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PROVINCIANISMO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO BRASILEIRO - DIGNIDADE HUMANA E SOBERANIA NACIONAL: INVERSÃO DOS PRINCÍPIOS Revista dos Tribunais | vol. 880/2009 | p. 33 | Fev / 2009 Doutrinas Essenciais de Direito Internacional | vol. 4 | p. 207 - 236 | Fev / 2012 DTR\2009\774 Jacob Dolinger Professor titular (aposentado) da UERJ. Professor Visitante da Faculdade de Direito da Universidade de Miami. Conferencista da Academia de Direito Internacional da Haia. Área do Direito: Internacional; Civil Resumo: O Direito Internacional Privado brasileiro foi além do universalismo europeu em certas questões: na defesa dos direitos dos estrangeiros, na aplicação ex-oficio da lei estrangeira, na homologação da sentença estrangeira seja qual for a lei por ela aplicada e na proteção da família do expulsando. Todavia, nos últimos tempos ocorreu retrocesso para o unilateralismo: se nega homologação de sentença estrangeira desmotivada, se recorre à noção de litispendência internacional para não homologá-la, se recusa executar sentença estrangeira sobre posse e guarda de crianças, dificulta-se a adoção internacional, e a dignidade humana é utilizada para evitar a expulsão de criminosos estrangeiros. Ocorre uma inversão de princípios - a dignidade humana é utilizada em questões atinentes à soberania e esta é empregada em ofensa à dignidade humana. Palavras-chave: Universalismo - Unilateralismo - Provincianismo - Dignidade humana - Soberania Abstract: Brazilian Private International Law has gone beyond European universalism in certain matters, such as the defense of aliens' rights, the spontaneous application of foreign law, confirmation of a foreign judgment notwithstanding the law it applied and the protection of the family of the criminal to be expelled. However, a retrocession to unilateralism has occurred in recent times: foreign judgments have not been confirmed for lack of motivation, also in matters of guardianship and due to parallel local litigation, obstacles are raised against international adoption and the concept of human dignity is being employed to deny the expulsion of foreign criminals. There is an inversion of principles - human dignity is being used in matters that concern sovereignty and sovereignty is being employed in a way that offends human dignity. Keywords: Universalism - Unilateralism - Provincialism - Human dignity - Sovereignty Revista dos Tribunais • RT 880/33 • fev./2009 Sumário: 1. O universalismo no direito internacional privado brasileiro - 2. As peculiaridades do direito internacional privado brasileiro - 3. Retrocesso do universalismo para o provincianismo - 4. Conclusão: a inversão dos princípios 1. O universalismo no direito internacional privado brasileiro Nosso direito internacional privado1 seguiu, tradicionalmente, a filosofia universalista, que vê o mundo assim chamado civilizado como uma comunidade das nações, conforme descrito por Savigny, no 8.º volume de seu tratado sobre o direito romano, conceito que se desenvolveu e evoluiu na doutrina que se seguiu ao longo dos séculos XIX e XX, passando a ser conhecido como a sociedade internacional. A idéia central desta filosofia é de que nas situações e relações internacionais poderá ser necessário aplicar uma lei estrangeira. Esta escola de pensamento e prática se contrapõe à visão estreita dos chamados unilateralistas, que fazem praticamente tudo girar em torno de suas próprias leis. PROVINCIANISMO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO BRASILEIRO - Dignidade humana e soberania nacional: inversão dos princípios Página 1 A solução dos conflitos no Brasil sofreu influência doutrinária dos europeus. A clássica literatura brasileira sobre esta área do direito é baseada principalmente nos escritores franceses, alemães, italianos, e portugueses, 2 tendo seguido a orientação universalista que procura para cada relação e para cada situação a lei que lhe é mais adequada, por meio de regras de conexão ditadas para as diversas categorias jurídicas. Nisto, como veremos, chegamos a nos adiantar além de certas tendências européias. A legislação também sofreu influência européia, principalmente da França e da Itália. Certos dispositivos da nossa Lei de Introdução ao Código Civil (LGL\2002\400) seguiram de muito perto normas das Disposições Gerais da Itália. 3 Assim, as bases de nosso direito internacional privado são modeladas no legado que recebemos do Velho Continente. 2. As peculiaridades do direito internacional privado brasileiro Por outro lado, mantivemo-nos independentes sempre que nosso entendimento, nossa consciência e nossas circunstâncias nos conduziram a critérios diferentes dos europeus. 2.1 Direitos dos estrangeiros Napoleão introduziu em seu Código a norma contida no art. 11, segundo o qual "o estrangeiro goza na França dos mesmos direitos civis que são ou foram concedidos aos franceses pelos tratados da nação a que este estrangeiro pertencer" (tradução livre). O Código da Áustria, de 1811, art. 33, exigia que "os estrangeiros, em caso de dúvida, provem que o seu Estado trata os austríacos da mesma forma que os seus próprios nacionais quanto aos direitos em causa" (tradução livre). E o EGBGB, Introdução ao Código Civil (LGL\2002\400) alemão, dispunha no art. 31 que "o chanceler do Império pode, com assentimento do Conselho Federal, decidir por meio de decreto que um direito de reciprocidade negativa seja exercido contra certo Estado estrangeiro, seus súditos e sucessores". 4 Estas normas consistiam em fórmulas de reciprocidade, seja diplomática, seja fática, seja a chamada retorsão, pelas quais os direitos dos estrangeiros dependiam dos direitos concedidos aos nacionais do legislador nos outros Estados. Aconteceu que uma comissão imperial encarregada de preparar um projeto de Código Civil (LGL\2002\400) brasileiro inseriu neste um dispositivo inspirado no art. 31 do EGBGB. D. Pedro II, presente à reunião em que se discutia o tema, opinou contrariamente, pedindo aos jurisconsultos membros da comissão que assim não procedessem, pois o Brasil deveria conceder direitos iguais a todos, nacionais e estrangeiros, e os outros povos se inspirariam em nosso exemplo. O Imperador foi atendido. Era a xenofobia européia rejeitada pelo espírito universalista do brasileiro. Mais tarde os europeus seguiram a orientação de nosso monarca. 2.2 Lei aplicável ao estatuto pessoal Em matéria de lei que rege o estatuto pessoal, a capacidade da pessoa física e as relações de família, seguíamos o direito internacional privado dos países da Europa Ocidental, que sempre mantiveram o critério da lei da nacionalidade para reger estas matérias. E assim ficara estabelecido na Introdução ao Código Civil de 1916 (LGL\1916\1). Mas esta posição não era aceita por parte de nossa doutrina, partindo de Teixeira de Freitas 5 que, em seu Esboço de Código Civil (LGL\2002\400), acolhera o princípio do domicílio, que veio a ser adotado na Argentina e em outros países do continente, critério este realmente mais adequado para países de imigração. Aplicar a lei nacional, segundo crítica do Ministro Filadelfo de Azevedo, 6 representava um francesismo - imitação da legislação francesa. PROVINCIANISMO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO BRASILEIRO - Dignidade humana e soberania nacional: inversão dos princípios Página 2 Em 1942, processou-se a mudança com a Lei de Introdução ao Código Civil (LGL\2002\400), que substituiu o critério da lei da nacionalidade pelo do domicílio, como estabelecido em seus arts. 7.º e 10. 2.3 Aplicação ex-officio da lei estrangeira Um aspecto fundamental em que nosso direito internacional privado se distanciou do francês e do italiano é o da aplicação da lei estrangeira - nossos tribunais sempre aplicaram a lei indicada pelas regras da ICC - Introdução ao Código Civil (LGL\2002\400) e da LICC (LGL\1942\3), sem condicionar esta aplicação ao requerimento de uma das partes, diversamente da jurisprudência italiana, e mais ainda da francesa, que, via de regra, só aplica a lei estrangeira se pleiteado por uma parte. Em caso deomissão das partes, a lei estrangeira não é aplicada ex-oficio pelo tribunal francês. Aqui temos o provincianismo francês que não concebe as relações privadas internacionais com largueza, com espírito universalista, enquanto nós, no Brasil, sempre mantivemos um horizonte amplificado, em que nunca tivemos problemas com a aplicação de lei estrangeira. Como a antiga Introdução ao Código Civil (LGL\2002\400) determinava a aplicação da lei da nacionalidade e a Lei de Introdução ao Código Civil (LGL\2002\400) determina a aplicação da lei do domicílio, tratando-se de estrangeiro, então, e de domiciliado no estrangeiro, agora, nossos tribunais invariavelmente aplicaram, espontaneamente, a lei estrangeira, sem qualquer necessidade de que uma das partes assim requeira. Consideramos sempre que, acima da sociedade nacional, existe uma sociedade internacional, regida pelo sobre direito que opta em cada tipo de relação, pela lei aplicável - a nacional ou a estrangeira. É o nosso cosmopolitismo contra o provincianismo dos franceses e dos italianos e, modernamente, também dos americanos. Em perfeita sintonia com o critério seguido pelos tribunais brasileiros, nossos autores sempre se manifestaram francamente a favor da direta e incondicional aplicação da lei estrangeira quando assim determinado pela Introdução de 1916 e pela Lei de Introdução de 1942. 