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Ética e Trabalho Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof.ª Me. Natalia Conti Revisão Textual: Prof.ª Dr.ª Selma Aparecida Cesarin Ética e Dilemas da Vida na Sociedade Contemporânea • Ética e Dilemas da Vida na Sociedade Contemporânea. • Refl etir acerca de questões contemporâneas que produzem interface entre o Estado, o indivíduo, a cidadania, o trabalho e a vida em Sociedade, nos dias atuais. OBJETIVO DE APRENDIZADO Ética e Dilemas da Vida na Sociedade Contemporânea Orientações de estudo Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem aproveitado e haja maior aplicabilidade na sua formação acadêmica e atuação profissional, siga algumas recomendações básicas: Assim: Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e horário fixos como seu “momento do estudo”; Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo; No material de cada Unidade, há leituras indicadas e, entre elas, artigos científicos, livros, vídeos e sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você tam- bém encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados; Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discus- são, pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o contato com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e de aprendizagem. Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Determine um horário fixo para estudar. Aproveite as indicações de Material Complementar. Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma Não se esqueça de se alimentar e de se manter hidratado. Aproveite as Conserve seu material e local de estudos sempre organizados. Procure manter contato com seus colegas e tutores para trocar ideias! Isso amplia a aprendizagem. Seja original! Nunca plagie trabalhos. UNIDADE Ética e Dilemas da Vida na Sociedade Contemporânea Ética e Dilemas da Vida na Sociedade Contemporânea Sabemos, a essa altura, que a problemática da Ética envolve os variados cam- pos da vida em Sociedade, tendo sido elaborada e discutida na Antiguidade grega, quando os pilares do que conhecemos por Sociedade ocidental foram cravados na terra, passando pelas transformações na vida moderna, com o advento do Capita- lismo e das Revoluções Burguesas, quando o que conhecemos por indivíduo e sua centralidade foram fundados, chegando aos tempos de hoje. Somos legatários da Sociedade grega, sem dúvida e, hoje, diferentes autores, no mundo, falam também sobre outras tradições teóricas e sociais sobre as quais devemos nos debruçar para compreender a complexidade de nossa vida social – sobretudo, no que diz respeito às culturas africanas, ameríndias e orientais. Contudo, a virada histórica das Revoluções Burguesas e o advento do Capitalis- mo estabelecem as bases dos paradigmas e das problemáticas desdobradas funda- mentalmente até os nossos dias. Falo aqui da organização do Capitalismo em escala global e da questão do indi- víduo como centro da vida social e ponto de partida para a compreensão de fenô- menos sociais, éticos e políticos. Podemos identificar aí a origem para desafios e problemas enfrentados hoje. Vamos investigá-los? Figura 1 Fonte: Getty Images O interessante de pensar sobre isso a que nos propomos é que lidamos com uma categoria filosófica fundamental, a de tempo. Passado e presente vão se intrincar, co- lidir e atritar para o entendimento do que projetamos como futuro como Sociedade. Na história do pensamento do Ocidente, é forte a projeção do futuro. O que o futuro será não poderemos saber. Mas o que lançamos como semente, o que 8 9 estabelecemos como projeto duradouro, interfere diretamente naquilo que pode- mos colher adiante. As raízes da capitalização da vida e da edificação da Sociedade entre classes, com a categoria de trabalho como centro organizador, complexificou-se. Se no século XVIII observávamos o trabalho no campo e o crescente trabalho nas cidades, que basicamente estava sedimentado no trabalho nas indústrias, hoje, essa realidade é muito diferente, mas é fruto daquela; é derivação daquela. Figura 2 – Trabalho infantil na Revolução industrial – Lewis Hine Fonte: Wikimedia Commons Se durante a Revolução Industrial