Gerais. p. XXIII. Pensamento crítico-hist6rico 41 lhava-se o Poder Legislativo em nome da liberdade democrática - "quase ha via de todo desaparecido a distinção entre a galeria e os legisladores", diz ele. Após o sistema cultural que se apoiava na estrutura colonial do ensino jesuí tico - escreveu Fernando de Azevedo - ensaiávamos os primeiros passos noutro sistema, que prenunciava a idéia de preparação profissional: formação de milita res, advogados, médicos e engenheiros.3 As profissões liberais exigiam novas bases para o ensino, que ia-se livrando da ortodoxia religiosa e precisava reno var aquele velho humanismo latino alimentado de gramática, retórica e filo sofia escolástica: "A via intelectual, no norte, depois de um período de isolamento e segregação, readquire o antigo prestígio, com a fundação do curso jurídico em Olinda, trans ferido mais tarde, em 1854, para Recife, enquanto se inaugura em São Paulo um dos mais vivos focos de cultura intelectual com a primeira escola de direito ( ... ). E por eles de fato que penetra no Brasil a influência dos filósofos ingleses e fran ceses, e, mais tarde, no Recife, a dos alemães, com Tobias Barreto."4 Não se deve esquecer, na avaliação da crítica movida contra as instituições exis tentes, o papel que desempenhou a maçonaria, grande estimuladora do pensa mento revolucionário em face das resistências obscurantistas que a Santa Aliança instigava nas primeiras décadas do século XIX. E a primeira figura com que de paramos é a de Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846), professor de filosofia racional e moral no Colégio dasArtes em Coimbra, oficial da secretaria dos estrangeiros em Lisboa durante sete anos, encarregado de negócios em Ber lim, onde assistiu conferências de Fichte e Schelling, e que veio lecionar filosofia no Rio, redigindo compêndios em francês. Viera com D. João VI. E por se in clinar para certo iluminismo eclético, a vigilância escolástica farejava nele odores jacobinos.5 "Com Silvestre Pinheiro - escreve Oliveira Lima - era a pura bur guesia que se via chamada aos conselhos da Coroa." Antônio Paim dá-nos uma rápida e persuasiva síntese de suas Prelações filosóficas sobre a teoria do dis curso e da linguagem, a estética, a diceósina e a cosmologia.6 Politicamente, nas "Cartas sobre a Revolução do Brasil"7 o manso jacobinismo de Silvestre Pinheiro encontra precavida simbiose com o absolutismo real, uma combinação que se ajustaria à época que se seguiu à revolução de 1817: a crí tica das armas - como diria um famigerado socialista anos depois - tomaria o lugar da crítica das idéias. Era o momento do repouso eclético - o momento de Victor Cousin e Royer Collard. Mas esse ecletismo iria insuflar o espírito communard, que, nas páginas do Progresso, agitaria os rebeldes da Praieira: "Não seria possível a ausência do es pírito quarante-huitard, da mentalidade 48, na velha província pernambucana dos meados do século passado. Se a influência do pensamento francês é patente na nossa vida política e social, se ela se apresenta atuante em vários episódios de nossa história como na obscura e pouco estudada conspiração dos Suassunas de 1801, onde se vislumbra, ao lado da participação das idéias de 89, a alme jada ajuda de Napoleão Bonaparte, então primeiro Cônsul, a espalhar republique tas pela Europa." Assim considera o autor esse influxo liberal no recanto do Nordeste. 3 Azevedo, Fernando de. A Cultura brasileira. p. 15 1 Id. ibid. p. 152. 5 Paim, Antônio. História das idéias filosóficas. p. 53. 6 Id. ibid. p. 54-74. Revista do Instituto Histórico, t. 51 parte 1, p. 299-377, 1888. 