Prévia do material em texto
1 LÓGICA, LÓGICA TRANSCENDENTAL, LÓGICA ESPECULATIVA Arthur Nadú Rangel1 “A oposição produz a concórdia. Da discórdia surge a mais bela harmonia”. - Heráclito APRESENTAÇÃO O presente texto tem o objetivo de trazer em linhas gerais a Lógica kantiana, através do estudo da Lógica Geral e da Lógica Transcendental, tal estudo destas lógicas tem o objetivo de, em linhas gerais, nos capacitar para o entendimento da construção hegeliana da Lógica Especulativa. A construção hegeliana é, como iremos ver, a continuação espiritual da Lógica kantiana, avançando para a Lógica do Absoluto. Devemos ter em mente que Kant não tinha pretensão de avançar sobre um absoluto, desta forma a sua Lógica tratou de pensar apenas o pensar como a forma que o homem entende o mundo e entender este pensar através das categorias puras do conhecimento. Já Hegel busca construir uma lógica além destas categorias, com o objetivo de estudar o real em sua totalidade, buscando assim a unidade dentro de uma 1 Mestre em Direito na UFMG, área de concentração 4 (Estado, Razão e História) no subtema - Estudos Estratégicos. Doutorando em teoria da Justiça na UFMG sob orientação do Prof. Dr. Joaquim Carlos Salgado. Especializado em ciências criminais pela faculdade Arnaldo, participante dos Seminários Hegelianos da Faculdade de Direito da UFMG; 2 unidade metafisica. Desta maneira, é de fundamental importância compreender Kant para que possamos compreender Hegel. LÓGICA KANTIANA A filosofia de Kant, como dito em Salgado, é uma filosofia baseada na interiorização, de maneira que o pensar começa no interior do sujeito e para o interior se encaminha, de maneira que não é possível conhecer os objetos externos, mas apenas os fenômenos destes, que são o que se dá na nossa sensibilidade2. Após a apreensão destes conceitos básicos podemos seguir para o que é, de fato, o conhecer em Kant. Para ele, o conhecer só é possível graças à duas faculdades do homem: a nossa capacidade de receber representações, que ele chama de receptividade de impressões, e a nossa capacidade de conhecer um objeto por essas representações. Essas representações se tornam em intuições, e o que conhecemos a partir delas se torna em conceito; as faculdades que geram esses “produtos” são, respectivamente, a sensibilidade e o entendimento. Sendo a primeira a faculdade de receber representações, Kant descreve a segunda como a nossa capacidade de produzir representações, ou “espontaneidade do conhecimento”, que entendemos como a nossa capacidade de criar conhecimento, que se torna em si uma representação por não se tratar do noumenon, mas uma representação gerada no entendimento.3 Destacamos aqui, que apesar de ser tentador pôr o entendimento como uma faculdade superior à sensibilidade, por ter mais contato com a nossa ideia básica do que é o pensar, em Kant elas estão no mesmo nível, como faculdades equivalentes, ambas internas ao nosso pensar, dado que não podemos, de fato, conhecer o objeto 2 SALGADO, Joaquim Carlos. A ideia de justiça em Kant: Sua fundamentação na Liberdade e na igualdade. Belo Horizonte: Del Rey, 2012. Pág. 9; 3 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução J. Rodrigues de Merege. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017, Pág. 63; 3 externo ao sujeito. Isso se dá porque, em Kant, elas precisarão se complementar para gerar o conhecimento sensível, necessariamente derivado da nossa sensibilidade. Como Kant diz, “Pode chamar-se à sensação, a matéria do conhecimento sensível4” e, além disso: “Pensamentos sem conteúdo são vazios, intuições sem certos conceitos, são cegos5”, logo é apenas no resultado da união das duas faculdades que se resulta conhecimento. Kant inclui a informação, importante para o desenvolvimento da lógica, de que é possível ter intuições puras e conceitos puros, sendo chamados puros por não terem em si conteúdo. A intuição pura se trata da nossa capacidade pura de perceber um objeto e o conceito puro contém a forma geral do pensamento de um objeto. Ambos são dados à priori, ao contrário das intuições e conceitos com conteúdo sensível, que são dados a posteriori, ou seja, as formas existentes à priori são aplicadas posteriormente aos objetos sensíveis, gerando conhecimento sensível.6 Estas faculdades em Kant geram a Estética, ciência da sensibilidade, e a Lógica, ciência do entendimento, que estudam as faculdades em profundidade. Neste trabalho focaremos na Lógica. Em Aristóteles Antes de tocar neste assunto, achamos preferível tocar da Lógica encontrada em Aristóteles, que contribuiu como base ao pensamento de Kant. Como é apenas uma menção, focamos na obra “Tópicos”, que tínhamos em mãos facilmente, de Aristóteles, que é, de acordo com o mesmo, focado na ideia de “raciocínio dialético” e que tinha por intenção “encontrar um método de investigação, graças ao qual possamos raciocinar [...]7”. 