7 2.4 Ordem pública Em matéria de ordem pública, ponto nevrálgico do direito internacional privado, que leva à rejeição da aplicação da lei estrangeira aplicável segundo as regras de conexão, se ela for chocante à moral prevalente na jurisdição julgadora, a seus princípios básicos, ou prejudicial ao interesse econômico do país, o Brasil sempre manteve orgulhosa independência, não se deixando influenciar pelas tendências estrangeiras. O que para outros poderia constituir atentado à ordem pública, para nós assim não seria, o mesmo ocorrendo na posição inversa - certas questões podiam ser ofensivas à nossa sensibilidade, à nossa ordem pública, apesar disto não ocorrer em outros sistemas. Por isto escrevia mestre Oscar Tenório: "Os juristas e magistrados sabem a que corresponde a ordem pública. A jurisprudência tão tumultuária em outros domínios do direito internacional privado, segue relativa uniformidade na aplicação do preceito. Por isto mesmo, a doutrina através de importantes autoridades, se vem batendo em prol do seguinte critério: o juiz é que deve determinar em cada caso, a aplicação da ordem pública." Isto significa independência total do magistrado brasileiro. 2.5 Homologação de sentenças estrangeiras Na homologação de sentenças estrangeiras, o Brasil sempre respeitou a escolha de lei aplicada pelo tribunal estrangeiro, mesmo quando nossa regra de conexão, diversa daquela estabelecida pelo Direito Internacional Privado do país donde se originou a sentença, levaria à aplicação de outra lei. Nisto também nos colocamos diversamente da prática francesa, que só homologa sentenças estrangeiras quando estas tenham aplicado PROVINCIANISMO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO BRASILEIRO - Dignidade humana e soberania nacional: inversão dos princípios Página 3 a lei que a França, segundo suas regras de conexão, teria aplicado. O fato de um julgamento estrangeiro chegar a uma decisão diversa daquela que nossos tribunais teriam produzido, por se basear lá em legislação outra daquela indicada por nosso Direito Internacional Privado, nunca constituiu para nós razão para negar a homologação, com base no princípio da ordem pública. A existência de normas legais diferentes de um país para outro é fenômeno comum, e a grandeza do direito internacional privado está justamente em aplicar leis estrangeiras diferentes e homologar sentenças estrangeiras que julgaram diversamente do que nossas Cortes julgariam. O diferente não atenta contra nossa ordem pública. Há que ocorrer uma diversidade chocante, uma orientação que escandalize nossos princípios, nossa mentalidade, para que se recorra ao princípio da ordem pública e recusemos aplicar a lei estrangeira ou reconhecer sentença estrangeira. 8 As normas que mandam aplicar a lei do domicílio da parte para julgar seu status e suas questões de família, a lei do local onde o contrato foi firmado para decidir sobre sua validade e interpretação, a lei do local onde o bem está situado para reger as questões sobre sua posse, propriedade e transferência, a lei do local onde o falecido teve seu último domicílio para orientar sua sucessão, foram tradicionalmente respeitadas no direito internacional privado brasileiro, na teoria e na prática. Mais uma demonstração de nossa filosofia universalista, divorciada de paroquialismo, de chauvinismo, de falso nacionalismo, do provincianismo. 2.6 Proteção da família do estrangeiro expulsando e do próprio expulsando A proteção da família brasileira do estrangeiro foi outro tema em que o Brasil se esmerou ao longo da evolução do seu sistema jurídico. O mesmo com relação ao próprio expulsando. Escrevi em outro trabalho: "A Lei 6.815, de 19.08.1980 que definiu a situação jurídica do estrangeiro no Brasil, estabeleceu em seu art. 74, como única exceção à expulsão, a hipótese que 'implicar em extradição inadmitida pela lei brasileira'. Este dispositivo causou veemente críticas por ter revogado o Dec.-lei 941/69, que, em seu art. 74, vedava a expulsão de estrangeiro que tivesse cônjuge brasileiro ou filho brasileiro dependente da economia paterna, regra emanada da Constituição de 1946 e de vários diplomas legais anteriores. Após longa e delicada negociação entre Governo, Oposição e a Igreja, foram aprovadas várias alterações à lei de 1980, que resultaram na Lei 6.964, de 09.12.1981, cujo art. 75 assim dispõe: 'Não se procederá à expulsão: I - se implicar extradição inadmitida pela lei brasileira; ou II - quando o estrangeiro tiver: a) cônjuge brasileiro do qual não esteja divorciado ou separado, de fato ou de direito, e desde que o casamento tenha sido celebrado há mais de 5 (cinco) anos; ou b) filho brasileiro que, comprovadamente, esteja sob sua guarda e dele dependa economicamente. § 1.º. Não constituem impedimento à expulsão a adoção ou o reconhecimento de filho brasileiro supervenientes ao fato que a motivar. § 2.º. Verificados o abandono do filho, o divórcio ou a separação, de fato ou de direito, a expulsão poderá efetivar-se a qualquer tempo.' PROVINCIANISMO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO BRASILEIRO - Dignidade humana e soberania nacional: inversão dos princípios Página 4 Assim, as normas de 1969, revogadas em 1980, foram parcialmente restabelecidas em 1981. Parcialmente porque o legislador de 1969 não exigia que, para salvar o estrangeiro da expulsão, o casamento tivesse sido celebrado há mais de cinco anos, e no caso de filho brasileiro, o Dec.-lei 941/1969 não exigia que o filho estivesse sob a guarda do expulsando, satisfazendo-se com a dependência econômica." 9 A superioridade da legislação brasileira em matéria de proteção do próprio estrangeiro expulsando, em comparação com a de outros países, foi muito bem colocada no julgamento do habeas corpus impetrado em favor do Padre Vitto Miracapillo, realizado perante grande público. E assim, o acórdão se compõe de votos de todos os ministros da Suprema Corte, que se esmeraram em demonstrar a elevada posição do direito brasileiro em matéria de expulsão de estrangeiros do território nacional, e como a decisão no caso do Padre italiano refletia uma posição justa e correta. Reproduzo pequeno trecho do longo voto do Min. Thompson Flores que bem reflete o cuidado com que nossa mais alta corte cuidou deste rumoroso caso, e que nos dá uma importante lição do status de nosso direito em comparação com o de outras grandes nações. Assim falou S. Exa.: "O longo, erudito e meditado voto do eminente relator (Min. Djaci Falcão) bem examinou as questões suscitadas, especialmente as que vieram integrar o amplo e bem deduzido memorial anteontem distribuído. S. Exa. começou pelo exame da legislação italiana, por certo, em atenção à pátriado expulsando. Passou, após, ao direito francês, terra das liberdades, desde a queda da Bastilha. Por fim, observou como é considerado pela nação norte-americana, que se diz campeã na igualdade dos direitos humanos, da qual tanto se ufana. Tudo fez para, cotejando tais princípios com a legislação brasileira e sua aplicação pelo STF, mostrar como aqui no Brasil tal direito é cercado e disciplinado com mais seguras garantias ao alienígena que se pretende expulsar. Dispõe ele, o paciente, de um procedimento administrativo onde lhe é assegurada a necessária defesa, desde o interrogatório. E pode usar até do pedido de reconsideração contra o ato expulsório, o qual gozava até do efeito suspensivo, em forma expressa. Tais prerrogativas existem no direito estrangeiro? Jamais, com tantas garantias, e como é por demais sabido, e assim concluiu o eminente relator. 'Além disso, ao direito suíço se referiu o eminente Min. Cordeiro Guerra, lembrando o caso de expulsão da estudante suíça que na Bahia estava indiciada em crime contra a Segurança Nacional, e aqui examinado pelo STF no HC 54.222-DF, do qual V. Exa., Sr. presidente, foi relator. Sobre o direito inglês comentou o eminente Min. Leitão de Abreu, acentuando que é bastante uma palavra de estrangeiro em desatenção à rainha para justificar sua expulsão.' Tudo isso, Sr. presidente, rememorei em homenagem às sustentações orais e à compacta assistência, especialmente de eminentes integrantes da Igreja Católica, à qual pertence o expulsando, para que tenham conhecimento do exame que o STF, com independência e serenidade, diariamente, silenciosamente, como é de seu dever, dá às questões que lhe são submetidas. Não desta, apenas, mas de todas que lhe vêm para serem julgadas, e sobre as quais, como Tribunal Supremo da Federação, sejam quais forem as partes, seja S. Exa. o Presidente da República, sejam as Mesas do Congresso Nacional, profere julgamento final e definitivo. E o faz, quero sublinhar, não em Conselho, em pronunciamento secreto e reservado, como acontece na generalidade das Nações mais adiantadas, como a Itália, a França e os Estados Unidos, por sua Suprema Corte, mas em sessão pública, para que cada um dos presentes assista ao voto a descoberto de cada um de seus juízes, os quais PROVINCIANISMO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO BRASILEIRO - Dignidade humana e soberania nacional: inversão dos princípios Página 5 assumem integral responsabilidade pelos votos que vêm de proferir e constam dos julgados publicados. A tal tipo de julgamento classificou o eminente constitucionalista Professor Schwartz quando visitou esta Corte, e o acompanhei a este Plenário. Disse ele, então, que o julgamento aqui se fazia em praça pública." 