42 R.C.P. 2/83 Diga-se, entretanto, a verdade: tais idéias, contaminando a mente de alguns homens divorciados da realidade brasileira, desligá-los-iam da realidade: seriam sonâmbulos que, sonhando transplantar sistemas estranhos ao nosso meio, vol viam em elementos de perturbações e desintegração. Utopistas - porque não tinham o material para construir o edifício político. Com os olhos nesses exem plos adverte duramente Alberto Rangel: "e tempo de arrancar a auréola a esses manipanços da sedição, que um entu siasmo errado e caracteristicamente sul-americano apôs nos quatro cantos do país como expressão idolátrica de seus sentimentos de descentralização, altivez e li berdade ( ... ). Não o esqueçamos, 'farrapos' e 'praieiros' são todos de Sul a Norte os grandes pecadores dos distúrbios ensangüentados em que se maquinava o despedaçamento da Pátria."8 Recheado de ecletismo, Antônio Pedro de Figueiredo (1814-1859), ia catan do citações filosóficas que lhe permitissem defender os "proletários que empres tam, mediante paga, o seu trabalho, isto é, a sua atividade e vontade aos pro prietários" e "os proprietários que emprestam a juro a matéria aos proletários do trabalho". E comentava: "Assim, pois, tudo se reduz a esta alternativa: alugar o trabalho ou alugar a matéria do trabalho: mas que diferença entre esses dois modos de locação! Aquele que aluga o seu trabalho começa a sua escravidão; aquele que aluga a matéria do trabalho constitui a sua liberdade. ''9 A maçonaria, entretanto, não foi apenas o refúgio do pensamento dissidente, maquinando contra as instituições bragantinas, como malsinou Gustavo Barroso. Nela se elaborou o movimento de emancipação política e se forjaram as linhas mestras do novo regime. Quem o diz é Oliveira Lima: "A maçonaria foi incon testavelmente uma escola de disciplina e de civismo e foi um laço de união entre esforços dispersos e dispersivos. A sua função foi essencialmente oportuna. Sem ela não teria o trono podido desempenhar o seu papel histórico, fundindo uma vez mais aspirações nacionais sob a sua ação desinteressada. "Ia A independência conjugaria curiosamente, como disse o historiador, os conciliábulos dos mostei ros e as lojas maçônicas. li Por toda a Regência e Segundo Reinado, o pensamento crítico se manifes tou com mais segurança a amplitude através da literatura política e filosófica. Difícil é assinalar precisamente as lindes entre tais modalidades do espírito crí tico, como vimos tentando até aqui. Na segunda metade do século, a análise social e política, que se encontra nalgumas grandes peças da oratória parlamen tar, exprime o nível das idéias debatidas. A questão religiosa, o abolicionismo, o federalismo, o republicanismo, constituem o tríptico do pensamento político, com os fundamentos e aspectos sociais, que aquelas idéias implicam inevitavel mente. Bastaria lembrar os nomes de Saldanha Marinho, Rui (ainda em vésperas do prefácio do Papa e o Concílio), Lafaiete, Martinho Campos, digladiando-se sobre o casamento civil, a laicisação dos cemitérios, a separação da Igreja do Estado, todas as grandes questões do tempo, nas páginas dos anais do Poder Le gislativo, para que se possa avaliar o pensamento crítico em plena fermentação. 12 No livro, aquela crítica parece mais fria e mais refletida, perde o calor do cho que entre as opiniões em contacto mais direto, no fogo do plenário, onde se cru- 8 Rangel, A. Textos e pretextos. p. 44-5. 9 Figueiredo, Antônio Pedro de. In: O Progresso, p. 870-1. lO Oliveira Lima, O Movimento de Independência. p. 80. u Id. ibid. p. 145. 12 Id. ibid. Pensamento crítico-histórico 43 zam apartes e as galerias por vezes em irrupção são advertidas pelas campainhas regimentais da presidência. Quando todos apontam a monarquia como a rea ção conservadora, a estabilidade eterna de privilégios, responde Saldanha Mari nho com esta tirada: "É verdade que a monarquia no Brasil tem sido, desde a sua origem, revolucio nária. Quem estiver ainda lembrado dos 9 de janeiro, 3 de junho, 7 de setembro de 1822, 7 de abril de 1831 e 23 de julho de 1840, há de concordar comigo que a monarquia no Brasil é revolucionária."13 A seguir, ponderava que esse revolucio narismo monárquico se manifestava