4 Idem; 5 Ibidem, Pág. 64; 6 Ibidem, Pág. 63; 7 ARISTÓTELES. Tópicos in Os Pensadores. Livro IV. São Paulo: Abril Cultural, 1973. Pág. 11; 4 Aristóteles cria um sistema de raciocínio, sua lógica, baseado em deduções, cuja validade depende da validade do conteúdo das proposições. Ele resume o raciocínio desta maneira: “Ora, o raciocínio é um argumento em que, estabelecidas certas coisas, outras coisas diferentes se deduzem necessariamente das primeiras”, e estabelece este conceito o dividindo de maneira que o raciocínio dialético aparenta ser, ao menos nesse contexto, algo com viés e fins sociais. Ele estabelece que, quando as premissas do raciocínio são “verdadeiras e primeiras”, o raciocínio é chamado de “demonstração”, sendo que são “verdadeiras e primeiras” as premissas que acreditamos que o são independentemente de qualquer outra coisa além delas mesmas. O “raciocínio dialético” o é quando possui premissas aceitas, admitidas por todos ou pela maioria, ou pelos filósofos (“todos, ou a maioria, ou os mais notáveis e eminentes). Em Aristóteles, é possível sentir a impressão de que, ainda que não se aplique a tudo, não é possível realmente saber, ou declarar verdadeiros, alguns raciocínios formados por sua lógica, semelhante à forma que Kant vem a pensar o pensar em relação ao objeto. É dito que toda proposição pode ser transformada em um problema8 ao acrescentar-se ao raciocínio a possibilidade da sua negação. Achamos importante ainda acrescentar que nesta obra, Aristóteles inicialmente fala de quatro elementos geradores de proposições e de problemas (definição, propriedade, gênero e acidente), que mais tarde são incluídos em classes de predicados, que em Aristóteles são dadas como dez: Essência, Quantidade, Qualidade, Relação, Lugar, Tempo, Posição, Estado, Ação, Paixão.9 Dadas essas informações, achamos adequado prosseguir para a Lógica de Kant. 8 Ibidem, Pág. 13; 9 Ibidem, Pág. 17; 5 Kant divide inicialmente a Lógica em dois tipos, a aplicável em contextos particulares e a que trata diretamente das regras gerais do pensar, independente do objeto do pensar.10 A Lógica particular “estabelece as regras do uso do entendimento em condições subjetivas, empíricas, psicológicas11”, sendo mais aplicável às ciências particulares e não filosóficas. Já a Lógica geral pode ser pura ou aplicada. A pura, como outras noções puras, abstrai de conteúdo empírico, incluindo “todos as causas verdadeiras ou supostas” de que se derivam conhecimentos que precisam necessariamente da experiência. Ela serve para buscar princípios a priori e “é um cânon do entendimento e da razão” em relação a sua parte formal, se tratando de uma espécie de forma a ser aplicada aos objetos do pensar.12 Kant ainda diz que é preciso separar completamente a Lógica Geral aplicada da Lógica Geral pura, pois a primeira se ocupa de utilizar as regras do entendimento sob condições empíricas e subjetivas,ou seja, possui princípios empíricos ainda que seja geral em relação a seu objeto, assim Kant a exclui do cânon do entendimento em geral e a define como um “purificador do entendimento comum”. As condições desta Lógica não são dadas a priori e podem ser favoráveis ou opostas a ela. Apenas a Lógica Geral pura é considerada ciência. Para a Lógica Geral pura, Kant estabelece duas regras para sua compreensão: como lógica geral, ela só se ocupa da forma do pensar, abstraindo o conhecimento intelectual e seus objetos; como lógica pura, não deve ter princípios empíricos e tudo nela deve ser dado a priori. 13 Dados esses conceitos, a partir da comparação com a Estética transcendental, que dá o fato de que tanto a intuição empírica quanto a intuição pura existem, seria 10 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução J. Rodrigues de Merege. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017, Pág. 64; 11 SALGADO, Joaquim Carlos. A ideia de justiça em Kant: Sua fundamentação na Liberdade e na igualdade. Belo Horizonte: Del Rey, 2012. Pág. 29; 12 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução J. Rodrigues de Merege. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017, Pág. 64 - 65; 13 Idem; 6 possível encontrar a diferença entre o pensar puro e o pensar empírico de um objeto. A partir disso, ele dá uma Lógica, que também é ciência, que não se abstém de conteúdo e ainda mais: “trata do conteúdo do conhecimento14”. A lógica geral não se preocupa com a origem do nosso conhecimento, apenas com a forma do pensamento: “Pouco lhe interessa que essas representações tenham sua origem a priori em nós outros ou que tenham sido dadas empiricamente; unicamente se ocupa da forma que o entendimento pode dar-lhes, quaisquer que sejam as suas fontes de proveniência”15. Em Salgado, “A Lógica Transcendental é a ciência que determina a origem, a extensão e o valor dos conhecimentos a priori”. A Lógica transcendental pensa também sobre a origem do nosso conhecimento, mas aqui é importante esclarecer que “transcendental” não significa “a priori”. O transcendental é o conhecimento, não do a priori diretamente, mas da possibilidade do objeto a priori, ou pelo que sabemos ser alguma representação aplicada a priori, “transcendental quer dizer possibilidade, ou uso a priori do conhecimento”.16 A distinção da Lógica transcendental não entra no mesmo patamar das divergências entre Lógica pura e Lógica aplicada, porque enquanto se preocupa com as leis do pensar também se preocupa com objetos a priori, independentemente de serem parte de conhecimentos empíricos ou puros. Das separações internas da Lógica 14 SALGADO, Joaquim Carlos. A ideia de justiça em Kant: Sua fundamentação na Liberdade e na igualdade. Belo Horizonte: Del Rey, 2012. Pág. 29; 15 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução J. Rodrigues de Merege. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017, Pág. 67; 16 SALGADO, Joaquim Carlos. A ideia de justiça em Kant: Sua fundamentação na Liberdade e na igualdade. Belo Horizonte: Del Rey, 2012. Pág. 29; 7 Após explicar a Lógica, Kant a divide na Analítica e na Dialética. No capítulo em que é feita a divisão, ele começa um parágrafo com a pergunta “Que é a verdade?”17, a descreve como a “conformidade do conhecimento ao objeto”, e termina o mesmo com a frase: “mas o que se deseja conhecer é o critério geral e certo de todo o conhecimento”, ou seja, não a verdade conforme a um único objeto (tornando-o assim diferente de todos os outros), mas conforme a todo o conhecimento, um critério geral da verdade. Nesse caso, ele destaca que é importante fazer as perguntas certas, pois perguntas “ociosas” gerariam respostas de igual qualidade. Criar um critério geral da verdade parece então impossível, já que não é possível separar a verdade do seu objeto de conhecimento, então é impossível criar um critério geral da matéria do conhecimento. No entanto, Kant explica que ainda assim é possível enxergar um critério lógico da verdade quanto à forma, mas que, ainda que o conhecimento concorde com a forma, o conteúdo pode não o fazer, contradizendo o conhecimento.18 Assim, ele assume que o critério geral de toda a verdade será um critério formal, condição negativa de toda a verdade, mas que, para ir mais longe, alcançando o conteúdo, falta à Lógica as ferramentas corretas. Esta Lógica, que baseia seu critério da verdade puramente na forma do entendimento, é chamada Analítica, e através dela podemos examinar a forma do conhecimento e ver se existe alguma verdade positiva no objeto, mas não será possível utilizar a lógica para julgar a verdade material do conhecimento. A Dialética é utilizada no sentido conferido pelos antigos, uma lógica de aparência, não de verdade. Assim, Kant chama de Dialética o abuso da lógica formal em relação a objetos, de maneira que não pode ser satisfatória sobre os conteúdos dos conhecimentos, preocupando-se com o que aparenta ser mais correto, sendo assim uma lógica de aparências: Dialética.19 17 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução J. Rodrigues de Merege. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017. Pág. 68; 18 Ibidem, Pág. 68-69; 19 Ibidem, Pág. 70; 8 Assim como na Lógica Geral, a Lógica transcendental se divide em dois conceitos: a Analítica transcendental e a Dialética transcendental. A Lógica Transcendental foca na parte elementar do conhecimento, incluindo apenas o que vem puramente do entendimento; a analítica transcendental é que expõe essa parte elementar do entendimento. Kant explica que essa lógica não pode ser usada para classificar o que está fora do empírico e do objeto, pois ao fazê-lo seriam indistintos os objetos não dados e poderiam não conter em si verdade. É preciso haver uma matéria onde se apliquem esses conceitos puros para que sejam válidos, é nessa falta de conteúdo que aparece a lógica de aparências transcendental, a Dialética, cuja crítica é chamada Dialética transcendental20. Sobre a Analítica transcendental, Kant dá as regras: “1) que os conceitos sejam puros e não empíricos; 2), que os mesmos não pertençam à intuição e à sensibilidade, mas ao pensamento e ao entendimento; 3), que sejam conceitos elementares diferentes dos derivados ou dos que são compostos; 4), que seu quadro seja completo e abarque todo o campo do entendimento puro21”. De acordo com Salgado, é na Analítica Transcendental que se fundamentam os conceitos puros do entendimento. É dividida por Kant em Analítica dos conceitos e em Analítica dos princípios, que, como o nome indica, trata dos princípios a priori do entendimento, que são proposições básicas e fundamentais a priori. É importante lembrar que o conceito de transcendental não envolve diretamente o “a priori”, mas a possibilidade deste.22 Assim é com a Analítica dos conceitos, que não decompõe os conceitos para torná-los claros como o nome parece indicar, mas decompõe o próprio entendimento 20 Ibidem, Pág. 71 – 72; 21 Idem; 22 SALGADO, Joaquim Carlos. A ideia de justiça em Kant: Sua fundamentação na Liberdade e na igualdade. Belo Horizonte: Del Rey, 2012. Pág. 30; 9 (e somente ele) em busca de conceitos puros do entendimento que sejam possíveis a priori, de onde outros conceitos seriam derivados. 23 Kant explica que o entendimento, por não depender, nem se utilizar de intuições, é uma faculdade que depende de conceitos, que gera conhecimentos discursivos por ser assim; esses conceitos, como explicado no início do trabalho, são gerados na espontaneidade do pensamento e são utilizados para julgar. Esses conceitos supõe as chamadas funções, que são unidades em que as representações se reúnem sob uma que é comum a todas elas. 24 Assim como a intuição, o conceito só acessa o objeto através das representações, de maneira que o juízo é “um conhecimento mediato do objeto, por conseguinte, a representação de uma representação”25, pouco depois Kantexplica que o entendimento pode ser representado pela faculdade de julgar26. A partir da ideia de juízo, Kant explica que em todo juízo existem conceitos que são aplicáveis a uma diversidade de representações, como o conceito de divisível que pode ser dado a um objeto, assim como pode ser dado a muitos outros. Um conceito só é um conceito enquanto pode ser aplicado a objetos, daí as funções do entendimento são encontradas ao abstrair o conteúdo dos juízos. As funções encontradas por Kant são: Quantidade (Gerais, Particulares, Singulares), Qualidade (Afirmativos, Negativos, Indefinidos), Relação (Categóricos, Hipotéticos, Disjuntivos) e Modalidade (Problemáticos, Assertórios, Apodíticos)27. Kant segue a explicar todas as funções, mas para não estender muito este trabalho, falaremos dos que nos parecem menos claros: a função Modalidade. Os juízos problemáticos são os que tem como possibilidade a sua afirmação e a sua 23 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução J. Rodrigues de Merege. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017. Pág. 73; 24 Ibidem, Pág. 74; 25 SALGADO, Joaquim Carlos. A ideia de justiça em Kant: Sua fundamentação na Liberdade e na igualdade. Belo Horizonte: Del Rey, 2012. Pag. 31; 26 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução J. Rodrigues de Merege. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017, Pág. 75; 27 Ibidem, Pág. 76; 10 negação, os assertóricos são os considerados verdadeiros e os apodíticos são os que precisão ser afirmados ou negados28. Quanto aos conceitos puros do conhecimento, são encontrados pela lógica transcendental utilizando as intuições (da sensibilidade a priori) oferecidas pela Estética transcendental ciência da sensibilidade; as representações oferecidas pelas intuições são sintetizadas. Síntese é definida por Kant como “a operação de reunir a representações umas com as outras e resumir toda a sua diversidade em um só conhecimento”. A síntese de que tratamos é pura, por não ser empírica e utilizar-se de representações dadas a priori29. A síntese é descrita como um ato natural das nossas mentes, mas algo que é obra da imaginação e assim precisa de análise. Se queremos observar a origem dos nossos conhecimentos, devemos primeiro analisar o conteúdo dos conhecimentos dados pela síntese. Kant dá algumas regras para o conhecimento de objetos, que Salgado resume em: “1) o diverso das intuições puras, isto é, a pluralidade de representações oferecidas pela intuição; 2) que esse diverso da intuição pura seja sintetizado pela imaginação, que é a síntese referente a função do entendimento englobada no conceito mais geral que se dá a síntese; 3) representação da síntese operada na imaginação, por conceito, o que lhe dá unidade30” 28 Ibidem, Pág. 77 - 80; 29 Ibidem, Pág. 81; 30 SALGADO, Joaquim Carlos. A ideia de justiça em Kant: Sua fundamentação na Liberdade e na igualdade. Belo Horizonte: Del Rey, 2012. Pág. 32; 11 Kant então explica que a função e a síntese, como uniões de representações para fins diferentes, têm o mesmo raciocínio originador, de maneira que os conceitos puros do entendimento têm o mesmo formato das categorias dos juízos, tendo por diferença apenas as suas subcategorias. Assim, as categorias são divididas desta maneira: Quantidade (unidade, pluralidade, totalidade), Qualidade (realidade, negação, limitação), Relação (da inerência e da subsistência - substância e acidente; da causalidade e da dependência – causa e efeito; da comunidade – ação reciproca – agente e paciente) e Modalidade (possibilidade – impossibilidade; existência – inexistência; necessidade – contingência)31. Os conceitos são abertamente baseados em Aristóteles e sobre isso, diz Kant, “igual é o nosso fim, embora haja muita diferença na execução”. Ainda faz observações com relação a essas categorias, como por exemplo, como as duas primeiras tratam dos objetos da intuição, podendo ser pura ou empírica, e as outras tratam da relação do objeto com o sujeito e com o entendimento; também como as categorias tem sempre três subcategorias, sendo sempre a terceiro resultado da união das duas primeiras. Por fim, as categorias são, de acordo com Kant, necessidades lógicas e critério de todo conhecimento32. LÓGICA ESPECULATIVA O primeiro ponto que devemos observar ao chegarmos à Lógica Hegeliana é que a mesma tem como base o ponto máximo da Lógica Transcendental. Entretanto, tal Lógica não fica apenas no movimento bidimensional, que Kant tende a favorecer, temos aqui um esforço de Hegel para que a mesma avance sobre o entendimento absoluto através de um terceiro movimento que traz a tridimensionalidade ao 31 Ibidem. Pag. 33; KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução J. Rodrigues de Merege. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017, Pág. 83; 32 SALGADO, Joaquim Carlos. A ideia de justiça em Kant: Sua fundamentação na Liberdade e na igualdade. Belo Horizonte: Del Rey, 2012. Pag. 33; 12 movimento lógico de Kant, transformando esse movimento em verdadeiramente dialético. O momento em que Hegel nos coloca parte de uma crítica à doutrina kantiana da construção do conhecimento. Hegel critica a construção do conhecimento pelo âmbito da experiência, visto que Kant coloca a experiência como o ponto máximo da faculdade do conhecimento em limite com a Razão teórica. Hegel, com o objetivo de avançar sobre o ponto máximo kantiano, retorna à relação entre a Lógica Natural e a Lógica propriamente dita, observando assim não apenas o que pode ser construído pela experiência, mas também o que pode ser construído para a verdade do pensamento propriamente dito. Neste sentido, nos ensina Salgado que para Hegel o pensamento é a