10 Temos, com estas duas transcrições, uma nítida idéia de como o Brasil, por sua legislação e pela jurisprudência de sua mais alta corte, protegem o direito do estrangeiro, mesmo quando em processo de expulsão - primeiramente proteção à sua família brasileira e depois, proteção ao próprio expulsando, em nível muito acima do praticado pelas nações mais avançadas do mundo. A proteção da família do expulsando só veio a ser reconhecida na Europa muito mais tarde, por meio de duas decisões da Corte Européia dos Direitos Humanos nos caso Berrehab 11 e Niystaqyub. 12 3. Retrocesso do universalismo para o provincianismo Lamentavelmente, não mantivemos íntegra nossa bela tradição de universalismo. Em várias áreas do direito internacional privado vem se manifestando, ultimamente, uma tendência particularista, de nacionalismo extremado, que classifico como provinciana, equiparando-a ao assim chamado parochialism que domina o direito internacional norte-americano, já criticado por doutos mestres da República do norte e que deixei caracterizado em trabalho publicado na poliantéia em homenagem ao saudoso Celso Duvivier de Albuquerque Mello. 13 As alterações se deram principalmente na jurisprudência dos tribunais superiores que, em diversos temas têm se inclinado para uma atitude centrada no direito brasileiro e no que consideram a ordem pública e a soberania nacional do Brasil, julgando com espírito essencialmente unilateralista. Vejamos as novas tendências. 3.1 Homologação de sentença estrangeira desmotivada No último quartel do século XX passamos a testemunhar um acentuado exagero no recurso à ordem pública. Isto começou a manifestar-se no STF, a partir da presidência do Min. Antonio Neder, para quem diferenças entre a legislação estrangeira e a brasileira eram tidas como ofensivas à nossa ordem pública. Assim, sentenças estrangeiras sem motivação manifesta no bojo do julgamento foram consideradas contrárias à nossa ordem pública, uma vez que o legislador brasileiro exige isto do juiz. Ou seja, para homologar uma sentença de outro país, seu tribunal teria que atender os requisitos processuais de nossa legislação. Voltando a 1974, encontramos acórdão relatado pelo Min. Bilac Pinto em que rejeita o argumento do requerido no sentido de que a sentença estrangeira repugnava a ordem pública por carência de relatório, motivação e fundamentos de fato e de direito. "Não encontro", dizia o ministro, "um único precedente no qual se tenha exigido que a sentença estrangeira possuísse a estrutura disciplinada por nossa lei processual civil, sob o risco de ser havido como contrária à ordem pública". 14 Decisão sábia e tecnicamente correta, confirmadora da jurisprudência em vigor. Já em 1980, seis anos mais tarde, encontramos a primeira sentença estrangeira cuja homologação é indeferida por falta de motivação da decisão oriunda da justiça alemã, lendo-se na ementa do acórdão: "Não é homologável a sentença estrangeira desmotivada. O art. 458, II, do CPC (LGL\1973\5) brasileiro é norma de ordem pública, e com ela deve harmonizar-se o julgado estrangeiro para que tenha eficácia no Brasil. Ação homologatória improcedente." 15 PROVINCIANISMO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO BRASILEIRO - Dignidade humana e soberania nacional: inversão dos princípios Página 6 Este critério, inaugurado pelo Min. Antonio Neder durante sua presidência na Suprema Corte, vingou em inúmeros casos que se seguiram. Sempre combati este exagero de elevar critérios diferenciados entre nossa processualística e a estrangeira à nível de ordem pública. 16 Se toda legislação estrangeira que se diferencia da brasileira for considerada contrária à nossa ordem pública, estaremos eliminando o direito internacional privado cuja vida, cuja essência, é justamente aceitar o diferente que existe na lei de outros povos. Hélène Gaudemet Tallon 17 escreveu sobre seus mestres, dizendo que estes fizeram seus discípulos amar o Direito Internacional Privado, e através desta disciplina, a riqueza da diversidade do mundo (" pour nos avoir fait aimer le droit international privé et au dela de cette discipline, la richesse de la diversité du monde"). Em 2002 ocorreu uma surpresa quando o Plenário da Suprema Corte decidiu, em caso isolado, que a falta de conhecimento das origens de uma dívida, que resultou na condenação de importância de alto vulto, não devia impedir a homologação de sentença estrangeira. Lê-se na ementa do acórdão: "Incabível discutir os fundamentos da decisão homologanda. Nada está a apontar tenha resultado a indenização, objeto da sentença, de causa ilícita, que possa tornar a sentença ofensiva à ordem pública, à soberania nacional ou aos bons costumes." 18 Dois argumentos são invocados por autores que defendem a recusa de homologação de sentença estrangeira sem motivação: um elemento constitucional e um argumento de natureza prática. O primeiro é baseado no art. 93, IX, da CF/1988 (LGL\1988\3) que ordena "todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade", acrescentando que, conforme o art. 4.º do Código Bustamante, toda norma constitucional é de ordem pública internacional. E o segundo fundamento - não se homologa sentença estrangeira que não inclua motivação, pois sem esta fica o executado impossibilitadode promover embargos à execução, pois para isto ele precisa conhecer os motivos da condenação. 19 O argumento constitucional não impressiona, pois é manifesto que há dispositivos constitucionais que são de aplicação estritamente interna e não têm qualquer conotação de ordem pública internacional. A valer a invocação do Código Bustamante, deveríamos exigir a comprovação de que o julgamento no país estrangeiro foi público, como determina o mesmo dispositivo da nossa Carta; ora, ninguém cogitaria de exigir esta prova, nem consideraria contrária à ordem pública internacional do Brasil uma sentença estrangeira prolatada em tribunal que funciona de forma não pública, assim como ninguém irá verificar como foi aprovada a lei estrangeira na qual se baseou a sentença, se terá atendido o processo legislativo ordenado por nossa Constituição. As normas constitucionais que determinam o funcionamento dos poderes governamentais e estabelecem a processualística dos tribunais em sua atividade judicante é de caráter eminentemente interno, e não podem ser tomadas em consideração quando se cuida do processo homologatório de uma sentença oriunda de tribunal estrangeiro. A invocação do art. 4.º do Código Bustamante pretende que todas as disposições formalmente integradas à Constituição brasileira sejam tidas como de ordem pública internacional e impedem a aplicação de direito estrangeiro com elas contrastante. 20 Não posso aceitar esta colocação. Entendo que há inúmeros dispositivos constitucionais que não se alçam ao status de normas de ordem pública internacional. Veja-se, por exemplo, a licença-paternidade concedida por nossa Lei Maior, 21 desconhecida na maioria, se não em todas as Constituições do mundo. Não basta estar inserido na Constituição para ser um preceito constitucional; há que encerrar matéria que, por sua PROVINCIANISMO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO BRASILEIRO - Dignidade humana e soberania nacional: inversão dos princípios Página 7 natureza, seja constitucionalizável. E, como visto, processo legislativo e normas procedimentais são de caráter eminentemente interno, sem aplicação em matéria transnacional como a importação de uma sentença estrangeira via processo homologatório. Quanto ao argumento da faculdade que o executado deve ter de embargar a execução, precisando para tanto conhecer o fundamento da condenação, isto se resolve mediante diligência do próprio interessado nos autos da ação em que foi condenado no exterior, donde poderá extrair, em havendo, fundamentos para se opor à execução. Lamentavelmente, o STJ, em decisões prolatadas em 2006, aceitou a tese de que a falta de motivação da sentença estrangeira fere a ordem pública brasileira, seguindo a posição adotada pelo STF a partir de 1980. 22 Exigir que a sentença estrangeira siga as características ordenadas pela processualística brasileira é negar a filosofia que sustenta o próprio Direito Internacional Privado, configurando-se numa postura unilateralista, que contraria nossas melhores tradições. 3.2 Posse e guarda de crianças no plano internacional Mais recentemente, vem se observando outra tendência unilateralista, em que decisões estrangeiras - já transitadas em julgado - relativas à posse e guarda de filhos de pais separados, vivendo um no Brasil e o outro no exterior, têm sua homologação recusada, por existir no Brasil ação entre as mesmas partes, ainda em andamento, em alguns casos com sentença de caráter provisório e em outros, mesmo sem qualquer sentença. O argumento do STF e do STJ (quando a competência para homologar sentenças estrangeiras passou para este tribunal) é de que homologar sentença estrangeira quando sobre a mesma questão corre uma ação em juízo brasileiro, seria atentatório à nossa soberania. Em certos casos também foi invocado o art. 90 do CPC (LGL\1973\5) sobre a inaplicabilidade da exceção de litispendência a causas aqui instauradas com base em causas idênticas no exterior. Decisão precursora - já mais antiga - foi a SE 2069, julgada em dezembro de 1970: depois de ter homologado sentença estrangeira, de acordo com a qual crianças, que se encontravam no Brasil, deveriam ser retornadas à Argentina, de onde haviam sido retiradas irregularmente, ressalvou o STF que o julgamento só seria executado se ficasse provado que as crianças não eram brasileiras. 