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PERSPECTIVAS PÓS-COLONIAIS

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PERSPECTIVAS PÓS-COLONIAIS
A partir dos processos de descolonização desencadeados nas décadas de 1960 e 1970, a imagem das guerras de emancipação e da violência colonial exposta nos meios de comunicação e na literatura divulgou a realidade que contrastava com o discurso europeu de que a presença ocidental na África, na Ásia e em outras partes do mundo teria feito parte de um processo civilizador. A violenta dominação imposta sobre os países dominados não condizia com os ideais liberais ou iluministas.
Em Os condenados da terra, Frantz Fanon (1925-1961), médico nascido na Martinica, mas atuante em outras colônias francesas, expôs as duras formas de repressão implementadas pelos franceses sobre a Argélia. Embora o território argelino, até então, fosse considerado um departamento francês, isto é, seus nativos tinham automaticamente cidadania francesa, isso não impediu que o governo parisiense implementasse uma cruel ação antirrevolucionária para impedir a população de usufruir a liberdade abandonando o jugo colonial. O esforço francês incluiu o uso de mecanismos que violavam os direitos humanos.
Frantz Fanon. Fonte: Wikimedia
Acompanhando as lutas de emancipação do terceiro mundo e a busca por meios independentes de desenvolvimento, escritores, militantes e acadêmicos viram a necessidade de repensar as relações de poder entre os países centrais e periféricos, bem como equacionar as tensões internas geradas em cada sociedade após os processos de independências.
Em todo o período colonial, potências como Inglaterra, Bélgica, França, Portugal etc., haviam jogado com a diversidade de etnias no interior de cada Estado para manter seu controle estabelecido. A famosa tática de “dividir para governar”.
Figura 4 - Impérios mundiais e suas colônias em 1914. Fonte: Wikimedia.org
Consequentemente, o impacto dos processos de emancipação revelou não apenas uma desestabilização nas estruturas locais, com migrações forçadas, genocídios e disputas internas de poder, mas também a interferência das superpotências da Guerra Fria – saíam os britânicos, franceses e portugueses, chegavam os mandatos soviéticos e norte-americanos.
O pensamento pós-colonial difundiu suas raízes dentre diversas ciências humanas, tendo como motores dois princípios fundamentais:
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PRIMEIRO PRINCÍPIO FUNDAMENTAL
Após a emancipação, jamais seria possível retomar as formas tradicionais das sociedades, antes pré-coloniais. A economia, a religião, as relações raciais, os códigos de conduta e muitos outros aspectos da vida cotidiana e da política haviam sofrido intervenção e muitas pessoas haviam sido formadas dentro do contexto colonial, não conhecendo a vivência de outra realidade que não fosse essa.
SEGUNDO PRINCÍPIO FUNDAMENTAL
O segundo princípio-problema que motiva os pensadores dos estudos pós-coloniais está na concepção de que a colonização não se deu apenas por meios materiais, mas especialmente na formação da subjetividade. A ideia de nação com povo, território e símbolos imposta desde a Europa; a delimitação das fronteiras africanas que rasga os territórios tribais/comunais; a participação de soldados indianos nas guerras britânicas; a necessidade de se conhecer o idioma português para se estabelecer socialmente em Angola e Moçambique; o fato de que os administradores públicos mais preparados academicamente foram todos formados em universidades europeias; esses são exemplos de elementos subjetivos que consideram a colonização como parte formativa na identidade dos povos colonizados.
Assim, o termo “pós-colonial” não faz referência somente ao conjunto de povos reunidos pela característica espaço-temporal de terem sido colonizados no passado, mas demarca o pensamento crítico que:
(...) relê a colonização como parte de um processo essencialmente transnacional e transcultural - e produz uma reescrita descentrada, diaspórica ou global das grandes narrativas imperiais do passado centradas na nação.
(HALL, 2003)
Os estudos de base pós-colonial analisam as Relações Internacionais de uma perspectiva global, não no sentido universalista, mas no sentido de que as relações locais e globais entre centros e periferias se integram e moldam umas às outras. Assim, ao invés de explicar a ruptura política e econômica entre países dominados e seus antigos dominadores, a análise pós-colonial compreende a descolonização como um processo de interpretação cultural, em que alguns elementos da modernidade são criticados, assumidos ou substituídos por opções, até então, marginalizadas.
Atenção
Centro e Periferia
As ciências humanas utilizam os conceitos de centro e periferia para analisar a dinâmica que contempla um centro produtor e uma periferia consumidora. Embora interdependentes, essa relação é sempre desigual, tendo a periferia um papel subalterno. Esses conceitos foram tomados a partir da Divisão Internacional do Trabalho e se aplicam tanto a relações econômicas quanto a relações culturais e de poder, tratando de bens materiais ou intangíveis.