falava-se em trabalho infantil e jornadas exte- nuantes de trabalho, podemos ver certos avanços nos debates sobre a participação das crianças no mundo do trabalho. Nossa Constituição garante que as crianças estudem e estejam protegidas do trabalho. Não é sua função. E quando sabemos de sua participação no trabalho, isso é motivo de crítica e exigência de punição. Nossa Sociedade não vê como normal o trabalho infantil, e isso foi um valor construído socialmente, uma construção ética e civilizacional. Em relação às jornadas de trabalho, também passamos por transformações. Com os direitos trabalhistas regulamentados, sobretudo na Era Vargas, no Brasil, convencionou-se que um trabalhador não deveria trabalhar mais do que oito horas diárias, garantindo outras oito horas de descanso e oito horas de lazer – o que to- taliza 24h do dia. 9 UNIDADE Ética e Dilemas da Vida na Sociedade Contemporânea A configuração atual do mundo do trabalho coloca em xeque essa realidade, com o trabalho intermitente e com uma responsabilização total sobre o indivíduo sobre o seu próprio presente e futuro. É aí que eu queria que chegássemos. Entregadores sobre as bikes (Uber Eats e Rappi): http://bit.ly/37JFcEA Ex pl or O que se conhece como “uberização do trabalho”, hoje, na Sociologia, não diz respeito só a um marco no mundo do trabalho, estritamente. Essa forma de trabalho, assim como qualquer forma de trabalho já existente na história da Humanidade, fala sobre a forma atual de organização da Sociedade, sobre quais valores nos erguemos e também o sentido de futuro que apontamos – em sentido ético. Todo mundo conhece alguém que está “fazendo um uber” para complementar a renda, ou mesmo como fonte de renda principal. Há uma tendência em associar essa questão a um governo ou outro, todos transi- tórios, mas se observarmos bem, veremos que essa forma de vida e trabalho são par- te de uma escala global, e não apenas ligada à nossa realidade nacional e conjuntural. Sobre tecnologias, trabalho e uberização na sociedade contemporânea, veja: Uberização do trabalho: documentário discute a precarização. Disponível em: https://youtu.be/eZfdM16ORY0 Ex pl or O professor e pesquisador de Sociologia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Ricardo Antunes, considerando a lógica a partir da qual nossa Sociedade organiza o trabalho hoje, lança uma pergunta que a mim parece um bom ponto de partida para pensar ética: A que futuro estamos nos lançando? Qual é a ética possível em um mundo de alta racionalização econômica e de privi- légio do lucro em relação à vida humana? Bem, parece que estamos diante de um dilema econômico, político, mas também ético, imposto por aquilo que reconhecemos conceitualmente como neoliberalismo. Para isso, eu precisaria dizer que, desde 1973, está em curso uma reestru- turação produtiva que, como vimos, mudou os processos por meio dos quais o trabalho era organizado. A reestruturação do trabalho, contudo, não parou lá, depois de algumas mudanças, mas promoveu e promove mudanças profundas e permanentes desde então, até os dias de hoje. Antunes classifica esse processo como reestruturação produtiva permanente. E o que isso tem a ver com o indivíduo e a ética?10 11 À medida que nossa Sociedade se organiza em torno do trabalho, tudo o que a ele se refere diz respeito a como nos relacionamos com cada ponto de nossa Cons- tituição, ou da Declaração Universal dos Direitos, ou aquilo que entendemos por Ética, bem viver e vida social. A Constituição, em escala crescente do trabalho, no mundo hoje, responsabiliza quase absolutamente o indivíduo por seu sucesso ou fracasso, e desresponsabiliza as Corporações e o Estado. Podemos chamar isso de intensificação da centralidade do indivíduo na Era Mo- derna, a um nível extremo. Em choque com a nossa própria Constituição em vigor, por exemplo, essas for- mas de trabalho não garantem aquilo que é considerado dignidade e deve ser asse- gurado pelo Estado, ou seja, condições para que todo ser humano possa trabalhar, descansar, morar, ter emprego, boa alimentação etc. A uberização fala de uma forma de organização do trabalho em que há ausência total de direitos trabalhistas, aparência de