23 Em primeiro lugar, no regime da LICC (LGL\1942\3) a nacionalidade não tem maior relevância nas questões de família, eis que o estatuto pessoal é regido pela lei do domicílio. Mas, muito mais importante do que isto - a nacionalidade brasileira da criança nenhuma relevância tem sobre a decisão relativa ao seu bem-estar e sobre qual dos pais ou parentes deve ficar com a posse e guarda dos menores. No caso, a sentença argentina foi homologada pelo Judiciário brasileiro, e assim cabia devolver as crianças para a jurisdição donde haviam sido irregularmente retiradas, fossem elas argentinas ou brasileiras. A cor do passaporte é irrelevante nesta matéria. Um argumento utilizado em vários acórdãos bem mais recentes é o de que sentença estrangeira não pode ser homologada se existe processo judicial em andamento no Brasil, mormente se já há uma decisão de nosso Judiciário, mesmo que apenas de caráter liminar. Homologar a sentença estrangeira significaria que o tribunal alienígena estaria modificando decisão de corte nacional. E isto seria contrário à soberania nacional. Estes acórdãos sequer comparam as datas da sentença definitiva estrangeira com a decisão liminar brasileira. Outro argumento que tem sido freqüentemente invocado pelas cortes superiores é o de que o art. 90 do CPC (LGL\1973\5) impede a homologação de sentença estrangeira quando corre em tribunal brasileiro ação sobre a mesma causa entre as mesmas partes. PROVINCIANISMO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO BRASILEIRO - Dignidade humana e soberania nacional: inversão dos princípios Página 8 Reza o artigo90 do CPC (LGL\1973\5): "A ação intentada perante tribunal estrangeiro não induz litispendência, nem obsta a que a autoridade judiciária brasileira conheça da mesma causa e das que lhe são conexas." Basta uma leitura atenta para concluir que o dispositivo permite que se acione no Brasil uma demanda apesar de já existir ação no exterior. Ou seja, não se aplica, no plano internacional, a exceção de litispendência que dá primazia e exclusividade à ação intentada em primeiro lugar. Havendo competência concorrente, poderão processar-se, simultaneamente, duas ações: uma no exterior, outra no Brasil. Atente-se bem para os termos do dispositivo processual: "ação intentada perante tribunal estrangeiro". 24 Outra coisa, completamente diferente, é quando uma ação, processada no exterior já tiver sido encerrada, com sentença transitada em julgado, que se encontra entre nós em fase de homologação. Aplicar o art. 90 do CPC (LGL\1973\5) a esta hipótese para recusar sua homologação, seria estender os efeitos do dispositivo para a coisa julgada, ou seja, de que o art. 90 estaria dizendo que uma sentença transitada em julgado no exterior não obsta o conhecimento da mesma causa pela Justiça brasileira, e que, ao contrário, a causa na Justiça brasileira obsta a homologação daquela. Isto, absolutamente, não está na lei. Quem coloca esta interpretação de forma precisa é José Carlos Barbosa Moreira, que há mais de 30 anos criou doutrina, e que mantém firme até hoje. Assim se pronunciou: "O fato de estar pendente - em qualquer grau de jurisdição - processo brasileiro sobre a lide anteriormente julgada noutro Estado não constitui óbice a que se requeira a homologação da sentença alienígena, nem exclui que o STF a conceda, satisfeitos os pressupostos legais." 25 Esta posição foi fortemente apoiada em alguns julgamentos da Corte Suprema, destacando-se, ao longo dos anos, entre outras, as posições dos Ministros Xavier de Albuquerque, 26 José Carlos Moreira Alves e Sepúlveda Pertence. No julgamento da SE 4509 a Corte considerou ser "irretorquível a lição de Barbosa Moreira", invocando pontos de vista coincidentesno mesmo sentido de Pontes de Miranda, Arruda Alvim, Amílcar de Castro, Paulo Cezar Aragão e Georgette Nazo. 27 E atualmente tem se mantido firme nesta posição o Min. Marco Aurélio que assim sustentou em várias homologações de sentenças estrangeiras. 28 Todavia, a maioria das decisões modernas da Suprema Corte, principalmente em matéria de posse e guarda de crianças, nega homologação de sentença estrangeira quando se encontra em curso ação perante corte brasileira. 29 Nota-se nesta jurisprudência uma tendência muito forte para evitar, de qualquer maneira, que uma criança brasileira, ou filha de pai ou mãe brasileira, seja enviada para o exterior, para a companhia do genitor que teve deferida sua pretensão em Corte alienígena. O STJ adotou a mesma orientação da Corte Suprema, como se verifica de vários acórdãos, destacando-se a SE 819, julgada em junho de 2006, da qual extraio os seguintes trechos: Do voto do Min. Humberto Gomes de Barros: "Ainda não houve sentença de mérito na ação que corre na Justiça Mineira. Há, contudo, uma liminar deferida na ação cautelar de regulamentação de visitas interposta pela mãe do menor, que regula provisoriamente a situação (...). A liminar brasileira continua eficaz. Homologar a sentença estrangeira seria esvaziar o processo em curso na Justiça mineira, em flagrante ofensa à soberania nacional. O fato de não haver ainda, sentença transitada em julgado, é irrelevante. O importante é a circunstância que houve PROVINCIANISMO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO BRASILEIRO - Dignidade humana e soberania nacional: inversão dos princípios Página 9 pronunciamento da Justiça brasileira sobre o tema." Do voto do Ministro Teori Albino Zavascki: "É firme na jurisprudência do STF o entendimento de que a sentença estrangeira não produz qualquer efeito no Brasil até que seja homologada pela Justiça brasileira - razão pela qual não há, até a homologação, qualquer óbice a que o juiz brasileiro conheça de demanda idêntica a outra em tramitação perante a Justiça alienígena, ou mesmo sobre a qual já se tenham pronunciado definitivamente as Cortes estrangeiras (...) É igualmente assente a orientação segundo a qual a existência de decisão da Justiça brasileira, ainda que se cuide de provimento liminar, impede a homologação da decisão estrangeira, como forma de preservação da soberania nacional." 30 Sobre este tema tive oportunidade de manifestar recentemente minha discordância, nos seguintes termos: "Esta jurisprudência ignora a doutrina correta e não atenta para o perigo que dela decorre, pois todo aquele que tiver sido condenado no exterior impetrará uma medida cautelar, obterá uma medida liminar, e assim impedirá a homologação da sentença estrangeira. E isto é algo que se pode obter facilmente em questões de família e, principalmente, de posse e guarda de filhos." Em setembro de 2007 o STJ manteve despacho do Min. Barros Monteiro, que diz o seguinte: "A decisão homologanda versa acordo assinado pelas partes, elegendo o Tribunal Superior de Quebec, Comarca Judiciária de Montreal, com foro competente para solucionar questões envolvendo direito de família, particularmente no que se refere à guarda compartilhada dos filhos do casal." (STJ, AgRg nos EDcl na SE 1554, Corte Especial, j. 19.09.2007, rel. Min. Barros Monteiro, DJ 22.10.2007, p. 174) "Como bem ressaltou o i. representante do parquet, 'o caso é de competência concorrente, e não absoluta, o que não impede, se for o caso, de a Justiça brasileira, se provocada, manifestar-se sobre a questão, principalmente quando envolve menor'. Inadmissível, assim, a renúncia - pura e simples - à competência da Justiça brasileira. A homologar-se o acordo referido, incide o obstáculo representado pela flagrante ofensa à soberania nacional e à ordem pública." E comentei: "Com o devido respeito pela Egrégia alta corte federal, não houve atentado à soberania nacional, pois se tratava de hipótese de competência concorrente e não absoluta, como ficou claro na promoção do Ministério Público, sendo, portanto, as partes livres para pactuar foro competente, devendo-se homologar a conseqüente sentença estrangeira." 31 Estas decisões representam - data máxima vênia - uma manifestação de unilateralismo, 32 além de não condizerem com o melhor entendimento da questão processual, como se desenvolve a seguir. 