apenas no que condizia com os interesses di násticos "revoluções em proveito seu, sempre boas no seu conceito; as detestáveis serão as que forem em proveito real do povo". O pensamento crítico aparece em plena efervescência quando, na segunda ver tente do século XIX, publicistas e políticos se apercebem de que o "povo", a pedra angular da democracia, era uma figura de retórica parlamentar. Com provam-no as páginas veementes que se escreveram sobre a farsa eleitoral do Segundo Reinado ( ... ). Recordamos aqui essa reflexão exata do Prof. Eugênio Gudin: tínhamos então eleições falsas e representação verdadeira; hoje temos representação falsa e eleições verdadeiras. João Francisco Lisboa, descrevendo os episódios eleitorais no Maranhão, relatava de São Luís o que se passava em todo o Brasil - a cidade em pé de guerra no dia eleitoral; as rixas rebentando em cada local onde se encontravam as brigadas de choques das facções; os in sultos na imprensa; e "as brigas, rompimentos e inimizades se repetiam tão fre qüentemente e as coisas chegaram por fim a termos tais que metade da cidade não tirava o chapéu a outra metade" - refere o cronista de São Luís de Ma ranhão. 14 Depois de descrever os mesmos abusos, Belisário de Souza destaca o grande personagem das pelejas eleitorais - o capanga: "O capanga é o indi víduo que se lança nas lutas eleitorais em busca do salário e muito mais ainda por gosto, por deleite próprio. Uma facção que traz arregimentados e assoldada dos os principais capangas do lugar, tem ganho imenso terreno. Se ela é co medida, o esquadrão tem ordem restrita de se apresentar desarmado, de não ofender gravemente os adversários (salvo caso extremo que não se pode prever),sob pena de lhe ser recusada a paga. Os capangas são o ponto de apoio dos ca bos da eleição; sustentam suas opiniões, abordoam os adversários, intimidam nos, dão coragem, força e energia aos partidários. Como pode o homem pací fico apresentar-se perante uma mesa eleitoral para falar em nome da lei, cercado de dezenas de caras patibulares, que, a qualquer expressão sua, vociferam e ameaçam?" O depoimento é de um deputado que viveu aquele instante. A raridade da publicação de 1872, O Sistema eleitoral no Brasil, justifica a longura da transcri ção no texto. IS Esse "povo" heteróclito e fora do quadro político é bem caracterizado nas Instituições políticas do Brasil, de Oliveira Viana. Mas a ausência da principal peça política no funcionamento das instituições só apareceu claramente quando a crítica social abriu os olhos para nossas realidades demográficas. Tobias Bar- B Sessão de 15 de julho de 1879. 14 Lisboa, João Francisco. Obras. v. 1, p. 314 e segs. Cf. J. M. Pereira da Silva, t. 1, p. 27, 76, 126, 173. 15 Souza, Belisário Soares de. O Sistema eleitoral no Brasil. p. 24. Cf. Introdução a Rocha Lima, Crítica e literatura, p. 11 e segs. 44 R.C.P. 2/83 reto observara que "este povo, a cuja proteção e a fim de obter desculpas, cos tuma-se entregar sandices de todo gênero, é um público ideal. Dele não se re cebem aplausos nem censuras, pela simples razão de sua inexistência" .16 Como organizar partidos na base dessa massa amorfa e ignorante? O que se organizava não passava de "cooperativas de empregos ou seguros contra a mi séria", expressão dos grandes clãs aglutinados do nosso patriciado rural, como anotou Oliveira Viana. Ao que acrescenta Gilberto Amado - "Sem os partidos, sem esses instrumentos imperfeitíssimos, incompletíssimos, atacados por uns (os teóricos da força) aqui e ali, mas prevalentes e sobreviventes em todo o mundo, qualquer idéia de eleição e, sobretudo, de representação terá no Brasil um cará ter mentiroso, indigno, pulha, será um logro, uma farsa, igual à em que temos vivido. "!7 E por esse tempo que "um bando de idéias novas agita então o Brasil e lhe dá novas diretrizes" - no dizer de Sílvio Romero. O surto econômico marca o meridiano. As