totalidade, o Absoluto, cuja estrutura é a estrutura do objeto pensável33. Para que possa ser entendido este Absoluto, Hegel retorna a Lógica Natural, demonstrando que as formas do pensamento são primeiramente colocadas na linguagem humana, de forma que a própria linguagem será a representação da essência de tudo que o homem possui, contendo em si uma categoria34. Neste âmbito, será o trabalho da lógica explicar as categorias depositadas na linguagem natural humana, buscando assim o consciente humano, toda a matéria que se relaciona com o instinto lógico35. Desta forma, Hegel nos coloca a necessidade de trazer o entendimento, que é exprimido na linguagem natural, através da ação do Espírito na passagem para o entendimento por meio de suas categorias, que se encontram assim fragmentadas em uma matéria infinitamente múltipla. Assim, deve-se trazer à consciência os conceitos que “são em e para si de sua essencialidade”36. Por este motivo, o trabalho de purificação das categorias lógicas, que são, de maneira direta, inerentes à linguagem humana natural, não será apenas o trabalho de tornar a Lógica Natural em uma Lógica artificial, mas sim de avançar no entendimento 33 SALGADO, Joaquim Carlos. A ideia de justiça em Hegel. São Paulo: Edições Loyola, 1996. Pág. 83; 34 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Ciência da Logica: 1. Doutrina do Ser. Petrópolis: Vozes, 2016, Pág. 29; 35 Ibidem, Pág. 50-51; 36 Idem 13 dessas categorias, tornando os objetos destas categorias isolados e puros (dentro das categorias que operam de forma instintiva a linguagem), e também de trazer à tona as categorias lógicas puras, isolando-as em seu movimento de articulação, possibilitando assim, ao Espírito, uma efetividade37. Para que este movimento de purificação seja possível, Hegel considera o trabalho da Lógica formal como o momento de entendimento (em Platão e Aristóteles) da representação da autoconsciência que busca a representação desta universalidade. Seguindo desta maneira os passos de Kant, Hegel busca na reflexão sobre a Lógica Geral (nas formas lógicas) o seu ponto de partida, de forma que tal lógica não contraria à lógica tradicional, mas sim traz todo o seu conteúdocomo momento inicial em uma condittio sine qua non, na busca pela verdade das formas do pensamento38. Hegel mostra então a fragilidade desta forma de pensar puramente formal das categorias lógicas, que se demonstram incapazes de atingir os objetos do conhecimento, neste sentido nos ensina Salgado: “Ora, se a lógica descreve a estrutura do pensar que é a mesma estrutura do ser, e se é o desdobramento do próprio conteúdo de pensar e não de sua abstrata forma, é ela a própria metafísica, isto é, a Filosofia especulativa, que se caracteriza como a filosofia da totalidade, na medida em que é a superação das separações ou diferenças, que une a diferença com a identidade no plano de uma identidade concreta, trazendo no seu conhecer o ser como conteúdo do pensar, e que coincide com o próprio pensar no processo de desdobramento desse conteúdo nas suas determinações39”. 37 BORDIGNON, Michela. Lógica formal, Transcendental e Especulativa. Revista filosofia de Coimbra, N. 52, 2017, Pág. 19; 38 A análise das categorias na Lógica formal deve ser encarada apenas como um ponto de partida comum, não como algo conhecido do movimento lógico hegeliano. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Ciência da Logica: 1. Doutrina do Ser. Petrópolis: Vozes, 2016, Pág. 46; 39 SALGADO, Joaquim Carlos. A ideia de justiça em Hegel. São Paulo: Edições Loyola, 1996. Pág. 87; 14 Deste modo, devemos que considerar que o conteúdo e a forma da Lógica Especulativa são o conteúdo da unidade, contendo dentro desta unidade a metafísica, como indagação de todo o conteúdo universal, e a lógica, como o estudo das formas abstratas do pensamento40. Neste momento, podemos ver uma grande cisão entre Hegel e Kant, na medida que a Lógica kantiana não possibilita o conhecimento Científico, negando assim a possibilidade de um conhecimento dos objetos, pela falta de uma dialética. Já Hegel busca recuperar a metafísica, que se encontrava agora na esfera da razão prática, que veio posteriormente a fundamentar a filosofia do ‘Eu’ colocada por Fichte41. Podemos assim dizer que a lógica