3.3 A questão da litispendência internacional No que concerne ao problema processual, independentemente de qual seja a matéria objeto das ações no Brasil e no exterior, a moderna jurisprudência identifica competência de nossos tribunais em confronto à competência de tribunais de outros países como um tema de soberania nacional. É evidente que a jurisdição de nossos tribunais e suas competências consubstanciam manifestação da soberania nacional, uma vez que uma das expressões da soberania nacional é a atuação do Poder Judiciário. PROVINCIANISMO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO BRASILEIRO - Dignidade humana e soberania nacional: inversão dos princípios Página 10 E quando o Código de Processo Civil (LGL\1973\5) estabelece no art. 89 matérias de competência exclusiva dos tribunais brasileiros, resulta que se um tribunal estrangeiro julgar algo atinente a imóveis sitos no Brasil, poderíamos negar a homologação, não só porque nossos tribunais têm competência exclusiva sobre imóveis sitos no Brasil, como também, et pour cause, porque a intromissão do tribunal estrangeiro em matéria imobiliária sita no Brasil atenta contra nossa soberania nacional. Já nos litígios sobre posse e guarda de crianças entre pais separados - vivendo um no Brasil, o outro no exterior - assim como nos casos de divórcio transnacional e de todas as questões não cobertas pela provisão do art. 89, que versa exclusivamente bens imóveis, a questão da competência é concorrente. Não se pode considerar que um julgamento no exterior quando a mesma causa está sendo julgada no Brasil, represente um atentado à nossa soberania. Aí se trata de simples hipótese de concorrência jurisdicional a ser resolvida pelas normas processuais aplicáveis e, como visto, o Código não admite a oposição de litispendência a uma ação intentada no Brasil com base em ação anteriormente iniciada no exterior. Por outro lado, o Código não diz que uma ação intentada no Brasil obsta a que a mesma ação também seja processada no exterior. Assim, quando uma ação foi proposta no exterior e outra ação perante a Justiça brasileira, e naquela tiver sido pronunciada sentença que transitou em julgado antes que isto tenha ocorrido na nossa jurisdição, deve ser homologada a sentença estrangeira. 33 Somente uma sentença estrangeira relativa à bem imóvel situado no Brasil não é homologável, por absoluta falta de competência da Justiça estrangeira, ex vi art. 89 do Código processual, faltando, assim, o atendimento ao art. 15, a, da LICC (LGL\1942\3), que exige para a homologação que o tribunal estrangeiro seja competente. José Carlos Barbosa Moreira consolidou sua teoria nas sucessivas edições de seus Comentários ao Código de Processo Civil (LGL\1973\5), abrangendo os arts. 476 a 565. Em uma das mais recentes edições, escreve: "(...) a pendência do processo de homologação não obsta ao exercício, perante a Justiça brasileira, de ação em que se venha a postular o direito declarado na sentença estrangeira homologanda." E logo seguida, o eminente processualista mostra o outro aspecto da questão: "Suponhamos agora que, ao ajuizar-se o pedido de homologação perante o Supremo Tribunal Federal, semelhante ação já esteja em curso perante outro órgão da nossa Justiça. Revela o direito comparado que, em tal hipótese, algumas legislações afastam a possibilidade de vir a ser homologada a decisão alienígena. (...) Era essa a diretriz adotada pelo anteprojeto Buzaid, que arrolava, entre os requisitos de homologabilidade, o de não 'pender, perante juiz brasileiro, ação idêntica proposta antes de passar em julgado a sentença estrangeira' (art. 526, V, i); mas o dispositivo, como os outros de natureza análoga, foi suprimidoe não consta do Código. Portanto, o simples fato de estar pendente no Brasil - em qualquer grau de jurisdição - processo relativo à lide anteriormente julgada noutro Estado não constitui óbice a que se pleiteie a homologação da sentença alienígena, nem exclui que o Supremo Tribunal Federal a conceda, satisfeitos os pressupostos legais. Reciprocamente, transita em julgado a homologação antes de decidida a lide pela Justiça brasileira, já não será lícito a esta pronunciar-se sobre a matéria (...). No feito que acaso se instaurasse, no Brasil, sobre a mesma lide, tocaria à parte suscitar a preliminar de coisa julgada, ou ao próprio juiz reconhecê-la (...)." 34 Esta doutrina, correta, fica ainda mais evidente quando contraposta a posições equivocadas de outros autores. Um deles escreveu: "No Brasil, não há impedimento a que uma questão, já decidida, ou sub judice dos Tribunais de outro país, seja também conhecida pelo juiz brasileiro, Inocorre, no caso PROVINCIANISMO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO BRASILEIRO - Dignidade humana e soberania nacional: inversão dos princípios Página 11 litispendência, e, por conseqüência, coisa julgada (...)." 35 O art. 90 falou em litispendência, não em coisa julgada, como muitos já observaram. E o ilustre Pontes de Miranda assim consignou em sua obra: "Ineficácia da litispendência de ações propostas no estrangeiro - Se alguma ação, que, conforme os arts. 88 e 89, tenham de ser intentadas no Brasil, e o foi perante autoridade judiciária estrangeira, a litispendência que existe no estrangeiro, é sem qualquer eficácia para o Brasil. Mesmo se está no fim o curso do processo, ou se já houve sentença, ou se já transitou em julgado, pode ser proposta no Brasil a ação se se trata da mesma causa, isto é, do mesmo mérito, do mesmo direito, pretensão ou ação, ou se apenas há entre as duas causas conexão." E prossegue Pontes: "Homologação de sentença estrangeira - Diante do que se contém no art. 90, não pode ser homologada sentença estrangeira se a ação, que foi proposta no estrangeiro, tinha de ser no Brasil, ou fora proposta no Brasil." 36 Este entendimento é contrário à letra do art. 90 do CPC (LGL\1973\5), ou pelo menos vai muito além do que o dispositivo enuncia; é uma doutrina voltada inteiramente para a competência de nossa Justiça, à exclusão de qualquer outra, atingindo frontalmente a cooperação judiciária internacional, no espírito da qual o Brasil sempre honrou sentenças estrangeiras, homologando-as e executando-as. Não se pode permitir que diante de um pedido de homologação de sentença estrangeira, a parte perdedora ingresse em juízo brasileiro e obstaculize o andamento do pedido de homologação que visa o cumprimento do que já foi decidido e transitou em julgado no exterior. No extremo oposto vamos encontrar Haroldo Valladão que defende a exceção de litispendência em favor de juiz que conheceu a causa no estrangeiro antes de iniciado o litígio no Brasil, baseando-se no art. 394 do Código Bustamante que, no seu entender, deveria prevalecer, lamentando a introdução do art. 90 no CPC (LGL\1973\5). 37 3.4 Adoção internacional O mesmo protecionismo que se verifica em matéria de posse e guarda de crianças, vamos encontrar no campo da adoção internacional de menores, em que se registra, em certa doutrina e em determinada jurisprudência, uma política discriminatória contra a concessão de adoção de crianças brasileiras por pais estrangeiros, domiciliados no exterior, dando uma exagerada e, às vezes impraticável preferência para casais brasileiros. Esta filosofia tem sido criticada por autoridades mais esclarecidas. Ilustro com as palavras contidas em acórdão da lavra do Des. Rui Octavio Domingues, que, dando provimento a apelo contra decisão do juiz monocrático que anulara escritura de adoção de criança brasileira por adotantes americanos, teceu as seguintes considerações: "Causa mesmo certa surpresa que, diante da miséria absoluta em que vivem tantas crianças brasileiras, haja tanto receio de que um menino abandonado brasileiro possa viver e se educar em casa de uma pessoa da classe média dos Estados Unidos. Se alguém do exterior se dispôs a adotar uma criança abandonada, surge o aparelhamento do Estado brasileiro, para tomar medidas em defesa do menor. Há uma hipocrisia em tudo isso. E uma xenofobia digna de índios analfabetos. Por que as crianças não podem ir para o exterior, se forem bem cuidadas." 38 O art. 31 do ECA (LGL\1990\37) que determina que "a colocação em família substituta estrangeira constitui medida excepcional, somente admissível na modalidade de adoção" foi freqüentemente invocado por tribunais brasileiros para dificultar ao máximo a adoção de crianças brasileiras por estrangeiros, inclusive pelo STJ. PROVINCIANISMO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO BRASILEIRO - Dignidade humana e soberania nacional: inversão dos princípios Página 12 Entre vários acórdãos, registro o REsp 159075, julgado pela 3.ª T. do STJ em abril de 2001, em que a corte observou: "O art. 31 do ECA (LGL\1990\37) não deixa dúvida quanto ao caráter excepcional da adoção internacional, de sorte que efetivamente há que se tentar, preliminarmente, a colocação da criança ou adolescente em lar substituto brasileiro." Como muito bem focalizado em uma monografia de conclusão de curso de bacharelado na UERJ, há alguns anos atrás, estamos diante de dois mandamentos: (a) preservar o melhor interesse da criança e (b) só admitir a adoção de criança brasileira por estrangeiro residente no exterior em caráter excepcional. Acontece que a primeira norma decorre de princípio constitucional e a segunda é regra infraconstitucional. Aquela decorre do art. 227 da CF/1988 (LGL\1988\3) que manda assegurar à criança saúde, alimentação, educação, lazer, profissionalização, cultura, dignidade, respeito, liberdade e convivência familiar e comunitária. De maneira que o bem-estar da criança deve prevalecer sobre dispositivos nacionalistas da legislação infraconstitucional. 