letras francesas aceleram a reação contra e metafísica e a teologia, à sombra das quais as gerações repetiam sonolentamente os ensinamentos tradicionais. Coumot, Vacherot, Taine Renan, o darwinismo e o positivismo entram em tumul tuosa beligerância contra as variantes do espiritualismo!8 - e os grandes que re volucionam a rotina são as duas Faculdades de Direito, de onde repercutem ecos na imprensa e no parlamento. Escreve Sílvio Romero: "Até 1868, o catolicismo reinante não tinha sofrido nestas plagas o mais leve abalo; a filosofia espiritualista, católica e eclética, a mais insignificante oposição; a autoridade das instituições monárquicas, o menor ataque sério por qualquer parte do povo; a instituição servil e os direitos tradicionais do feudalismo prá tico dos grandes proprietários, a mais indireta opugnação; o romantismo, com seus doces, enganosos e encantadores cismares, a mais apagada desavença rea tora."!9 Ouvira-se, naquele ano, a voz de Timandro (Francisco de Sales Torres Ho mem) no Libelo do Povo, redigido no estilo usual e grandíloco, invocando exem plos históricos e clássicos, estranhando que não funcionassem nossas instituições no diapasão do liberalismo europeu. "A revolução da independência, que devolveu-nos à posse de nós mesmos, fir mava como dogma fundamental da nova ordem social o grande princípio da so berania do povo. No interior como no exterior, esse princípio, que é a pedra angular dos estados livres, tonava-nos os árbitros únicos, supremos e absolutos dos nossos destinos. Só do povo; só de suas luzes e espontânea deliberação pen dia a escolha da organização política, que desde então devia regê-lo; só a ele, e a mais ninguém, cabia traçar e erguer o novo edifício, em que devia abrigar se a nascente nacionalidade."20 Aclamamos o rei bragantino - argumenta Ti mandro - como poderíamos ter aclamado o filho do Grão-Turco: o rei era um artefacto produzido por nossas mãos. Alencar, com todo seu conservadorismo e coragem de se confessar escravo crata, formou na corrente do pensamento crítico. Nas Cartas de Erasmo, escre veu: "Pleiteio, contra essa improvisada aristocracia da imoralidade, o livre exer- 16 Barreto, T. Vários escritos. p. 110. li Id. ibid. If Bevilacqua, Clóvis. Juristas filósofos. 19 Romero, Sílvio. Prefácio a Vários escritos. Ed. Estado do Sergipe. p. 26. :!! Timandro. Libelo do Povo, p. 30-1. Pensamento crítico-histórico 45 cício dos direitos do povo e dos direitos da realeza, que são as molas do siste ma representativo. :E: natural pois que simultaneamente me denunciem, a vós, Se nhor, como anarquisador; à plebe, como absolutista."21 Essa "aristocracia" era "uma gente ambígua" que "sempre se interpõe entre o trono e a nação, que vive ao mesmo tempo das graças do poder e da tolerância do povo". Os liberais invocam o "povo" como pura ficção constitucional. Na realidade eleitoral, o povo era inteiramente outro: e a voz de Timandro se ouvia no mes mo ano em que o partido liberal, com maioria na Câmara, perdia incompreensivel mente o poder, que passava aos conservadores.22 A crítica do poder pessoal, na opinião de Aurelino Leal, era apenas "uma hábil exploração política". E nenhum partido reconhecia a verdade: que se buscava organizar uma democracia coroa da sem povo politicamente consciente do regime. A ilusão do liberalismo polí tico se prolongaria república adentro. As análises jurídicas do meio nacional não davam medida exata das estruturas sociais e econômicas, como bem se pode inferir da obra de Tavares Bastos. Todo o crescimento das forças produtivas, no quadro econômico e mográfico, se esquematizava, aos olhos do autor das Cartas do solitário e da Província, ao binômio da descentralização e descentrali zação. Desatar as províncias, que o ato adicional pretendia libertar do centralismo do Império - eis o objetivo máximo, que os "absolutistas do senado" recusavam. Dizia: "A veemência com que os conservadores