PENSANDO COMO UM INTERNACIONALISTA PÓS-COLONIAL
O pensamento pós-colonial deve muito de suas origens às diversas maneiras de representação e denúncia dos abusos e das violências perpetrados durante os processos de descolonização. A reflexão de relações desiguais de dominação e poder em peças literárias e jornais de países periféricos logo atraiu o interesse de psiquiatras, como Frantz Fanon, e de críticos literários, como Edward Said (1935-2003) e Gayatri Chakravorty Spivak. As formulações desses intelectuais foram elaboradas teoricamente por diversos adeptos de teorias críticas, em universidades de todo o mundo, ultrapassando as fronteiras disciplinares.
Edward Said (esquerda) com Daniel Barenboim, em 2002. Fonte: Wikimedia
Uma das grandes marcas da base teórica pós-colonial é a percepção de que a divisão dos saberes em disciplinas distintas é uma forma de partição do trabalho que impede o pesquisador de operar com métodos e conceitos tidos como pertencentes a outras disciplinas. Assim como no campo da geopolítica, o pós-colonial questiona as fronteiras impostas pelo Estado; no que se refere à produção de conhecimento, critica as fronteiras disciplinares, militando pela transdisciplinaridade, isto é, a elaboração de temas e conceitos que superam as limitações impostas para a constituição de novos campos de saber.
Mas não se espante se você for consultar algum manual norte-americano ou europeu de teoria das Relações Internacionais e não conseguir encontrar uma seção que trate das teorias pós-coloniais! Embora a contribuição dessa escola de pensamento seja muito relevante, inclusive contribuindo com temas e propostas não contempladas pelas teorias tradicionais, as teorias pós-coloniais têm uma recepção muito adversa nos meios acadêmicos de países de primeiro mundo.
Gayatri Chakravorty Spivak. Autor: Robert Crc - Subversive festival media Fonte: Wikimedia
Se, por um lado, o desenrolar do século XXI tem feito crescer o interesse pelas teorias pós-coloniais em ciências humanas, como a História e a Sociologia, há um consenso na análise das produções acadêmicas de que os estudos pós-coloniais têm mais impacto nos países em desenvolvimento no campo da Relações Internacionais.
Isso se deve ao fato de que seus temas envolvem muito da perspectiva do “subalterno”, do “periférico”, do “colonizado” para desenvolver a crítica das condições estabelecidas pelos dominantes. Assim, essa escola de pensamento é de extrema relevância para um estudante brasileiro, que produzirá conhecimento a partir das peculiares condições nacionais e latino-americanas. As Relações Internacionais talvez tenham sido as ciências sociais menos impactadas pelas ondas de influência crítica e marxista e, nesse sentido, o engajamento intelectual da vertente pós-colonial, que reúne crítica e política, destoe da pragmática típica desse campo de saber.
Uma das características do pensamento pós-colonial está na desconstrução da ideia de que os pressupostos iluministas sejam um parâmetro para a elaboração de conhecimento e virtudena política global. De modo amplo, enquanto a Europa vivia o “século das luzes”, com grande efervescência científica e cultural, seus governantes ordenavam a expropriação de riquezas das Américas, Ásia e África por meio dos mecanismos mais brutais.
A pompa iluminista e a violência colonial, embora moralmente contraditórias, são parte do mesmo sistema de exploração. O pós-colonialismo propõe uma revisão do humanismo eurocentrado, isto é, partindo do questionamento de que a Europa seja o padrão de ética internacional e de produção de conhecimento.
Objeto com interação.
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EM QUE CONSISTIU A REVISÃO DO HUMANISMO EUROCENTRADO?
Essa proposta tem como desenvolvimento a atitude de acolhimento crítico dos pressupostos científicos já estabelecidos, inclusive em ciências humanas, e os mais contemporâneos. Isso fez com que a escola de pensamento pós-colonial promovesse uma releitura das teorias de origem marxistas, por exemplo, a partir de um viés terceiro-mundista e renovado, em relação às especificidades de tempo e espaço.
A proposta de reformular o humanismo e os princípios estabelecidos desde o conhecimento europeu implica não em uma exclusão daquilo que já está em uso corrente na comunidade científica, mas no questionamento e aprimoramento de conceitos e métodos. Daí uma crítica ainda mais contundente ao movimento pós-moderno/pós-estruturalista, que além de colocar como protagonista da reformulação do conhecimento científico as críticas feitas por desconstrucionistas europeus, ainda coloca em dúvida toda a capacidade de explicação e previsão da ciência, ou seja, desestabiliza a legitimidade política de atuação fundamentada no conhecimento.