39 Esta é uma opinião inteligente, dirigida para o bem da criança aberta para o mundo. A rigor não há restrição à adoção internacional por estrangeiros no art. 31 do ECA (LGL\1990\37). O que este artigo dispõe é que colocar uma criança brasileira em uma família estrangeira é algo excepcional, que só deve ser operacionalizado mediante adoção. Do que se depreende que a adoção por estrangeiros é aceita. Interpretação em contrário é errônea. Concluí meu capítulo sobre Adoção Internacional, último capítulo de meu livro sobre A criança no direito internacional, dizendo que: "Devemos lutar pela erradicação da miséria, da pobreza, do subdesenvolvimento, do analfabetismo, do crime organizado, da violência, mas nenhuma sociedade tem condições de reparar todos os males de uma só vez. Enquanto tivermos legiões de crianças abandonadas, enquanto nossa sociedade não se capacitar de que não há governo que possa solucionar tudo e, que a cada um de nós cabe participar na batalha coletiva contra o sofrimento de nossos compatriotas e vizinhos, enquanto não houver capacidade de absorção na família brasileira para todas as crianças desamparadas, a adoção internacional, bem controlada, corretamente executada, continuará como uma pequena, porém valiosa, contribuição para a salvação de um punhado de vidas preciosas. O importante é entender e aplicar inteligentemente o princípio do melhor interesse da criança, a criança cidadã do mundo." Quem divergir desta posição, quem continuar insistindo em dificultar ao máximo a saída de crianças brasileiras para o exterior pela porta da adoção internacional, estará agindo com nacionalismo extremado, decidindo de forma altamente prejudicial à criança e à sociedade brasileira. 3.5 A intromissão da "dignidade humana" no direito de expulsão Nova e vibrante doutrina brasileira, composta de ilustres constitucionalistas e civilistas, seguindo uma tendência que aparentemente surgiu na Itália, passou nos últimos anos a construir uma filosofia jurídica que apresentam como grande novidade, erigida sobre o que denominama dignidade da pessoa humana. Esta teoria levou o Superior Tribunal de Justiça a negar expulsão de estrangeiros com fundamento em argumentos que vão contra a lei e o bom senso. Como vimos, a lei protege a família do estrangeiro expulsando nas hipóteses em que tem cônjuge brasileiro do qual não esteja divorciado ou separado, de fato ou de direito, e desde que o casamento tenha sido celebrado há mais de cinco anos, ou que tenha filho brasileiro que, comprovadamente, esteja sob sua guarda e dele dependa economicamente. É o que preceitua o Estatuto do Estrangeiro, Lei 6.815/1980, art. 75, PROVINCIANISMO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO BRASILEIRO - Dignidade humana e soberania nacional: inversão dos princípios Página 13 lidia Highlight lidia Highlight conforme as alterações introduzidas pela Lei 6.964/1981. Mas o § 1.º - muito apropriadamente - acrescenta que não constitui impedimento à expulsão a adoção ou o reconhecimento de filho brasileiro supervenientes ao fato que a motivar. Em vários habeas corpus (entre outros, os de números 31449, 40 38946 e 43604) 41 o STJ entendeu conceder a permanência do estrangeiro, criminoso em hipóteses enquadradas no § 1.º do art. 75. Destes julgamentos extraio algumas colocações da Corte: No HC 38946, julgado em maio de 2005, foi concedida a ordem em hipótese de filho havido posteriormente ao ato delituoso e mesmo ao decreto de expulsão, em que a Corte invoca o HC 31449, no qual foi inaugurada "uma interpretação mais ampliativa ao tema em face da legislação superveniente (Constituição Federal (LGL\1988\3) e Estatuto da Criança e do Adolescente (LGL\1990\37))", concluindo pela proibição do afastamento de pai estrangeiro não apenas quanto à questão de ordem material e econômica, mas, sobretudo, ante a prevalência do interesse da criança em dispor da assistência afetiva e moral. Entendeu o Tribunal que: "a infância e a juventude passaram a contar com proteção integral, que as insere como prioridade absoluta, garantindo, entre outros, o direito à identidade, à convivência familiar e comunitária, à assistência pelos pais". A ementa do acórdão do HC 43604, espelha com precisão a nova filosofia do STJ nesta matéria, que assim está redigida: "1 - O ordenamento constitucional, de natureza pós-positivista e principiológica, tutela a família, a infância e a adolescência, tudo sob o pálio da dignidade da pessoa humana, fundamento jus-político da República. 2 - Deveras, entrevendo a importância dos laços sócio-afetivos incorporou a família estável, fruto de união espontânea. 3 - Destarte, inegável que a família hoje está assentada na paternidade sócio-afetiva por isso que, absolutamente indiferente para a manutenção do filho junto ao pai alienígena, a eventual dependência econômica; posto se sobrepor a dependência moral-afetiva. 4 - Deveras, é assente na Corte que 'A vedação a que se expulse estrangeiro que tem filho brasileiro atende, não apenas o imperativo de manter a convivência entre pai e filho, mas um outro de maior relevo, qual seja, o de manter o pai ao alcance da cobrança de alimentos. Retirar o pai do território brasileiro é dificultar extremamente eventual cobrança de alimentos pelo filho." (Grifei. Note-se a contradição entre os pontos 3 e 4 da ementa. No primeiro sobrepõe-se o fator sócio-afetivo sobre o econômico, enquanto no n. 4 o aspecto econômico é considerado de maior relevo). Esta jurisprudência vem sendo reiteradamente confirmada pelo STJ. No dia 27.02.2008 foram julgados dois HC 90760 e 88882 -, em que a tese exposta no HC 31449 foi confirmada. Em um destes julgamentos a tese foi repetida da seguinte forma: "A jurisprudência do STJ firmou-se no sentido da impossibilidade da expulsão de estrangeiro que tenha filho brasileiro dele dependente. O fundamento para a permanência do estrangeiro no território brasileiro é a necessidade de proteção dos interesses do menor, sejam econômicos ou afetivos, entendendo-se que a disposição constante do art. 75, II, b, da Lei 6.815/1980 (...) deve ser interpretada em consonância com a legislação superveniente especialmente com a Constituição Federal de 1988, a Lei 8.060/1990 (Estatuto da Criança e Adolescente), bem como as convenções internacionais recepcionadas por nosso ordenamento jurídico. A partir dessas inovações legislativas, a infância e a juventude passaram a contar com proteção integral que as insere como prioridade absoluta, garantindo entre outros, o direito à identidade, à convivência familiar e comunitária, à assistência pelos pais. (...) Assim, busca-se resguardar, além da subsistência da criança brasileira, a sua convivência com a família." PROVINCIANISMO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO BRASILEIRO - Dignidade humana e soberania nacional: inversão dos princípios Página 14 lidia Highlight 42 Um pequeno consolo: enquanto que no HC 88.882 a ordem foi concedida, no HC 90.760 ela foi, a final, denegada, por uma questão de prova, assim explicada: "Na hipótese em análise, contudo, não está evidenciado que a criança, de fato, reside com sua família no Brasil ou que depende do seu pai", do que se depreende que a Corte queria, pelo menos, comprovação do convívio entre pai e filho ou da dependência econômica daquele. O STJ invoca a Constituição de 1988, sem especificar a que se refere. Mas em determinados trechos dos acórdãos dos habeas corpus fica evidente que a referência é ao princípio da dignidade humana, inserida no art. 1.º como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Também não especifica a que convenções internacionais está se referindo. A nova geração de constitucionalistas e civilistas brasileiros abraçou o princípio da dignidade humana como grande novidade da Carta de 88, e entre os internacionalistas há quem afirme que, no plano internacional, o princípio nasceu no pós-Segunda Guerra Mundial, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem. A valoração da dignidade do ser humano não é novidade, não é resultado do pós-positivismo, nem da modernidade. Encontramo-la em várias passagens bíblicas: no Gênesis vem consignada a criação do homem à imagem do Divino, símbolo do respeito devido a todo ser humano; o Decálogo estabelece o respeito pela vida alheia, a propriedade alheia, a família alheia e a honra alheia (Êxodo); no Levítico vamos encontrar o grande princípio do "amarás teu semelhante como a ti mesmo", que em todas as religiões fundamenta a sublimação da relação entre os seres humanos, e em Isaías lemos "aprendei a fazer o bem, procurai o que é justo, socorrei o oprimido, fazei justiça ao órfão, defendei a viúva", determinando o zelo devido por todos nós para com os seres humanos mais sofridos. René Cassin, Prêmio Nobel da Paz, principal autor da Declaração Universal dos Direitos do Homem, diz que "o Decálogo é o ponto de partido e o Preâmbulo da Carta das Nações Unidas, nosso temporário ponto de chegada". 