ainda acometem a reforma de 1834 é uma profanação. Não atendem que o jogo das instituições representati vas dadas pelo ato adicional às províncias não podia desde logo funcionar re gularmente."23 Era uma medíocre interpretação. Diante da pobreza da análise de Tavares Bastos, considerava criticamente To bias Barreto: "Os brasileiros não somos pensadores, nem no amplo, nem no estreito sen tido da palavra. Não sabemos sequer aproveitar-nos largamente dos produtos alheios. Falta-nos sobremodo aquele talento, aquela força de assimilação que muitas vezes substitui com vantagem o próprio gênio criador. Verdade é que acertamos, a cada hora, o nosso relógio pela pêndula francesa; mas seja como for, ou dureza ou desarranjo no mecanismo intelectual, não há dúvida de que temos um andar bem vagaroso."24 O embasbacamento para o parlamentarismo inglês se dilataria de forma eru dita e ornamental na pregação de Rui. :E: essa atitude que Tobias denuncia e verbera na Província. Falta-lhe a intuição sociológica, que permitiria elucidar o sentido brasileiro do problema - e que exigiria antes de tudo o que é "povo brasileiro". Descobrir sociologicamente esse povo será a tarefa iniciada por Al berto Torres, por Oliveira Viana, pelos publicistas que entram pelo século XX e vêm até agora. Nos últimos dias da monarquia, o pensamento crítico se concentra quase todo na pregação positivista. :E: nos folhetos do Apostolado que vamos encontrar a análise inspirada nas idéias de Com te, provocando essas palavras iniciais de Síl vio Romero: "O positivismo é uma cousa perigosa e deve ser combatido com seriedade." E desembainhando o chanfalho, sai à liça para dar cabo do novo culto no livro Evolucionismo e positivismo no Brasil, cinco anos depois de pro clamado o novo regime. Para Sílvio, o positivismo é"na essência um sistema 21 Alencar. Cartas de Erasmo. p. 33. 22 Leal, Aurelino. Do Ato Adicional à Maioridade. Rio de Janeiro, 1915. p. 37. 23 Bastos, T. A Província. p. 84. 24 Barreto, T. V árias escritos. p. 106. 46 R.C.P. 2/83 aristocrático em suas principais doutrinas políticas, conferindo o governo ao pa triciado, selecionado num triunvirato de banqueiros, de plutocratas", repetindo a técnica plagiada da Igreja Católica no que toca à solução do problema social. Entre nós é o "pretencioso e atrasado Teixeira Mendes" que se incumbe de propagar a "nefasta e compressora doutrina positivista, cheia de erros, em luta aberta com a ciência progressiva" - e conclama ao estudo do spencerismo. A leitura, porém, dos fascículos editados por Teixeira Mendes dá-nos uma lição bem curiosa a respeito das instituições docentes nos começos da República. A série de artigos de Miguel Lemos, publicados na Gazeta de Notícias em 1882 e reunidos em opúsculos, focaliza o debate à luz dos princípios positivis tas, com a elevação doutrinária que punham sempre em todas as questões. A análise discernia claramente o papel de chocadeira que o parlamentarismo, favo recendo a confusão, desempenhava na eclosão dos movimentos revolucionários. Declarava corajosamente que o "parlamentarismo só tem sido até hoje a dita dura das mediocridades intrigantes: instrumento de todas as vilezas nas mãos de ministros sem crepúsculos, obstáculos aos interesses públicos quando o país tem, para chefes visionários honestos, que tomam a sério as ficções revolucio nárias". O idealismo cientificista de Comte reagiu contra a ideologia que punha o cen tro das decisões sociais sob a influência numérica das assembléias políticas agen ciadas pela técnica do sufrágio universal. Tentava abrir caminho entre dois pe rigos, o da demagogia e o da oligarquia. Comte encontraria, na propaganda de suas idéias, a resistência das universidades: depois de sua ação renovadora elas se tomam centro de conservação e estabilidade espiritual, "compostas especialmen te de metafísicos e legistas; e o poder temporal, concedendo-Ihes privilégios, ser