autonomia do trabalhador – de fazer o seu horário, por exemplo, e exploração profunda de sua mão de obra. Não é só em empresas como Uber, Rappi, Ifood etc. que identificamos essa di- nâmica. É uma tendência de todo o Mercado de Trabalho. Total responsabilização do indivíduo, nenhuma ou praticamente nenhuma responsabilização do Estado e das Corporações privadas. Ricardo Antunes chama essa realidade daquilo que dá o nome ao seu mais re- cente livro, O privilégio da servidão, visto que aqueles que estão em condição de exploração serão os privilegiados, considerando crescentes ondas de desemprego no mundo – fruto também da crescente mecanização do trabalho, com robôs e fechamento de postos de emprego. O futuro está, para ele, em risco, em termos sociais. Que futuro se garante a um jovem sem perspectiva, que não se pareça com uma poeira que se desmancha no ar? Percebe como, diferente do ideário das Revoluções Burguesas, a “valorização” do indivíduo, hoje, assume caráter mais negativo do que o contrário, nesse contexto? Ou poderíamos dizer que algum sentido de positividade do indivíduo é restrito a uma camada muito ínfima da população que tem acesso às melhores condições de vida? Eu, Daniel Blake é um filme de 2016, dirigido pelo diretor do Reino Unido, Ken Loach, que trata dessa complexa realidade sobre a qual estamos refletindo. É interessante no filme como, à revelia de uma estrutura social árida e cruel, constroem-se laços de solidariedade entre as personagens. É um ótimo filme, recomendo! Trailer disponível em: https://youtu.be/ob_uqy1aouk Ex pl or 11 UNIDADE Ética e Dilemas da Vida na Sociedade Contemporânea Talvez por esse motivo faça sentido o questionamento filosófico do ideal de in- divíduo, não só em sua origem, mas no que se tornou e suas implicações na vida social atual. O que proponho com essa reflexão não é o questionamento de cada indivíduo isoladamente, mas no questionamento da categoria política e filosófica de indivíduo e de sua centralidade na vida social. Para isso, gostaria de propor uma chave de interpretação e leitura. É preciso dizer que há várias outras, as quais você pode buscar em filósofos, sociólogos, eco- nomistas, geógrafos e outros pensadores da vida humana e sua história. Com o tempo, vamos aprendendo, em relação ao saber científico e também filosófico, que precisamos eleger algumas chaves de leitura para amparar nosso percurso e pensamento. Não é possível eleger todos e tampouco seguir sem se relacionar com nenhum. O pensamento vem antes de nós e, por isso, nós nos relacionamos com ele a partir de coisas que já foram estabelecidas. Mas vai além de nós e, portanto, elegemos nossas referências, que podem nos acompanhar nessa estrada de conhecimento. O que eu gostaria de propor como chave de interpretação tem como base fun- damental o trabalho do filósofo e professor da Universidade Estadual de São Paulo (USP), Vladimir Safatle. Não sei se já o conhece: ele é um importante e relativamente jovem filósofo de nosso tempo, que vem pensando desafios ligados à vida humana na contempora- neidade e nossa relação com possíveis projetos de futuro. Como ponto de partida para esse caminho que proponho que percorramos junto a seu pensamento, estabeleço um breve ensaio como faísca: Por que a felicidade tornou-se historicamente, ao mesmo tempo, impos- sível e imoral para nós; por que ela deve começar por ser recusada se quisermos ainda permanecer fiel a seu impulso inicial. Parafraseando Kafka, dizer que há felicidade, mas não para nós, seria uma maneira de começar por lembrar que a verdadeira decisão ética aqui consiste em recusar qualquer compromisso com a permanência de uma situação his- tórica fundada na infelicidade de muitos. (SAFATLE, 2020) O trecho em questão é uma pergunta, a meu ver, fundamental, relacionada às questões citadas anteriormente, e se encontra no ensaio publicado pelo jornal El país, a seguir, que recomendo fortemente que você leia. A arte de aprender a cair, de Vladimir Safatle. Disponível em: http://bit.ly/2OhUxVb Ex pl or Vladimir Safatle tem feito uma leitura sobre a realidade que leva em considera- ção que as coisas que nos organizam como seres sociais dizem respeito sobretudo aos afetos que nos mobilizam. 