43 Thomas Paine em seus Rights of man, Thomas Hobbes, em seu Leviathan, John Stuart Mill em seu On liberty, John Locke em seu On tolerance, J. J. Rousseau em seu A origem da desigualdade dos homens, Montesquieu em seu Espírito das leis, todos tratam do princípio da dignidade do ser humano. Nada de novo sob o céu, já dizia o Rei Salomão. Assusta-me a recusa de expulsar estrangeiro condenado por crime praticado no Brasil, por mais grave que tenha sido, inclusive por tráfico de drogas, com fundamento em criança que aqui gerou depois do crime e mesmo depois de decretada sua expulsão, invocando a ligação sócio-afetiva entre pai criminoso e filho, com apoio na moderna versão da dignidade da pessoa humana. Convenhamos que este tratamento da questão mui provavelmente levará criminosos com expulsão decretada a encontrar uma jovem ingênua, ou quiçá não tão ingênua assim, e com ela gerar uma criança, para ficar aqui e continuar com seu tráfico de drogas, com sua criminalidade. No caso da jovem ingênua, quem protege sua dignidade para que criminosos estrangeiros não se aproximem dela? E quem protegerá a dignidade das crianças a serem geradas como conseqüênciadesta ingênua jurisprudência? Como acreditar que o criminoso, que gera uma criança para evitar expulsão do país, terá PROVINCIANISMO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO BRASILEIRO - Dignidade humana e soberania nacional: inversão dos princípios Página 15 lidia Highlight lidia Highlight lidia Highlight com ela qualquer tipo de relação sócio-afetiva? Quem confia que ele sequer ajudará para o sustento desta criança? Com todo respeito pelo Superior Tribunal de Justiça, trata-se de uma perversão da nossa fé na dignidade da pessoa humana. Data máxima vênia, trata-se de uma visão distorcida dos objetivos da legislação que protege a criança e o adolescente. Esta uma visão estreita que, no desiderato de ajudar uma criança - ajuda esta muitíssimo duvidosa - abre as comportas para o nascimento de inúmeras crianças a serem geradas pelos criminosos com expulsão decretada, que continuarão na sua criminalidade e deixarão mãe e filho ao desamparo. Estes criminosos devem ser devolvidos à terra em que nasceram e foram criados, ao ambiente que os gerou e lá que cuidem dele e de suas aventuras sexuais. Seguramente serão tratados com severidade e sem concessões românticas. Assim, um aspecto da nossa legislação de elevado significado humanitário - a proteção da família do estrangeiro em determinadas hipóteses e o cuidado com a defesa do expulsando - foi elevado ao paroxismo da "pós-moderna, pós-positiva proteção da dignidade da pessoa humana", para proteger situações manifestamente contrárias ao espírito e à letra do texto legal, em níveis que ofendem os mais legítimos interesses nacionais. Com as devidas vênias ao Egrégio Tribunal, esta me parece uma visão provinciana do direito que rege as relações transnacionais, em que acabamos protegendo os maus filhos de outras terras, à custa de nossa segurança, de nossa tranqüilidade, de nossa ordem pública, de nossa soberania nacional que se expressa no direito de recusar admissão em nosso território de estrangeiros indesejáveis e na faculdade de expulsar aqueles que são nocivos. 4. Conclusão: a inversão dos princípios Negar homologação de sentenças estrangeiras porque não estão motivadas ao estilo que nossa processualística exige, invocando o princípio da ordem pública, ou porque corre no Brasil ação sobre a mesma hipótese, invocando o art. 90 do CPC (LGL\1973\5), representam distorções, a primeira contra nossas melhores tradições no campo do direito internacional privado que sempre respeitaram as normas estrangeiras diferentes das nossas, e a segunda porque não segue nossa melhor doutrina, desatendendo a letra e o espírito do dispositivo processual, além de abrir a porta para a fraude à execução de sentença estrangeira transitada em julgado na sua jurisdição de origem. Outrossim, a aplicação da soberania nacional vem sendo mal utilizada (ainda que de forma velada) para evitar a saída de crianças brasileiras do território nacional, mesmo quando abandonadas e vivendo na miséria, a adoção internacional lhes traria saúde, bem-estar, segurança, educação e vida digna. O mesmo se dá quando a Justiça de outro país determinou a devolução de crianças brasileiras retiradas irregularmente de seu território, situação em que a decisão estrangeira, transitada em julgado, deve ser aceita no espírito do bom convívio do Brasil no seio da sociedade internacional, e a sua execução como a materialização de um julgado que visou o bem-estar do menor, manifestação de sua dignidade humana. Em ambos os casos - adoção internacional e decisão estrangeira sobre posse e guarda de criança - temos a soberania nacional erroneamente aplicada, em sacrifício do respeito pela dignidade da criança. E, por outro lado, uma falsa visão da dignidade humana nos tem levado a manter no Brasil criminosos estrangeiros, prejudiciais a nosso país e à sua segurança, onde a soberania nacional deveria ser invocada para impedir sua permanência em nosso território e agilizar sua expulsão. PROVINCIANISMO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO BRASILEIRO - Dignidade humana e soberania nacional: inversão dos princípios Página 16 lidia Highlight lidia Highlight 1. O autor agradece a Professora Carmen Tiburcio e as bacharelas Miriam Barone Vanessa Constantino Macharette, que leram o manuscrito e apresentaramsugestões. As opiniões apresentadas são de exclusiva responsabilidade doautor. 2. Pimenta Bueno, Direito internacional privado e aplicação de seus princípios com referencia às leis particulares do Brasil. Rio de Janeiro: Typographia Imp. E Const. De J. Villeneuve E. C., 1863, invoca, ao longo de todo seu trabalho, a obra do francês Foelix e trabalha com inúmeras leis européias. A influência dos autores europeus é nítida em Clovis Bevilaqua, Princípios elementares de direito internacional privado. Bahia: José Luiz da Fonseca Magalhães, 1906, em Eduardo Espínola, Elementos de direito internacional privado. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, 1925, em Pontes de Miranda, Tratado de direito internacional privado, 2 tomos. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1935, em Rodrigo Otavio, Direito internacional privado. São Paulo: Livraria Editora Freitas Bastos, 1942, e ao longo de toda a obra de Haroldo Valladão e de Oscar Tenório. 3. O art. 16 da LICC (LGL\1942\3) seguiu, quase literalmente o disposto no art. 30 da lei italiana. 4. Haroldo Valladão. Direito internacional privado - material de classe. 8. ed. Rio de Janeiro: Biblioteca Universitária Freitas Bastos, 1974. 5. Teixeira de Freitas. Código Civil (LGL\2002\400) - esboço. Ministério da Justiça e Negócios Interiores - Serviço de Documentação. [s.l.], 1952. 6. Revista Forense 92/352. 7. Vide Haroldo Valladão, Direito internacional privado, vol. 1, 5. ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1980, p. 470. Oscar Tenório, Direito internacional privado, vol. 1, 11. ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1976, n. 196 assim escreve: "O juiz tem o dever de aplicar o direito estrangeiro em virtude de determinação da lex fori. A obrigação resulta da própria natureza do direito internacional privado, que consagra, entre os princípios fundamentais, a regra de que a lei estrangeira competente se reputa igual à lei indígena", e no n. 200: "O juiz do foro aplica, ex oficio, o direito estrangeiro. Haverá denegação de justiça se ele se recusar a aplicá-lo, sob pretexto de que o ignora, ou de que suas disposições escapam ao seu entendimento. Desde que a lex fori determina que a lei estrangeira é a competente, o juiz tem o dever de aplicá-la. Não poderá desprezá-la para acolher o direito interno. Se as partes não invocam no pleito a lei estrangeira, nem por isto o magistrado se deve esquivar à sua aplicação". 8. Ver minha tese A evolução da ordem pública no direito internacional privado e o capítulo sobre Ordem Pública no meu Direito internacional privado - parte geral. 9. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. 9. Assim escrevi em Das limitações ao poder de expulsar estrangeiros, in Estudos jurídicos em homenagem ao Prof. Haroldo Valladão. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1983, p. 119-146. 10. O julgamento dos pedidos de habeascorpus impetrados em favor do Padre Vito Miracapillo está publicado na RTJ 95/589 e o voto do Ministro Thompson Flores vem transcrito em Jacob Dolinger, Direito internacional privado - parte geral, p. 268-269. 11. 138 Eur. Ct. H.R. (ser. A) (1988). 12. Human Rights Law Journal 85-92 (1991). PROVINCIANISMO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO BRASILEIRO - Dignidade humana e soberania nacional: inversão dos princípios Página 17 13. Os Estados Unidos perante o direito internacional. A decadência de uma grande nação, in Carlos Alberto Menezes Direito, Antonio Augusto Cançado Trindade e Antonio Celso Alves Pereira, Novas perspectivas do direito internacional contemporâneo - estudos em homenagem ao Professor Celso D. de Albuquerque Mello. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 83-134. 14. SE 2114, RTJ 87/384-387. 15. SE 2521, RTJ 95/34. 16. Brazilian confirmation of foreign judgments, 19 International Lawyer 853, 870-73 (1985) e Brazilianinternational procedural law, in Jacob Dolinger e Keith Rosenn, Panorama of Brazilian law. Miami, North South Center and Editora Esplanada Ltda., 1992, p. 370. 17. Helene Gaudemet Tallon. In memoriam - Marthe Simon Depitre (1911-1997). Journal de Droit International, 1998, p. 7. 18. SE 4835, RTJ 182/536. 19. Carmen Tiburcio, Uma breve análise sobre a jurisprudência dos tribunais superiores em matéria de Direito Internacional Privado no ano de 2006, in Revista de Direito do Estado, n. 5. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 55 e ss. 20. Luís Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, 2003, p. 49, apud Tiburcio, op. e loc. cits. 21. Art. 7.º, XIX, da CF/1988 (LGL\1988\3). 22. Vide STJ, SE 880, DJU 06.11.2006. Lê-se no bojo do acórdão: "a decisão italiana carece, no ponto, do requisito básico relativo à motivação, princípio de ordem pública que, consoante o STF, - SE 2521 - com 'ele deve harmonizar-se o julgado estrangeiro para que tenha eficácia no Brasil'". No mesmo sentido a SE 879, j. 02.08.2006. 23. RTJ 57/16. Tratava-se de hipótese de crianças cujos pais desapareceram em seu avião particular. Um tio paterno recebeu da Justiça argentina a incumbência de tutelar os menores. Uma tia materna trouxe as crianças para o Brasil, subtraindo-as fraudulentamente à jurisdição do juiz argentino. À pedido do tutor, a Justiça argentina decidiu que as crianças deveriam ser devolvidas àquela jurisdição. Vide meu livro sobre a A criança no direito internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 222-224. 24. Luis Olavo Baptista e Milton Latorre, Observações práticas sobre a homologação de sentenças e de laudos arbitrais estrangeiros no Brasil, Revista Forense, vol. 276. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 315, assim escrevem, ao referir-se ao art. 90 do CPC (LGL\1973\5): "São disposições de exacerbado nacionalismo, a nosso ver mal aplicado e resíduos de influência fascista que pairou sobre o Brasil, deixando sua marca na legislação editada sob regime ditatorial, inclusive no processo civil". Considero exagerada esta colocação. Prefiro respeitar o art. 90, interpretando-o corretamente como o fez José Carlos Barbosa Moreira, cuja lição é referida no texto mais adiante. 25. Relações entre processos instaurados sobre a mesma lide civil no Brasil e em país estrangeiro, in Estudos jurídicos em homenagem ao professor Oscar Tenório. Rio de Janeiro: UERJ, 1977, p. 370. 26. SE 2727, julgada em 1981. 27. SE 4509, julgada em agosto de 1992, rel. Min. Marco Aurélio. PROVINCIANISMO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO BRASILEIRO - Dignidade humana e soberania nacional: inversão dos princípios Página 18 28. Além da sentença estrangeira referida na nota anterior, vejam-se as SE 5116 e 7209. Na SE 7209, julgada em 2004, o Min. Marco Aurélio divergiu da rel. Min. Ellen Gracie, destacando-se em seu voto a seguinte passagem: "Peço vênia para divergir, e o faço adotando o pronunciamento da Procuradoria Geral da República, quanto à homologação parcial desse acordo. O fato de uma das partes, de processo que teve curso no estrangeiro, ajuizar ação no Brasil não consubstancia óbice ao reconhecimento da jurisdição estrangeira, principalmente quando essa jurisdição desaguou em um título que já transitou em julgado. (...) No voto, Vossa Excelência aponta mesmo que o processo, no Brasil, em verdadeira sobreposição, ainda está em curso, não se contando com pronunciamento definitivo que tivesse sido coberto pelo manto da coisa julgada. Na parte em que a jurisdição estrangeira homologou a separação dos envolvidos neste processo e dispôs sobre a guarda do filho, penso que não há óbice, tendo em conta, repito, apenas o trânsito de processo no Brasil, à homologação , ao reconhecimento, portanto, do que decidido." 29. STF, SE 2069, 3457, 3192, 5778, 6729, 6971, 7570, 7218, 5526, 7100, 7420, e STJ, SE 841, 1041 e 819. Em comentário ao acórdão da SE 7420 publicado no Clunet ( Journal de Droit International) 2007, p. 185, observa Luis Olavo Baptista, que a hipótese que versava sobre a guarda de uma menor brasileira não permitia a homologação da sentença alemã, porque a competência do juiz brasileiro é exclusiva. O mestre paulista corrige esta colocação da Corte eis que o caso não está inserido no art. 89, único que cuida de competências exclusivas, e acrescenta que os fundamentos corretos da recusa à homologação são a soberania nacional, combinada com a nacionalidade brasileira e o domicílio da menor no Brasil, com o que não concordamos, pois o destino de uma criança brasileira, mesmo domiciliada no Brasil deve ser decidido com base em seu bem-estar e no direito dos que pleiteiam sua guarda, matéria que não se presta a ser vista sob o enfoque de soberania nacional, como elaboramos no texto do presente trabalho. 30. Vejam-se também os acórdãos nas SE 841 e 1041, julgadas em 2005 e 2006, respectivamente. 31. Jacob Dolinger, Direito internacional privado - parte geral. 9. ed., 2008, cit., p. 429. Neste local invoco o que escrevera no meu livro A criança no direito internacional, 2003, p. 230: "Não deve ser obstada a homologação por estar em andamento ação na Justiça brasileira. Tudo se resume, afinal, em uma corrida, que não é decidida por quem começa primeiro a acionar, mas por quem primeiro finalizá-la. A homologação da sentença estrangeira é uma formalidade, da qual não depende a sua definitividade; a homologação confere à sentença estrangeira eficácia local e daí a sua exeqüibilidade, mas, ao ser homologada, a sentença estrangeira é considerada como definitiva a partir de seu trânsito em julgado no exterior". 32. Cyril Chabert produziu uma obra L'intérêt de l'enfant et les conflits de lois, resenhada por Lena Gannagé no Clunet 2006, p. 377. O livro registra a existência de uma tendência nacionalista na solução de questões de guarda de crianças. O autor defende que o interesse da criança poderia constituir um fator de aproximação dos sistemas jurídicos, desde que se abandone uma visão unitária (ou seja, unilateralista) da matéria. 33. Na já referida SE 7209, o Min. Marco Aurélio assim concluiu: "O fato de uma das partes do processo que teve curso no estrangeiro, ajuizar ação no Brasil não consubstancia óbice ao reconhecimento da jurisdição estrangeira, principalmente quando essa jurisdição desaguou em um título que já transitou em julgado. No caso, houve a prova do trânsito em julgado. (...) o processo, no Brasil, em verdadeira sobreposição, ainda está em curso, não se contando com pronunciamento definitivo que tivesse sido coberto pelo manto de coisa julgada". No mesmo sentido votou o Min. Sepúlveda Pertence que entre outros argumentos, teceu a consideração de que: "A decisão aqui proferida ainda não transitou em julgado, pendendo (...) de julgamento de agravo PROVINCIANISMO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO BRASILEIRO - Dignidade humana e soberania nacional: inversão dos princípios Página 19 regimental em agravo de instrumento contra indeferimento de recurso especial." Invoca acórdão 2727 do Min. Xavier de Albuquerque, a que aludi acima. O STJ ao julgar a SE 611, não adotou a teoria da soberania nacional, lendo-se na ementa: "A existência de ação anulatória de sentença arbitral estrangeira em trâmite nos tribunais pátrios não constitui impedimento à homologação da sentença alienígena, não havendo ferimento à soberania nacional". Mas isto se deu por se tratar de matéria de arbitragem, que tem disciplina específica e, como bem esclarece o acórdão, na sua ementa: "A Lei 9.307/1996, no § 2.º do art. 33 estabelece que a sentença que julgar procedente o pedido de anulação determinará que o árbitro ou tribunal profira novo laudo, o que significa ser defeso ao julgador proferir sentença substitutiva à emanada do Juízo arbitral. Daí a inexistência de decisões conflitantes". 34. José Carlos Barbosa Moreira, Comentários ao Código de Processo Civil (LGL\1973\5). 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 95-96. 35. Sergio Sahione Fadel, Código de Processo Civil (LGL\1973\5) comentado. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003,p. 135-136. 36. Pontes de Miranda, Comentários ao Código de Processo Civil (LGL\1973\5). 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 228-229. 37. Haroldo Valladão. Direito internacional privado. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1978. vol. 3, p. 141-143. Escreve Valladão: "Incompreensível, assim, que o Código de Processo Civil (LGL\1973\5) de 1973, aprovado às carreiras no Congresso, em três meses, sem devida apreciação dos seus textos, viesse em seu art. 90, copiado do artigo do Código de Processo Civil (LGL\1973\5) da Itália, às vezes com as mesmas palavras, condenar a litispendência e a conexão com referência a ação intentada perante tribunal estrangeiro". 38. ApCiv 4315, julgada em 1987 pela 4.ª Câm. Cív. do TJRJ, Revista de Direito do TJRJ, vol. 5, p. 124 apud Jacob Dolinger. A criança no direito internacional, cit., p. 498, nota 285. 39. Viviane Alves Santos Silva, A adoção internacional sob a ótica do melhor interesse da criança, arquivado na Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Vide meu livro A criança no direito internacional, p. 522-523. 40. HC 31449, j. 12.05.2004, DJ 31.05.2004, p. 169. 41. HC 43604, j. 10.08.2005, DJ 29.08.2005, p. 139. 42. HC 90.760, 1.ª Seção, j. 27.02.2008, rel. Min. Denise Arruda, DJe 17.03.2008, p. 1. No mesmo sentido o HC 88.882, julgado e publicado no mesmo dia. 43. From the commandments to the rights of man, Jubilee vol. Cohn, 1971, p. 22. PROVINCIANISMO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO BRASILEIRO - Dignidade humana e soberania nacional: inversão dos princípios Página 20
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