via espontaneamente ao progresso, preparando a arma de guerra contra o pa pado e contra o feudalismo". Entre outras argüições, assinala ainda que as universidades, "depois de terem sido os focos de liberdade espiritual, quando o catolicismo tomou-se opressor, tomaram-se hoje, por sua vez, instituições decadentes e um dos maiores obstá culos a toda livre tentativa de reorganização espiritual". Se já havia - reflete Miguel Lemos - escolas superiores suficientes para prover as necessidades pro fissionais do país, a criação da universidade só viria "dar maior intensidade às deploráveis pretensões pedantocráticas da nossa burguesia, cujos filhos abando nam as demais profissões, igualmente úteis e honrosas, para só preocupar-se com a aquisição de um diploma qualquer. Para que inverter capitais "contra os inte resses do país e em proveito dos parasitas científicos?" Em vez disso, libertar e tratar da educação dos libertos - aconselha o apóstolo positivista. E, diante da simpatia do Imperador pela idéia, escreve, desconfiado: "Estamos ameaçados de ver surgir em nossa Pátria semelhante instituição." Tomadas essas afirmações desligadas do seu contexto, como tanto se tem feito, disvirtuando-se a citação, calunia-se a pregação positivista. Cumpre inseri-la nas premissas daquele nobre pensamento para que se possa aquilatar-lhe o alcance filosófico e social. Vale a pena ouvir, nas próprias palavras de Miguel Lemos, a crítica contra a universidade de seu tempo, segundo a imaginava; até parece de um esquerdista de escada abaixo, quando profliga o nepotismo das classes superiores: "O nível do ensino secundário e superior tende, portanto, a baixar para afa zer-se à incapacidade do parasitismo burguês, que tudo invade, lugares de aluno e professorado; inventam-se cadeiras novas para os recém-diplomados e pretex tam-se progresso e as necessidades do ensino para justificá-las." f: nessa toada Pensamento crítico-hist6rico 47 a cavilação do "Parlamentarismo, que só tem sido até hoje a ditadura das me diocridades intrigantes; instrumento de todas as vilezas na mão de ministros sem escrúpulos; obstáculos aos interesses públicos quando o país tem, para chefes, visionários honestos, que tomavam a sério as ficções revolucionárias". Naquele tempo, argüiam os positivistas, sempre obedientes ao ensino de Comte, que os privilégios dos diplomados multiplicavam o "funcionalismo pedantocrá tico". Para que acelerar sua proliferação? Então Miguel Lemos concluiu, diri gindo-se à Monarquia, nestes termos veementes sobre a fundação da universidade, que cria ser um risco iminente: "Só lucrarão os pedantocratas, que vão receber os vencimentos e as honras; mas esses mesmos lucrarão menos do que supõem. Porque o seu domínio não há de ser eterno e seus filhos terão de sofrer com as dificuldades sociais que eles tiveram acumulado e com o desprezo que há de selar-lhes as memórias." Tais ponderações nos mostram como falham as previsões sociais de um homem ilustre, ao trancar-se nas paredes de um credo que, inevitavelmente, lhe altera as possibilidades de julgar com exatidão. Que predisse aquele grande espírito? Que a universidade imperial se reduziria a "um viveiro de parasitas imundos mantidos criminosamente pelos cofres públicos".25 Evidentemente, o apóstolo encerrava o folheto já furibundo com a Monar quia: estávamos a um lustro da República e toda a juventude militar ouvia, aquecida, as prédicas de Benjamim Constant, que o monarca recusara nomear professor após sete concursos em que fora honrosamente classificado.26 A tendência para olvidar e amesquinhar o papel, que o evolucionismo desem penhou, acentuou-se de modo bem preciso. A título de exemplo, citarei apenas o compêndio mais vulgarizado sobre história da filosofia no Brasil, o do padre Leonel Franca, jesuíta extremamente polêmico e estudioso, que terçara armas com autores protestantes a propósito da crença luterana em face do