12 13 Ele trata longamente sobre isso em seu livro O circuito dos afetos, que está como referência complementar em nossa Bibliografia. Para o filósofo, em diferentes tempos e territórios, há afetos que predominante- mente são mobilizados e caracterizam a relação entre Estado e cidadãos, ou mesmo a relação entre os indivíduos – ou outras formas de entender os seres humanos, em outros momentos históricos. Enfim, há sempre afetos mobilizadores em torno dos quais se compõe a vida social. Trata-se de uma leitura também amparada nas Teorias Psicanalíticas, impor- tante fonte para o autor em questão. Seria importante, para seguir nossa linha de raciocínio, estabelecer os parâmetros para compreender a hipótese de que, para Safatle, estamos vivendo um tempo em que o afeto central que organiza nossa vida em Sociedade é o medo. Há um importante teórico do pensamento político clássico inglês – século XVI, Thomas Hobbes, que ficou conhecido pela tese que diz que o ser humano tem uma natureza competitiva e destrutiva, a que ele chama de “estado de natureza”. Uma frase que ficou muito conhecida e que traduz esse pensamento é a que diz que “O homem é o lobo do homem”, do mesmo Hobbes. Essa condição em que os seres humanos se encontrariam por natureza, para o autor, levaria a uma guerra de todos contra todos, uma permanente e destrutiva competição a partir do que nenhum tipo de sociabilidade equilibrada ou mediada seria possível de ser construída; nunca existiriam interesses em comum. Esse é o conceito fundamental a partir do qual Hobbes defende a necessidade da existência do Estado, que pode mediar os interesses e controlar, a partir de nor- matizações, esse nefasto estado de natureza. O Estado seria uma medida de proteção contra a ameaça de morte iminente ofe- recida por essa condição em que, para Hobbes, nós nos encontramos: a de reféns do estado de natureza. Para Safatle, o Estado moderno tem como base e estrutura esses preceitos; essa ideia estrutura nossas Instituições. O Estado, portanto, aparece como uma instância que pode mediar o medo exis- tente entre nós, de uns em relação a outros. O homem é mesmo o lobo do homem? Disponível em: http://bit.ly/2ub4xZs Ex pl or Vale ressaltar que, mesmo do ponto de vista de Hobbes, a organização de um Estado para o controle e a mediação do medo e do estado de natureza é contraditó- ria, na medida em que Estados são feitos e construídos por indivíduos e Instituições também formadas por indivíduos que, segundo a sua teoria, também estariam sob a condição de defensores radicais de seus interesses, portanto, uma ameaça. 13 UNIDADE Ética e Dilemas da Vida na Sociedade Contemporânea Aí entra uma questão importante ligada à ideia deindivíduo. Como a fundação do ideal de indivíduo, com as Revoluções Burguesas, se dá a partir da relação com os interesses (indivíduos são aqueles que, de forma autônoma trabalham/agem/ vivem de acordo com seus interesses), o indivíduo seria também, para o filósofo brasileiro, uma unidade que prevê o medo, na medida em que se relaciona com um interesse que não é coletivo, mas individual. Na Sociedade capitalista, aquilo que relacionamos no dia a dia com o individu- alismo permeia toda a vida social, na medida em que, na maior parte do tempo, o que se constrói não é uma lógica comum de interesses, mas interesses individuais que estão muitas vezes em conflito e competição. Essa competição é própria da lógica do indivíduo. A vida coletivizada e o interesse em construir interesses coletivos estão em contradição com essa lógica. É por isso que o medo age e é agido como afeto central, de acordo com a hipótese de Safatle. No vídeo a seguir, podemos assistir ao programa Café filosófico, em que o filósofo Vladimir Safatle comenta um livro do psicanalista Christian Dunker a respeito do que ele chama de “Lógica do condomínio”. Disponível em: https://youtu.be/G9s-J_Uy0Js Ex pl or Historicamente, portanto, o Estado cumprirá um papel de “bombeiro e piroma- níaco”, apresentando as condições em que vivemos sempre como à beira de uma si- tuação preocupante, à beira do colapso, mediante discursos de insegurança a partir dos quais a existência de