em Kant é uma ciência do pensar, a lógica em Hegel é uma ciência do Real (echt). O sistema que Hegel constrói, vai além do sistema kantiano, de forma que a Lógica Especulativa não se preocupa mais com as categorias dadas do conhecimento, mas se dá como um sistema de formas conceituais que são em si e para si, objetivas, formando assim as coisas em si mesmas. Neste sentido, Hegel diferencia coisas (Dinger) de a Coisa (die Sanche), observando que ao colocar o objeto neste sentido, Hegel busca construir a Lógica como um “sistema de razão pura”, ou seja, o reino do pensamento puro42. Desta forma, podemos dizer que o conteúdo analisado pela Lógica hegeliana é a rede conceitual do pensamento objetivo. Tal rede, não estando à nossa disposição, é formada por uma rede dinâmica interna à própria realidade, de forma que tal rede, quando lançada, à luz do conhecimento, constitui assim a realidade objetiva43. Então, não podemos considerar o conhecimento hegeliano como um conhecimento ontológico simples, mas como uma realidade dinâmica onde se encontra a verdade, dentro assim do pensamento conceitual. 40 Idem; 41 Podemos concluir que, enquanto Kant, na busca pela compreensão do conhecimento, acabou por erradicar a metafísica, Hegel, na busca pela realidade, trouxe a sua recuperação. Ibidem, Pág. 88; 42 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Ciência da Logica: 1. Doutrina do Ser. Petrópolis: Vozes, 2016, Pág. 50; 43 BORDIGNON, Michela. Lógica formal, Transcendental e Especulativa. Revista filosofia de Coimbra, N. 52, 2017, Pág. 22; 15 Então, Hegel busca construir uma nova rede conceitual, tendo como base a rede kantiana, entretanto, como teoria do conceito, a Lógica é a verdadeira metafísica, para Hegel: “Essa transformação da Lógica transcendental em Lógica especulativa supõe uma nova e absolutamente original acepção filosófica do termo Begriff (conceito) na qual convergem a Ideia platônica, a nóesis noéseos nóesis aristotélica, a causa sui spnoziana e o Ich denke de Kant, acepção que permite expor o Conceito como Sujeito que se autodetermina e apresentar o desenvolver- se do conteúdo da Lógica como reino da Liberdade44” A lógica então é o começo absoluto do sistema hegeliano, tendo dentro deste absoluto uma circularidade dialética, que Hegel coloca antes da fenomenologia como um pressuposto estrutural da lógica e a lógica como pressuposto genético da fenomenologia45. Neste caminho, podemos colocar a Lógica como a realização máxima de todo o conteúdo, pois dentro da lógica se encontra todo o movimento (tempo e história). Por este motivo, a lógica de Hegel estuda como base a própria estrutura do pensar, estando despojada de qualquer matéria, e assim a própria estrutura do pensar “tudo que é se dá”, tendo por plano de fundo o próprio real do sujeito e do objeto (ideia). Assim podemos entender que: [...] (a lógica hegeliana) é o momento de chegada de toda a filosofia ocidental, no qual se mostra a sua verdade especulativa, em virtude da qual se acham presentes os traços significativos dessa filosofia pela superação das oposições através da dialética nas diferenças e da unidade nas cisões46”. 44 VAZ, Henrique Claudio de Lima. A Formação do pensamento de Hegel. São Paulo: Edições Loyola, 2014, Pág. 115; 45 Ibidem, Pág. 116; 46 SALGADO, Joaquim Carlos. A ideia de justiça em Hegel. São Paulo: Edições Loyola, 1996, Pág. 74; 16 BIBLIOGRAFIA ARISTÓTELES. Tópicos in Os Pensadores. Livro IV. São Paulo: Abril Cultural, 1973; BORDIGNON, Michela. Lógica formal, Transcendental e Especulativa. Revista filosofia de Coimbra, N. 52, 2017, disponível em https://www.uc.pt/fluc/dfci/ public_/publicacoes/Textos_vol_26_n_52/michela, Acessado dia 15/10/2018; HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Ciência da Logica: 1. Doutrina do Ser. Petrópolis: Vozes, 2016; KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução J. Rodrigues de Merege. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017; SALGADO, Joaquim Carlos. A ideia de justiça em Hegel. São Paulo: Edições Loyola, 1996; SALGADO, Joaquim Carlos. A ideia de justiça em Kant: Sua fundamentação na Liberdade e na igualdade. Belo Horizonte: Del Rey, 2012; VAZ, Henrique Claudio de Lima. A Formação do pensamento de Hegel. São Paulo: Edições Loyola, 2014;