catolicismo e da ciência, e arrasara, no fogo de sua dialética, arraiais espíritas. Como se deveria esperar do ilustre sacerdote, as obras de Sílvio Romero e Tobias Barreto são apresentadas como artefatos medíocres, onde abundam erros e falsidades. Questões sobre a vida psíquica, sobre atividade racional, sobre o estudo científico da sociedade escapam à inteligência daqueles críticos: "Todas essas questões e muitas outras - diz Franca - que o monismo não resolve e nem parece sequer suspeitar acodem espontaneamente a qualquer espírito medianamente pers picaz. Tobias não as percebeu." E a miopia de que padecem os heréticos e seus assemelhados, não há dúvida. O jesuíta, quando nega, nega peremptoriamente: "Toda sua obra não encerra uma investigação de valor, profunda, que lhe seja própria." Tobias reivindica algo como dele? Pois se dele é, trata-se de "bagatelas tão mesquinhas que a pretensão chega a ser ridícula ou são tão antigas as inculcadas novidades que bem mostram quão falhos e incompletos eram os conhecimentos filosóficos do autor". Assim, a penadas justiceiras, esfacela o inimigo. Mas perdoa-lhe, porque "Tobias acabou bem, destruiu moralmente todo o seu passado intelectual" - isto é, converteu-se in articulo mortis. A última hora, desertara suas bandeiras. Con vinha trombetear o exemplo. Essa conversão, porém, foi explicada pela própria filha do convertido, em carta ao Prof. Hermes de Lima: em seus últimos instan- 25 Teixeira Mendes. A Universidade. Rio de Janeiro, Apostolado Positivista do Brasil, 1903. n.O 6. l6 Menezes, Djacir. Idéias contra ideologia. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1971. p. 29-31. 48 R.C.P. 2/83 tes, contemporizou aceitando a presença de um sacerdote amigo da família. "A conversão de Tobias não teria passado assim de ato puramente sentimental" - pondera o biógrafo. Deixava de pé o exemplo de resistência do lutador.Escla receu-se o caso - mas o compêndio continua exibindo a conversão, edições sucessivas a fio, numa serena indiferença à verdade. Consultei a 15/l. do ano de 1957 e já outras saíram. Não convém que os jovens estudantes saibam da lucidez com que sucumbi o tumultuoso escritor. Isso incentivaria os recalcitrantes. O velho eclesiástico desceu com a mesma rijeza no lombo de Sílvio Romero, que lanhou tantas reputações improvisadas neste país. Não tomo o encargo de defendê-lo do azorrague jesuítico. Parece que a dissidência começa com o próprio filho, de formação tomista, reconhecendo cordatamente, até certo ponto, a repri menda doutrinária que lhe passaram ao pai insigne. O litígio é lá dele - e me rece respeito. Despedimo-nos do século XIX com os olhos voltados para o maior centro do pensamento crítico, que foi a escola do Recife. Diria melhor, que foi o Nor deste: porque o movimento das idéias não se concentrou apenas na Faculdade de Direito daquela província. Em Fortaleza, no jornal maçônico Fraternidade, uma elite de estudiosos, lidos em Vacherot, Renan, Quinet, Strauss, Darwin, Com te, Bournouf, freqüentava as mesmas fontes onde se abeberavam os arautos recifenses. Thomas Pompeu Filho, João Lopes, Capistrano (que ainda estava lá), Xilderico de Faria, Araripe Júnior, João Brígido e esse supreendente Rocha Lima, morto em 1877 aos 24 anos - estavam em dia com a literatura revolu cionária e liberal que vinha da França e que se tomara o veículo da renovação cultural dos fins do século. Nesse repassar de idéias no curso da centúria anterior - e aqui volto a uma afirmativa preliminar - nem sempre foi possível permanecer só no plano das idéias: tivemos para melhor compreender-lhes a prospecção e força, de perquirir o contexto social onde foram pensadas e litigadas. Porque - e já o escrevemos noutro instante - é o con-vívio, que vai desboto ar e amadurecer, quer no indi víduo, quer na espécie, o prodígio que se denomina espírito humano. 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