instituições com essa característica siga sendo necessária e, certamente, isso acontece porque, à propósito da contradição hobbesiana, o Estado é sempre controlado por pessoas que, assim como qualquer indivíduo na Sociedade, têm interesses pessoais. Na maioria das vezes, contudo, um indivíduo no Estado representa um interesse maior do que apenas aquele seu, individual, mas o interesse de algum grupo social, econômico ou político. O Estado poderia ser lido como uma espécie de guerra de alguns contra alguns (visto que não são todos os grupos sociais representados em suas cadeiras) na luta por seus interesses. É um grande problema ético, político e filosófico, não é mesmo? Não há respostas simples para esses problemas. Bem, mas desde a fundação dessa forma de Estado que conhecemos hoje, a mediação entre indivíduos e Instituições é estabelecida a partir de uma forma, co- nhecida como contrato. Vários pensadores clássicos e modernos escreveram longamente sobre o proble- ma do contrato como forma de se relacionar em Sociedade. Safatle, para tanto, fala que se trata de adotar a Economia como forma de orga- nização da vida em todos os âmbitos. 14 15 Vejamos. Um casamento é um contrato a partir do qual duas pessoas pactuam uma vida em comum e a relação com seus bens; o registro de uma criança é um contrato entre pessoas que, durante uma parte importante da vida desse pequeno indiví- duo, devem garantir sua manutenção e dignidade, bem como atesta a sua origem a uma família, a um nome, também relacionado a bens e à herança; a contrata- ção para um serviço é estabelecida por meio de um contrato entre um indivíduo e uma Empresa, ou entre dois indivíduos, a partir de critérios estabelecidos por esse contrato. Mesmo um namoro, por exemplo, é uma forma de contrato não pactuado pelo Estado, mas estabelecido a partir de parâmetros que façam a mediação entre os interesses de duas partes – e, considerando que existem padrões de contratação, não necessariamente os interesses passam pelos desejos dos indivíduos, mas por aquilo que se convencionou pactuar. Em relação ao que vínhamos pensando anteriormente sobre o mundo do traba- lho, hoje, podemos dizer que o Neoliberalismo é o modo de existência do Capita- lismo, em que os contratos assumem a forma mais radicalizada de individualização. Isso pode ser, como vemos, um modo de transformar cada indivíduo como agente de uma Empresa de si, como pessoa S. A., em que está colocada não só a necessidade de garantias básicas – como o trabalho sem vinculação nem contrato, mas também a propaganda sobre a própria Empresa, você mesmo. Nesse sentido, as Redes Sociais cumprem um papel fundamental, em que nossa imagem serve de vitrine para aquilo que somos, para que contratos possam ser estabelecidos a partir do que se vende com a nossa imagem. Consegue acompanhar? A combinação profunda de um Estado que gere nosso medo com um tipo de norma para as contratuações sociais que nos deixam profundamente de- samparados geram um jogo de instabilidade e desamparo que tem o medo como afeto fundamental. Se você é responsável, sozinho, por ser bem-sucedido, ter uma boa vida, susten- tar sua família, ser reconhecido, também é todo seu o peso da frustração, do medo e da insegurança. Bem, como ainda vivemos em Sociedade, não é verdade que se uma pessoa não consegue um emprego, a culpa é dela. Há um desemprego estrutural que acomete milhões de pessoas no mundo todo. Mas o que se faz crer, por esse pensamento, é que nós somos responsáveis pelo sucesso de nossa Empresa, que somos nós mesmos. Essa dinâmica gera, porventura, um sentimento de desamparo, de medo, como se estivéssemos cada um de nós vivendo sob a ameaça de um apocalipse. 