Atenção
Para os intelectuais pós-coloniais, é importante que o método científico seja respeitado e aprimorado por ser uma maneira de compreender e fundamentar uma ação sobre os sistemas de dominação estabelecidos. O abstracionismo pós-estruturalista é visto como um inimigo da renovação efetiva das formas de Relações Internacionais.
A seguir, confira um mapa animado sobre as modificações políticas pelas quais o colonialismo passou ao longo dos anos.
Impérios coloniais do Ocidente, de 1492 até 2008. Fonte: Wikimedia
Para Siba Grovogui, referencial na inserção da perspectiva pós-colonial nas Relações Internacionais, é necessário questionar o universalismo do humanismo, estabelecendo pontes entre seus conceitos e as culturas tradicionais. A política internacional deveria seguir uma ética que agregasse concepções libertadoras inspiradas em pensadores e valores árabe-islâmicos, africanos, ameríndios e de muitos outros povos. Essa expansão é o que realmente tornaria o humanismo universal, devido a ser composto por valores de diversas civilizações.
Grovogui propõe a aplicação de uma “etnografia reversa”, onde o processo de estudo cultural, antigamente usado pelos colonizadores para classificar e regulamentar os povos colonizados, deva ser mobilizado para classificar e reformular as perspectivas dos países centrais no sistema internacional. Os valores, métodos e as instituições, impostos como naturais e exemplares a partir do “primeiro mundo”, devem ser vistos com estranhamento.
Fonte: Kit8.net / Shutterstock
São os ex-colonizados que passam a usar estratégias das ex-metrópoles para estudar e “consertar” os desacertos das antigas metrópoles.
(NOGUEIRA; MESSARI, 2005)
Resumindo
Internacionalistas pós-coloniais criticam a perspectiva de que os modelos de análise europeus servem para explicar e prever cenários em todo o mundo. Entendem que América Latina, África e Ásia não devem ser vistas como extensão da Europa e, por isso, formulam conceitos que consideram suas normas, seus valores e suas crenças, em busca de uma teoria universalista por ser inclusiva.
ATUALIZANDO DEBATES
Para desenvolver uma perspectiva teórica capaz de lidar com cenários globais e nacionais cada vez mais complexos, as teorias contemporâneas adotaram metodologias, conceitos e percepções epistemológicas vindos desde o abstracionismo filosófico, mas também da prática militante, produzindo diversas críticas aos modelos realistas e idealistas, detentores das cadeiras mais importantes nas universidades e sedes de governo no mundo.
Fonte: Lenka Horavova / Shutterstock
A crítica ousada dos paradigmas da disciplina Relações Internacionais não foi feita sem a abertura também para o espaço de críticas internas, que fizeram com que as escolas contemporâneas de RI fossem formadas por vertentes que concordam em partes, mas que têm o objetivo comum de aperfeiçoar a disciplina e reformular as relações de poder e suas práticas, incluindo elementos metodológicos, como análise do discurso e da cultura, mas também dando visibilidade a países pobres e atores antigamente não observados (ou vigiados) como grupos de interesse não estatais.
Essas escolas de pensamento abriram os horizontes da disciplina e de agentes da política externa para novos campos de atuação. Como você pode perceber, não há um método ou conceito sagrado. Atualmente, os temas e as questões internacionais ainda provocam a elaboração de novos estudos e conceitos para uma análise adequada de um mundo dinâmico e cheio de diversidades. Sempre há espaço para um novo autor, com uma contribuição inovadora.
Fonte: ktsdesign / Shutterstock
Dizem que a percepção teórica é como a roupa íntima, você deve usar sempre, mas não precisa expor. E é assim que funciona a afiliação teórica: nem sempre o autor do livro ou do artigo dirá claramente de qual escola de Relações Internacionais ele faz parte. Entretanto, a partir dos conhecimentos obtidos nos estudos dessas correntes de pensamento, você está apto a identificá-las. Seus conceitos, suas preocupações e críticas permitem ao leitor situar este ou aquele autor em determinada corrente de pensamento.
Por outro lado, consideramos que o que aprendemos até aqui também foi o suficiente para desenvolvermos nossa “caixa de ferramentas” de conceitos e percepções para análise do cenário político internacional. Ao escrever os seus próprios artigos e comentários futuramente, você terá inevitavelmente como referência os autores estudados neste tema, seja para mobilizar seus conceitos e suas metodologias, seja para interpretá-los criticamente. Percebeu a importância do estudo da teoria? Sem ela, o trabalho do internacionalista seria meramente descritivo. Algo como um boletim de notícias.
Com o domínio do conhecimento sobre as escolas teóricas, você está capacitado a explicar e prever cenários, como também refletir e aprimorar o seu próprio exercício profissional.
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