15 UNIDADE Ética e Dilemas da Vida na Sociedade Contemporânea Você assistiu ao filme Coringa, indicado ao Óscar de melhor filme em 2020, com a brilhante atuação de Joaquin Phoenix? Ele trata da relação entre desestruturação de pilares básicos da vida em Sociedade, do medo e do desamparo, de uma forma muito interessante. Vale a pena ver! É um bom filme e contribui com as reflexões do curso! Trailer disponível em: https://youtu.be/ntSvI2qaRxU Ex pl or Um dos medos relacionados a esse momento que estamos vivendo não diz res- peito apenas à morte do corpo, mas à morte social, muito vinculado a um sistema de promoção e vida por meio da imagem. Só existe quem está nas Redes e é bem-sucedido como imagem. Já há séries e filmes que trabalham com essa temática, da existência social mediada pela aprova- ção nesses espaços virtuais de reconhecimento. Há um episódio, na série britânica da Netflix, Black Mirror, chamado Queda livre (Nosedive, em inglês), em que pessoas ascendem ou decaem completamente em suas vidas a partir da avaliação social via aplicativos. Vale a pena conferir, é intrigante e incômodo, mas fala de relações que já acontecem hoje em nossa Sociedade. Trailer disponível em: https://youtu.be/q1Wi8pFlQl0Ex pl or O motor desse medo, para Safatle, seria a possibilidade de que algum mal acon- tecesse. Não necessariamente a existência material desse mal, mas a mobilização de fantasias que se transformam e são transformadas em potenciais ameaças. Consegue identificar aspectos da realidade atual que possuem essa dinâmica? Bem, e de que modo poderíamos produzir outros afetos que não organizassem a nossa Sociedade por meio do medo? Talvez seja essa uma questão importante para o nosso tempo. Inclusive, no que diz respeito à relação com o meio ambiente e o Planeta. De que modo queremos conduzir nossa existência – individual e como espécie num Planeta que já está apre- sentando a conta de um longo período de exploração excessiva de seus recursos? Assim como o medo, Safatle também aponta a esperança como um afeto que se relaciona à expectativa, com a possibilidade, num sentido positivo, mas tam- bém imobilizador. Se o medo é paralisante no sentido de algo que pode acontecer e nos amedronta como possibilidade – e pode estar nublando, desse modo, nossa capacidade de agir, mas também a de produzir saídas que não sejam só construir muros cada vez mais altos, a esperança é a expectativa de que algo de bom, no futuro, vai acontecer, sem que tenhamos nos empenhado para isso. 16 17 Não é comum ouvirmos pessoas dizendo “A situação está ruim, mas vai melho- rar, eu tenho esperança”? Bem, quando estudamos História e Filosofia, e percebemos nosso papel como sujeitos da História e cidadãos, percebemos que nada na realidade muda ao acaso.E sempre há forças atuando no sentido de interesses diversos. Entende o motivo pelo qual a Ética é fundamental? E por que é impossível pensar Ética sem pensar em Política, na medida em que nossa atuação no mundo no sentido de manter tudo como está ou de mudar – in- dependente de para qual sentido – é uma atuação que combina o pensamento e a prática da Ética? Podemos depreender, portanto, que Ética e Política são Disciplinas do pensa- mento que caminham juntas! Como estamos tratando de Filosofia, gostaria de terminar com uma pergunta: que afeto você consideraria importante de ser mobilizado, frente aos desafios e problemas de nossa Sociedade? Espero que tenha sido proveitoso! Bons estudos e até mais! 17 UNIDADE Ética e Dilemas da Vida na Sociedade Contemporânea Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Livros Ética e pós-verdade DUNKER, C. et al. Ética e pós-verdade. Porto Alegre/São Paulo: Dublinense, 2018. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo SAFATLE, V. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. Vídeos Jocker, 2019 Dirigido por Todd Phillips. https://youtu.be/zAGVQLHvwOY Leitura Da arte de Aprender a Cair SAFATLE. V. El País. Da arte de Aprender a Cair. 03 janeiro de 2020. http://bit.ly/2OhUxVb 18 19 Referências ANTUNES, R. O privilégio da servidão. São Paulo: Boitempo, 2018. CAFÉ FILOSÓFICO. Lógica do condomínio. Disponível em: <https://www.you- tube.com/watch?v=G9s-J_Uy0Js&t=4680s>. Acesso em: 20 jan. 2020. HOBBES, T. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um estado Eclesiástico e Civil. Tradução de João Paulo Morais e Maria Beatriz Nizza da Silva. 2.ed. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda (Estudos Gerais), 1984. SAFATLE. V. El País. Da arte de Aprender a Cair. 03 janeiro de 2020. Disponí- vel em: <https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-01-03/da-arte-de-aprender-a-cair. html>. Acesso em: 31 jan 2020. 19